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O reverberar da crise ambiental: uma análise arqueológica dos discursos de professores de ciências* * Este artigo apresenta um recorte da totalidade de resultados obtidos na dissertação de mestrado do primeiro autor.

The reverberation of the environmental crisis: an archaeological analysis of the discourse of science teachers

Resumo:

Esta investigação analisou discursos de nove professores de Ciências do município de Maringá-PR sob crivo do domínio foucaultiano ser-saber, enfatizando a problematização de tais ditos e enunciados que orientaram as compreensões de ciência e crise ambiental, identificando potenciais práticas em Educação Ambiental (EA). O cerne desta pesquisa foi o exame das manifestações discursivas de ciência pela maneira de como a composição de enunciados repercutiam em abordagens em EA, entendidas pelos elementos discursivos postos em circulação. Como procedimento de análise para a análise dos discursos assumiu-se o domínio arqueológico optando pela sistematização do corpus em diferentes Focos de análise à luz da noção de formação discursiva, tomada como conceito-chave, não se detendo em categorias a priori, mas em suas recorrências e descontinuidades. Apesar de identificada uma transição de enunciados sobre ciência, quando articulados à crise ambiental os resultados apresentados apontaram discursos naturalizados, acompanhados da crença de que sua solução será orientada por aparatos técnico-científicos.

Palavras-chave:
Educação ambiental; Crise ambiental; Arqueologia foucaultiana; Discurso

Abstract:

This research analysed the discourses of nine Science teachers of Maringa-PR municipality within the 'to be - to know' Foucault's domain, emphasizing the questioning of sayings and statements that guided the understanding of science and environmental crisis by identifying potential practices in Environmental Education (EE). The core of this research was the examination of discursive manifestations about science, through the way the composition of statements resonated in approaches to EE, understood by discursive elements put into circulation. For the procedural aspect of the discourse analysis, we assumed the archaeological domain opting for systematization of the corpus in different analysis foci, in the light of the notion of discursive formation, taken as a key concept, not stopping only on priori categories, but its recurrences and discontinuities. Although a transition of statements about science was identified, when applied to the environmental crisis the presented results pointed out naturalized discourses, accompanied by the belief that technical-scientific devices will orient its solution.

Keywords:
Environmental education; Environmental chrisis; Foucault's archeology; Discourse

Introdução

As décadas finais do século XX, principalmente o início dos anos de 1990, assinalaram um momento de ampla circulação na difusão de temas e trabalhos sobre Educação Ambiental (EA) no cenário brasileiro, além da significativa ramificação do referencial teórico para as orientações práticas decorrentes: EA crítica, EA emancipatória, EA para o desenvolvimento sustentável. Diante dessa heterogeneidade, tanto a necessidade de ir a campo para mapear o que vem sendo feito, assim como examinar as proposições investigativas em EA orientadas por caminhos até então pouco trilhados, diversos estudiosos do tema propõem um caráter "antropofágico" de pesquisas (BARCELOS, 2010BARCELOS, V. Antropofagia, educação ambiental e intercultura: tecendo uma não pedagogia. In: GUIMARÃES, L. B.; KRELLING, A. G.; BARCELOS, V. (Org.). Tecendo educação ambiental na arena cultural. Petrópolis: DP et Alii, 2010. p. 11-31.; BARCELOS; SILVA, 2007BARCELOS, V.; SILVA, I. S. Saberes, sabores e devorações: por uma educação ambiental antropofágica e pós-moderna. In: PREVE, A. M.; CORRÊA, G. (Org.). Ambientes da ecologia: perspectivas em política e educação. Santa Maria: Editora da UFSM, 2007. p. 139-167.; REIGOTA, 2002REIGOTA, M. A floresta e a escola: por uma educação ambiental pós-moderna. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2002.).

Nessa perspectiva, trilhou-se uma abordagem foucaultiano-arqueológica como um potencial antropofágico de investigação, uma vez que tal domínio tem sido pouquíssimo empregado nas investigações em EA. Nesse sentido, o problema empreendido nesta investigação foi elaborado sobre a necessidade de conhecer os elementos discursivos dos professores entrevistados. O percurso transcorrido nessa investigação levou em conta o domínio3 3 Alfredo Veiga-Neto (2011) prefere tratar por domínios foucaultianos em vez de fases para evitar a falsa impressão de que a obra de Foucault encontra-se propositalmente dividida pelo autor. Tal terminologia é utilizada somente por uma questão didática. ser-saber, entendido como caminho mais profícuo, uma vez que Foucault (2011, p. 44)______. Ditos e escritos, volume 10: filosofia, diagnóstico do presente e verdade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. referiu-se a saberes "[...] no sentido de teorias sistemáticas que se manifestam por meio de discursos científicos tidos por verdadeiros, positivos e, por isso, aceitos e tomados em toda a sua positividade".

Propôs-se, então, como reconhece Fischer (2012, p. 12)FISCHER, R. M. B. Trabalhar com Foucault: arqueologia de uma paixão. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. sobre as investigações foucaultianas, "pensar as coisas como problema", se por isto está entendido "tomar distância em relação ao que vemos e ao que sabemos". Nesta orientação, assumem-se as constatações como problemas a serem pensados, que englobam, neste recorte, as sequencias enunciativas referidas tanto à crise ambiental quanto ao papel da ciência anunciados pelos professores de Ciências.

Com base na noção foucaultiana de "regimes de verdade" que engendram e regulamentam a produção de discursos, foi necessária uma incursão no pensamento do filósofo para garantir o entendimento dos discursos reverberados por professores investigados como uma superfície encetada de relações de poder. Nesse sentido, nem a preocupação com a delimitação de vertentes específicas em EA, nem uma nova adjetivação das modalidades de EA existentes foram objeto da investigação realizada. A indagação da pesquisa foi "quais seriam os enfoques culturais, políticos, pedagógicos e epistemológico-sociais que poderiam estar atravessando-as", assim como propõe Guimarães (2003, p. 335)GUIMARÃES, L. B. O educativo-ambiental construído sob o binarismo natureza/cultura nos limiares do terceiro milênio. In: NOAL, F. O.; BARCELOS, V. H. L. (Orgs.). Educação Ambiental e Cidadania: cenários brasileiros. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003. p. 333-349. a respeito dos "[...] princípios básicos norteadores dessas inúmeras ações". Ir ao encontro dos saberes para o exame dos discursos docentes foi buscar ser fiel à noção de verdade, empreendida, na perspectiva do filósofo francês, como uma construção e circulação de certos ditos (saberes), tornados verdadeiros num certo tempo e lugar (FOUCAULT, 2012______. A ordem do discurso. 22. ed. São Paulo: Loyola, 2012.), aludindo, portanto, a certas construções que serão sempre contingentes.

Disso decorre um particular interesse na apresentação de recortes discursivos anunciados por professores. Entendem-se tais recortes como representativos de uma episteme (FOUCAULT, 2007______. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 9. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.), noção que alude a certas formas de pensar características de momentos específicos ao longo da história. Apreendidos em sua materialidade, a importância que se dá aos discursos anunciados pelos sujeitos da pesquisa ultrapassa o significado daquilo que se diz ou se está por dizer, uma vez que tais discursos podem ser tomados como elementos que constroem significados e sentidos no momento mesmo em que anunciados e reproduzidos. Nessa perspectiva, esses enunciados orientam práticas pedagógicas forjadas por certas relações entrelaçadas nas terminologias a respeito da ciência e da crise ambiental no campo da EA.

Para essa análise, adota-se a premissa de que não há um pensamento unificado do que seja a crise ambiental, sendo mais sensato pensá-la como fazem Brügger, Abreu e Climaco (2003, p. 166)BRÜGGER, P.; ABREU, E.; CLIMACO, J. V. Maquiagem verde: a estratégia das transnacionais versus a sustentabilidade real. In: GUIMARÃES, L. B. et al. (Org.). Tecendo subjetividades em educação e meio ambiente. Florianópolis: NUP/CED/UFSC, 2003. p. 159-170. de que é uma "desconstrução e reconstrução de ideários", sendo, por isso, "[...] cada vez mais acirrada a luta entre diferentes concepções sobre o que seja essa crise ambiental e, principalmente, sobre como resolvê-la, ou pelo menos amenizá-la". Desconfia-se, também, como provocam Larrosa e Skliar (2011, p. 9)LARROSA, J.; SKLIAR, C. Babilônios somos: a modo de apresentação. In: ______. (Org.). Habitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. p. 7-30. "[...] de todos esses discursos sobre a crise nos quais tudo está em crise exceto o discurso seguro e assegurado que a nomeia, a diagnostica e antecipa sua solução".

Em uma perspectiva desconfiada, como tensionam as teorizações foucaultianas, é mais sensato entender que a crise ambiental atual não procede exclusivamente de mudanças naturais, mas, sobretudo no âmbito da linguagem; trata-se de efeitos de discursos postos em circulação que obedecem determinado comando do que se acredita ser interessante em um certo momento histórico (episteme). Isso admitido, apresenta-se em um primeiro momento, os conceitos foucaultianos que serviram como instrumental nesse estudo e, num momento posterior, o funcionamento de algumas posições na análise propriamente dita, priorizando pelo recorte dos ditos manifestos que tangenciaram diretamente os enunciados de crise ambiental analisados nos discursos dos nove professores.

Conceitos foucaultianos para a análise do discurso

Como primeira disposição, salienta-se que à luz de tal referencial adotado não se buscou encontrar o sentido último ou oculto dos elementos discursivos; foi dada uma dimensão importante somente ao nível do que foi dito, da existência das palavras, de modo que sejam recusadas as explicações unívocas, de fáceis interpretação e a insistente busca pelo sentido último e oculto das coisas, como assinala Fischer (2012)FISCHER, R. M. B. Trabalhar com Foucault: arqueologia de uma paixão. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. em seus escritos. Nesse caminho, os discursos não foram entendidos como elementos tangíveis e facilmente isoláveis, sendo necessário "[...] escavar verticalmente as camadas descontínuas de discursos já pronunciados, muitas vezes de discursos do passado, a fim de trazer à luz fragmentos de ideias, conceitos, discursos talvez já esquecidos" (VEIGA-NETO, 2011VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011., p. 45) no domínio arqueológico de análise.

É preciso esclarecer neste ponto que, mesmo havendo uma complementaridade no pensamento do filósofo - cuja preocupação esteve sempre voltada ao que os homens fizeram de si ao longo de diferentes regimes históricos -, não existe uma linearidade nas ideias em que ele propõe em cada momento de suas teorizações. É possível, como sinaliza Fisher (2012)FISCHER, R. M. B. Trabalhar com Foucault: arqueologia de uma paixão. Belo Horizonte: Autêntica, 2012., que as obras escritas na década de 1960 nas quais se apoia esse estudo - As palavras e as coisas e A arqueologia do saber - sugiram uma concepção idealista e estruturalista da linguagem. Admite-se, dentre outras coisas, que para o problema de pesquisa delineado recorreu-se aos primeiros escritos do filósofo e, portanto, a posicionamentos que posteriormente foram alterados, ou, de forma mais fidedigna ao trabalho do filósofo, complementados. Em uma entrevista dada após a publicação dessas obras e, portanto, do que fora consagrado pelo domínio ser-saber, o próprio Foucault (2015, p. 40)______. Microfísica do poder. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. admitiu: "Eu não vejo quem possa ser mais antiestruturalista do que eu".

Como organização, em um primeiro momento apresenta-se a compreensão de enunciado, que apesar de não ser a unidade elementar do que é referido como discurso, tangencia a compreensão de tal noção. Os enunciados podem ser entendidos como "condições de existência em uma dada repartição discursiva", remetem a regras a que estão submetidos os elementos do discurso, ou seja, objetos, modalidade de enunciação, conceitos e escolhas temáticas (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013., p. 47).

Quatro elementos podem ser observados quanto aos componentes do enunciado de acordo com o esquadrinhamento proposto por Foucault (2013)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. na análise arqueológica. Não é intenção aqui explorar a fundo esses elementos, mas visibilizá-los na dimensão que ofereceram contribuições à análise. Para isso, não será trazida uma descrição literal proposta pelo filósofo, mas comentários que seguem os elementos, a fim de dizer sobre eles o essencial.

Compõe, então, o que se entende por enunciado: um referente (ou seja, um princípio de diferenciação), um sujeito (no sentido de "posição" a ser ocupada), um campo associado ou de concomitância (isto é, coexistir com outros enunciados) e uma materialidade específica - por tratar de coisas efetivamente ditas, escritas, gravadas em algum tipo de material, passíveis de repetição ou reprodução (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.).

Destaca-se, dessas noções, especialmente a tônica que envolve o sujeito e o campo associado. O primeiro pode ser entendido como um intervalo que multiplica os enunciados, pondo-os a funcionar, o que tensiona algumas indagações formuladas ainda na obra 'A arqueologia do saber'. Para Foucault (2013)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. é indispensável saber 'quem fala', 'quem é o titular do enunciado' e, ainda, 'quem são aqueles que recebem, se não sua garantia, pelo menos a presunção de que algo é verdadeiro?'. É preciso, ainda, dar destaque ao 'lugar de que se fala', uma vez que este ocupa o status de uma instituição. É possível, ainda, elencar outras disposições: 'os discursos enunciados por determinada pessoa ou grupo podem ser enunciados por outras?', 'porque o que é dito por eles é tal ou qual coisa em uma dada situação, e não outra?', 'que outra coisa poderia ser manifesta em outro tempo/lugar?', dentre outras possibilidades. Por fim, existem, apenas, "multiplicidades raras, com pontos singulares, lugares vagos para aqueles que vêm, por um instante, ocupar a função de sujeitos, regularidades acumuláveis, repetíveis e que se conservam entre si" (DELEUZE, 2013DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2013., p. 25).

Quanto à noção de campo é preciso explicitar que, de acordo com certas formações discursivas a que esses enunciados são evocados, tem-se emaranhados específicos. Certos enunciados sempre estarão ligados - de forma estreita ou distante - a outros enunciados e essas disposições são mutáveis em cada contexto.

Para situar a relação entre enunciado e discurso, tomou-se a "formação discursiva" como um conceito que distingue o enunciado de outros elementos como a frase ou a proposição, de maneira que se possa entender por discurso4 4 Essa é apenas uma das possíveis definições de discurso que o filósofo teoriza em 'A arqueologia do saber' (FOUCAULT, 2013). A opção pela seleção desta definição se deu devido a sua objetividade e aproximação com os conceitos que já foram apresentados até este ponto do texto. a compreensão de Foucault (2013, p. 128)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. como um "[...] conjunto de enunciados apoiado em um mesmo sistema de formação" (a discursiva). São grupos de enunciados que obedecem a performances verbais. O filósofo Gilles Deleuze (DELEUZE, 2013DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2013.), ao debruçar-se sobre a obra de Foucault, chama, ainda, a formação discursiva de famílias de enunciados.

Por essas questões anteriores, se fez preciso o entendimento de tal noção para o âmbito metodológico, traz-se aos interlocutores um trecho, julgado mais sintético, em que o filósofo francês apresenta por formação discursiva. De acordo com ele:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva - evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e consequências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais como "ciência", ou "ideologia" [...] Chamaremos de regra de formação as condições a que estão submetidos os elementos dessa repartição [...] (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013., p. 47, grifos do autor).

Finalmente, é preciso examinar os conceitos de reverberação e rarefação. Estes conceitos amparam a análise arqueológica delimitando o universo de possibilidades analíticas dos discursos que aparecem e figura no título deste artigo. A propriedade de reverberação delineia um campo enunciativo dos "[...] enunciados já formulados em alguma outra parte e que são retomados em um discurso a título de verdade admitida" (FOUCAULT, 2012______. A ordem do discurso. 22. ed. São Paulo: Loyola, 2012., p. 68). Essa condição garante situação particular de desnivelamento dos discursos. Isso significa dizer que sempre há coisas que são ditas, ao passo que outras se tornam, por uma série de distintos procedimentos, apagadas ou expressas em menor frequência. O conceito de rarefação está relacionado à determinação de "[...] impor aos indivíduos que discursam certo número de regras e assim de não permitir que todo mundo tenha acesso a elas" (FOUCAULT, 2012______. A ordem do discurso. 22. ed. São Paulo: Loyola, 2012., p. 35), elegendo quem são os possíveis sujeitos que tem o direito de dizer sobre certas coisas.

A combinação desses dois conceitos apresentados está intimamente ligada à noção de episteme. Esta noção pode ser entendida como disposições que imperam em um determinado momento histórico e, para além disso, permitem "[...] compreender o jogo das coações e das limitações que, em um momento determinado se impõem ao discurso" (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013., p. 217). A condição imposta pela episteme é aquela que regula e é regulada por um campo discursivo. Neste se pode dizer se pode dizer certas coisas em um dado tempo, ao mesmo tempo em que outras são proibidas. O que se diz e está por dizer configura-se, em termos genéricos, como uma verdade de seu tempo.

A ênfase dada na análise arqueológica levou em conta os atos enunciativos ou de fala dos sujeitos da pesquisa considerando que esses atos "[...] se inscrevem no interior de algumas formações discursivas e de acordo com certo regime de verdade, o que significa que estamos sempre obedecendo a um conjunto de regras, dadas historicamente, e afirmando verdades de um tempo" (FOUCAULT, 2012______. A ordem do discurso. 22. ed. São Paulo: Loyola, 2012., p. 79).

Por fim, este é o trajeto teórico explicativo de como nos tornamos sujeitos de certos discursos e, por meio de quais separações, distinções e atribuições históricas, certas verdades e, consecutivamente, saberes, se tornam naturalizados.

Abordagem metodológica

A pesquisa investigou as formações discursivas acerca dos saberes que movimentaram ditos sobre a EA, crise ambiental e ciência, manifestos nos discursos de nove professores de Ciências de escolas públicas e privadas de distintas regiões da cidade de Maringá - PR, referidos como P1, P2... P9. Dispôs-se analisar discursos reverberados e rarefeitos, isto é, um mapeando de distanciamentos e aproximações enunciativas.

Como instrumento de coleta efetuou-se a entrevista do tipo estruturada seguindo um roteiro que aborda os sujeitos selecionados de acordo com um plano (MARCONI; LAKATOS, 2010MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. M. Fundamentos de metodologia científica. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2010., p. 180). As questões foram mantidas aos sujeitos da pesquisa de forma que não houvesse liberdade na adaptação a novas perguntas, uma vez que a análise teve como eixo organizacional as formações discursivas. Por isso, a exigência metodológica de um campo enunciativo inalterado, propiciado pelas perguntas. As entrevistas foram audiogravadas e transcritas para possibilitar uma organização do conjunto de enunciados expressos pelos professores. As perguntas do questionário que orientou a entrevista das quais foram priorizadas na análise trazida neste recorte foram as seguintes: "O que você compreende por crise ambiental?", "Como você situa a posição de ciência em meio à crise ambiental?", "O que você poderia fazer com relação à crise, na posição de professor de Ciências?" e, finalmente, "Supomos que em suas aulas, você tivesse a necessidade de tratar da problemática ambiental atual. Como você abordaria tal questão?".

O trajeto descrito até aqui diz respeito aos procedimentos de coleta do corpus de análise, à obtenção do material por meio do qual seria realizada a análise propriamente dita. Em arsenal foucaultiano, contudo, é preciso lembrar com Veiga-Neto (2011, p. 17)VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. de que não existe um método para o filósofo, "[...] a menos que se tome a palavra 'método' num sentido bem mais livre do que os sentidos que lhe deu o pensamento moderno". Ou como se referiu, de forma específica, Larrosa (1994, p. 37)LARROSA, J. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, T. T. (Org.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 35-86., também inspirado na abordagem foucaultiana, o termo pode ser entendido como "[...] certa forma de interrogação e um conjunto de estratégias analíticas de descrição".

Como procedimento de análise dos dados, utilizou-se o conceito de formação discursiva, fazendo-o funcionar como conceito-ferramenta (VEIGA-NETO; RECH, 2014VEIGA-NETO, A.; RECH, T. L. Esquecer Foucault? Pro-posições, Campinas, v. 25, n. 2 (74), p. 67-82, mai./ago., 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pp/v25n2/04.pdf>. Acesso em: 2 out. 2016.
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) possibilitando esquadrinhar o corpus de análise em dois Focos distintos. A construção desses focos não se deu a priori à pesquisa, como permitem outros delineamentos metodológicos, mas foi tracejada diante de recorrentes leituras dos enunciados e identificação de seus respectivos campos associados.

Nesse caminho, trabalhar com a dispersão de enunciados exigiu dos pesquisadores, como expressou Fischer (2012, p. 81)FISCHER, R. M. B. Trabalhar com Foucault: arqueologia de uma paixão. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. "[...] a construção de unidades a partir da dispersão, mostrando como determinados enunciados aparecem e como se distribuem no interior de certo conjunto, sabendo, em primeiro lugar, que a unidade não é dada pelo objeto de análise". Como houve predomínio de enunciados que compuseram o primeiro foco, foi dada a ele maior atenção.

Desta forma, aceitando a proposta foucaultiana, fez-se uma análise ascendente, entendida como um procedimento de descrição dos discursos a partir de seus menores enunciados, buscando captar diferentes práticas emergidas no agrupamento de sua realidade aparentemente dispersa. Foram nomeados de Focos A e B com base em uma digressão a que levou seus enunciados representativos de formações distintas, ao mesmo tempo em que trouxeram, consequentemente, distintos campos associados, os quais são explorados a seguir.

Resultados e Discussão

Em vez de categorias prévias, o delineamento dos blocos analíticos ocorreu por um minucioso trabalho envolvendo o reconhecimento de certas formações (as discursivas) que demonstrassem uma árvore de enunciados mais ou menos emparelhados e se fizeram construídas ao longo da investigação. De acordo com a noção de conceito-ferramenta formação discursiva diante do corpus, ou as respostas às questões analisadas, foram estabelecidas aproximações em dois focos distintos que foram assim tratados:

Foco A - Crise ambiental entendida como um desequilíbrio de ecossistemas e interrupção de ciclos naturais

Apoia-se em tais formações enunciados que correspondem ao ambiente em sentido naturalista, direcionando-se a enunciados como: poluições das águas, do ar e solo e o desmatamento, por exemplo. Frequentemente associado à ecologia natural, a questão ambiental nestas formações discursivas restringem-se a abordagens técnico-instrumentais das quais se acredita ser possível que as soluções para a crise são mediadas pela própria ciência. Situam-se aqui os enunciados emitidos pelos professores P1, P2, P4, P5, P6, P7 e P8.

Foco B - Crise ambiental entendida como resultado de uma relação ser humano-natureza, mediada por uma operacionalidade técnico-científica

A compreensão de ciência trazida pelas respostas da entrevista permitiu que se estabelecesse um caráter de problema sobre a hegemonia da racionalidade técnico-instrumental. Situam-se aqui os enunciados emitidos apenas pelos professores P3 e P9.

A fim de que a linearidade das respostas seja preservada, as respostas que materializam as compreensões de crise ambiental anunciados pelos professores integrantes do Foco A, foram os seguintes: "a perda da biodiversidade" (P1); um "colapso ecológico", referindo-se a um desequilíbrio do meio ambiente (P2); "a degradação do ambiente", que se desdobra em uma somatória de fatores como a "poluição do solo", a "poluição da água" e a "poluição do ar" (P4); "à falta de consciência dos sujeitos", que leva a consecutivas ações como jogar lixos nos bueiros (P5); "uso inoportuno e quantidade inadequada" dos elementos do meio ambiente, o que desencadeou num suposto "descontrole do ciclo", resultado da adoção de atitudes "antrópicas" (P6); "a interferência do homem na natureza", exemplificada por fatores como "desmatamento, retirada de substâncias do solo, aumento de populações e a poluição que é jogada no ar" (P7); e, por fim, às alterações climáticas causadas pela poluição e o uso de agrotóxicos (P8).

A consideração preliminar a respeito dessa íntima associação de enunciados a tratar é a condição que Brügger (2004)BRÜGGER, P. Educação ou adestramento ambiental? 3. ed. Chapecó: Argos; Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004. considera por "reificação da questão ambiental", na qual ambiente é entendido como algo concreto, tangível. Admitiu-se que essa condição parte da mesma formação discursiva para a qual a ciência é uma entidade capaz de gerar alternativas viáveis ao enfrentamento da crise. É unicamente devido à reificação da questão ambiental que é possível. Portanto, a manifestação de alguns enunciados que atribuem uma ou mais posições à ciência no contexto de crise ambiental expostas aqui pela seleção dos ditos de P1, P2 e P4, no caso da segunda pergunta:

"[...] a ciência é uma ferramenta pra eu trabalhar com a crise ambiental. Eu acho que utilizando os métodos científicos conhecidos a gente pode chegar a eventuais soluções 'né', e soluções que podem ser muito interessantes pra problemas tanto de cunho social quanto de cunho ambiental [...]" [P1, grifos nossos].

"A princípio dando veracidade ou não a essa crise... Depois sugerindo formas de voltá-la ao equilíbrio, e o tempo todo monitorando [...]"[P2, grifos nossos]

"A ciência ela precisa é [...] prover soluções. Buscar soluções pra solucionar a crise ambiental. Então ela 'tá' na posição de... de solucionar, de buscar respostas. Meios pra é... diminuir, e se for o caso, eliminar, não eliminar não... reverter na medida do possível à crise [...]"[P4, grifos nossos].

Diante disso, inclina-se a assumir uma posição para a qual por via de uma gestão racional da natureza de caráter eminentemente técnico, não se atingirão as condições de resolução desta crise. Ou seja, não será pela técnica e pelo refinamento do projeto científico e epistemológico que haverá mudanças para dirimir a crise ambiental. Com a leitura de base nas obras foucaultianas selecionadas nesta investigação, registra-se esta hegemonia da racionalidade científica como marcadora de um pensamento inerente da modernidade. Entende-se que assumir como compromisso um apelo a esses procedimentos como forma de conduta é falar do marco em que a ciência fora eleita, dentre os demais saberes, como a mais autorizada a falar de certos temas, neste caso, a crise ambiental. Contudo, quando esses enunciados vem à tona, não vem da mesma forma como nasceram em seu registro histórico específico, mas retornam de forma diferente, devido a outro campo associado que os resgata, neste caso, o da própria crise.

As formações discursivas que compõe este primeiro foco aproximam-se da concepção ecologista identificada por Souza (2011, p. 40)SOUZA, C. E. P. Reflexões sobre educação ambiental: subsídios para a formação de educadores. In: ARRUDA, V. L. V.; HANAZAKI, N. (Org.). Tecendo reflexões em educação e meio ambiente. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011. p. 29-43., em que a ênfase "é pautada na conservação da natureza por si, para que se evitem os desequilíbrios. Para os defensores dessa proposta, o ser humano sempre polui o ambiente, sendo o único responsável pelos desastres ambientais da atualidade". Essa visão supõe um forte apelo a uma natureza primitiva ou primeira natureza. Neste sentido, o reverberar de tais discursos configuram a formação de uma verdade que mantêm em vigor algumas dicotomias da modernidade como homem/natureza e natureza/cultura, herdados da filosofia cartesiana que situa, de forma inerente, o ser humano como fonte de todo mal.

Deste modo, as formações discursivas apresentadas caracterizam o paradigma mecanicista como elemento norteador. Este pressupôs ser a única forma legítima de fazer ciência, nas palavras de Grün (1996, p. 40)GRÜN, M. Ética e educação ambiental: a conexão necessária. 9. ed. Campinas: Papirus, 1996.. Mais do que isso, com a contribuição de Newton para a mecânica newtoniana, resultou não apenas uma descrição objetiva de natureza, mas, também "[...] um modelo de interpretação do mundo sustentado no modelo explicativo mecânico-causal".

Os referentes em que se apoiam esses enunciados estão nos entremeios da cisão propiciada pelas influências de Francis Bacon e seu projeto, cujos princípios pautaram-se na conversão de uma natureza orgânica em mecânica. Apesar de seu projeto ter fracassado, uma vez que a humanidade não se tornou inteiramente livre por meio da ciência como imaginava Bacon, "[...] a contraface de seu projeto triunfou de um modo surpreendente e o antropocentrismo passou a integrar o cerne do corpo da concepção de ciência na época moderna" (GRÜN, 1996GRÜN, M. Ética e educação ambiental: a conexão necessária. 9. ed. Campinas: Papirus, 1996., p. 32). Disso decorre essa condição instrumental de ambiente subjacente ao poderio concedido à ciência, aproximando as condições de existência, para as quais conhecê-lo passou a ser, automaticamente, critério de garantia para melhorá-lo.

A propósito dessa proposição, Brügger (2004, p. 43-44)BRÜGGER, P. Educação ou adestramento ambiental? 3. ed. Chapecó: Argos; Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004. assinala que "[...] a dimensão política do uso desses recursos fica automaticamente garantida, o que é uma falácia. Esse é um exemplo representativo de como a sociedade industrial conseguiu universalizar a sua verdade, sob a aparência de uma verdade científica".

Esses discursos assinalam, então, uma episteme que não é a de nossos tempos - no que diz respeito ao papel da ciência - mas retornam com vigor na materialidade dessas falas uma vez que se coloca o fator crise ambiental como campo associado. O caráter de problemática exercido por este sintagma abre precedentes para resgatar certos ditos do passado, os que situam a ciência como um saber capaz de solucionar esta crise ambiental que atravessamos.

A prevalência dos laços associativos que envolveram as respostas da terceira e quarta questão assinalou na análise empreendida uma "ênfase quase fanática na ação e na mudança de comportamento", implicando na formação dos professores um caráter de adestramento ou treinamento no lugar da uma formação (BRÜGGER, 2004BRÜGGER, P. Educação ou adestramento ambiental? 3. ed. Chapecó: Argos; Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004., p. 92).

Foi possível identificar este caráter anunciado pelos professores quando respondem o que podem fazer com relação à crise no papel de sujeito que ocupam. As respostas são as seguintes: "práticas de sensibilização, a promoção de feiras, exposições e outros eventos no colégio em que lecionam que levassem em conta práticas de reciclagem e outras abordagens pontuais como um dia da bicicleta, em que os alunos que vão de bicicleta à escola e, ao fazer isso, ganhariam um desconto no lanche" (P1). "A informação levada aos alunos como elemento para correção da crise" (P2). A influência do professor nas atitudes dos alunos, algo que sugere uma postura próxima de uma "pedagogia do exemplo", exemplificado na "tomada de decisões como se policiar para não jogar lixo no chão" (P4) ou mesmo "pegar o papel do chão quando este foi atirado pelos próprios alunos" (P5). P5 ainda manifestou preocupações com relação ao desperdício das folhas de caderno, orientando, para esses casos, o máximo de utilização possível das linhas de cada folha. P7 e P8 manifestaram, ainda, a possibilidade no ensino de Ciências, de "reverter" comportamentos e conscientizar os alunos perante a sociedade e ao ambiente.

Esses laços de associação reforçam uma postura audaciosa quando os docentes pressupõem a ciência como um conhecimento hermético legitimando sua aproximação com aquilo que é entendido como verdadeiro e infalível e, portanto, poderoso. Esse entrelaçamento ciência-poder também subjaz ao pensamento de René Descartes: "Descartes consegue legitimar a unidade da razão às custas da objetificação da natureza. Mas há um preço a pagar - a natureza é objetificada" (GRÜN, 1996GRÜN, M. Ética e educação ambiental: a conexão necessária. 9. ed. Campinas: Papirus, 1996., p. 35).

Grün (1996, p. 15)GRÜN, M. Ética e educação ambiental: a conexão necessária. 9. ed. Campinas: Papirus, 1996. anuncia, ainda, a preocupação com as "intrínsecas relações existentes entre a epistemologia moderna e as possibilidades de uma educação ambiental". Mais precisamente, discute as impossibilidades de uma EA dentro do cartesianismo, em que a cisão entre natureza e cultura aparece como principal entrave. Além disso, situa a EA como um sintoma dessa crise da cultura ocidental, ou com o nome genérico recebido: "crise ecológica".

Contudo, as investigações em EA que fundamentaram esta discussão atribuíram caráter duvidoso a essas condutas, pois "uma pessoa não passa automaticamente a sua consciência sobre qualquer tema a outra pessoa, apenas pela transmissão de conhecimentos"; além disso, a EA "precisa ficar atenta para não cair nem fomentar um discurso moralista de 'bom comportamento'" (REIGOTA, 2009______. O que é educação ambiental. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2009., p. 54-55). Postura também reforçada por P6:

"Eu acho que pra tudo a gente tem como mudar essa próxima geração e eles a próxima, melhorar nesse sentido. Então a minha posição como professor, o que eu posso fazer, é que eles achem normal serecologicamente correto, ser educado, seja lá o que for. Que isso seja uma cultura que se traz desde muito cedo. Que eles não precisem aprender isso depois de terem a sua consciência adulta formada, 'né'. Quando mais cedo eles forem expostos a esse conhecimento científico, não necessariamente à parte massante do conhecimento científico, mas sim à ideia de que isso se torne importante pra eles e que se torne uma coisa comum: não jogar o lixo no chão, quando for um empresário cuidar da parte ambiental, que isso não seja uma despesa, mas sim uma parte do lucro. Acho que essa é a nossa posição de professor, principalmente de ciências [...]"[P6, grifo nosso].

Até mesmo as respostas de P3 e P9 - que foram circunscritas em um foco à parte devido o distanciamento de enunciados - mantiveram proximidade com tais posições, indicando que, apesar de haver compreensões de crise ambiental como resultado de uma relação ser humano-natureza mediada por uma operacionalidade técnico-científica, este não implica no domínio pedagógico, favorecendo práticas que fortalecem discursos hegemônicos.

Os enunciados desses dois sujeitos, referentes às respostas das primeiras perguntas que integraram a entrevista, denotam críticas à posição historicamente centralizada de hegemonia da ciência. P9, precisamente, expressa em materialidade elementos de relações econômicas para problematizar que tipo de relações à ciência vem sustentando na realidade maringaense na qual vive. Contesta o desenvolvimento de insumos agrícolas e terras agricultáveis da região diante do fato de sua produção não permanecer no local, mas ser exportada; uma ciência que não mata a fome de todas é materializada em seus ditos. Contudo, no que segue suas respostas a respeito do que podem fazer os professores de Ciências diante da crise, seus ditos, assim como os de P3, são próximos às condutas naturalizantes.

Julgou-se, assim, sobre o domínio da relação ser-saber investigada - inerente à materialidade de enunciados a qual se teve contato - que os ditos reverberados sobre essas questões movimentam uma perspectiva de micropedagogismo, cunhada por Brügger (2004)BRÜGGER, P. Educação ou adestramento ambiental? 3. ed. Chapecó: Argos; Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004. no campo de investigações da EA, em que se entende que a educação muda a sociedade e predomina-se a máxima "conhecer para preservar". Desta forma, quaisquer pretensões educativas mantidas no âmbito do paradigma cartesiano "não serão capazes de fazer com que a educação se torne ambiental, pois permanecerão sobre a mesma base filosófica que, em grande parte, propiciou o que chamamos de crise ambiental" (BRÜGGER, 2004BRÜGGER, P. Educação ou adestramento ambiental? 3. ed. Chapecó: Argos; Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004., p. 95).

Tem-se, por fim, uma posição de sujeito - professores - que, em sua prática, movimentam ditos que "ocultam-se sob a fachada de um saber 'técnico' uma decisão na verdade política", postura que, por meio de uma locução discursiva, "apenas reproduz e legitima o status quo e repele outras alternativas que porventura se coloquem contra ele" (BRÜGGER, 2004BRÜGGER, P. Educação ou adestramento ambiental? 3. ed. Chapecó: Argos; Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004., p. 85-86). Esta foi a seleção de enunciados que demarcou, de forma consecutiva, uma especificidade na relação ser-saber que orientaram as práticas em EA dos professores entrevistados. Para a maior parte dos sujeitos entrevistados, a pretensa verdade técnico-científica característica do pensamento instrumental foi anunciada como mote das práticas que foram narradas quando se questionou o que era possível fazer em relação à crise na posição de professor de ciências e possíveis abordagens em suas aulas.

Considerações Finais

Ao adotar o procedimento de escavar verticalmente as camadas dos discursos dos professores sujeitos da pesquisa foi identificada uma transição de enunciados sobre ciência. Predominaram, entretanto, enunciados que denotaram sua ampla circulação na modernidade. A regularidade de suas funções retorna quando exposta à crise ambiental em questão. Apesar de morfologicamente idênticos, historicamente não assumem o mesmo papel, denotando que, frente a uma situação de crise, certos apelos são resgatados, no caso, a ciência assumindo o papel de solucionadora da crise. Ainda neste eixo de análise, pôde-se conceber que houve outros elementos destituindo a ciência de seu lugar neutro para um local mais incerto e polêmico sem ainda determinações políticas claras.

O recorte teórico-metodológico adotado permitiu vislumbrar uma relação ser-saber ainda muito precária quanto à visão de ciência articulada a estratégias políticas diante da crise ambiental. Quando questionados sobre ciência de forma isolada emergem enunciados que contemplam uma prática científica mais próxima da episteme atual, ou seja, visões de ciência mais abertas, delineadas por seus usos sociais. Quando a crise ambiental aparece como campo associado, contudo, resgatam-se discursos institucionalizados que obliteram espaço para outros saberes construídos pela percepção de que a crise ambiental é uma crise sociocultural. Nesse caminho, considera-as possível ao apresentar as marcações arqueológicas, conhecer os desdobramentos que estas supostamente implicam nos discursos de crise ambiental e as práticas adotadas pelos professores.

Anuncia-se, ainda, a necessidade de futuras investigações, desta vez contemplando o domínio genealógico do ser-poder, e o domínio ético do ser-consigo, para a procura de elementos complementares para o complexo entendimento atual da relação da ciência com a crise ambiental, tangenciando, em mais ou menos grau, os desdobramentos que ocorrem no campo da EA e da prática docente.

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    Este artigo apresenta um recorte da totalidade de resultados obtidos na dissertação de mestrado do primeiro autor.
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    Alfredo Veiga-Neto (2011)VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. prefere tratar por domínios foucaultianos em vez de fases para evitar a falsa impressão de que a obra de Foucault encontra-se propositalmente dividida pelo autor. Tal terminologia é utilizada somente por uma questão didática.
  • 4
    Essa é apenas uma das possíveis definições de discurso que o filósofo teoriza em 'A arqueologia do saber' (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.). A opção pela seleção desta definição se deu devido a sua objetividade e aproximação com os conceitos que já foram apresentados até este ponto do texto.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    03 Out 2016
  • Aceito
    09 Jan 2017
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