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Contribuições axiológicas à educação científica: valores cognitivos e a seleção natural de Darwin

Axiological contributions to science education: cognitive values and Darwin's natural selection

Resumos

Nos últimos anos, muitos autores têm discorrido sobre o papel dos valores nas atividades científicas. Ao se buscar por novas maneiras de se compreenderem os motivos, processos e resultados dessas atividades, considerável relevância é atribuída ao fato de que as práticas científicas devem ser compreendidas segundo seu contexto histórico-social. Pautando-se na pertinência de pesquisas comprometidas com o estudo das influências axiológicas na dinâmica da Ciência, apresenta-se, neste artigo, uma discussão acerca do papel que os valores cognitivos podem desempenhar na compreensão de uma teoria biológica - seleção natural - mediante uma síntese histórico-epistemológica e demais aportes histórico-filosóficos, com o objetivo de investigar o desenvolvimento de uma nova estratégia de abordagem para o ensino dos conteúdos evolutivos no ensino de Biologia.

Valor cognitivo; Teoria da Seleção Natural; História da ciência; Filosofia da ciência; Ensino-aprendizagem; Ensino de Biologia


In recent years, many authors have discussed the role of values in scientific activities. When searching for new ways to understand the reasons, processes and results of these activities, considerable relevance is given to the fact that scientific practices should be understood according to their social historical context. Based on the relevance of research committed to the study of the axiological influences on the dynamics of science, the present article discusses the role that the cognitive values may have upon the understanding of a biological theory - natural selection - through an epistemological historical synthesis and other philosophic historical contributions, aiming to investigate the development of a new strategic approach to teaching the evolutionary content in Biology teaching.

Cognitive values; Theory of Natural Selection; History of science; Philosophy of science; Teaching-learning; Biology teaching


Contribuições axiológicas à educação científica: valores cognitivos e a seleção natural de Darwin

Axiological contributions to science education: cognitive values and Darwin's natural selection

Irinéa de Lourdes BatistaI; Lucken Bueno LucasII

IPrograma de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Educação Matemática (PECEM), Universidade Estadual de Londrina (UEL). Rodovia Celso Garcia Cid (PR 445, Km 380), Campus Universitário, Caixa postal 6001. Londrina, PR, Brasil. 86.051-990. irinea@uel.br

IIDoutorando, PECEM, UEL. Londrina, PR, Brasil

RESUMO

Nos últimos anos, muitos autores têm discorrido sobre o papel dos valores nas atividades científicas. Ao se buscar por novas maneiras de se compreenderem os motivos, processos e resultados dessas atividades, considerável relevância é atribuída ao fato de que as práticas científicas devem ser compreendidas segundo seu contexto histórico-social. Pautando-se na pertinência de pesquisas comprometidas com o estudo das influências axiológicas na dinâmica da Ciência, apresenta-se, neste artigo, uma discussão acerca do papel que os valores cognitivos podem desempenhar na compreensão de uma teoria biológica – seleção natural – mediante uma síntese histórico-epistemológica e demais aportes histórico-filosóficos, com o objetivo de investigar o desenvolvimento de uma nova estratégia de abordagem para o ensino dos conteúdos evolutivos no ensino de Biologia.

Palavras-chave: Valor cognitivo. Teoria da Seleção Natural. História da ciência. Filosofia da ciência. Ensino-aprendizagem. Ensino de Biologia.

ABSTRACT

In recent years, many authors have discussed the role of values in scientific activities. When searching for new ways to understand the reasons, processes and results of these activities, considerable relevance is given to the fact that scientific practices should be understood according to their social historical context. Based on the relevance of research committed to the study of the axiological influences on the dynamics of science, the present article discusses the role that the cognitive values may have upon the understanding of a biological theory – natural selection – through an epistemological historical synthesis and other philosophic historical contributions, aiming to investigate the development of a new strategic approach to teaching the evolutionary content in Biology teaching.

Keywords: Cognitive values. Theory of Natural Selection. History of science. Philosophy of science. Teaching-learning. Biology teaching.

Introdução

Algumas compreensões tradicionais acerca da Filosofia da Ciência, frequentemente articuladas a ideais positivistas ou ingênuo-pragmáticos, enxergam a Ciência como um empreendimento imparcial, desinteressado e livre de interposições pessoais. Nessa visão, os conhecimentos obtidos por meio das atividades científicas são, peremptoriamente, concebidos na ausência de influências valorativas (FERNANDEZ, 2006).

Todavia, especialmente nos últimos anos, essa visão tradicional tem sido deveras criticada. A compreensão das atividades científicas mediante seus contextos histórico-sociais, no âmbito das inúmeras pesquisas da Educação em Ciências a respeito da Natureza da Ciência (NOS1 1 Nature of Science . ), representa uma nova maneira de entender a dinâmica científica. Frente a essa discussão, acredita-se que um estudo teórico-reflexivo para o desenvolvimento de processos de ensino e aprendizagem de teorias específicas demanda, entre outras coisas, considerar as questões axiológicas pertinentes à sua compreensão. Mas como realizar tal empreendimento? De que maneira aportes axiológicos poderiam contribuir para direcionar o entendimento de uma teoria científica2 2 Devido à variabilidade semântica da expressão 'teorias científicas', assumimos, neste trabalho, a definição sugerida por Batista (1999), em que teorias científicas podem ser compreendidas como "uma elaboração que seja coerente com os aspectos empíricos com os quais ela se relaciona, com o maior grau de abrangência – no sentido de explicar os dados experimentais já conhecidos e quaisquer outros novos que vierem a existir – e que seja coerente segundo uma lógica escolhida, seja ela clássica ou heterodoxa" (BATISTA, 1999, p. 32), em sua estrutura sintática (lógico-matemática ou linguística), no seu domínio de aplicabilidade e com um conjunto de regras que permitam conectar a teoria com a estrutura sintática e com o domínio empírico estabelecido, quando aplicável. ? As investigações que, por ora, apresentam-se, procuram responder a esses questionamentos.

Valores e atividade científica

A partir da década de 1960, muitas teorias inovadoras, críticas e alternativas ao positivismo, surgiram no cenário filosófico-científico. Na década seguinte, autores como I. Lakatos, L. Laudan, H. Lacey, E. McMullin e W. Stegmüller desenvolveram novas compreensões sobre o processo de progresso científico, como formas alternativas aos princípios normativos logicistas (SALVI; BATISTA, 2008).

Dentre esses autores, o filósofo da ciência Hugh Lacey tem dedicado grande parte de seus trabalhos à discussão da influência que os valores exercem nas práticas científicas. Suas considerações mostram que as ações humanas, incluindo a Ciência, são intrinsecamente permeadas por sistemas de valores. Dos objetos sagrados às teorias científicas, o papel desempenhado por eles é inevitavelmente relevante.

No que diz respeito ao escopo semântico, Lacey (2008, 2010) explica que o termo latino 'valor' admite os significados mais variados e complexos. Na economia, nas artes plásticas, na ética, na linguística, na música e no direito, seja no universo pessoal, seja no social, os valores recebem conotações específicas e apresentam-se intimamente ligados às práticas humanas.

No campo específico da Biologia, por exemplo, de acordo com Mayr (1998), é bem provável que descobertas advindas de teorias biológicas choquem-se, frequentemente, com sistemas de valores dos mais variados grupos sociais. Isto se deve, em maior parte, ao fato de que teorias biológicas, por trabalharem direta ou indiretamente com seres vivos – de modo particular com os seres humanos – acabam perturbando sistemas de valores culturalmente presentes na sociedade. Um exemplo contemporâneo são as pesquisas que envolvem a possível determinação genética do coeficiente de inteligência, relacionado a questões de raça. Segundo Mayr, "por mais objetiva que seja a pesquisa científica, as suas descobertas, frequentemente, conduzem a conclusões carregadas de valor" (MAYR, 1998, p. 99).

A pergunta que se faz, então, é: mas como os seres humanos acabaram assimilando e assumindo esses valores? Qual a sua origem?

De acordo com a História, a distinção entre fato e valor – no campo da Ciência natural – contribuiu para o nascimento da chamada Ciência moderna, um período compreendido entre Copérnico e Newton, no campo científico, e Bacon e Hume, no campo filosófico. Para Mariconda (2006), essa distinção inclui também os estudos de Galileu, Descartes e Pascal, que fomentaram a busca incessante pelo controle da natureza, um valor que acabou definindo os caminhos pelos quais o desenvolvimento científico e tecnológico haveriam de passar.

Com a edificação dos pilares da Ciência moderna e a emersão de uma cultura civilizatória ocidental voltada para o controle da natureza, os valores foram convergidos à seara do subjetivismo, sendo vistos como demonstrações de sentimentos, gostos e afetos. Assim, todas as questões pertinentes ao emprego de valores eram entendidas como exclusivas ao campo da subjetividade, envolvendo tão somente "meras questões de preferências individuais" (MARICONDA, 2006, p. 454).

Especificamente no âmbito das práticas e instituições científicas, de acordo com Lacey (1998), no livro 'Valores e atividade científica', três são os componentes que estão frequentemente associados à ideia de que a Ciência é livre de valores. São eles: imparcialidade, autonomia e neutralidade.

Para Lacey (1998), segundo a tese da neutralidade, todo conhecimento adquirido por meio da Ciência é obtido de forma alheia a qualquer tipo de valor particular. Ou seja, a Ciência não serve a interesses pessoais e/ou de minorias. Ainda servindo-se da mesma tese, teorias científicas podem ser reconhecidas e aceitas mediante todo e qualquer esquema de valor.

Na tese da autonomia, desconsidera-se o papel de fatores externos (extrínsecos) às práticas científicas, tanto no processo de escolha de teorias quanto no das abordagens de pesquisa. Nesse contexto, interferências externas, como influências ideológicas, religiosas ou políticas, são dissociadas das atividades científicas de modo a não exercerem influência sobre as mesmas. Segundo a tese da autonomia, ainda que instituições (externas ao contexto científico) atuem plausivelmente como agentes provedores de recursos financeiros em pesquisas, não lhes cabe – em face da concessão desses benefícios – a intenção de manipular os interesses científicos originais.

A tese da imparcialidade, por seu turno, propõe que teorias científicas sejam homologadas pela comunidade científica mediante a manifestação de um tipo específico de valor, os valores cognitivos. Estes, por sua vez, devem estar manifestos em alto grau e em conformidade com criteriosos padrões de avaliação e dados empíricos (LACEY, 1998). Em outras palavras, é a expressão desses valores cognitivos que garantem às teorias um legítimo reconhecimento de sua racionalidade, em detrimento de outros métodos habitualmente utilizados para o mesmo tipo de aquiescência.

É relevante lembrar, como o próprio Lacey (1998) explicita, que essa abordagem – da influência dos valores na atividade científica – já havia sido mencionada por Thomas Kuhn (1969, 1977 apud LACEY, 1998) em duas de suas obras: no artigo 'Objectivity, value judgement and theory choise' e no posfácio do livro 'A estrutura das revoluções científicas'. Lacey (1998) afirma que, além de Kuhn, outro teórico contribuiu significativamente com reflexões acerca da racionalidade científica no que diz respeito aos sistemas valorativos: McMullin (1983, 1994, 1996).

Em face das três teses acima apresentadas, Lacey (1998) questiona a ideia tradicional de neutralidade científica, ao promover uma reflexão sobre as bases epistemológicas da Ciência e sua relação com o meio social. Sugere, por sua vez, sustentando a tese da imparcialidade, que o reconhecimento de teorias científicas (juntamente com as práticas científicas) seja motivado por razões epistêmicas ou cognitivas (valores epistêmicos ou cognitivos)3 3 As expressões 'valores cognitivos' e 'valores epistêmicos' são assumidas como sinônimas, neste artigo. Lacey (2008, p. 84) evidencia tal equivalência terminológica em valores e atividade científica, ao discutir a correlação semântica de 'valores cognitivos' com terminologias utilizadas por autores como McMullin e Hempel ('virtudes epistêmicas' ou 'valores epistêmicos') e Longino ('valores constitutivos da ciência'). , que vão além dos sistemas formais de reconhecimento da racionalidade.

Para melhor discutir o papel desses valores, no processo de reconhecimento e aceitação de teorias e conceitos científicos, evidencia-se que os valores cognitivos, de acordo com Lacey (2008), correspondem, essencialmente, a uma alternativa para a distinção de juízos científicos assumidos como corretos, ou não, pelos cientistas.

Aqui, compartilham-se, com Lacey (2008, p. 83), alguns questionamentos: "O que torna uma teoria racionalmente aceitável?" Quais critérios devem ser considerados para se chegar a tal reconhecimento? Como distinguir proposições científicas das não científicas?

Segundo o mesmo teórico, por muito tempo, correntes empiristas e racionalistas defenderam que a sustentação de juízos científicos para as proposições assumidas (em princípio) como científicas deveriam passar, inevitavelmente, pelo crivo de regras indutivas, dedutivas, hipotético-dedutivas ou puramente probabilísticas. Novas tendências no campo da Filosofia da Ciência, entretanto, ao buscarem maneiras alternativas de se compreender a dinâmica da Ciência – sobretudo considerando os contextos histórico-sociais em meio aos quais emergem os resultados das atividades científicas – suscitaram (e continuam suscitando) inúmeras controvérsias em relação ao alcance de tais regras.

Por certo que elas possibilitam chegar a formalizações coerentes e consistentes ao campo das abordagens acolhidas, por convenção, como científicas. Todavia, algumas questões permanecem em suspenso, como:

- Não obstante o reconhecimento de sua consistência, seriam essas regras suficientes?

- Existiriam alternativas para a mesma finalidade, com maior poder alcance?

- Há outros critérios eficazes a serem utilizados para se chegar ao reconhecimento do status de 'conceito científico' ou 'teoria' legítimos, perante os pares?

Nesse contexto, em detrimento das regras indutivas, dedutivas ou probabilísticas, os valores cognitivos apresentam-se como uma nova forma de compreender e validar a racionalidade humana. A novidade dessa proposta consiste na confluência dos membros da comunidade científica, que, ao estabelecerem um diálogo sobre a presença desses valores, nas teorias, são capazes de instituir, coletivamente, juízos científicos corretos sobre a aceitação ou refutação das mesmas. Para Lacey (1998), valores sociais podem efetivamente influenciar a estratégia adotada por um indivíduo, ou pela comunidade científica. Mas apenas o jogo dos valores cognitivos legitima a escolha de uma teoria dentre as muitas que também são consistentes com as restrições.

Os valores cognitivos, desse modo, funcionam como critérios de avaliação de teorias e conceituações científicas, uma vez que, diferentemente de valores sociais, morais ou outros sistemas de crenças, possibilitam realizar um "tipo correto de inferência científica, a saber, o tipo de inferência que produz conclusões abertas à reavaliação à luz de observações adicionais e de novos argumentos baseados em critérios não–demonstrativos (valores cognitivos)" (LACEY, 2001, p. 56).

Para explicitar seu argumento, Lacey (1998) apresenta uma lista de valores cognitivos que, segundo ele, podem ser reconhecidos em alguns períodos da história da Ciência. Evidentemente, os valores por ele citados não são os únicos e nem os mesmos a serem reconhecidos (potencialmente) em todas as teorias e conceitos científicos que se pretenda estudar. A expressão desses valores, dadas as características epistemológicas peculiares de cada ciência, apresenta-se de forma particularmente contextualizada. Sendo assim, sabe-se que, devido às peculiaridades de cada teoria ou conceito em questão, haverá uma lista específica e exclusiva de valores cognitivos expressos.

Dentre os inúmeros valores cognitivos que se pode citar, apresentam-se (de modo generalista) os elencados pelo próprio Lacey (2008): adequação empírica, consistência, simplicidade, fecundidade, poder explicativo, verdade e certeza. Um estudo de visualização, escolha e justificação desses e/ou outros valores cognitivos, em uma dada teoria científica, é o que será apresentado no decorrer deste trabalho.

Retomando e considerando, então, a tese da imparcialidade, mediante o aceite de teorias científicas, via percepção e reconhecimento de valores cognitivos – em processo coletivamente constituído – e suas contribuições para a Educação Científica, subsequentemente, são apresentadas as bases estruturantes da análise teórica, ou seja, os aportes que, articulados entre si, viabilizaram esta pesquisa.

Contribuições históricas e filosóficas

A intenção de conjugar História e Filosofia da Ciência ao estudo de teorias científicas por meio de valores cognitivos não constituiu um processo estocástico. Ao contrário, entende-se que essas áreas compõem o eixo estruturante dessa discussão. A este respeito, sabe-se que há consenso no meio científico, como visto em Matthews (1995), El–Hani, Tavares e Da Rocha (2004), Batista (2004, 2007) e Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2007), sugerindo que a inserção de debates históricos e filosóficos em situações pedagógicas, entre outras coisas: desmistifica a Ciência, melhora a formação dos professores, supera a falta de significado de conceitos, além de esclarecer relações entre dogma, sistema de crenças e racionalidade científica. Segundo Matthews (1995), são importantes os aportes da História e da Filosofia nos processos de ensino e aprendizagem em Ciências, pois essas áreas contribuem para a humanização da Ciência, fazem com que as aulas tornem-se mais reflexivas e estimulantes, além de desenvolverem o pensamento crítico.

Diversos são os estudos que mostram os benefícios da aplicação desses enfoques, como, por exemplo, em Batista (2004), Batista e Luccas (2004) e El-Hani (2006). Segundo Batista (2007), uma presença pertinente e metodologicamente fundamentada desses aportes contribui para a superação de conceituações superficiais em ciências que, em sua maioria, são frutos de oportunismos teóricos que não geram resultados, ainda que demonstrem certo sucesso temporário.

Considerando, então, os estudos acima descritos, reconhece-se e evidencia-se a complexidade do processo de construção do conhecimento científico, que poderá ser distorcida se esse conhecimento for apresentado de forma parcial, acrítica e irreflexiva. Assim, para que o processo de construção do pensamento científico seja percebido de forma contextualizada, a Educação Científica e Matemática pode atuar no sentido de dar mais significado ao conhecimento, o que requer, entre outras ações, um resgate axiológico e histórico dos fatos científicos que originaram as ideias atuais.

Valores cognitivos como facilitadores para uma Educação Científica: etapas didáticas

A fim de exemplificar como valores cognitivos podem contribuir para a Educação Científica, toma-se, como exemplo, a análise da teoria da seleção natural de Darwin, como sugestão e incentivo ao estudo dos episódios históricos da Biologia.

É importante salientar que, nesse exemplar teórico, não são consideradas as alterações/correções feitas à teoria, sobretudo as procedentes do Movimento Sintético. Os conceitos aqui assumidos são pertinentes à teoria original da Seleção Natural.

Para tal análise, desenvolveu-se um esquema didático, como instrumento norteador desse estudo que, além de constituir-se como forma alternativa de investigação à teoria, mediou a combinação de noções de História e Filosofia da Ciência aos conhecimentos sobre valores cognitivos, uma vez que estes últimos, assumindo também um papel didático-mediador, favoreceram a compreensão de alguns conceitos evolutivos. Neste trabalho, desse modo, utilizam-se os valores cognitivos como norteadores pedagógicos facilitadores de aprendizagem, visando a compreensão de uma teoria.

A análise teórica consistiu em uma sucessão específica de eventos, composta de cinco etapas, com a função de dirigir e orientar os estudos. A seguir, essas etapas são apresentadas juntamente com sua aplicação ao exemplar conceitual.

1ª etapa – o conhecimento da teoria

A primeira etapa do processo proposto envolveu um aspecto fundamental da pesquisa: a aquisição de conhecimentos sobre a teoria em questão. Foi essencial compreender seu conteúdo, enunciado, proposições e inferências. Nessa etapa, portanto, estudou-se e pesquisou-se acerca do corpus da teoria, segundo livros e artigos da área. Para o estudo da seleção natural, adotou-se a divisão proposta por Ernst Mayr (2006). De acordo com ele, o que se denomina, frequentemente, de 'teoria da evolução de Darwin' refere-se a uma coleção de teorias específicas que, conquanto trabalhem articuladamente, apresentam bases epistemológicas distintas (MAYR, 2006).

De acordo com essa análise, ainda que desconsiderando (mas não ignorando) algumas das múltiplas teorias específicas darwinianas, Mayr (2006) explica o paradigma darwiniano como composto por cinco teorias principais: teoria da evolução, teoria da origem comum, teoria da multiplicação das espécies, teoria do gradualismo e teoria da seleção natural.

O motivo pelo qual utiliza-se, neste artigo, a quinta teoria – seleção natural – como exemplar conceitual, reporta-se ao impacto causado pela mesma em toda a estrutura do pensamento científico.

Almeida e Falcão (2005), servindo-se de uma interpretação lakatosiana, explicam que o núcleo duro desse programa de pesquisa (seleção natural) consiste em uma hipótese observacional que focaliza a abundante variedade dos organismos. Para Darwin, segundo os autores em questão, essas variações sofreriam a ação de um tipo de seleção: a seleção natural. Além disso, dezessete teorias e hipóteses auxiliares comporiam o cinturão protetor do núcleo duro daquele programa de pesquisa.

Darwin (2003) considerou a seleção natural um processo razoavelmente simples. Seu enunciado básico pode ser assim descrito: por haver luta pela sobrevivência entre os organismos, o nível de mortalidade de cada geração será alto. Desse modo, apenas os mais adaptados sobreviverão. A natureza, por sua vez, provê um contingente infinito de variações e, devido à sobrevivência dos mais bem adaptados, os avanços evolutivos acontecem.

Segundo Darwin (2003, p. 98):

Pode dizer-se, metaforicamente, que a seleção natural procura a cada instante e em todo o mundo, as variações mais ligeiras; repele as que são nocivas, conserva e acumula as que são úteis; trabalha em silêncio, insensivelmente, por toda a parte e sempre, desde que a ocasião se apresente para melhorar todos os seres organizados relativamente às suas condições de existência orgânicas e inorgânicas.

Para Mayr (1998, p. 535), a teoria é originalmente composta por três inferências que se baseiam em cinco fatos decorrentes da ecologia de populações e dos fenômenos relativos à hereditariedade. Resumiu-se a estrutura lógica dessa composição no Quadro 1.


2ª etapa – investigação do contexto

O compromisso de compreender a atividade científica, segundo seu contexto histórico, remeteu os pesquisadores deste trabalho ao estudo de alguns episódios decorridos em função das proposições de Darwin. Assim, para promover uma reflexão acerca de alguns valores cognitivos visualizados na teoria original da seleção natural, foi necessário não somente descrever seu enunciado, mas resgatar parte do contexto de sua apresentação – implicações externas à configuração da teoria que influenciaram seus processos de elaboração, consolidação e aceitação – a fim de melhor compreender os motivos pelos quais a mesma chegou a ser universalmente reconhecida.

Segundo Mayr (1998), Darwin, em 1837, já havia se convencido de que as espécies eram modificáveis e que sua multiplicação ocorria por meio de processos naturais. Suas conclusões levaram-no, em detrimento de argumentos sobrenaturais e teológicos, a dar explicações naturais para a "aparente harmonia e adaptação do mundo orgânico" (MAYR, 1998, p. 533). Entretanto, as ideias de Darwin foram alvo de intensa resistência.

Um dos maiores embates entre a teoria de Darwin e a visão religiosa, por exemplo, aconteceu em junho de 1860. Os personagens envolvidos nessa discussão foram Thomas Huxley e Samuel Wilberforce, bispo de Oxford (DENNETT, 1998). Segundo uma crítica anônima:

A supremacia original do homem sobre a terra, a capacidade humana de articular uma linguagem, o dom da razão, o livre-arbítrio e a responsabilidade do homem... tudo é igual e totalmente irreconciliável com a degradante noção da grosseira origem daquele que foi criado à imagem de Deus. (WILBERFORCE, 1860 apud DENNETT, 1998, p. 65)

No tocante ao escopo científico, Abrantes (2008) evidencia que, além das conhecidas resistências às exposições de Darwin – pelo fato de sugerirem a ancestralidade comum das espécies e as modificações das mesmas devido à seleção natural –, menos conhecidas são as críticas que se estenderam aos métodos utilizados por ele em suas pesquisas, notoriamente díspares aos padrões indutivistas da época. Muitos cientistas desconsideraram a teoria darwiniana por a terem julgado insuficientemente apoiada nos fatos. A. Sedgwick (professor de Geologia de Darwin), R. Owen (anatomista renomado) e J. S. Henslow (botânico e mineralogista) exemplificam tal asserção, pois, embora tenham reconhecido aspectos positivos, criticaram o fato de ele ter desconsiderado o método indutivo em sua teoria. Os mesmos argumentaram que tanto a descendência com modificação quanto a seleção natural não teriam sido provadas em termos de fatos ou induzidas a partir destes (ABRANTES, 2008, p. 38).

Vale ressaltar que tais críticas surgiram em decorrência de Darwin ter utilizado – em detrimento do método indutivo – o "método de hipóteses", atualmente conhecido como método hipotético-dedutivo. De acordo com Lenay (2004), a preferência de Darwin por esse método foi influenciada pela leitura da obra de Herschel (1830 apud LENAY, 2004) 'Preliminary discourse on the study of a natural philosophy', que sugeria investigações científicas para as quais o pesquisador, em princípio, formularia leis universais e axiomas e, posteriormente, por meio de deduções inversas, determinaria as consequências e proposições específicas que derivariam dessas hipóteses mais gerais. Assim, poder-se-ia observar se as mesmas permitiam uma predição correta de novas observações.

Especificamente em relação às oposições metodológicas, quase uma década após a publicação de 'A origem', Darwin ratificou publicamente o emprego do método hipotético-dedutivo em favor do princípio da seleção natural. Ele alegou que, nas investigações científicas, ao se levantar uma determinada hipótese capaz de explicar várias e independentes classes de fatos, a mesma poderia ser elevada ao status de uma teoria deveras fundamentada, como o princípio da seleção natural que, entre outros fatores, poderia ser provado em decorrência analógica à formação de raças domésticas (ABRANTES, 2008).

Além das objeções metodológicas, muitas outras permearam as discussões que emergiram junto às teorias darwinianas. O físico William Thomson (1824-1907), por exemplo, também conhecido como Lorde Kelvin, cujo papel no desenvolvimento da termodinâmica é notável, questionou a idade da Terra por ter acreditado demonstrar que a mesma não seria tão antiga quanto descrevera a geologia de Lyell e, por extensão, a do próprio Darwin, que, naquela ocasião, reagiu à crítica de Kelvin, introduzindo fatores como "a transmissão dos caracteres adquiridos pelo costume, ou, ainda, uma misteriosa tendência a variar na mesma direção" (LENAY, 2004, p. 107). Algum tempo depois, o impasse foi resolvido, quando se reconheceu que Kelvin havia ignorado, em seus cálculos, a radioatividade que fomenta o calor terrestre, fato que assegurou a Lyell e Darwin a garantia de terem apresentado um parecer mais correto acerca dos tempos geológicos (LENAY, 2004, p. 107).

Outro exemplo citado na literatura (ALMEIDA FILHO, 2008; REGNER, 2006) envolve restrições acerca de alguns aspectos das teorias darwinianas por parte do zoólogo e anatomista britânico George Jackson Mivart (1827-1900). Em uma série de artigos, Mivart focou suas críticas em duas questões básicas: o papel da seleção natural – que ele considerava apresentar problemas insuperáveis – e o desenvolvimento de uma visão sistêmica e sintética da origem das espécies capaz de harmonizar aspectos científicos, filosóficos e religiosos.

Uma das principais críticas de Mivart (1871 apud ALMEIDA FILHO, 2008, p. 70) consistiu em discutir se a seleção natural poderia ou não explicar a origem e o desenvolvimento de barbatanas presentes na boca de alguns grupos de cetáceos – que desempenham a função de filtrar e depurar a água, a fim de reter micro-organismos característicos à sua dieta. Segundo Almeida Filho (2008), para criticar o papel da seleção natural na origem e no desenvolvimento de tais barbatanas, Mivart (1871 apud ALMEIDA FILHO, 2008, p. 72) partiu de uma análise detalhada da boca desses animais, indagando a respeito da origem de uma estrutura tão complexa, comparando-os com outros grupos de animais, provavelmente, aparentados com esses. Depois do estudo, concluiu que seria impossível conceber a barbatana dessas baleias apenas por meio da seleção natural.

A réplica de Darwin, incorporada na sexta edição de 'A origem', consistiu em uma análise anatômica cuidadosa, tomando como exemplar empírico a baleia da Groenlândia (Balaena mysticetus), que também pertence ao grupo das baleias filtradoras. O exercício de Darwin consistiu em comparar as placas de barbatana dessas baleias às bocas lamelares (bicos) dos marrecos-de-bico-de-colher (Spatula clypeata); e, após uma analítica ação comparativa anatômico-fisiológica, concluiu que gradações em cetáceos poderiam ter resultado nas placas de barbatana das baleias da Groenlândia. Darwin, naquele momento,

[...] ressaltou não existir a mínima razão de se duvidar que cada etapa nessa escala possa ter sido tão útil a certos cetáceos antigos, como as funções das partes mudando lentamente durante o progresso do desenvolvimento, como ocorrem com as gradações nos bicos de diferentes membros da família do pato. (ALMEIDA FILHO, 2008, p. 79)

Em relação à réplica de Darwin a Mivart, autores como Almeida Filho (2008) consideram insuficientes – para explicações evolutivas de origem e desenvolvimento de estruturas – a utilização de analogias entre o bico de aves (patos) e as barbatanas de mamíferos (baleias). De acordo com o mesmo autor, registros fósseis deveriam sustentar os argumentos darwinianos para o caso das baleias. Entretanto, reconhece-se que as controvérsias entre Mivart e Darwin são interessantes por elucidarem aspectos da recepção da teoria e enriquecerem os debates e as explicações sobre os processos evolutivos em geral, atingindo o âmago do processo de criação e consolidação de um argumento científico.

3ª etapa – reflexão sobre os fatores de aceitação

Esta etapa compreende outro ponto relevante à discussão proposta: o (re)conhecimento dos motivos responsáveis pela aceitação da teoria. Tal compreensão apresentou-se como um bom caminho para uma sugestão prévia de quais valores cognitivos poderiam ser listados. Esperava-se encontrar, nos motivos que levaram a comunidade científica a ratificar tal teoria, uma lista prévia de valores cognitivos presentes (ou sustentados) na mesma.

Mas como chegar a tal (re)conhecimento? O caminho para uma resposta foi encontrado no artigo de Salvi e Batista (2008). As autoras, ao discutirem a adesão dos valores na compreensão da atividade científica, apresentaram alguns elementos da aprendizagem significativa crítica como possíveis respostas à problemática das constantes mudanças sociais (conceitos, valores, tecnologias). Um desses elementos – baseado, sobretudo, em Moreira (2000), mas, também, em Gowin (1981), Postman e Weingartner (1969) – corresponde, justamente, ao papel dos questionamentos na interação ensino-aprendizagem. De acordo com estes últimos autores, a formulação de perguntas em situações de aprendizagem, sendo elas relevantes, apropriadas e substantivas, corresponde a uma estratégia que contribui de forma significativa para o entendimento daquilo que se quer aprender (conhecer).

Nessa perspectiva, alguns questionamentos problematizaram a percepção de valores cognitivos na teoria em questão. Entre eles, destacam-se: por quais motivos a seleção natural não teve ampla aceitação na época? Por que passou por momentos de rejeição? Por que esta, de todas as teorias darwinianas, encontrou maior resistência, ainda que dotada de uma concisa lógica explicativa? Por que até mesmo os naturalistas a evitaram? O que levou essa teoria a ser oficialmente reconhecida pelos cientistas? Por que foi e continua sendo considerada importante para a Ciência?

4ª etapa – noções sobre valores cognitivos e listagem prévia

Nesta etapa, aprofundou-se o conhecimento a respeito de valores cognitivos, sistemas axiológicos e sua inserção no estudo do tema evolução biológica. Para tanto, tomou-se como referenciais os seguintes autores: Lacey (1998, 2000, 2003, 2008, 2010) e Fernandez (2006). Com base nessas pesquisas e, também, nos estudos para a construção de sínteses histórico-epistemológicas, foi elaborada uma lista prévia de valores cognitivos visualizados na teoria em questão. Em outras palavras, ante o conhecimento do corpus teórico e seu contexto histórico, buscou-se visualizar vários valores cognitivos.

5ª etapa – consolidação das escolhas

Levando em conta os aportes teóricos acima apresentados, nesta etapa, a escolha dos valores cognitivos visualizados é justificada. Além disso, segregam-se e excluem-se os valores que, em última apreciação, não cumpriram as funções explicativas esperadas, segundo os referenciais adotados. Dessa forma, foram elencados os seguintes valores cognitivos: adequação empírica, poder explicativo, consistência, consiliência4 4 O termo 'consilience' foi utilizado originalmente em 1840 por William Whewell, na obra 'The philosophy of the inductive sciences', em sua reflexão sobre a existência de bases comuns de explicações para diferentes áreas do conhecimento. No Brasil, Edward Wilson (1999 apud CRUZ, 2001) introduziu o neologismo 'consiliência' no livro 'A unidade do conhecimento: consiliência', utilizando o termo como palavra-chave para se reportar à unificação do saber. Esse valor foi incluído após interessantes discussões de nossa pesquisa com Hugh Lacey, ao qual somos agradecidos. , fecundidade e simplicidade.

Na justificação do reconhecimento de cada um desses valores, percebe-se o poder colaborativo dos mesmos no estudo de teorias científicas. Justificar a presença ou exclusão desses valores exigiu dos pesquisadores um diálogo de constante revisão e reflexão com os aportes históricos, filosóficos e metodológicos. Foi necessário refazer os percursos das etapas anteriores, implicando novas análises do conteúdo teórico e seu contexto histórico-social.

A lista de valores cognitivos destacados não compreende, evidentemente, à totalidade daqueles envolvidos na aceitação da teoria, uma vez que a análise dos meandros e as particularidades de sua epistemologia requerem uma pesquisa puramente epistemológica. Neste trabalho, no entanto, reconhecem-se aqueles que, de acordo com os levantamentos históricos empreendidos, apresentaram-se de forma mais evidente nos processos de reconhecimento e aceitação da teoria darwiniana. Sequencialmente, em vias de justificação axiológica, seguem as explicações concernentes aos valores cognitivos acima destacados.

Valor cognitivo adequação empírica: as conjecturas lançadas por Darwin, sustentadas por sua grande experiência observacional e influenciadas pelos estudos de Malthus, fizeram-no chegar a uma proposição puramente científica para explicar as mudanças dos seres vivos. Após a publicação de suas ideias, Darwin procurava responder às críticas fundamentando-se cuidadosamente em estudos científicos e aportes empíricos, como no caso da comparação entre a origem e o desenvolvimento das placas de barbatana das baleias da Groenlândia (Balaena mysticetus) e os bicos dos marrecos-de-bico-de-colher (Spatula clypeata), na controvérsia estabelecida com George Jackson Mivart.

Valor cognitivo poder explicativo: segundo Mayr (1998), a seleção natural é dotada de um poder explicativo tão poderoso que, entre outras coisas, foi responsável por: substituir um mundo estático por um mundo evolutivo; negar o criacionismo; negar a teleologia cósmica; reconhecer o fim do antropocentrismo irrestrito para a aceitação da descendência comum da humanidade; explicar o processo materialista básico da seleção natural que se opunha aos princípios cristãos (interação entre a variação não direcionada e o sucesso reprodutivo oportunista); refutar o essencialismo e aceitar o pensamento de população. Com a seleção natural, Darwin explicou como as espécies evoluem, ao longo do tempo, baseando-se em uma construção puramente científica e não teleológica.

Valor cognitivo consistência: considerando a época em que foi formulada, os aspectos que caracterizam o valor cognitivo consistência, na teoria da seleção natural, compreendem a coerência de suas asserções e, sobretudo, a coerência entre as conjecturas sustentadas na teoria e os dados observados. A clareza utilizada por Darwin, no desencadeamento lógico da teoria, bem como a coerência de suas proposições, contribuíram com sua posterior aceitação.

Valor cognitivo consiliência: a teoria da seleção natural mudou a maneira de se compreenderem os organismos, suas relações entre si e com o mundo. Isto significa que muitos aspectos da teoria da seleção natural influenciaram, além da ciência Biologia, diversas áreas do conhecimento. Sua busca por respostas a questões relativas ao campo da adequação empírica, por exemplo, sugeriu novos modos de investigação científica, como a utilização do método hipotético-dedutivo. Em princípio, Darwin foi incisivamente criticado por utilizar o método de hipóteses sugerido por Herschel, e não optar pelo clássico método indutivo, preconizado na época. Suplantando, por anos, as duras oposições metodológicas, Darwin conquistou publicamente o emprego desse método (hipotético-dedutivo) em favor do princípio da seleção natural, e, consequentemente, suscitou sua ampla utilização nos mais diversos campos da Ciência, que, por sua vez, utilizam-no até os dias atuais.

Valor cognitivo fecundidade: dentre os inúmeros desdobramentos da teoria da seleção natural – no âmbito do desenvolvimento científico – observou-se claramente que a mesma impulsionou o desenvolvimento de muitas áreas da Ciência, como no caso dos estudos paleontológicos e geológicos que se projetaram ao encontro de evidências que pudessem dar suporte às informações apresentadas no corpus da teoria. Atualmente, sobretudo como herança do período da síntese, inúmeras são as áreas que se especializaram em resposta às descobertas de Darwin, entre as quais estão: a Biologia Molecular, a Genética, a Embriologia e muitas outras. Considerou-se que esse desenvolvimento científico, incitado pela ideia de seleção natural, justifica a presença do valor cognitivo fecundidade.

Valor cognitivo simplicidade: a coesão das asserções e a clareza conceitual enunciada na teoria contrastam com a complexidade de seu enunciado. O que chamou a atenção da comunidade científica da época, além da condição ousada e inovadora a que a teoria se dispôs, foi o fato de conseguir explicar, de modo naturalmente simples, questões que até o momento eram classificadas como sobrenaturais.

Finalizando a justificação dos valores cognitivos visualizados na teoria de Darwin, enfatiza-se a não-manifestação dos valores verdade e certeza. Acredita-se que os critérios utilizados para a escolha dos outros valores não sejam os mesmos a serem empregados na justificação (ou determinação) desses valores, em particular.

Sabe-se que discussões sobre a presença de verdade e certeza em teorias e proposições científicas demandam reflexões pertinentes ao campo da Filosofia da Ciência. Entretanto, considerando que conclusões obtidas por meio de observações, inferências e corroborações empíricas suscitam reavaliações constantes – não obstante a utilização quase normativa de procedimentos metodológicos racionais –, pondera-se sobre a possibilidade da existência de múltiplas compreensões de verdade e certeza, dada a diversidade de pontos de vista que podem ser obtidos nos diversos contextos do conhecimento biológico.

Assim, refletindo sobre as particularidades desses valores, em contraponto à legitimidade dos outros já elencados na teoria darwiniana, compartilha-se, com alguns leitores, a dificuldade em reconhecê-los como pertencentes à mesma classe que os demais e, por consequência, optou-se por não atribuir juízos específicos de valor, considerando-os superiores ou inferiores aos outros.

Pautando-se nas reflexões atuais, acredita-se que os valores verdade e certeza sejam intrínsecos – de certa forma – à própria natureza dos valores cognitivos já elencados, podendo ser classificados como 'metavalores cognitivos', ou seja, fundamentando os demais.

O processo de construção dessa lista evidencia o papel dos valores cognitivos como elementos norteadores de um estudo teórico que, além de possibilitar uma forma alternativa de investigação à teoria, favoreceu a combinação e a utilização de aportes históricos e filosóficos da Ciência nesse empreendimento. Este estudo, desse modo, inova, exemplifica e contribui para o desenvolvimento potencial de norteamento de aprendizagem crítica, uma vez que explicita as justificativas teórico-metodológicas e os sistemas axiológicos da Ciência, ao mesmo tempo em que mostra a relevância do ensino de conteúdos científicos e de sua valoração.

Considerações finais

Com o pressuposto de que, por meio de estudos históricos e filosóficos, teorias científicas possam ser mais bem exploradas pedagogicamente, essa investigação adotou como instrumento complementar o aporte dos valores cognitivos – exemplificado no estudo da teoria da seleção natural –, que se apresentou, neste caso, como uma nova estratégia de investigação para o entendimento de uma teoria biológica. Estratégia essa que, até o momento, não é evidenciada em trabalhos da área de Ensino de Biologia.

O processo constitutivo de pesquisa exigido nessa análise teórica (visualização de valores cognitivos) possibilitou aos pesquisadores, entre outras coisas, uma maior compreensão da teoria da seleção natural. Observou-se, também, que essa estratégia auxiliou positivamente no entendimento de diversos aspectos epistemológicos do conhecimento evolutivo, dando maior visão sobre suas particularidades e domínios explicativos.

Para o caso específico do ensino de evolução biológica, entende-se que a utilização, didática e pedagogicamente adequada, de valores cognitivos em situações de aprendizagem poderá favorecer – assim como observado neste estudo – um entendimento mais profundo e substantivo dos conceitos evolutivos por parte dos estudantes. Abrem-se, assim, possibilidades para o desenvolvimento de novas estratégias de abordagem para o ensino de evolução biológica, com propostas pedagógicas que visem o desenvolvimento de atividades e materiais didáticos que utilizem o aporte dos valores cognitivos no ensino desse conteúdo, e que serão o foco de outro artigo desenvolvido pelos pesquisadores.

Por tais motivos, acredita-se que pesquisas como esta, comprometidas com o estudo e a utilização de valores cognitivos – servindo-se de conhecimentos histórico-filosóficos da Ciência – poderão contribuir significativamente com a Educação Científica, configurando-se não como uma medida indefectível e generalizante, mas como uma alternativa didática que, como tantas outras, poderá colaborar com o processo de construção do conhecimento.

Artigo recebido em 18/01/12.

Aceito em 04/07/12.

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  • 1
    Nature of Science
    .
  • 2
    Devido à variabilidade semântica da expressão 'teorias científicas', assumimos, neste trabalho, a definição sugerida por Batista (1999), em que teorias científicas podem ser compreendidas como "uma elaboração que seja coerente com os aspectos empíricos com os quais ela se relaciona, com o maior grau de abrangência – no sentido de explicar os dados experimentais já conhecidos e quaisquer outros novos que vierem a existir – e que seja coerente segundo uma lógica escolhida, seja ela clássica ou heterodoxa" (BATISTA, 1999, p. 32), em sua estrutura sintática (lógico-matemática ou linguística), no seu domínio de aplicabilidade e com um conjunto de regras que permitam conectar a teoria com a estrutura sintática e com o domínio empírico estabelecido, quando aplicável.
  • 3
    As expressões 'valores cognitivos' e 'valores epistêmicos' são assumidas como sinônimas, neste artigo. Lacey (2008, p. 84) evidencia tal equivalência terminológica em valores e atividade científica, ao discutir a correlação semântica de 'valores cognitivos' com terminologias utilizadas por autores como McMullin e Hempel ('virtudes epistêmicas' ou 'valores epistêmicos') e Longino ('valores constitutivos da ciência').
  • 4
    O termo 'consilience' foi utilizado originalmente em 1840 por William Whewell, na obra 'The philosophy of the inductive sciences', em sua reflexão sobre a existência de bases comuns de explicações para diferentes áreas do conhecimento. No Brasil, Edward Wilson (1999 apud CRUZ, 2001) introduziu o neologismo 'consiliência' no livro 'A unidade do conhecimento: consiliência', utilizando o termo como palavra-chave para se reportar à unificação do saber. Esse valor foi incluído após interessantes discussões de nossa pesquisa com Hugh Lacey, ao qual somos agradecidos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Mar 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      18 Jan 2012
    • Aceito
      04 Jul 2012
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