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Monteiro Lobato em aulas de ciências: aproximando ciência e literatura na educação científica

Monteiro Lobato in science classes: approaching science and literature in scientific education

Resumos

Este artigo descreve os resultados de uma pesquisa que objetivou avaliar o uso da literatura de Monteiro Lobato no Ensino de Ciências. Em uma perspectiva interdisciplinar, as obras A reforma da natureza e Serões de Dona Benta foram utilizadas na abordagem de conteúdos científicos e de questões acerca da "Natureza da Ciência" em duas turmas dos anos finais do Ensino Fundamental. A análise dos resultados indica que as obras contribuíram para a aprendizagem e a problematização de conteúdos científicos nelas contidos. A obra A reforma da natureza oportunizou, sobretudo, a abordagem de alguns conteúdos do tema transversal meio ambiente; enquanto Serões de Dona Benta foi particularmente eficiente na problematização dos conceitos de matéria, massa, peso e de algumas questões acerca da Natureza da Ciência. O estudo evidencia, ainda, a necessidade de o professor de ciências estar atento aos erros conceituais presentes em obras literárias, evitando aprendizagens equivocadas.

Ensino de ciências; Literatura; Ciência e literatura; Monteiro Lobato; Interdisciplinaridade


This article describes the findings of a study that aimed to evaluate the use of Monteiro Lobato's literature in Science Teaching. According to an interdisciplinary perspective, the books A reforma da natureza and Serões de Dona Benta were used to approach scientific contents and issues related to "Nature of Science" in two classes of the last grades of Middle School. The analysis of the results indicates that the books contributed to the learning and questioning of scientific contents of these texts. The book A reforma da natureza mainly offered the opportunity for discussing some environmental themes, while Serões de Dona Benta was particularly efficient in working with concepts of matter, mass and weight and in raising some questions about the Nature of Science. The study also demonstrates the need for the science teacher to be aware of conceptual errors present in the literature, to avoid mistakes in the learning process.

Science Teaching; Literature; Science and literature; Monteiro Lobato; Interdisciplinarity


Introdução

A discussão acerca da necessidade de uma aproximação entre a cultura científica e a

cultura humanística não é recente. Snow (1995)SNOW, C. P. As duas culturas e uma segunda leitura. São Paulo: EDUSP, 1995., em uma palestra proferida em 1959 na Universidade de Cambridge, afirmava que o distanciamento existente entre as "duas culturas", representadas pelos cientistas e pelos literatos, contribuía para a ausência de uma cultura comum na sociedade, de modo geral. À época, o autor sugeria mudanças na educação, sobretudo, nas escolas primárias e secundárias, que favorecessem o surgimento dessa "cultura comum", possibilitando, assim, a formação de homens e mulheres com capacidade de melhor compreenderem o mundo (SNOW, 1995SNOW, C. P. As duas culturas e uma segunda leitura. São Paulo: EDUSP, 1995.). A proposta da aproximação entre as "duas culturas" tem sido utilizada como aporte teórico para muitos trabalhos que propõem a aproximação entre a Ciência e a Literatura no Ensino de Ciências.

De modo geral, os trabalhos que refletem sobre a temática argumentam que o uso da literatura motivaria os alunos, sobretudo aqueles que, normalmente, não se sentiriam atraídos pelas aulas tradicionais, e oportunizaria o contato com diferentes "visões de mundo" (ZANETIC, 1997ZANETIC, J. Física e literatura: uma possível integração no ensino. In: ENCONTRO DE PESQUISADORES EM ENSINO DE FÍSICA, 5., 1997, Belo Horizonte. Atas... Belo Horizonte: UFMG, 1997. p. 27-33.); contextualizaria os conceitos científicos (GUERRA; MENEZES, 2009GUERRA, A.; MENEZES, A. M. S. Literatura na física: uma possível abordagem para o ensino de ciências? In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS, 7., 2009, Florianópolis. Anais...Florianópolis, 2009. p. 1-10. Disponível em: <http://posgrad.fae.ufmg.br/posgrad/viienpec/pdfs/504.pdf>. Acesso em: 05 maio 2012.
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); viabilizaria a aprendizagem de conteúdos e contribuiria para a formação do leitor (PINTO; RABONI, 2005PINTO, A. A.; RABONI, P. C. A. Concepções de ciência na literatura infantil brasileira: conhecer para explorar possibilidades. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS, 5., 2005, Bauru. Atas... Rio de Janeiro: BRAPEC, 2005. p. 1-5. Disponível em: <http://www.nutes.ufrj.br/abrapec/venpec/conteudo/artigos/3/pdf/p203.pdf>. Acesso em: 05 maio 2012.
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).

Para além dessas questões, os textos literários podem ser utilizados, também, na problematização das visões de ciência que veiculam, uma vez que transmitem imagens de ciência vinculadas ao contexto histórico da época em que foram produzidos. Muitas vezes, as visões veiculadas pelos textos remetem a algumas das concepções de ciência consideradas inadequadas, que são manifestadas por alunos e professores de todos os níveis de ensino, de acordo com estudos da área da Didática das Ciências Naturais (FERNÁNDEZ et al., 2002FERNÁNDEZ, I. et al. Visiones deformadas de la ciencia transmitidas por la enseñanza. Enseñanza de las Ciencias, Barcelona, v. 20, n. 3, p. 477-488, 2002.; GIL PÉREZ et al., 2001GIL PÉREZ, D. et al. Para uma imagem não deformada do trabalho científico. Ciência & Educação, Bauru, v. 7, n. 2, p. 125-153, 2001.). Desta forma, os textos literários poderiam ser utilizados na inserção da discussão acerca da Natureza da Ciência no ensino.

No Ensino Fundamental, tal inserção não é muito fácil, dado que são questões complexas que, na maioria das vezes, necessitam de adaptações e simplificações para que possam ser abordadas neste nível de ensino. Ainda assim, essa inserção é recomendada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: ciências naturais 3º e 4º ciclos. Brasília, 1998.), que enfatizam a necessidade de o Ensino de Ciências, nesse nível, possibilitar, aos alunos, uma compreensão adequada da atividade científica. Neste sentido, pode ser particularmente interessante tratar questões acerca da Natureza da Ciência, no Ensino Fundamental, pelo viés literário, uma vez que possibilitaria a abordagem de uma forma mais lúdica, "conquistando" a atenção de um maior número de alunos.

Por outro lado, os Parâmetros Curriculares Nacionais/Ciências Naturais (BRASIL, 1998BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: ciências naturais 3º e 4º ciclos. Brasília, 1998.) também fazem recomendações acerca do uso de textos durante as aulas de ciências. Segundo esse documento, o ensino da língua deve ser compartilhado pelos professores de todas as áreas. Desta forma, recomenda a utilização de textos de fontes diversas, também, nas aulas de ciências, sobretudo no intuito de despertar o interesse do aluno, especialmente aqueles textos que possibilitariam o entendimento de aspectos da prática científica, numa perspectiva interdisciplinar. Alertam, entretanto, para o fato de os textos estarem situados em contextos históricos, podendo "carregar" erros e preconceitos, devendo o professor de ciências estar atento a estas especificidades.

Na escola, a aproximação entre a Ciência e a Literatura pode se dar pela utilização de duas categorias de autores: os cientistas com veia literária, isto é, aqueles que estão diretamente envolvidos na prática científica e cujos textos podem ser "lidos" como literatura; e os escritores com veia científica, autores que utilizam o conhecimento científico para compor suas obras. Monteiro Lobato é considerado um escritor brasileiro com veia científica (ZANETIC, 2007______. Literatura e cultura científica. In: ALMEIDA, M. J. P. M.; SILVA, H. C. Linguagens, leituras e ensino de ciências. Campinas: Mercado das Letras, 2007. p. 11-31.). Mas como a Ciência aparece em suas obras?

A leitura do conto Gens ennuyeux3 3 Pessoas entediantes (tradução nossa). (LOBATO, 2007b______. Gens ennuyeux . In: ______. Cidades mortas. São Paulo: Globo, 2007b. p. 98-105.), com o qual Lobato vence um concurso literário em 1907, aos 21 anos – 14 anos antes de iniciar sua produção infantil –, já evidencia o descontentamento do autor com a linguagem científica e o seu desejo de torná-la mais atraente. No conto, após descrever uma enfadonha conferência científica, ele finaliza: "Ciência e Arte nasceram para viver juntas. [...] Se este senhor sábio trouxesse pela mão direita a Ciência e pela mão esquerda a Arte, para fundi-las no momento de falar, que coisa esplêndida não faria de um tal tema!" (LOBATO, 2007a, p. 104LOBATO, M. Cidades mortas. São Paulo: Globo, 2007a.). A forma encontrada pelo autor para apresentar a Ciência na maior parte das suas obras infantis parece ser uma resposta a essa inquietação da juventude. Por meio da literatura infantil, ele aproxima Ciência e Arte, materializando um "projeto pedagógico". Nas palavras de Lobato: "a inteligência só entra a funcionar com prazer, eficientemente, quando a imaginação lhe serve de guia [...] A arte abrindo caminho à ciência: quando compreenderão os professores que o segredo de tudo está aqui?" (LOBATO, 1956______. Mundo da lua e miscelânea. São Paulo: Brasilense, 1956., p. 8).

De acordo com Filipouski (1983)FILIPOUSKI, A. M. R. Monteiro Lobato e a literatura infantil brasileira contemporânea. In: ZILBERMAN, R. (Org.). Atualidade de Monteiro Lobato: uma revisão crítica. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. p. 102- 105. (Novas perspectivas, 8)., as histórias do Sítio do Picapau Amarelo apresentam dois focos principais: um deles é o ficcional, no qual a fantasia e a realidade se unem à resolução de problemas por meio da atuação dos personagens sobre o seu meio ambiente. No outro, há sempre uma preocupação de caráter formativo e informativo, buscando preencher uma lacuna pedagógica por meio da utilização de conteúdos de diversas áreas do conhecimento. Dentre as diversas áreas do conhecimento presentes nos livros infantis, a Ciência ocupa um papel de destaque. Ao longo das obras, Lobato aborda conteúdos científicos da biologia, da física, da química, da geologia, por exemplo. Além disso, em algumas obras, ele discute a prática científica.

A análise da trajetória do saber científico presente na literatura infantil lobatiana evidencia a evolução da visão científica do autor ao longo do tempo, caracterizada em três fases: a fase do saber inútil, que engloba os livros escritos entre 1920-1931/32; a fase do saber útil, com livros escritos entre 1932/33-1941; e a fase do saber malversado, cujos livros foram escritos entre 1942-1947. Essas fases, caracterizadas por atitudes de aproximação e de afastamento em relação à Ciência, estariam relacionadas ao contexto histórico, social, político e cultural vividos por Lobato, na época da produção dos seus livros (CAMENIETZKI, 1988CAMENIETZKI, C. Z. O saber impotente: estudo da noção de ciência na obra infantil de Monteiro Lobato. 1988. 99 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1988.).

Na primeira fase, a ciência está relacionada a um saber inútil, associada ao velho, ao "embolorado", ao saber bacharelesco, de linguagem difícil e complicada; e, na maioria das vezes, representa um entrave ao desenrolar das histórias. Os "sábios", homens representantes da ciência, são caracterizados como entediantes e contemplativos. A ciência apresentada na segunda fase está associada a um saber útil, em uma visão oposta à da fase anterior. É esta fase que concentra a maior parte da obra infantil lobatiana e na qual estão presentes as obras didáticas, voltadas para a escola. Nestas obras, a ciência passa a ter um papel fundamental no desenrolar das histórias, estando, normalmente, vinculada à resolução de problemas. Os "sábios", homens da Ciência, são normalmente descritos como condutores da humanidade. Na terceira fase, a ciência é compreendida como um saber malversado, um saber mal utilizado pelos homens. Nas obras escritas neste período, as discussões acerca da estupidez humana, das guerras e suas consequências nefastas para a humanidade começam a fazer parte dos diálogos dos persona-gens do Sítio do Picapau Amarelo (CAMENIETZKI, 1988CAMENIETZKI, C. Z. O saber impotente: estudo da noção de ciência na obra infantil de Monteiro Lobato. 1988. 99 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1988.). Visconde de Sabugosa, o "sábio sabugo", apesar de não ser o único personagem a dar voz à ciência nas histórias, é considerado o "representante da Ciência", como entendida por Lobato no momento em que produziu suas obras (CAMENIETZKI, 1988CAMENIETZKI, C. Z. O saber impotente: estudo da noção de ciência na obra infantil de Monteiro Lobato. 1988. 99 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1988.; PEREIRA, 2006PEREIRA, R. B. Memórias do Visconde de Sabugosa. 2006. 93 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.).

Inserido nessa problemática, este artigo traz resultados de uma pesquisa mais ampla, que objetivou avaliar a utilização da literatura infantil de Monteiro Lobato como viabilizadora do ensino de Ciências nos anos finais do Ensino Fundamental. Mais especificamente, nossa intenção era investigar os limites e as possibilidades da utilização de obras específicas de Lobato em aulas de Ciências desse nível de ensino (GROTO, 2012GROTO, S. R. Literatura de Monteiro Lobato no ensino de ciências. 2012 185 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2012.). Aqui, descrevemos e analisamos a experiência realizada em duas turmas do Ensino Fundamental com o uso de duas obras pertencentes à fase do saber útil. São elas: A reforma da natureza (LOBATO, 2010______. A reforma da natureza. 2. ed. São Paulo: Globo, 2010.) e Serões de Dona Benta (LOBATO, 1973______. Serões de Dona Benta. São Paulo: Brasiliense, 1973.).

A reforma da natureza

A reforma da natureza foi lançado em 1941 pela Companhia Editora Nacional. A história tem inicio quando Dona Benta e Tia Nastácia, após o término da guerra na Europa, são convidadas para auxiliar os ditadores, reis e presidentes no processo de paz. Todos vão para a Europa, com exceção de Emília. A boneca resolve aproveitar a oportunidade para, sozinha, pôr em prática algumas ideias surgidas no dia em que ouvira, pela primeira vez, a fábula do Reformador da Natureza.

Segundo a fábula, Américo Pisca-Pisca colocava defeito em tudo o que a natureza havia feito, por isso seu objetivo era reformá-la. Em sua primeira reforma, ele troca o lugar das abóboras e das jabuticabas, pois, no chão, as jabuticabas ficariam mais fáceis de pegar. Logo após realizar a reforma, Américo decide tirar uma soneca à sombra da jabuticabeira. Ao adormecer, uma grande abóbora cai, quase lhe acertando a cabeça. A partir desse dia, Américo Pisca-Pisca compreende que, na natureza, tudo tem um porquê e desiste do seu plano reformador. Emília, entretanto, não aceitando a "lição" de Américo, resolve fazer suas próprias reformas, e chama a sua amiga Ranzinha para ajudá-la. As duas começam a reformar tudo o que veem pela frente: os pássaros, os insetos (borboletas, percevejos, moscas, pulgas), a vaca Mocha, o porco Rabicó, as frutas, os livros... Os únicos insetos que não são reformados são as formigas, pois, segundo Emília, eram perfeitas! A primeira parte da história finaliza com o retorno de Dona Benta que, espantada com as reformas, faz Emília compreender que, na natureza, tudo tem seu lugar e as "reformas" podem trazer consequências inesperadas. Convencida – mas não muito –, a boneca desfaz a maior parte das reformas.

Na segunda parte da história, o Visconde de Sabugosa, que aprendera sobre a fisiologia das glândulas com grandes cientistas europeus, enquanto Dona Benta e Tia Nastácia participavam da Conferência da Paz, auxilia Emília a realizar novas reformas, mas, agora, com os "critérios científicos" que aprendera na Europa. Os dois montam um laboratório improvisado na cova do anjo, um buraco na grande figueira. No laboratório, o Visconde "dá aulas" de fisiologia para Emília. Ele explica sobre o funcionamento dos sistemas circulatório, respiratório, digestório, e tudo o que aprendeu sobre o funcionamento das glândulas. Durante dias seguidos, os dois realizam "experiências", fazendo enxertos de glândulas. Retiravam glândulas de uns animais e colocavam em outros. Entretanto, alguns animais enxertados fogem, começando a confusão. Os boatos sobre os insetos gigantes que rondavam o Sítio atraem a atenção de curiosos, da imprensa e de cientistas renomados, que vão ao local investigar o fenômeno. O cientista Dr. Zamenhof chega ao Sítio e se impressiona com as experiências realizadas pelo Visconde. Os animais são capturados e levados para serem estudados pela ciência. No final da história, Visconde é enaltecido pela sua inteligência e pelas descobertas científicas que realizara.

Serões de Dona Benta

A Obra Serões de Dona Benta foi publicada, inicialmente, em 1937 pela Companhia Editora Nacional. Trata-se de uma obra densa, com 23 capítulos e 101 páginas (LOBATO, 1973______. Serões de Dona Benta. São Paulo: Brasiliense, 1973.), que fazem lembrar um livro didático de Ciências. A obra aparenta ter três objetivos: "levar às crianças o conhecimento sobre as conquistas da Ciência, questionar as verdades feitas que o tempo cristalizou e que cabe ao presente redescobrir e renovar, além de propor um novo modelo de ambiente escolar" (DUARTE, 2008DUARTE, L. C. Serões: verdades científicas ou comichões lobateanas? In: LAJOLO, M.; CECCANTINI, J. L. (Org.). Monteiro Lobato livro a livro: obra infantil. São Paulo: Ed. da Unesp: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. p. 391-405., p. 391).

Apesar de a obra ser classificada como a mais enfadonha dentre os livros da literatura infantil de Monteiro Lobato (PENTEADO, 1997PENTEADO, J. R. W. Os filhos de Lobato. Rio de Janeiro: Dunya, 1997. ), Serões de Dona Benta concentra, ao longo do texto, uma interessante discussão acerca do que seja a ciência e de como ela funcionava, na visão do seu autor. Mais do que um livro sobre conceitos científicos de física e de química, acreditamos representar as comichões lobatianas acerca da Natureza da Ciência.

Ainda na obra O poço do Visconde, quando os meninos do Sítio aprenderam sobre geologia, Dona Benta percebe que seus netos estavam muito curiosos, com vontade de aprender ciência (DUARTE, 2008DUARTE, L. C. Serões: verdades científicas ou comichões lobateanas? In: LAJOLO, M.; CECCANTINI, J. L. (Org.). Monteiro Lobato livro a livro: obra infantil. São Paulo: Ed. da Unesp: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. p. 391-405.). Ela decide, então, organizar saraus científicos, nos quais ensinaria, sobretudo, sobre a química e a física. E assim foi feito. Ao longo dos capítulos, ela explica sobre o ar, a água, a matéria, o calor, o tempo, o clima, o sistema solar, dentre outros conteúdos científicos, e utiliza o laboratório improvisado, que fez no quarto de hóspedes, para realizar várias experiências. Para explicar os conteúdos científicos, Dona Benta dialoga com os meninos, fazendo com que eles se aproximem dos conceitos pouco a pouco. Em muitos momentos, ela faz uso da "história da ciência", discorrendo sobre como alguns conceitos científicos foram desenvolvidos. Utiliza, também, muitos exemplos da vida cotidiana para contextualizar as suas explicações.

Metodologia

Visando atingir nossos objetivos, por meio da pesquisa-ação (THIOLLENT, 2011THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. 18. ed. São Paulo: Cortez, 2011.), em uma abordagem interdisciplinar (FAZENDA, 2005FAZENDA, I. C. A. Interdisciplinaridade: definição, projeto, pesquisa. In: FAZENDA, I. C. A. (Org.). Práticas interdisciplinares na escola. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2005. p 15-18.), foram utilizadas as obras A reforma da natureza (LOBATO, 2010______. A reforma da natureza. 2. ed. São Paulo: Globo, 2010.) e Serões de Dona Benta (LOBATO, 1973______. Serões de Dona Benta. São Paulo: Brasiliense, 1973.) em duas turmas dos anos finais do Ensino Fundamental (8º e 9º anos, respectivamente) de uma escola pública da Rede Estadual de Ensino, localizada no município de Tibau do Sul, Rio Grande do Norte. As obras foram lidas durante aulas de Língua Portuguesa e a abordagem dos conteúdos científicos ocorreu durante as aulas de Ciências. As atividades envolveram a participação de 55 alunos e de três professoras (uma professora de língua portuguesa e duas professoras de ciências, dentre elas, a primeira autora deste artigo).

As leituras foram realizadas pela professora de Língua Portuguesa e acompanhadas, individualmente, pelos alunos, em livros que lhes foram doados. O princípio metodológico da leitura por andaime (scaffolding), entendido como "uma série de atividades especificamente desenhadas para assistir um grupo particular de estudantes a ler com sucesso, entender, apreender e apreciar uma seleção particular" (GRAVES; GRAVES, 1995GRAVES, M. F.; GRAVES, B. B. The scaffolding reading experience: a flexible framewook for helping students get the most out of text. [S.l: s.n.], 1995 (texto não publicado)., p. 1)4 4 Tradução de Marly Amarilha, do Núcleo de Pesquisa em Escrita, Linguagem e Comunicação (NUPELC) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). , foi utilizado como metodologia orientadora da leitura nas aulas de Língua Portuguesa. A leitura por andaime acontece em três etapas, a saber: pré-leitura, leitura e pós-leitura. Na pré-leitura, são realizadas atividades que darão suporte à leitura propriamente dita, dentre as quais podemos citar atividades de motivação, de ativação de conhecimentos prévios, de pré-ensino de vocabulário e de conceitos. Na etapa seguinte, acontece a leitura, que poderá ser realizada de diferentes formas, tais como a leitura silenciosa e a leitura para o estudante. A pós-leitura envolve atividades diversificadas que objetivam verificar a compreensão do texto, como, por exemplo: os questionamentos, as discussões, as atividades artísticas não verbais e as atividades escritas (GRAVES; GRAVES, 1995GRAVES, M. F.; GRAVES, B. B. The scaffolding reading experience: a flexible framewook for helping students get the most out of text. [S.l: s.n.], 1995 (texto não publicado).). Durante a pré-leitura, fizemos uso, sobretudo, de atividades de motivação, uma vez que a abordagem dos conceitos científicos se daria nas aulas de Ciências. A leitura para o aluno foi utilizada na maior parte das aulas, devido à prática da professora de Língua Portuguesa em "contação de história". Na pós-leitura, fizemos uso de discussões, de atividades escritas e de atividades artísticas não verbais.

Nas aulas de Ciências, trechos específicos das obras, que faziam alusão aos conteúdos científicos ou que haviam gerado discussão ou interesse dos alunos durante as aulas de Língua Portuguesa, eram utilizados como elementos introdutórios à abordagem dos conteúdos científicos. O livro didático de Ciências adotado pela escola foi utilizado como apoio pedagógico, sobretudo quando da presença de erros conceituais nas obras literárias. Na abordagem dos conteúdos científicos, fizemos uso, também, de recursos audiovisuais e de experimentações, especialmente na turma do 9º ano. Ao final de cada aula, os alunos realizavam atividades variadas, como a resolução de exercícios e pesquisas, visando à aplicação dos conteúdos abordados durante as aulas. As aulas foram gravadas em vídeo e as atividades realizadas anexadas em pastas individuais. Ao término de todas as atividades em sala de aula, dez alunos de cada uma das turmas, escolhidos aleatoriamente dentre os que apresentaram um menor número de faltas, foram entrevistados. As professoras também foram entrevistadas por meio de um questionário composto por questões abertas.

Os dados coletados foram analisados a partir de três categorias definidas a priori, a saber: (1) Ensino/aprendizagem: falas, ações ou situações nas quais a literatura de Monteiro Lobato esteve diretamente relacionada à abordagem dos conteúdos científicos; (2) Impressões: falas, ações ou situações nas quais os participantes expuseram suas impressões sobre as atividades realizadas; (3) Limites: falas, ações ou situações que evidenciaram as dificuldades ocorridas ao longo do processo investigativo.

A escolha das obras literárias

As obras A reforma da natureza e Serões de Dona Benta foram escolhidas por apresentarem alguns conteúdos presentes no planejamento anual da disciplina de Ciências das turmas do 8º e 9º ano, respectivamente. Entretanto, a análise inicial de ambas as obras evidenciou a presença de erros conceituais em diversos trechos. Na obra A reforma da natureza, a presença dos erros foi minimizada pela inclusão, na recente edição (LOBATO, 2010______. A reforma da natureza. 2. ed. São Paulo: Globo, 2010.), de notas esclarecendo e corrigindo grande parte deles. Em Serões de Dona Benta, foi encontrado um número maior de erros conceituais. Em alguns casos, eles estão relacionados a mudanças de nomenclatura de alguns termos científicos em relação à época em que o livro foi lançado, em 1937. Outros erros podem ser associados a algumas concepções alternativas relacionadas ao ensino da física, particularmente. Visando a minimizar a presença dos erros contidos nos Serões de Dona Benta, foi elaborado um texto introdutório à leitura da obra, no qual alertávamos, aos alunos, para a presença de erros conceituais e os estimulávamos a encontrá-los, em uma espécie de atividade do tipo "caça ao erro". Nesta atividade, o livro didático adotado pela escola foi utilizado como apoio à abordagem dos conteúdos científicos.

Os conteúdos científicos abordados em sala de aula por meio das obras

No Quadro 1 estão detalhados os conteúdos científicos abordados, por meio das obras, em cada uma das turmas, bem como o número de aulas utilizadas para tais abordagens. Na turma do 8º ano, os conteúdos científicos foram abordados em um total de 12 aulas, correspondendo a um mês de atividades, considerando três aulas semanais de Ciências. No 9º ano, foram necessárias 16 aulas desenvolvidas em, aproximadamente, sete semanas. Apesar de o 9º ano também possuir três aulas de Ciências semanais, utilizou-se um período maior de tempo devido à ocorrência de algumas interrupções não previstas no planejamento inicial.

Quadro 1
Conteúdos abordados nas turmas do 8º e 9º anos.

Resultados e discussão

Apresentamos e analisamos, neste artigo, os resultados obtidos na abordagem de alguns conteúdos apresentados no Quadro 1. Para a turma do 8º ano, trazemos alguns conteúdos da unidade didática Meio Ambiente, a saber: polinização e questões atitudinais. E, para a turma do 9º ano, conteúdos das unidades didáticas Matéria (matéria, massa e peso) e Natureza da Ciência. Para isso, utilizamos, sobretudo, a transcrição dos diálogos estabelecidos, em sala de aula, durante a abordagem destes conteúdos.

O trabalho com os conteúdos científicos, nas aulas de Ciências, era iniciado por meio da leitura de trechos específicos das obras. Desta forma, utilizamos a leitura do trecho a seguir, extraído da obra A reforma da natureza, para a introdução do conceito de polinização na turma do 8º ano. Logo após, transcrevemos diálogos gerados, em sala aula, a partir da sua leitura. No trecho em questão, Emília conversa com a sua amiga Rã sobre as borboletas:

Estou fazendo uma bela coleção de borboletas e dessas azuis não consigo. São das mais ariscas. Temos também de reformar as borboletas.

– Impossível Emília! – gritou a Rã. – Tudo nelas é tão perfeito, tão direitinho e lindo, que qualquer reforma as estraga.

– Minha reforma das borboletas – explicou Emília – não é na beleza delas, e sim no gênio delas. Quero que se tornem "pegáveis" como os besouros (LOBATO, 2010______. A reforma da natureza. 2. ed. São Paulo: Globo, 2010., p. 26-27).

Professora: O que vocês acham que aconteceria com as borboletas se a gente conseguisse pegá-las com facilidade, como Emília queria?

Aluno 25:Ia exterminar as borboletas, porque todo mundo ia querer uma.

Aluno 23:Elas iam sumindo e não haveria mais borboletas para se acasalar, elas iam acabar.

Professora:E se as borboletas fossem exterminadas, vocês sabem o que aconteceria? O que elas fazem? [Não houve resposta]

Professora: Vocês já ouviram falar em polinização?

Vários: .

Aluno 23:Já. É quando os insetos vão de uma flor para outra.

Professora:E o que acontece quando os insetos vão de uma flor para outra? [Não houve resposta. A professora explica o que é a polinização, como acontece, qual a sua importância e continua...] Então, o que aconteceria se as borboletas ficassem dóceis como Emília queria?

Aluno 3:Ia ter pouca borboleta para fazer a polinização.

Aluno 2:Aí ia ter poucas plantas.

Professora: Por quê?

Aluno 23:Não ia ter inseto para juntar o masculino e o feminino da planta.

Professora: E as moscas? A gente pode acabar com as moscas como Emília queria?

Aluno 23: Não, elas fazem a polinização também!

Aluno 8:E elas também são alimentos de outros animais. O sapo come mosca.

Percebe-se, pela análise do trecho transcrito, a dialogicidade proporcionada, em sala de aula, pela leitura da obra. Por meio do diálogo, o conceito, contextualizado pela história, por intermédio da atuação da Emília, pode ser apresentado aos alunos por aproximações sucessivas a partir do conhecimento prévio que possuíam sobre o tema. Dessa forma, na medida em que vão lendo e dialogando com a professora, os alunos vão estimulando a sua curiosidade epistemológica, isto é, a "sua capacidade crítica de 'tomar distância' do objeto, de observá-lo, de delimitá-lo, de cindi-lo, de 'cercar' o objeto ou fazer sua aproximação metódica, sua capacidade de comparar, de perguntar" (FREIRE, 2008FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 37. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008., p. 85, grifo do autor). Assim, "quanto mais a curiosidade espontânea se intensifica, mas sobretudo, se 'rigoriza', tanto mais epistemológica ela vai se tornando" (FREIRE, 2008FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 37. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008., p. 87). No caso das borboletas, os alunos compreenderam, inicialmente, que, ao se tornarem "fáceis de pegar", as borboletas poderiam "acabar", porque "todo mundo ia querer ter uma". Posteriormente, fizeram relações entre a falta das borboletas, a ausência da polinização e a diminuição do número de plantas.

Também extraído da obra A reforma da natureza, o trecho a seguir foi utilizado para a abordagem de alguns conteúdos atitudinais relacionados ao tema transversal meio ambiente. Nele, Dona Benta, retornando ao Sítio, repreende Emília pelas reformas realizadas:

– Que é isto, Emília? Que significam estas mudanças? Emília contou tudo.

– Eu reformei a Natureza – disse ela – Sempre tive a ideia de que o mundo por aqui estava tão torto como na Europa, e enquanto a senhora consertava a Europa eu consertei o Sítio. [...]

Dona Benta não voltava a si do espanto.

– Mas que absurdo, Emília, reformar a natureza! Quem somos nós para corrigir qualquer coisa do que existe? E quando reformamos qualquer coisa, aparecem logo muitas consequências que não previmos. A obra da Natureza é muito sábia, não pode sofrer reformas de pobres criaturas como nós. Tudo quanto existe levou milhões de anos a formar-se, adaptar-se; se está no ponto em que está, existem mil razões para isso (LOBATO, 2010______. A reforma da natureza. 2. ed. São Paulo: Globo, 2010., p. 41).

O retorno de Dona Benta ao sítio e a sua reprovação ao ver as reformas de Emília possibilitaram o estabelecimento de relações entre as reformas da história e as reformas que nós, seres humanos, realizamos no meio ao nosso redor. Os alunos fizeram relações entre o texto e alguns problemas ambientais locais e globais, como o desmatamento causado pela atividade turística no local onde vivem e o aquecimento global, respectivamente. Isso pode ser evidenciado nos diálogos gerados logo após a leitura do trecho descrito acima:

Professora: Emília fez muitas reformas na natureza lá no Sítio. E nós, temos feito muitas reformas na natureza ao nosso redor? O que é que vocês acham?

Aluno 13:A gente tá acabando com tudo.

Aluno 2: Estão derrubando as árvores e acabando com os animais.

Aluno 4:Aqui em Tibau estão destruindo a mata para fazer casas e pousadas.

Aluno 23:Para fazer estradas também. Derrubaram muitas árvores para construir a estrada nova. [...]

Aluno 3: E tem o aquecimento global também!

Professora: O que é o aquecimento global, vocês sabem?

Aluno 25:Os cientistas dizem que a Terra vai esquentar, esquentar, esquentar e todo mundo vai morrer... Mas pra mim isso tudo é mentira. O mundo tá acabando e é uma maneira de botarem a culpa na gente [...]

Aluno 5:As cidades vão inundar [...]

Aluno 13: A água tá subindo porque os polos estão derretendo.

Professora: E por que os polos estão derretendo?

Aluno 2: Por causa do aquecimento global.

Professora: E o que é que causa o aquecimento global?

Aluno 9:A fumaça, professora. [...]

Recomenda-se que a abordagem das questões ambientais, na escola, esteja ancorada nos pressupostos da Educação Ambiental Crítica. É preciso que a prática educativa "tenha a intenção de contribuir para uma mudança de valores e atitudes formando um sujeito ecológico capaz de identificar e problematizar as questões socioambientais e agir sobre elas" (CARVALHO, 2008CARVALHO, I. C. M. Educação ambiental: a formação do sujeito ecológico. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2008., p. 156-157). Além disso, os Parâmetros Curriculares Nacionais/Ciências Naturais sugerem que

[...] o conhecimento escolar não seja alheio ao debate ambiental travado na comunidade e que ofereça meios de o aluno participar, refletir e manifestar-se, interagindo com os membros da comunidade, no processo de convívio democrático e participação social. (BRASIL, 1998, p. 44-45BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: ciências naturais 3º e 4º ciclos. Brasília, 1998.)

Neste sentido, a utilização da obra A reforma da natureza, além de estimular questionamentos e posicionamentos individuais dos alunos perante as "questões ambientais" envolvidas nas reformas realizadas por Emília, permitiu, também, a identificação e o estabelecimento de relações com questões ambientais locais e globais.

Passamos, agora, a detalhar a abordagem de conteúdos realizada na turma do 9º ano, por meio da obra Serões de Dona Benta. Na obra, Dona Benta, após explicar aos meninos do Sítio sobre a água e suas características, inicia a "aula" sobre a matéria, dialogando com Narizinho:

Mas antes de chegarmos à alavanca, temos que ver o que é matéria.

– Matéria é tudo que existe – adiantou Narizinho.

- Talvez você tenha razão, mas por enquanto a ciência o que diz é que matéria é o que ocupa lugar no espaço e tem pêso... (LOBATO, 1973, p. 33______. Serões de Dona Benta. São Paulo: Brasiliense, 1973.).

Nota-se, nesse primeiro trecho, o erro cometido por Dona Benta ao "confundir" os conceitos de massa e de peso. Após a leitura, os alunos, sabendo da existência de erros (alertados pelo texto introdutório), recorreram ao livro didático de Ciências para procurar a definição de matéria. A comparação entre os dois trechos, dos Serões e o do livro didático, gerou o seguinte diálogo na sala de aula:

Professora: Há alguma diferença entre as duas explicações?

Aluno 21: Sim.

Professora: Qual é a diferença?

Aluno 21: O peso e a massa.

Professora: Alguém pode explicar isso melhor?

Aluno 17: A Dona Benta fala que matéria é o que tem peso e o livro fala que matéria é o que tem massa e ocupa lugar no espaço.

Professora: Qual será que está correto?

Aluno 3: Mas massa não é a mesma coisa que peso?

Professora: Vamos ver, será que existe alguma diferença entre massa e peso? Alguém sabe me explicar?

Aluno 13: Acho que não!

Professora: Existe sim, vamos tentar descobrir qual é essa diferença?

Aluno 3: Eu acho que eu sei, peso é uma coisa que a gente pode medir e massa não!

Professora: E a gente não pode medir a massa?

Aluno 15: Eu achei o que quer dizer a massa no livro, professora.

Professora: O que o livro diz?

Aluno 15[lendo]: Vamos, numa primeira abordagem, considerar massa uma propriedade dos objetos que pode ser determinada com o uso de uma balança [...] (CANTO, 2009CANTO, E. L. Ciências naturais: aprendendo com o cotidiano – 9º ano. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2009., p. 33, grifos do autor).

Aluno 23: Então dá pra medir a massa sim!

Professora:Se a massa a gente pode medir com uma balança, o que será que é o peso então? [...]

De certa forma, a leitura do trecho da obra de Monteiro Lobato possibilitou a introdução da abordagem dos conceitos matéria, peso e massa, de uma maneira bem diferente da geralmente utilizada em sala de aula. Estes conceitos, muitas vezes, são vistos de forma compartimentalizada, inseridos em diferentes capítulos do livro didático e, portanto, abordados em momentos diferentes do curso. Deixamos claro, entretanto, que não estamos falando da possibilidade de uma abordagem aprofundada dos conceitos, sobretudo, em relação à massa e ao peso. A abordagem possibilitada pela obra Serões da Dona Benta é uma primeira aproximação a esses conceitos, quando apresentados pela primeira vez aos alunos. Muitas vezes, é necessário que se façam aproximações para que os conceitos possam ser trabalhados de acordo com o nível de escolaridade dos alunos. Alguns deles "não podem ser tratados (especialmente no Ensino Fundamental) no mesmo nível de profundidade característico do conhecimento científico formal" (MARTINS, 2010MARTINS, A. F. P. Palavras, textos e contextos. In: CIÊNCIAS: ensino fundamental. Brasília: Ministério da Educação: Secretaria de Educação Básica, 2010. (Coleção Explorando o ensino: ciências, 18)., p. 12).

Em relação ao conceito de massa, fizemos, nessa primeira aproximação, a associação da massa à "quantidade de matéria" de um corpo. Enfatizamos para os alunos, entretanto, o que já havia sido alertado pelo livro didático: tratava-se de uma primeira abordagem, uma vez que aspectos mais complexos (como a diferença entre "massa inercial" e "massa gravitacional") lhes seriam apresentados em outros momentos da disciplina de Ciências ou da disciplina de Física, no Ensino Médio.

Embora associar massa com quantidade de matéria não seja o mais apropriado (o mais aceito é a utilização do conceito de mol), isso não pode ser considerado um pecado para o nível fundamental, representando uma primeira aproximação ao conceito de massa". (MARTINS, 2010MARTINS, A. F. P. Palavras, textos e contextos. In: CIÊNCIAS: ensino fundamental. Brasília: Ministério da Educação: Secretaria de Educação Básica, 2010. (Coleção Explorando o ensino: ciências, 18)., p. 22, grifos do autor)

Além de uma primeira aproximação aos conceitos, nossa intenção foi fazer com que os alunos percebessem que, apesar dos termos massa e peso, aparentemente, apresentarem o mesmo significado na linguagem cotidiana, o mesmo não acontece na linguagem científica. É preciso que o professor da área das Ciências da Natureza esteja

[...] atento aos diferentes significados que determinados conceitos possam ter em contextos diferentes, uma vez que muitos termos e expressões são utilizados na Ciência e também na linguagem do dia a dia, mas com conotações distintas. (MARTINS, 2010, p. 12MARTINS, A. F. P. Palavras, textos e contextos. In: CIÊNCIAS: ensino fundamental. Brasília: Ministério da Educação: Secretaria de Educação Básica, 2010. (Coleção Explorando o ensino: ciências, 18).)

Em relação à aprendizagem dos conceitos de massa e peso, acreditamos que a comparação entre as explicações de Dona Benta e as do livro didático, por meio da atividade "caça ao erro", tenha contribuído para a sua compreensão pelos alunos. A atividade estimulou a curiosidade dos alunos e motivou-os a buscar os conceitos corretos. Durante uma das atividades realizadas em sala de aula, vinte alunos, de um total de vinte e dois, conseguiram responder a um exercício que perguntava se a massa e o peso dos alunos seriam os mesmos na Lua e na Terra, justificando-o corretamente. Além disso, durante a entrevista final, alguns alunos afirmaram que as comparações entre o livro de Monteiro Lobato e o livro didático haviam facilitado a compreensão destes conceitos.

Para as abordagens das questões acerca da Natureza da Ciência, foram utilizados trechos selecionados, sobretudo, do primeiro capítulo do livro, intitulado Comichões científicas, uma espécie de "introdução" aos Serões. Neste capítulo, Dona Benta explica sobre a ciência e como ela funciona. De modo geral, a leitura do capítulo evidencia a presença de concepções de ciência de duas naturezas diferentes. Uma delas, presente na maior parte do texto, está associada a uma visão empírico-indutivista, que confere à ciência características consideradas inadequadas de acordo com estudos sobre a natureza da ciência (FERNÁNDEZ et al., 2002FERNÁNDEZ, I. et al. Visiones deformadas de la ciencia transmitidas por la enseñanza. Enseñanza de las Ciencias, Barcelona, v. 20, n. 3, p. 477-488, 2002.; GIL PÉREZ et al., 2001GIL PÉREZ, D. et al. Para uma imagem não deformada do trabalho científico. Ciência & Educação, Bauru, v. 7, n. 2, p. 125-153, 2001.), a saber: que o conhecimento científico nasce diretamente da observação e da experiência "neutras" (sem pressupostos teóricos), e cresce de modo linear e cumulativamente. Alguns trechos trazem, também, a ideia de uma ciência benevolente, benfeitora da humanidade. A outra, presente em outros trechos, confere à ciência características – em parte – opostas às primeiras, uma vez que evidencia uma visão de ciência como conhecimento não cumulativo e de caráter provisório, e questiona, de certa forma, o caráter benevolente da ciência presente nos primeiros trechos.

No trecho que utilizamos para discutir o papel das observações no desenvolvimento científico, Dona Benta ensina aos meninos do sítio: "foi observando os fenômenos da natureza que o homem criou as ciências" (LOBATO, 1973______. Serões de Dona Benta. São Paulo: Brasiliense, 1973., p. 9-10). E complementa: "para que haja ciência é necessário que os conhecimentos adquiridos por meio da observação se acumulem, passem de uns para os outros e pelo caminho vá se juntando com os novos conhecimentos adquiridos" (LOBATO, 1973______. Serões de Dona Benta. São Paulo: Brasiliense, 1973., p. 10). A leitura dos trechos possibilitou o seguinte diálogo em sala de aula:

Professora: Vocês concordam com o que Dona Benta falou, a ciência surgiu das observações?

Aluno 13: Sim, porque a ciência tem a ver com a natureza e a observação da natureza.

Professora: Mas será que hoje em dia a ciência funciona desse jeito? Será que a ciência se desenvolve somente da observação?

Aluno 13: Precisa estudar também.

Aluno 15: Se fosse só observar todo mundo podia descobrir as coisas e ficar milionário.

Professora: Sim, na verdade o cientista antes de observar um fenômeno ele já possui vários conhecimentos sobre ele, ele já estudou muito sobre ele antes.

Procuramos, a partir deste diálogo inicial, esclarecer aos alunos que a ciência não se desenvolve diretamente das observações, pois, quando o cientista observa um fenômeno, ele já possui conhecimentos anteriores, ou seja, não há observações neutras, mas teoricamente orientadas. Portanto, os cientistas não descobrem as coisas e a ciência não brota diretamente da observação dos fenômenos naturais. Além disso, enfatizamos que a ciência se desenvolve por meio de um processo complexo de tentativas e erros, idas e vindas, e não porque os conhecimentos científicos vão apenas se acumulando ao longo do tempo, como afirmou Dona Benta.

Em outro trecho que utilizamos, Dona Benta afirma que "a ciência foi nascendo, e o que chamamos progresso não passa de aplicação da ciência à vida do homem [...] As ciências só têm valor quando nos ajudam na vida – e é para isso que existem" (LOBATO, 1973______. Serões de Dona Benta. São Paulo: Brasiliense, 1973., p. 10-12). Este trecho evidencia uma visão utilitarista e de uma ciência benevolente, portanto, de o valor da ciência estar ligado ao benefício que ela traz à humanidade. Após a sua leitura, perguntamos aos alunos:

Professora: Será que a ciência só tem valor quando tem uma aplicação prática em nossa vida?

Aluno 3: Não, ela tem valor mesmo quando não nos ajuda na vida.

Aluno 21: Mas se ela não ajudar a gente na vida, ela vai servir para quê?

Aluno 3: Eu acho que ela sempre tem valor.

Professora: E, será que ela sempre ajuda a gente? Ela não pode ser usada para prejudicar o homem?

Aluno 13: Pode sim, a Dona Benta disse que o avião que foi usado na guerra.

Aluno 14:É verdade ... E a professora de Português falou que Santos Dumont se matou por causa disso.

Procedemos, então, esclarecendo sobre a importância das pesquisas básicas no desenvolvimento do conhecimento produzido pela humanidade e da possibilidade de esse conhecimento, aparentemente não vinculado à vida prática do homem, poder sê-lo um dia. Discutimos, também, sobre a possibilidade de o conhecimento científico ser utilizado para finalidades não tão nobres, como havia explicado Dona Benta.

Outro trecho interessante presente nos Serões e que remete a uma visão de ciência diferente da apresentada nos trechos anteriores é aquele em que Dona Benta dialoga com Pedrinho sobre a verdade científica. Nele, Dona Benta, de certa forma, questiona a existência de uma verdade científica absoluta, adicionando à ciência uma pitada do sal da dúvida:

- E amanhã, como será, vovó?

- Não sei, meu filho. A ciência não pára de estudar e de remendar o que chamamos Verdade Científica. Antigamente a verdade era a existência de quatro elementos. A verdade de hoje é a existência de 103. A verdade do futuro talvez seja a existência dum elemento só. Mas como não vivemos no passado nem no futuro, e sim no presente, só nos interessa a verdadezinha de hoje – embora a admitamos cum grano salis, como dizem os filósofos.

- Com um grão de sal, vovó? Que história é essa de verdade salgada?

- Quando a gente acredita numa coisa, mas não acredita 'bem, bem, bem', como diz a Emília, é que estamos botando na nossa crença um grãozinho de sal.

- Mas que sal, vovó? De cozinha?

- Não, meu filho. Um grãozinho do sal da dúvida. Um dia, quando você chegar à minha idade, saberá o que é o sal da dúvida. (LOBATO, 1973______. Serões de Dona Benta. São Paulo: Brasiliense, 1973., p. 34, grifos do autor)

Após a leitura, perguntamos, aos alunos, sobre a possibilidade da existência de uma verdade científica válida para sempre. A maior parte deles afirmou que a verdade absoluta não existia e que o conhecimento científico pode mudar ao longo do tempo. Um dos alunos, para justificar o seu raciocínio, relembrou um trecho em que Dona Benta explicava sobre o calórico em uma das aulas da unidade didática Calor e Temperatura, e disse: "Antes eles achavam que o calor era um fluido e hoje não é mais assim".

Em outro trecho discutido em sala de aula, Dona Benta, ao falar sobre a energia, o petróleo e os aviões, diz a Narizinho:

– Não creio que o homem seja inteligente em alto grau, minha filha. O que acontece é surgirem na grande massa humana alguns homens realmente dotados de inteligência. Na maioria, porém, o homem é extraordinariamente estúpido. Os maus, sempre dominados pela cobiça, empregam as invenções, filhas da inteligência, para matar, aniquilar, roubar, saquear. Os países da culta Europa ainda hoje fazem 'guerras de conquista' contra os povos mais fracos, para roubá-los, empregando para isso tôdas as novas invenções, inclusive a de Santos Dumont [...]. O triste no rebanho humano, minha filha, é a fôrça dos maus sentimentos e a generalização da estupidez. Os homens verdadeiramente inteligentes são pouquíssimos – e os verdadeiramente bons, ainda em menor número... (LOBATO, 1973______. Serões de Dona Benta. São Paulo: Brasiliense, 1973., p. 42-43)

Apesar de Dona Benta ter afirmado, no início do capítulo Comichões científicas, que a ciência deve estar associada à melhoria da vida do homem, de certa forma, neste trecho, ela reconhece que a ciência não é utilizada somente para o bem. A leitura gerou o seguinte diálogo em sala de aula:

Professora: Por que Dona Benta chama o homem de estúpido?

Aluno 14: Por que ele utiliza as invenções da ciência para o mal.

Professora: E vocês concordam com o que a Dona Benta disse?

Aluno 20: Sim, o homem faz as guerras.

Professora: E quais "invenções da ciência" o homem utiliza na guerra?

Aluno 20: O avião, as armas, a bomba.

Aluna 3: E os cientistas que descobriram a bomba atômica iam usar ela pra quê?

Professora:Os cientistas não descobriram a bomba atômica, as pesquisas que alguns deles estavam realizando acabaram sendo utilizadas para produzir a bomba atômica.

Vale salientar, entretanto, que, no trecho acima, apesar de Dona Benta reconhecer que o conhecimento gerado pela ciência não leva necessariamente à melhoria da vida do homem, ela dicotomiza os homens em bons e maus e separa, de certa forma, a ciência de suas consequências sociais, como se as invenções, por si só, não estivessem vinculadas a interesses e outros aspectos de natureza política, econômica etc.

A leitura dos trechos em que Dona Benta fala sobre a ciência e o seu funcionamento possibilitou a reflexão sobre algumas concepções de ciência consideradas inadequadas, segundo os estudos de Gil Pérez et al. (2001)GIL PÉREZ, D. et al. Para uma imagem não deformada do trabalho científico. Ciência & Educação, Bauru, v. 7, n. 2, p. 125-153, 2001.. Foi possível problematizar a visão empírico-indutivista e ateórica por meio da discussão do papel das observações teoricamente orientadas no desenvolvimento do conhecimento científico. A pitada do sal da dúvida, adicionada por Dona Benta à ciência, e a "abordagem histórica" que fez de alguns conceitos científicos possibilitaram, de certa forma, o questionamento da visão rígida, da visão aproblemática e ahistórica, e da visão acumulativa de crescimento linear, uma vez que evidenciaram, aos alunos, que o conhecimento científico se desenvolve por meio de erros e acertos, idas e vindas e, portanto, pode mudar ao longo do tempo. Além disso, a possibilidade de a ciência ser utilizada para o mal, como alertado por Dona Benta, questionou a visão socialmente neutra da ciência.

As concepções de ciência consideradas inadequadas, segundo os estudos sobre a Natureza da Ciência, também estão associadas ao conhecimento do senso comum e são fortemente influenciadas pelas mídias. São concepções difíceis de serem alteradas, sobretudo, por intermédio de uma única intervenção. Neste sentido, o professor precisa ser capaz de reconhecer as visões inadequadas de ciência presentes nos materiais didáticos que utiliza em sala de aula, e fazer desse tipo de abordagem uma prática constante ao longo das suas aulas.

Além dos conteúdos abordados nas unidades didáticas descritas (Quadro 1), a obra Serões da Dona Benta possibilitou a reflexão sobre outras questões presentes no texto, nem sempre relacionadas a conteúdos específicos do ensino de ciências. Durante uma das aulas, por exemplo, um dos alunos disse não ter gostado de um trecho, no início da obra, no qual Tia Nastácia era tratada de maneira preconceituosa. Tratava-se do seguinte trecho:

Até tia Nastácia, que Emília chama de poço de ignorância, sabe um monte de coisas científicas – mas só as sabe praticamente, sem conhecer as razões teóricas que estão nos livros. Querem ver?

E dona Benta, chamou a preta.

- Tia Nastácia, que é do pano com que você enxugou a mesa ontem?

- Está no varal secando, Sinhá.

- Bem. Pode ir.

A negra retirou-se com um resmungo [...] (LOBATO, 1973______. Serões de Dona Benta. São Paulo: Brasiliense, 1973., p. 12).

Lembramos ao aluno que o texto havia sido escrito em 1937 e, portanto, tratava-se de outro contexto histórico. Questões que hoje são percebidas e combatidas pela maioria das pessoas, na época não o eram. Ainda assim, durante a entrevista final, esse aluno disse: "[...] é, o livro é bom, mas eu não gostei muito porque Monteiro Lobato é meio 'discriminativo' com Tia Nastácia. Eu acho que ele era racista." Entendemos que essas questões, comuns em textos antigos, precisam ser detectadas e problematizadas pelo professor em sala de aula. Este seria um ótimo momento, por exemplo, para a discussão de questões étnico-raciais.

Outra questão interessante foi abordada no trecho em que Emília, a partir das explicações de Dona Benta sobre os poderes da química sintética, faz previsões sobre o futuro. Segundo a boneca, no futuro, por meio do desenvolvimento da química sintética, teremos "gente fabricada em casa, ou nos tais laboratórios, sôbre medida, assim e assim, igualzinha com a encomenda..." (LOBATO, 1973______. Serões de Dona Benta. São Paulo: Brasiliense, 1973., p. 37). Segundo os alunos, Emília não estava errada. Ela parece ter previsto a clonagem, técnica que poderia ser utilizada, hoje, para a produção da tal "gente de laboratório".

Conclusões

Nossa pesquisa buscou evidenciar os limites e as possibilidades da utilização da literatura infantil de Monteiro Lobato em aulas de Ciências dos anos finais do Ensino Fundamental. A análise dos resultados indica que a literatura de Lobato, representada pelas obras A reforma da natureza e Serões de Dona Benta, quando utilizadas em aulas de ciências, tem o potencial de contextualizar os conteúdos científicos, na medida em que estes são parte integrante das histórias. Apresentados e problematizados aos alunos, neste formato, os conteúdos adquirem um sentido, diferentemente de quando são apresentados de forma estanque, como normalmente acontece nos livros didáticos. Essa contextualização contribuiu, algumas vezes, para a aprendizagem. Isso aconteceu, inclusive, quando alguns conteúdos apresentavam certas incorreções. Neste caso, as obras funcionaram como um veículo problematizador de conceitos.

Em relação à obra A reforma da natureza, confirmamos o seu potencial para a abordagem dos conteúdos científicos que contém. A obra foi particularmente eficiente para a abordagem das questões ambientais, uma vez que estimulou a formação de atitudes e de posicionamentos individuais dos nossos alunos frente a algumas destas questões. A utilização da obra tornou, também, as aulas de ciências, na turma do 8º ano, mais divertidas e atrativas pelas características lúdicas que apresenta. O humor, a irreverência, a total imbricação real-imaginário e uma linguagem atenta a sua recepção pelos leitores fazem dela uma das obras mais representativas da literatura infantil lobatiana.

Em relação à obra Serões de Dona Benta, nosso estudo também indicou seu potencial para a abordagem dos conteúdos científicos nela presentes, sobretudo, como um veículo problematizador de conceitos. A obra possui vários erros conceituais que, problematizados adequadamente pelo professor, podem contribuir para a aprendizagem desses mesmos conceitos. Isso foi evidenciado por nós nos erros relacionados aos conceitos de matéria, massa e peso presentes nos capítulos Matéria e Mais matéria. Alertamos, entretanto, que alguns erros, presentes nos capítulos A energia do calor, O fogo e Como o calor vai de um ponto ao outro, relacionados, sobretudo, aos conceitos de calor e de temperatura, não tratados neste artigo, podem influenciar negativamente na aprendizagem, reforçando algumas concepções alternativas. Portanto, o professor que utilizar a leitura destes capítulos nas aulas de ciências precisa estar atento e realizar um planejamento cuidadoso de todas as atividades que desenvolverá em sala de aula.

Apesar dos erros contidos nos Serões, a obra se mostrou particularmente interessante para a abordagem das questões relacionadas à Natureza da Ciência, uma vez que possibilitou a problematização de algumas concepções de ciência consideradas inadequadas segundo alguns trabalhos da área da Didática das Ciências Naturais. Neste sentido, a obra cumpre um dos seus objetivos que é o de "questionar as verdades feitas que o tempo cristalizou" (DUARTE, 2008DUARTE, L. C. Serões: verdades científicas ou comichões lobateanas? In: LAJOLO, M.; CECCANTINI, J. L. (Org.). Monteiro Lobato livro a livro: obra infantil. São Paulo: Ed. da Unesp: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. p. 391-405., p. 391).

Para além da abordagem dos conteúdos científicos, a leitura das obras, particularmente dos Serões, possibilitou, aos alunos, a discussão e a reflexão de interessantes questões que surgiram ao longo dos textos. Acreditamos que a oportunização desses momentos tenha resultado, para os nossos alunos, na ampliação dos seus conhecimentos e na estimulação dos seus posicionamentos perante "as coisas do mundo".

Em relação à leitura, enfatizamos a necessidade de o professor de ciências realizar atividades que não comprometam a fruição dos textos literários que utiliza em sala de aula. É preciso que haja prazer durante a leitura, só assim haverá mediação de leitura e eficácia na utilização dos textos nas aulas de ciências. Sugerimos, então, que as atividades que envolvam a utilização de textos literários nas aulas de ciências sejam realizadas por intermédio de abordagens interdisciplinares, que abranjam, sobretudo, a disciplina de Língua Portuguesa, que se mostrou, para nós, um "espaço" privilegiado para a realização da leitura.

De um modo geral, consideramos oportuna e viável a aproximação entre a Ciência e a Literatura por meio da utilização da literatura de Monteiro Lobato em aulas de Ciências. Lobato, um escritor com veia científica, possibilita ao seu leitor (nosso aluno) a sobreposição e o diálogo entre as leituras de mundo oportunizadas pela Ciência e pela Literatura. Desta forma, esse leitor (nosso aluno) pode estimular sua curiosidade epistemológica e qualificar as relações que estabelece no mundo e com o mundo, favorecendo, assim, o seu processo de humanização.

  • 3
    Pessoas entediantes (tradução nossa).
  • 4
    Tradução de Marly Amarilha, do Núcleo de Pesquisa em Escrita, Linguagem e Comunicação (NUPELC) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Agradecimentos

A primeira autora agradece à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela ajuda financeira, na forma de bolsa de estudos, ao projeto de pesquisa relacionado a esta publicação.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2013
  • Aceito
    28 Abr 2014
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