Acessibilidade / Reportar erro

Explicitando uma metodologia de pesquisa: a experiência de uma professora de Física revisitada

Specifying a research methodology: the experience of a Physics teacher revisited

Resumos

A experiência de ensino de uma professora de Física (Marta) foi novamente enfocada neste trabalho, com a perspectiva de apresentar as potencialidades de um procedimento de análise que se utiliza de referenciais psicanalíticos. Foram destacadas as principais etapas desse procedimento, sobretudo, a maneira pela qual são articulados os dados considerados significativos e os referenciais teóricos. Em particular, foram explicitados alguns dos avanços em termos da compreensão dos processos de ensino e aprendizagem, quando é considerado o campo da subjetividade.

Ensino de ciências; Experiência de ensino; Referenciais psicanalíticos; Metodologia de pesquisa


In this work, the teaching experience of a Physics teacher was focused in a new way, with the purpose of showing the potential of psychoanalytical analysis . The main stages of the procedure showed meaningful data and theoretical references. In particular, some of advances in terms of the comprehension of the teaching and learning processes were shown, through the subjective experience of the teacher.

Science teaching; Teaching experience; Psychoanalytic frames; Methods of research


Explicitando uma metodologia de pesquisa: a experiência de uma professora de Física revisitada

Specifying a research methodology: the experience of a Physics teacher revisited

Elisabeth BarolliI,1 1 Rua Maria Burgueta Marcondes Pestana, 54, São Paulo, SP, 05.587–200 ; Juarez M. ValadaresII; Alberto VillaniIII

IDoutorado em Educação; Departamento de Ensino de Práticas Culturais, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas, SP. <ebarolli@unicamp.br>

IILicenciado em Física; doutorando, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP. <jvaladares@uai.com.br>

IIIProfessor associado; Departamento de Física Aplicada, Instituto de Física, de São Paulo (USP). São Paulo, SP. <avillani@if.usp.br> Com auxílio do CNPq

RESUMO

A experiência de ensino de uma professora de Física (Marta) foi novamente enfocada neste trabalho, com a perspectiva de apresentar as potencialidades de um procedimento de análise que se utiliza de referenciais psicanalíticos. Foram destacadas as principais etapas desse procedimento, sobretudo, a maneira pela qual são articulados os dados considerados significativos e os referenciais teóricos. Em particular, foram explicitados alguns dos avanços em termos da compreensão dos processos de ensino e aprendizagem, quando é considerado o campo da subjetividade.

Palavras–chave: Ensino de ciências. Experiência de ensino. Referenciais psicanalíticos. Metodologia de pesquisa.

ABSTRACT

In this work, the teaching experience of a Physics teacher was focused in a new way, with the purpose of showing the potential of psychoanalytical analysis . The main stages of the procedure showed meaningful data and theoretical references. In particular, some of advances in terms of the comprehension of the teaching and learning processes were shown, through the subjective experience of the teacher.

Key words: Science teaching. Teaching experience. Psychoanalytic frames. Methods of research.

Introdução

Do ponto de vista epistemológico, a área de Didática das Ciências estrutura–se com base nos procedimentos utilizados nas Ciências Humanas, tanto em relação ao método quantitativo, quanto ao qualitativo (MINAYO, 2004; LUDKE e ANDRÉ, 1996). Este último, em particular, estará, a partir de agora, no foco das discussões subseqüentes, na perspectiva de explicitar de que forma a área tem conseguido produzir conhecimentos relevantes capazes de dar significado a diversas situações de ensino que tem procurado investigar.

Desde a década de 1980, a maioria das pesquisas realizadas no ensino de ciências partilha das características gerais da abordagem qualitativa, conforme descrito, por exemplo, em Bogdan e Biklen (1994): (i) o ambiente social natural, no lugar do laboratório, constitui a fonte de dados, sendo o próprio pesquisador um dos principais instrumentos de registro; (ii) o que está em jogo, fundamentalmente, é o sentido que os sujeitos constroem para um determinado evento ou fato de suas vidas; (iii) o desenvolvimento da pesquisa segue o esquema de um funil, ou seja, se inicia com um foco ou um grupo amplo de questões, que, ao final, vão se tornando mais específicas e localizadas; (iv) as coletas de dados podem utilizar gravadores de vídeo ou áudio ou, simplesmente, os olhos do pesquisador; (v) os dados consistem de palavras ou imagens, e não de números, podendo incluir transcrições de entrevistas, relatos, depoimentos, notas de campo, documentos escritos, bem como fotos e gravações em áudio e vídeo.

Recentemente, vários caminhos foram tentados com a finalidade de melhorar a qualidade da análise e a relevância dos resultados. Assim, podemos citar: um aprimoramento dos registros de análise, tanto em áudio, quanto em vídeo (GIORDAN, 2006); uma multiplicação dos referenciais relativos à análise do discurso (NARDI, 2005; MORTIMER e SCOTT, 2003; OGBORN et al., 1996); uma sofisticação das técnicas de entrevistas (WYKROTA, 2007), e, também, um desenvolvimento de projetos mais complexos envolvendo pesquisa e ação (LACARRIERE, 2002).

Nossos esforços, respaldados pelos procedimentos da pesquisa qualitativa, vêm sendo no sentido de explorar um tipo peculiar de dados, advindo da presença e do envolvimento do pesquisador na coleta dos dados (VILLANI et al., 2006). Nessa perspectiva, Cassorla (2003, p. 25) enfatiza a importância de o pesquisador se envolver, inclusive emocionalmente, com seu objeto de estudo e, ainda, de se misturar com ele, identificar–se, ser ele. Como ele mesmo afirma, "a subjetividade do pesquisador terá uma importância capital, ao contrário do que se postula nas chamadas ciências duras". Ao mesmo tempo, o autor não deixa de considerar a necessidade de avaliar essa subjetividade de forma objetiva. Para tanto, Cassorla propõe que o pesquisador trabalhe em duas dimensões: uma em que se mistura com o objeto, e outra em que observa como é a dinâmica dessa mistura, que fenômenos nela interferem. Certamente, essa cisão que o pesquisador tem de operar não é trivial, e apresenta uma série de dificuldades adicionais à pesquisa. Porém, se considerada a priori, nos parece um processo muito criativo para que se possa ir além do supostamente objetivo e produzir um conhecimento original.

Assim, nossa metodologia de pesquisa envolve três elementos essenciais:

a) Um referencial teórico capaz de englobar o papel da subjetividade e sua possível influência nos processos de ensino e de aprendizagem. Tal referencial articula conceitos da psicanálise que se nutrem do inconsciente individual e de fenômenos grupais, isto é, de conflitos identificatórios que marcam os vínculos sociais, a tarefa e os objetivos a serem realizados, bem como os desejos de cada um dos membros do grupo.

b) Um conjunto de registros que forneçam elementos da subjetividade dos participantes da experiência, inclusive a memória do pesquisador, também marcada pelo imaginário de sua própria formação e pelas instituições sociais e comunidade científica às quais pertence. Com isso, torna–se possível complementar os registros referentes aos eventos mais objetivos. Em particular, torna–se importante que, nessa fase, algum desses participantes possa ser questionado de forma a recuperar o sentido implícito de suas anotações ou, mais ainda, produzir novas informações sobre sua situação subjetiva anterior. Veremos, ainda neste trabalho, uma implicação da realização dessa possibilidade.

c) A participação do grupo de pesquisadores que, embora não tenham participado da experiência analisada, sentem–se envolvidos na busca de soluções originais para as situações pesquisadas. Com base na reconstrução feita pelo pesquisador, os outros membros se dispõem a levantar questões e sugerir hipóteses sobre a dinâmica dos eventos relatados, pois, conforme mencionado anteriormente, os estados subjetivos que marcam o pesquisador durante a vivência e registros dos dados são elementos relevantes na elaboração da análise. Em geral, nessa fase, a função desse questionamento é permitir que elementos de natureza inconsciente, ou ao menos não explicitamente conscientes na ocasião dos eventos, possam ser recuperados a posteriori por meio de um processo no qual o pesquisador se expõe para seus pares. A intenção é ir encadeando acontecimentos aparentemente desconectados, e colocando elos nos impasses vividos e lacunas geradas em busca de uma interpretação eficaz, mesmo que relativa. Isso implica que a dinâmica de funcionamento do grupo de pesquisadores tenha de ser particularmente favorável para que algo semelhante à 'livre associação' possa permitir a emergência desses novos elementos. O grupo de pesquisadores, nessa fase, tem de trabalhar sempre de maneira positiva, deixando de lado as críticas e explorando as sugestões. O grupo mantém um lugar de 'segunda testemunha', com o envolvimento e distância suficientes, pois sua implicação faz parte do trabalho de interpretação conjunta.

O caso retratado a experiência de ensino da professora/pesquisadora Marta , nos parece particularmente interessante por permitir a explicitação de procedimentos de análise que aqui será apresentada em etapas: a reconstrução da experiência e a interpretação inicial, que contou com a participação da própria professora e, em seguida, uma interpretação complementar valendo–se da 'revisitação' da experiência por parte dos atuais autores, com base em elaborações de orientação psicanalítica acerca da dinâmica de grupos. Cabe ressaltar que a reconstrução da experiência e boa parte da interpretação inicial já foram objetos de publicação (FERREIRA, 1997); neste trabalho, as retomaremos e complementaremos, procurando, sobretudo, explicitar de que maneira foram elaboradas. A última etapa constitui uma contribuição original que se destina a apresentar, sob novo enfoque, aspectos não analisados nas fases anteriores. Esperamos problematizar, junto aos leitores, as potencialidades do procedimento de análise, tanto no que se refere à escolha do referencial, como de outros elementos de natureza metodológica.

1. A reconstrução da experiência

Os dados disponíveis para a elaboração deste trabalho são constituídos pelo diário da professora, no qual eram anotados os eventos por ela considerados significativos; por entrevistas realizadas com parte de seus alunos, gravadas em vídeo e conduzidas por ela e por um dos autores deste trabalho; pelos planejamentos didáticos (o inicial e o efetivamente executado), incluindo as atividades propostas; pelos questionários e avaliações dos estudantes, e, finalmente, pelas lembranças da professora, relatadas em várias discussões e entrevistas após a experiência de ensino. Esses dados foram trabalhados seletivamente no sentido de reconstruir o contexto da experiência e os eventos significativos que a caracterizaram, e permitir uma sucessiva interpretação com base em referências psicanalíticas2 2 Para tentar distinguir, pelo menos em parte, a reconstrução dos eventos da interpretação dos autores, orientada pelo referencial psicanalítico, a primeira será escrita em itálico. .

O contexto

Na época do início da experiência, Marta era professora de física de segundo grau há quase dez anos, exercendo sua atividade numa escola particular da Capital; insatisfeita com sua atuação em sala de aula, estava participando de um curso de atualização que visava modificar a prática didática do professor e estimular a elaboração, execução e avaliação contínua do planejamento didático (PACCA e VILLANI, 1995). Marta estava com o planejamento sobre as Leis de Newton praticamente pronto, tendo experimentado em sala de aula, com certo sucesso, algumas das atividades que o compunham. Agora, queria executá–lo de forma global e verificar se os resultados, em termos de aprendizagem dos estudantes, eram melhores do que suas experiências vivenciadas anteriormente. Tinha a expectativa de que seriam bem melhores em função dos resultados alcançados no curso de atualização. Porém, um desentendimento com a direção da escola a obrigou a procurar outro estabelecimento que, embora oferecesse um salário menor, aceitava que ela tivesse autonomia para aplicar, durante o primeiro semestre, seu planejamento didático. Por causa desse planejamento, que se referia às Leis de Newton, ela aceitou lecionar numa segunda série do Ensino Médio, cujos alunos, 36 ao todo, tinham anteriormente estudado unicamente cinemática, num contexto de ensino quase obsessivo de aplicação de fórmulas, resolução de problemas de lápis e papel e construção de gráficos. De fato, um questionário aplicado no início da experiência confirmou o desconhecimento total dos alunos em relação ao assunto programado. Na escola, existiam outras três turmas, conduzidas pela professora que tinha lecionado cinemática para a turma de Marta no ano anterior. A recepção de Marta por essa professora foi calorosa, com promessa de troca de experiências e auxílio recíproco. Entretanto, após uma primeira tentativa de planejamento conjunto, tudo isso permaneceu somente nas intenções, pois o que as duas visavam realizar era bem diferente, e uma compatibilização exigiria um grande esforço recíproco, além de um tempo considerável de interação.

Marta desejava realizar um novo tipo de ensino, bem diferente do que os estudantes tinham experimentado até então: um ensino mais centrado nas discussões e em atividades por eles realizadas, e que também levasse em conta suas respostas, em termos dos elementos por eles privilegiados na resolução dos problemas propostos. Enfim, não havia dúvida de que Marta tentava ser uma professora inovadora, numa perspectiva, pelo menos em parte, construtivista.

Os eventos

Como programado, as atividades de classe foram inicialmente apoiadas, sobretudo, em questões que provocavam discussões muito freqüentes, tanto em pequenos grupos como em plenária. Além disso, aproveitando seu conhecimento na área de concepções alternativas e, ao mesmo tempo, convencida da importância de introduzir inovações no ensino de Física, Marta propunha aos alunos uma série de problemas do tipo armadilha, envolvendo situações que exigiam dos estudantes a análise do movimento de objetos. A professora estava muito atenta para entender e interpretar o que os estudantes falavam, e mostrava–se também preocupada em ajudá–los a se organizarem nos pequenos grupos.

Embora não estivessem acostumados a esse ritmo de trabalho, os alunos mostraram–se bastante satisfeitos com as novidades e procuravam a professora mesmo após a aula para conversar sobre questões que não haviam ficado esclarecidas. Esse fato, inclusive, reforçava ainda mais a convicção de Marta de que ela havia acertado com a classe e que estava conseguindo, efetivamente, revitalizar o ensino de Física.

Passadas algumas aulas, no entanto, o clima modificou–se. Os estudantes, que se sentiam muito satisfeitos com o trabalho desenvolvido nas semanas iniciais, bem como com o sucesso por eles obtido na análise de um experimento em que utilizaram a idéia de "força impressa", receberam um banho de água fria da professora. Acontece que, ao longo de todas aquelas aulas, Marta havia criado condições e permitido que os alunos elaborassem seus próprios modelos explicativos. No entanto, era chegada a hora de colocar em cheque esses modelos, desestruturando a idéia de "força impressa". Nesse dia, muitos alunos mostraram–se revoltados e questionaram o método de ensino da professora, sobretudo o fato de ter trabalhado um tempo enorme de maneira errada. Levantaram queixas sobre o próprio despreparo para as provas iminentes e recusaram–se a refletir sobre suas respostas, querendo unicamente conhecer as respostas certas sobre o tema, e que a professora descartasse, de imediato, as respostas consideradas erradas.

Com dificuldades de lidar com o descontentamento e com o clima instaurado na classe, a professora recuou de seu planejamento inicial, resolvendo atender mais as exigências dos estudantes e propor atividades mais tradicionais. Os alunos tiveram um desempenho de regular a bom na primeira avaliação institucional. Com a situação mais contornada, a professora decidiu retomar o planejamento inicial, introduzindo mais uma vez, e aos poucos, os experimentos qualitativos, as discussões em grupos e em plenária e o aprofundamento dos conceitos, e, ao mesmo tempo, abandonando cautelosamente os exercícios mais rotineiros. A participação dos estudantes foi efetivamente maior nesse período e o envolvimento da turma nas discussões sustentou a esperança da professora num resultado decisivo em termos da aprendizagem. De fato, configuraram–se três grupos distintos: um primeiro, mais participante que, ao identificar conflitos cognitivos entre o conhecimento de senso comum e as noções científicas então aprendidas, procurava utilizar analogias para resolver os impasses, fazia afirmações seguras e cuidava de garantir a coerência entre elas – sobretudo, dificilmente, abandonava um problema sem propor algum caminho de solução; um segundo grupo que fornecia respostas rápidas baseadas no senso comum e que parecia não perceber eventuais conflitos cognitivos, dando indicações de não ter incorporado quase nada do novo conhecimento;.finalmente, um terceiro grupo, constituído pela maioria dos estudantes, que oscilava entre a utilização da linguagem científica e a de senso comum, bem como entre a aceitação e a recusa de desafios; percebia–se, ainda, que esse grupo preocupava–se em agradar a professora oferecendo respostas que refletiam expressões e palavras utilizadas por ela, mas que nem sempre eram compatíveis com o contexto do problema.

Um mês antes do final do semestre, a professora organizou uma sessão de entrevistas com os alunos da sala, na qual apresentava a eles alguns experimentos que poderiam gerar conflito cognitivo. Com satisfação, percebeu que vários alunos fizeram um grande investimento para tentar resolver as situações apresentadas, abandonar o apelo à memorização e propor sugestões até bastante criativas para os impasses decorrentes das tentativas de solucionar os problemas. Esses alunos se surpreenderam com o próprio desempenho, que parecia nunca ter ocorrido anteriormente. Ao mesmo tempo, porém, em muitas situações, outros alunos procuravam responder buscando, exclusivamente, repetir a fala da professora na sala de aula, deixando evidente que não estavam se propondo a refletir sobre as novas situações apresentadas durante a entrevista ou, mesmo, revelando desconhecimento total dos conteúdos necessários para dar conta dessas situações.

Durante as aulas regulares seguintes, mais alunos admitiram gostar da metodologia utilizada, o que contribuiu para criar um clima mais favorável para o trabalho da professora: em particular, durante as discussões, o interesse dos alunos aumentava e mostrava que eles estavam claramente intrigados com a explicação dos resultados que os surpreendiam.

No entanto, as atividades finais questionário, avaliação final e, sobretudo, entrevista final decepcionaram a professora pela ambigüidade dos desempenhos apresentados pelos alunos. Para situações nas quais havia muita familiaridade, a maioria dos alunos fornecia explicações satisfatórias, ainda que superficiais; porém, em situações não familiares, os esquemas utilizados, inclusive pelo grupo mais envolvido na experiência, voltavam a ser alternativos. Mais do que isso, havia indícios de que os alunos estavam utilizando um código próprio de resolução baseado, sobretudo, naquilo que seria considerado como correto pela professora. Ela interpretou esse comportamento como um recuo geral dos estudantes a posições tradicionais, marcadas pela tentativa de procurar agradá–la repetindo suas palavras e evitando enfrentar efetivamente as situações apresentadas.

Com essa primeira reconstrução da história da experiência didática, já é possível levantar um conjunto de questões no sentido de problematizar o movimento tanto da professora como dos alunos no decorrer das aulas. Como foi possível, no começo das aulas, a mudança rápida dos alunos de aprovação para revolta? Por que a professora voltou atrás no seu planejamento após a primeira dificuldade? Por que os alunos aceitaram a volta da metodologia inovadora? Como conciliar o desempenho durante as aulas e nas avaliações finais? Como interpretar o recuo final dos alunos?

2. A interpretação inicial

Como pudemos observar, a reconstrução com base nos eventos considerados permite levantar questões que, se respondidas, podem tornar a história muito mais satisfatória do ponto de vista da compreensão dos processos que nela tomaram parte. Além disso, tais questões são promissoras, pois acenam com possibilidades de avanço no sentido de se compreender a relação dos alunos com o conhecimento científico, ou, mesmo, de se produzirem inferências sobre aspectos de natureza cognitiva e subjetiva que influenciam nos processos de ensino e de aprendizagem.

Vejamos como esses elementos se articularam no caso relatado.

Quando a experiência de ensino foi relatada por Marta ao grupo de pesquisa, as primeiras questões propostas a ela referiram–se à sua relação inicial com os alunos. Segundo a professora, os alunos a procuravam nos finais das aulas para conversar sobre suas dúvidas e demonstrar quanto estavam satisfeitos com ela e com a metodologia implementada. À pergunta: Como você reagia a essa procura?, Marta respondeu: Eu tentava cortá–los, pois achava que o planejamento que tinha elaborado deveria ser suficiente para conduzir o processo de aprendizagem. Dessa forma, havia uma aposta muito grande da professora de que o planejamento daria conta de toda a dinâmica da sala de aula, incluindo aí o envolvimento e o esforço dos alunos na própria aprendizagem.

Em nossa compreensão, o fato de a professora ser nova na escola contribuía para que os alunos se sentissem motivados a procurá–la para estabelecer vínculos de diferentes naturezas; em outras palavras, a necessidade de conhecer a professora, em termos de seus limites e de sua disponibilidade em negociar os mais variados aspectos implícitos na dinâmica de sala de aula, impulsionava os alunos a se aproximarem dela. Provavelmente, a relativa frieza em atendê–los depois da aula provocava um sentimento de que estavam sendo rejeitados por ela. A confirmação dessas suspeitas parece ter vindo quando a professora "desmontou" tudo aquilo que haviam construído em termos de explicações fornecidas com base em seus modelos ("força impressa") sobre as situações vividas. Além do sentimento de terem sido enganados, parecia que tinham se esforçado em vão na reflexão e resolução das atividades propostas. Daí a revolta e a queixa de que ela era responsável pelo fato de não se sentirem seguros quanto à própria aprendizagem, ou seja, de que ela não estaria cumprindo seu papel de fazê–los aprender.

Sem dúvida, as expectativas da professora e a dos alunos eram conflitantes. Ela querendo que o planejamento quase que a substituísse, dando conta do processo de aprendizagem, da dinâmica da aula e da sua pesquisa; os alunos, por sua vez, esperando que ela se implicasse com suas questões, tanto no que se referia à necessidade de aprender quanto ao estabelecimento de vínculos de diferentes naturezas. Assim, um dos principais resultados dessa pesquisa, pelo menos até esse momento, revelava–se em termos da constatação de que o professor, numa sala de aula, parece ser depositário de uma expectativa, por parte dos alunos, que vai além de suas habilidades e competências específicas no ensino de um determinado conteúdo. Em outras palavras, parece que se espera do professor uma disponibilidade em estabelecer laços e, mais que isso, em se responsabilizar pela aprendizagem de seus alunos, ensinando–lhes, de forma eficiente, o que é certo e o que é errado, e evitando situações ambíguas que podem gerar insegurança.

Essa é uma interpretação que foi construída mediante o envolvimento do grupo de pesquisadores com a pesquisa de Marta. Sustentada pelo grupo, a professora conseguiu se expor de modo a ir revendo a forma com que se relacionava com seus alunos, bem como suas expectativas com o desenvolvimento da disciplina, num contexto marcado pelo fato de a professora: ser nova na escola, acreditar que poderia praticar um ensino de Física diferenciado, apostar na possibilidade de realizar uma experiência marcante para ela e para seus alunos e, ainda, acreditar que a experiência de ensino lhe forneceria condições para desenvolver sua pesquisa.

Porém, o avanço em termos de interpretação apareceu, efetivamente, com a interferência do referencial psicanalítico, em particular, por meio da exploração de uma analogia com a entrada de um sujeito no processo de análise. Na clínica, esse é um momento bastante peculiar e extremamente importante para a continuidade desse processo, pois é marcado pelo que se denomina transferência imaginária, isto é, pela crença de que o analista sabe as causas dos sintomas do analisando e, ainda, sobre como ele poderá se livrar de seu mal–estar. Não se pode dizer que essa crença, embora cumpra um papel fundamental na clínica, tenha fundamento, pois é o sujeito, muito mais que o psicanalista, que sabe de si e, além disso, ele próprio é que terá de encontrar meios para se livrar de seu mal–estar, o que certamente irá requerer a travessia de um processo longo e muito sofrido. Como nos ensina Quinet (1995, p. 31), "esse 'erro subjetivo´ é imanente à entrada em análise". Explorando uma analogia entre essa situação da clínica psicanalítica e aquela da escola, em que há um sujeito que ensina e outros que aprendem, foi possível reelaborar a interpretação anterior num outro patamar de compreensão, que incorpora elementos da subjetividade, em particular, o imaginário dos sujeitos na sua relação com o professor e com o conhecimento.

Com base nesses elementos, nossa suposição foi a de que os alunos implicitamente acreditavam que a professora devia saber sobre suas dificuldades de aprender Física e, mais que isso, conhecer todos os mecanismos capazes de fazê–los aprender com pouco ou nenhum esforço. Desse modo, a interpretação inicial adquiriu um outro status, na medida em que ficou em evidência o pressuposto de que o imaginário tem um papel preponderante nas relações que se estabelecem em sala de aula, a ponto de colocar o sujeito numa posição de alienação em relação ao professor. Em outras palavras, dizer objetivamente aos alunos que eles também são responsáveis pela própria aprendizagem teria um efeito bastante limitado, pois algo da ordem do imaginário não pode admitir tal proposição. No caso de Marta, se os alunos colocavam suas esperanças de aprendizagem exclusivamente nela, o rompimento provocado pela sua recusa em conversar com eles, agravado pelo questionamento do conhecimento que haviam produzido, deve ter comprometido sobremaneira a transferência imaginária que os alunos haviam estabelecido.

Ao que parece, a professora, que inicialmente acreditava que o planejamento poderia substituí–la em sala de aula, percebeu o perigo de perder a classe e, mesmo sem saber ao certo o que estava acontecendo, recuou estrategicamente, procurando reparar a falha e criar condições para reinstaurar a transferência imaginária. Aliás, essa parece ser uma estratégia que a prática docente conhece bem; não é sem razão que muitos professores falam em 'seduzir' os alunos para que eles sintam–se motivados para aprender e para aceitar os encaminhamentos didáticos propostos. Nesse sentido, fazem uma série de concessões, pelo menos inicialmente, para que a turma adquira confiança na condução da aprendizagem. Em outras palavras, o que se procura é sustentar a transferência imaginária, contribuindo para manter a ilusão de que o professor é o Sujeito Suposto Saber, isto é, aquele que saberá dar conta das dificuldades de aprendizagem de cada um. Ao aderir a um ensino tradicional, mesmo como um recuo tático, Marta procurou dar condições aos alunos para que a colocassem como Sujeito Suposto Saber; esta foi sua maneira de dizer para a classe que era muito competente e capaz, no que se referia ao conhecimento físico envolvido nas situações propostas e na distinção entre o certo e o errado.

Essa estratégia, utilizada pela professora para não "perder" a classe, parece ter cumprido, também, uma outra função: criar condições para retomar um planejamento do qual ela, na verdade, jamais desistiu. O depoimento da professora, durante uma das discussões com o grupo de pesquisadores, parece reforçar essa inferência: "Eu era nova na escola e, pelas informações recebidas, fiquei com medo que a direção e os pais dos alunos, instigados por eles, provocassem minha saída ou, no mínimo, proibissem minha experiência". Somente após o término do semestre, ela conseguiu refletir sobre seu processo e sobre sua posição inicial de manter distância dos alunos e, portanto, de não apoiar a relação transferencial por eles requerida; a modificação introduzida na ocasião de seu recuo tático foi mais intuitiva e reativa do que uma escolha consciente de uma nova relação e um novo caminho adequado aos alunos. Por essa razão, não aparece registro dessa mudança em suas anotações, o que nos sugere que ela não conseguiu mediar uma efetiva integração dos alunos entre a tradição da escola e a inovação que desejava implementar no ensino da Física.

Finalmente, poderíamos arriscar a interpretação de que o resultado da avaliação final estaria denunciando que a maioria da classe não se deslocou da posição de transferência imaginária. Ao que parece, as discussões, os trabalhos em grupo e a análise de experimentos característicos do planejamento inicial da professora foram interpretados pelos alunos como variantes compatíveis com um quadro metodológico tradicional. É muito provável que a maneira pela qual a professora conduziu seu ensino tenha sido orientada, sobretudo, pelo descontentamento dos alunos e pelo risco de perder a possibilidade de realizar sua experiência de ensino e, portanto, de comprometer também a sua pesquisa. Afinal, além de ser nova na escola, a coordenação pedagógica já havia deixado claro, de diversas formas, que a satisfação dos alunos era prioridade. A forma com que a professora conduziu, lenta e progressivamente, a reentrada das estratégias planejadas inicialmente, permitiu que sua opção metodológica se realizasse, pelo menos, parcialmente. Porém, parece ter contribuído pouco para colocar os alunos num outro patamar de aprendizagem, isto é, de alterar a natureza da relação com o conhecimento.

A exploração da analogia realizada até esse momento, entre a entrada do sujeito em análise e a relação que os alunos estabelecem com o professor e com o conhecimento, parece ser bastante promissora no sentido de contribuir para explicitar algumas das condições de articulação entre ensino e aprendizagem. Ora, se o que se espera do processo educativo é a formação de um sujeito que se responsabilize pela própria aprendizagem, a administração da transferência imaginária pelo professor tem um papel preponderante no processo de ensino. Dizendo de uma outra maneira: se a entrada do sujeito em seu percurso escolar é marcada, geralmente, por uma esperança de que precisará se esforçar pouco ou nada para aprender, já que o professor é que dará conta disso, muito provavelmente esse sujeito não se implicará com seu processo escolar, de forma que as possibilidades de articulação entre ensino e aprendizagem tornar–se–ão extremamente eventuais. Assim, se a escola e seus professores não criam condições para que o sujeito se desloque da posição inicial da transferência imaginária, muito provavelmente a tão perseguida autonomia na busca do conhecimento torna–se uma possibilidade remota. Ora, em que condições um sujeito faz uma opção por ser autônomo, se seu imaginário lhe impõe a fantasia de que existe alguém que irá provê–lo de tudo aquilo que ele demanda? Essa é uma questão que também se faz presente no processo de análise, o qual estará inevitavelmente comprometido se o analista "cair na armadilha de acreditar que ele realmente sabe aquilo que nunca poderá ser sabido antes, mas somente construído no curso da análise" (FINK, 1998, p. 113).

Mas o que precisaria ter acontecido para que essa história pudesse ter tido um outro desdobramento?

Como propusemos anteriormente, no caso da experiência de ensino focalizada, a professora parece não ter sabido manejar de maneira eficaz a transferência imaginária. Ainda em analogia com a situação de análise, para que os alunos apresentassem um envolvimento maior no enfrentamento das situações propostas, tanto na entrevista como na avaliação final, dificilmente abandonando um problema sem propor um caminho de solução mais criativo, a professora precisaria ter criado condições para que seus alunos se implicassem em seu próprio processo de aprendizagem. Assim, de modo semelhante à situação da clínica, na qual a entrada em análise requer que o analisando questione a demanda de saber que dirige ao analista, reconhecendo a responsabilidade pelo próprio sintoma, seria necessário que os alunos se reconhecessem como parte das dificuldades enfrentadas na resolução das atividades propostas.

Sem dúvida, isso parece ter ocorrido com uma parte dos alunos. Estes, efetivamente, aproveitaram as novas estratégias propostas pela professora no sentido de enfrentar suas dificuldades para aprofundar a familiaridade e o domínio sobre o conhecimento, como se pôde testemunhar nas entrevistas nas quais pelo menos um grupo menor de alunos interpretou as situações experimentais apresentadas de forma mais criativa. Esse grupo, por motivos que não saberíamos explicitar com base nos dados registrados, parece ter mantido com o conhecimento uma relação diferente do restante dos alunos de Marta.

No entanto, a maioria dos alunos parece não ter tido disponibilidade para se expor e testar seu conhecimento. Afirmamos que essa é uma importante etapa do processo de aprendizagem, pois ao se expor, o aluno percebe suas falhas e pode fazer uma escolha: recuar, para que o professor volte a ser o mestre que o liberta da ignorância, ou envolver–se ativamente na procura. A análise realizada, com base na reconstrução da história da professora Marta, indica que a disponibilidade para se expor depende não só do aluno, mas também do estabelecimento de um compromisso entre professor e alunos, de uma confiança recíproca, bem como das possibilidades de emergência e de desenvolvimento de uma queixa que se transformará em problema do sujeito. E isso a professora Marta, como também a instituição escolar, parecem não ter conseguido sustentar. Infelizmente, nossa análise não pode dizer o que ela deveria ter feito para reverter essa situação; no máximo, podemos salientar o que de fato não funcionou e sugerir possíveis mudanças, sem garantias sobre sua eficácia.

O recuo final dos alunos, inclusive dos mais ativos, parece indicar que esse grupo realizou uma experiência intelectual marcante, porém fugaz, já que ela aconteceu muito localmente, sem uma sustentação da escola como um todo, a qual privilegiava uma relação burocrática com o conhecimento, pelo que pudemos depreender dos relatos da professora Marta. Essa interpretação, do ponto de vista da psicanálise, pode ser enunciada em termos da necessidade de sujeição dos alunos (e, também, dos professores) a esse Outro3 3 Na psicanálise, Outro (grande Outro) indica a referência implícita da criança, introduzida quando de sua entrada na linguagem (FINK, 1988). Inicialmente, seus representantes são os pais, posteriormente, qualquer instância social que a capture. como forma de pertencimento àquela comunidade escolar. Assim, é possível que o prazer advindo da postura ativa que foi assumida pelo grupo num determinado momento de sua história tenha se tornado uma experiência efêmera, devido às exigências de uma instituição pouco preocupada em dar prioridade para o trabalho coletivo na formação de seus alunos. Muito provavelmente, esse fato pode ter contribuído para um retorno às formas antigas de relação com as tarefas, isto é, um recuo tático exigido pelas circunstâncias institucionais.

3. Uma interpretação complementar

Para tentar ampliar nosso entendimento em relação à experiência didática, procuramos, também, apresentar uma análise do desenvolvimento da disciplina com base nos elementos envolvidos na dinâmica dos grupos, segundo as elaborações de Bion (1970) e Kaës (1997). É preciso salientar que essa interpretação complementar foi produzida quando a professora Marta já não participava do grupo de pesquisa e, portanto, não estava disponível para responder aos questionamentos do grupo. Assim, várias das interpretações elaboradas têm, necessariamente, um caráter bem mais provisório do que as conclusões que poderiam ter sido alcançadas se Marta tivesse participado também dessa fase de análise.

Bion (1970) descreve a situação dos grupos com base numa dinâmica marcada não somente pela objetividade no tratar a tarefa a que se propôs, mas também por uma atividade mental coletiva que se configura como um meio por intermédio do qual o indivíduo pode expressar aquilo que ele deseja fazer anonimamente e, dessa forma, satisfazer seus impulsos e desejos implícitos. Uma dessas atividades encontra–se associada à idéia de cooperação entre os componentes do grupo: é uma atividade regulada pelas dificuldades e exigências objetivas da tarefa e é denominada grupo de trabalho. A outra atividade refere–se a uma adesão anônima entre os membros do grupo, regulada por fortes impulsos emocionais. Ela é a contrapartida da cooperação característica dos grupos de trabalho e denomina–se grupo de suposições básicas4 4 Grupo de suposição básica é uma denominação encontrada por Bion para designar estados emocionais manifestados na dinâmica dos pequenos grupos, nos quais diferentes emoções se articulam de forma intensa para desempenhar um importante papel na organização do grupo. Dependendo do conflito que o grupo vivencia, uma suposição básica pode vir a ser preponderante na sua dinâmica, de forma a cobrir as angústias de seus membros e proporcionar–lhes satisfação. Em particular, o pressuposto de dependência sugere que o grupo está reunido para receber de alguém ou de alguma idéia a sua segurança; o de luta–fuga é a fantasia coletiva de atacar e ser atacado por um inimigo; e o pressuposto básico de acasalamento é uma mentalidade de grupo na qual os membros esperam que um fato ou uma idéia vindouros salvará o grupo de suas ansiedades persecutórias. . De acordo com Bion (1970), um grupo que tem uma dinâmica exitosa consegue administrar, a partir do grupo de trabalho, uma suposição básica.

Kaës (1997), por sua vez, centra sua análise mais nas relações entre os elementos que caracterizam a dinâmica grupal5 5 Para ele existe um momento originário de constituição do grupo, no qual são construídos tanto uma identificação entre cada um dos membros para a realização de seus desejos ( contrato narcísico comum) quanto os mecanismos de defesa contra os perigos que podem ameaçar a grupalidade em construção ( pactos denegativos). Articulada a esse momento temos uma fase inicial , que tem uma função unificadora em virtude de uma angústia muitas vezes intensa, que resultará na formação do conjunto. Uma segunda fase começa com a emergência de exigências individuais dos sujeitos e de novas tarefas e compromissos elaborados pelo próprio grupo: é a colocação de um envelope grupal, com o enunciado das primeiras regras em comum. Finalmente, se o grupo conseguir evoluir ulteriormente, alcançará a fase mitopoética, na qual o grupo não é mais um prolongamento dos sujeitos, mas o resultado de uma colaboração personalizante com a contribuição de cada um. A partir dessa conquista, o problema do grupo é encontrar instrumentos que permitam enfrentar os sucessivos desafios e as demandas da realidade. e, dessa forma, procura perceber os processos de ligação, desvinculação e os novos vínculos que podem (ou não) ser gerados a partir de mudanças nas práticas institucionais. Com base nas elaborações teóricas desses dois autores, a história pode ser assim interpretada.

Uma professora, já seduzida pela necessidade de criar formas diferenciadas para o Ensino da Física, fez um convite inicial para que os alunos participassem de um grupo de aprendizagem inovador. Apesar de os alunos já constituírem um grupo anteriormente à chegada da professora Marta, podemos dizer que o convite constituiu uma proposta de fundar uma outra forma de agrupamento, com um novo contrato narcísico (possivelmente, a vivência de aulas interessantes e envolventes, com a garantia da aprovação final) e novos pactos denegativos. Isso implicava a necessidade de um deslocamento das formas tradicionais que marcavam a identidade e os papéis da professora e dos alunos em sala de aula, e, também, assinalava para eles novos lugares, mais autônomos e participativos. Dessa nova modalidade de relação típica de modelos construtivistas esperava–se que todos pudessem retirar benefícios e obter satisfações.

Os alunos, implicitamente, não pareciam muito confortáveis em seus novos papéis, pois responderam a isso administrando de forma muito incipiente a suposição básica de dependência, já que essa mentalidade predominava em boa parte do tempo, como pode ser inferido pela insistência dos alunos em buscar, compulsivamente, auxílio da professora. Aliás, parece possível inferir, ainda, que a predominância do grupo de suposição básica entre os alunos não era uma experiência nova, se levarmos em conta a prática docente, de cunho excessivamente tradicional, da professora anterior a Marta. Sem dúvida, algumas vezes, os alunos trabalharam sozinhos, discutindo uma ou outra dúvida, mas parece que a necessidade da aprovação da professora sempre esteve presente, de modo explícito ou latente. Talvez essa necessidade se constituísse num dos pactos denegativos do grupo de alunos; podemos supor que, inconscientemente, não desejavam renunciar às formas tradicionais de relação aluno–professor, pois transparece uma insistência em colocar a professora na posição de uma liderança que deveria protegê–los contra qualquer possibilidade de erro, impedindo assim que os alunos passassem por situações angustiantes. Em nossa compreensão, nesse momento inaugural, formas e representações tradicionais e inovadoras conviviam lado a lado. Toda a tradição daquela escola, ou mesmo a história escolar precedente dos alunos, sobretudo com as disciplinas científicas, apontava para a necessidade de se evitarem os erros. Porém a perspectiva consciente da professora implicava a exploração dos erros dos alunos no sentido de provocar conflitos e sua solução, conforme as diretrizes do modelo de ensino por Mudança Conceitual (POSNER et al., 1982).

Assim, o início das aulas parece ter sido marcado por ambigüidades. De um lado, as atividades propostas pretendiam, objetivamente, constituir um grupo no qual a professora desempenhava o papel de conduzir uma nova metodologia de ensino e de sustentar uma nova forma de aprender, enquanto os alunos deveriam desempenhar o papel de "investigadores" dispostos a enfrentar as limitações de seus conhecimentos. De outro lado, a maneira relativamente fria de Marta ao receber os alunos apontava, de fato, para um desconforto e um desacordo mais fundamentais sobre o que deveria ser evitado para que o grupo continuasse a reconhecer a professora como liderança de um grupo de suposição básica de dependência.

Certamente, o tratamento dado pela professora à utilização da idéia de uma "força impressa" por parte dos alunos não constituiu o intermediário6 6 O conceito de intermediário é proposto por Kaës (1997) como mecanismo de passagem, isto é, como um conector em um momento de ruptura entre os laços que mantêm as relações intersubjetivas e/ou entre dois espaços heterogêneos. Esse intermediário, que pode ser inclusive uma idéia, é construído para assegurar os apoios narcísicos necessários para o desenvolvimento tanto do sujeito como do grupo, isto é, para dar condições ao sujeito de encontrar um lugar no qual ele seja investido pela nova forma de trabalho proposta. adequado para o avanço na incorporação da nova metodologia, uma vez que conflitava com a manutenção do pacto denegativo do grupo, de que ela estava ali para protegê–los das angustias próprias do processo de aprendizagem. Assim, Marta não conseguia preencher uma função protetora num ambiente insuficientemente adaptado às novas formas de trabalho. A professora operava, então, com o mínimo de seu poder de influência, o que, do ponto de vista das possibilidades de relações estabelecidas na sala de aula, ameaçava a criação e o fortalecimento de novos vínculos. Em outras palavras, a professora, implicitamente, parecia sentir que estava perdendo a legitimidade para idealizar e organizar novos lugares no grupo classe, já que, com sua nova metodologia, ameaçava a manutenção daquele pacto. Além disso, com o tempo, as ansiedades geradas pela avaliação institucional a que os alunos deveriam se submeter passaram a estruturar o ambiente da sala de aula. Essas ansiedades, pelo visto, poderiam provocar não apenas a ruptura com o projeto idealizado, como também a saída da professora, isto é, as angústias foram compartilhadas, simultaneamente, pelos grupos de alunos e pela professora.

Em síntese, a professora Marta reuniu um grupo de alunos para realizar uma tarefa, de forma a modificar objetivamente uma realidade de sala de aula. Seu planejamento inicial foi fruto de uma organização realizada com o intento de obter uma maior articulação entre os processos de ensino e aprendizagem. Dessa forma, a professora convocou um grupo de trabalho, que levava em conta o reconhecimento dos limites de cada aluno (suas concepções prévias sobre a relação entre força e movimento) e as possibilidades impostas pela organização do trabalho escolar.

Se, por um lado, convocava–se, na maior parte do tempo, um grupo de trabalho, por outro, a estrutura escolar tradicional remontava, na visão dos alunos, à constituição de um grupo que operava, sobretudo, como grupo de suposição básica de dependência, isto é, um grupo que vivia sob a crença de que deveria ser nutrido pelo conhecimento do professor, o qual estava ali para satisfazer as necessidades de todos no que se referia à aprendizagem.

Definiu–se, nesse momento inicial, uma cultura de grupo determinada pelo conflito criado entre os desejos de cada aluno, a vivência preponderante do grupo de acordo com a suposição básica de dependência, a objetividade da tarefa proposta e a organização que foi adotada para realizá–la, bem como sua inserção institucional. Porém, a frustração dos alunos quanto à condução das atividades pela professora Marta colocou em jogo ansiedades relacionadas à rejeição, ódio e possível ameaça de destruição do projeto. Tal fato sugere que tenha havido o deslocamento do pressuposto básico de dependência para o de luta–fuga, isto é, nesse momento, a professora foi destituída, pelo grupo, da liderança da suposição básica de dependência e colocada na posição de inimiga. Provavelmente, ela percebeu intuitivamente a existência desse núcleo dramático, no qual sentia–se ameaçada não só pelos alunos, mas também pela Instituição. Seu recuo temporário aos métodos de cunho mais tradicional pode ser interpretado como a forma encontrada pela professora para dizer aos seus alunos que tinha condições para dar conta da aprendizagem de todos, legitimando, assim, seu poder e capacidade de ensinar Física. Mas o que isso significava do ponto de vista da dinâmica grupal? Ora, ao fazer isto, a professora pareceu acenar subjetivamente para seus alunos de que ela teria condições de voltar a ocupar a liderança do grupo de suposição básica de dependência, mas, agora, já num patamar em que o grupo de trabalho teria mais condições de administrar essa suposição.

O recuo de Marta, ao adotar uma metodologia tradicional, constituiu–se num bom intermediário capaz de reconstruir o clima de trabalho coletivo. Provavelmente, o recuo foi interpretado como uma promessa de que os alunos nunca mais seriam deixados trabalhando com idéias erradas. Também, a tática de introduzir as novas atividades progressivamente num contexto tradicional teve o efeito de incorporar os alunos numa ilusão grupal 7 7 A ilusão grupal, conceito–chave na obra de Anzieu, colaborador de Kaës, representa uma fase inevitável na formação dos grupos, sendo uma tentativa dos sujeitos de não experimentarem a situação de distinção entre "o grupo e eu". Daí a ênfase colocada no caráter caloroso das relações entre os membros de um grupo que vive a ilusão grupal. que acoplava segurança tradicional com grupo inovador. De certa forma, ela obteve êxito nessa tarefa. Como resultado, talvez por pressões da escola e da maneira pela qual a professora sustentou a tarefa, notam–se, claramente, três subgrupos em sala de aula.

Um primeiro grupo conseguiu se organizar, pelo menos na maior parte do tempo, como um grupo de trabalho, aceitando a regra implícita de não desistir frente aos conflitos e de explorar as sugestões dos colegas e da professora; tratava–se de um grupo de alunos que, ao se implicarem pessoalmente nas atividades desenvolvidas, permitiam o desenvolvimento de idéias e conceitos novos.

Para esse grupo mais ativo, a nova metodologia de trabalho proposta pela professora funcionou como intermediário adequado à passagem do controle mágico da professora para uma habilidade em manipular e reconhecer esse saber, modificando sua relação com a professora e abrindo espaço para uma nova maneira de aprender. Um outro grupo de alunos administrava mal o pressuposto básico de dependência, apoiando sua dinâmica, sobremaneira, na crença de que a professora estava ali para satisfazer suas necessidades sem maior esforço e implicação pessoal. Por último, havia um grupo de alunos que oscilava entre as duas posições, permitindo que o grupo de suposição básica de dependência se intrometesse freqüentemente no grupo de trabalho.

Resta mencionar que, de modo geral, boa parte das ansiedades persecutórias desencadeadas inicialmente foi controlada, uma vez que não se registraram ataques aos vínculos ao fim da experiência de ensino, isto é, o grupo de luta–fuga operou entre os alunos muito raramente. Entretanto, parece–nos que a ambigüidade implícita da professora, bem como o não reconhecimento das práticas participativas por parte da escola, não conseguiram criar um terreno fértil para que a condução da metodologia da professora se constituísse como intermediário para a maioria dos alunos, de modo que eles pudessem se firmar numa fase grupal marcada pela adesão a regras que pautassem a aprendizagem de todos com base em novas referências.

Algumas conclusões

No início deste trabalho, nos propusemos a problematizar, junto ao leitor, as potencialidades de um procedimento de análise que utiliza referenciais psicanalíticos para interpretar experiências de ensino que tiveram lugar em aulas de Ciências. Terminada essa explicitação, podemos, então, perguntar: quais os avanços que decorrem de uma análise tão sofisticada em termos da compreensão dos elementos que estão em jogo nos processos de ensino e aprendizagem?

A articulação dos dados, que realizamos com base nos elementos teóricos oferecidos pela Psicanálise, ilumina nossa compreensão de que os modelos construtivistas não resolvem, por si só, os problemas de ensino e aprendizagem. Embora possamos chegar a essa conclusão por outras vias, não temos visto, até o momento, argumentos satisfatórios no campo da cognição que expliquem por que nossa esperança de encontrar métodos de ensino infalíveis é infundada. Os referenciais da psicanálise, no entanto, nos parecem promissores por apontarem aspectos de natureza subjetiva que nos ajudam a compreender a falibilidade dos métodos de ensino mais mirabolantes. Ao mesmo tempo, esses referenciais parecem decisivos para o planejamento do ensino, pois colocam em cheque as metodologias de cunho construtivista que, muitas vezes, se assemelham mais a ativismos e técnicas mágicas quando se desconsidera a dimensão inconsciente individual e sua ressonância fantasmática grupal e institucional no processo de aprendizagem.

O que temos encontrado nos trabalhos da área, geralmente, é uma uniformização das diferentes formas de resistência para explicar o fracasso na aprendizagem dos alunos: continua a queixa de que o aluno não quer aprender mesmo quando lhe são fornecidas outras metodologias de trabalho. Em contrapartida, os referenciais que temos explorado em nossa análise têm nos permitido ponderar que a base de uma inserção grupal assenta–se no fato de que propor 'métodos diferenciados' implica um deslocamento dos lugares e posições assinaladas aos alunos e professores, e que essa mudança resulta em angústias que deverão ser sustentadas, inicialmente, pelo docente e, a seguir, pelo grupo e pela escola. Se esta última não reconhece essa mudança, o caminho será mais difícil.

Também, cabe mencionar que, paralelamente às estratégias cognitivas, que procuram criar zonas de desenvolvimento proximal, a inserção grupal implica a necessidade de criação de um espaço continente para as angústias: um espaço potencialmente transicional, facilitador do fato de que a fantasia pessoal do aprendiz tenha continuidade no espaço do outro e seja geradora de um espaço emocional de intimidade. Conforme Winnicott (1975): cada pessoa imagina uma relação entre seus objetos internos (por exemplo, uma aprendizagem que produz satisfação) e os objetos externos. Esse espaço potencial, ancorado nos contratos, pactos e pressupostos básicos inerentes a toda situação de grupo, em geral, é desconsiderado no cotidiano das escolas. Em nosso caso, podemos perceber essas oscilações no momento inaugural da mudança de metodologia: no momento de adesão ao convite da professora Marta, esse espaço potencial implicava a expectativa de que situações não satisfatórias seriam contidas pela professora (o pacto não admitia insatisfação com a nova metodologia), produzindo inicialmente a negação de afetos desagradáveis, bem como de aspectos negativos que pudessem ser atribuídos à professora. Porém, e aqui devemos ressaltar um ponto importante desse trabalho, essa ilusão é precária em contextos escolares, e compromete sua estabilidade. Normalmente, a saída encontrada em ambientes escolares para essa frustração (desilusão) é o rompimento das novas modalidades de relação aluno/professor que são propostas, com o retorno permanente às práticas tradicionais, e a responsabilização do aluno ou do professor pelo fracasso escolar.

O recuo da professora Marta, mesmo que inconsciente, interpretado com os elementos trazidos dos referenciais psicanalíticos, parece apontar um outro caminho para operar a necessária desilusão a que se refere Winnicott (1975): conduzir a mudança de metodologia de forma que os alunos possam perceber, por um lado, que essa mudança em alguns aspectos é compatível com a metodologia antiga e, por outro, que é possível obter satisfação com a nova forma de trabalho, em função de ganhos, não só intelectuais, que a antiga metodologia não poderia oferecer. Talvez essa seja uma forma de, pelo menos em nível de conjecturas, se pensar a criação de um espaço transicional quando uma mudança de metodologia é colocada em ação no processo.

Em outras palavras, diríamos que cabe ao professor (mas não só a ele) tornar a travessia tolerável, inserindo, nos novos vínculos emocionais, objetos e representações antigas, articulando essas com mitos novos (a professora recuperou seu status de fundadora de um novo agrupamento). Com base no que foi interpretado tanto por meio de um corte sincrônico (pressupostos básicos) como, também, diacrônico, em que a experiência de ensino é recuperada em sua historicidade, é possível conceber caminhos que tornam possível aos membros de um grupo de aprendizagem se distanciarem de práticas tradicionais e suportar rupturas de formas menos dramáticas. Porém, esse é um processo que pode ser longo, sugerindo que o professor deve, também, encontrar meios de conter suas angústias e ansiedades. Decorre daí a importância de os professores se organizarem em grupos, simultaneamente ao trabalho coletivo dos alunos, criando, assim, condições de reconhecerem entre si suas práticas.

As elaborações teóricas acerca da dinâmica de grupos, numa perspectiva psicanalítica, nos sugerem que, nos espaços escolares, cada aluno ajusta sua história racional e afetiva às mudanças propostas e aos novos papéis ofertados; esse encontro é gerador de um 'vazio', que pode comprometer a vinculação do sujeito com a própria instituição e com o conhecimento a ser adquirido. Parece, então, de fundamental importância criar condições para que os alunos consigam lidar com esse vazio; se assim for, as instituições escolares precisariam dispor de toda sua criatividade para construir intermediários capazes de conectar essa ruptura. Encontramos, assim, alunos que, devido a sua estruturação pessoal e por sua vivência institucional, possuem mais condições para processar esse 'vazio', transformando o espaço potencial criado pelo professor e pela instituição escolar em um intermediário adequado para sua implicação com o conhecimento; outros, entretanto, negam esse vazio, e identificam–se com determinadas demandas institucionais como se fossem próprias, o que, dependendo da configuração da instituição, pode gerar, na escola, um espaço de violência. Nossas análises nos falam, ainda, da importância de serem criadas, no processo educativo, diversas situações transicionais, sem nunca se ter a certeza, a priori, de que se tornarão intermediários. Certamente, sua construção exigirá ritmos e tempos próprios de acordo com a singularidade dos sujeitos, condição nem sempre sustentada pela instituição escolar.

Finalmente, devemos salientar a forma de articulação peculiar de nossa metodologia de trabalho, caracterizada pelos diversos níveis de análise. Primeiro, procuramos colocar os fatos e narrativas em uma cadeia histórica; observamos, nos dados, as situações de impasse explícitas nos textos que nos permitiram desenvolver um primeiro nível de análise; a seguir, procuramos as repetições, os trechos omitidos, as incongruências do texto criado. Dessa forma, geramos o objeto de pesquisa à medida que reconstruímos a história da experiência de ensino, em uma via de mão dupla: a reconstrução permitiu propor modelos de interpretação, e esses auxiliaram na montagem do eixo diacrônico. Nessa caminhada, a plausibilidade se fez surgir em conseqüência das diversas vezes em que a professora/pesquisadora narrou e problematizou a experiência de ensino junto ao grupo de pesquisadores, que debateu exaustivamente as questões e interpretações por todos realizadas. Desse modo, distanciado dos dados, o grupo prendeu–se na totalidade dos eventos que marcaram a experiência de ensino, buscando atingir um grau elevado de profundidade, lógica e coerência na interpretação construída.

Assim, o grupo, inspirado pelo referencial psicanalítico, de alguma forma tornou–se um espaço intermediário e mediador entre os dados coletados e a pesquisadora (professora Marta). Situou–se em uma dupla fronteira: entre pesquisa e pesquisador, por um lado, e entre esse e a comunidade científica, por outro. Dessa forma, não teve somente essa última função de representar a comunidade científica, legitimando ou não a análise, como em geral acontece nas pesquisas desenvolvidas pelos grupos mais estruturados. De fato, a primazia por nós atribuída aos dados como pressuposto de nossa prática investigativa se traduziu num esforço para compreender os fatos apresentados, no sentido proposto por Bourdieu (1997), isto é, admitindo–os como necessários e relacionando–os metodicamente às correspondentes razões. Certamente, isto poderia ser realizado de mais de uma maneira, já que este princípio também orienta os trabalhos de natureza etnográfica. Em nosso caso, porém, por parte dos membros do grupo, prevaleceu a atenção às relações simbólicas e imaginárias que podiam estar condicionando a situação sob investigação.

Além disso, é preciso destacar que, em nossa análise, utilizamos diferentes autores. Embora todos tenham em comum a vertente psicanalítica, existem diferenças bastante grandes nas proposições teóricas de Lacan, Bion e Kaës. Não elaboramos, entretanto, uma síntese teórica capaz de incorporar todas essas contribuições de psicanalistas, mas operamos de maneira dúplice: de um lado, o pesquisador envolvido diretamente na pesquisa tem reverenciado suas escolhas pessoais, privilegiando este ou aquele referencial; de outro, os pesquisadores do grupo têm contribuído sugerindo que determinados dados ou hipóteses encontrariam ressonâncias interessantes, também, utilizando conceitos próprios de outros referenciais. Isso permitiu abranger o fenômeno estudado com uma multiplicidade de interpretações não contraditórias, como procuramos explicitar ao apresentar a análise das experiências vivenciadas por Marta, focalizando a relação da professora com os alunos e, também, seu aspecto grupal.

Por todo o exposto, acreditamos que, embora a pesquisa de orientação qualitativa se apóie em métodos que têm origem nas Ciências Humanas (MINAYO, 2004) e que se encontram consolidados, é fundamental recriar a prática investigativa no sentido de reelaborar o método em diversos aspectos. Afinal, se assumirmos que a Ciência do Homem é a Ciência do Particular, a pesquisa qualitativa também irá enfatizar a diferença, o individual, o que certamente irá requerer originalidade na construção do caminho que leva ao conhecimento.

Artigo recebido em dezembro de 2006 e aceito em junho de 2007.

  • BION, W. R. Experiências com grupos. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1970.
  • BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em Educação: uma introdução à teoria e aos métodos.Porto:Porto Editora, 1994.
  • BOURDIEU, P. (Coord.). A miséria do mundo 5. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
  • CASSORLA, R. M. S. Prefácio. In: Ribeiro, T. E. Tratado da metodologia da pesquisa clínicoqualitativa: construção teóricoepistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 685.
  • FERREIRA, M. P. P. Análise e interpretação de um curso de segundo grau sobre as leis de Newton 1997. 165f. Dissertação (Mestrado) Instituto de Física, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997.
  • FINK, B. O sujeito Lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
  • GIORDAN, M. Algumas questões técnicas e metodológicas sobre o registro da ação na sala de aula: captação e armazenamento digitais. In: SANTOS, F. M. T.; GRECA, I. (Orgs.). A pesquisa em ensino de ciências no Brasil e suas metodologias.Cidade:Unijuí, 2006. p. 213238.
  • KAËS, R. O grupo e o sujeito do grupo: elementos para uma teoria psicanalítica do grupo. Trad. José de Souza e Mello Werneck. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
  • LACARRIÈRE, J. O método em pesquisaação. In: BARBIER, R. (Org.). A pesquisaação Brasília: Plano Editora, 2002.
  • LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1996.
  • MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 2004.
  • MORTIMER, E. F.; SCOTT, P. H. Meaning making in secondary science. Buckingam: Open University Press, 2003 .
  • NARDI, R. A área de ensino de Ciências no Brasil: fatores que determinaram sua constituição e suas características, segundo pesquisadores brasileiros. 2005. 169f. Tese (Livre Docência). Departamento de Educação, Faculdade de Ciências, Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2005.
  • OGBORN, J. et al.Explaining science in the classroom.Buckingham: Open University Press, 1996.
  • PACCA, J. L.A.; VILLANI, A. Conception d'une formation pour enseignants de physique: un changement de perspective dans un cours de perfectionnement au Brésil. Didaskalia, Paris, v. 7, p. 117129, 1995.
  • POSNER, G. J. et al. Accomodation of a scientific conception: toward a theory of conceptual change. Science Education, Nova York, v. 66, n. 2, p. 211227, 1982.
  • QUINET, A. As 4 + 1 condições da análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
  • VILLANI, A. et al. Contribuições da Psicanálise para uma metodologia de pesquisa em educação em ciências. In: SANTOS, F. M. T.; GRECA, I. (Orgs.). A pesquisa em ensino de ciências no Brasil e suas metodologias Ijuí: Unijuí, 2006. p.323390.
  • WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade.Trad. José Octávio de Abreu e Vanede Nobre. Rio de Janeiro:Imago, 1975.
  • WYKROTA, J. L. M. Aspectos emocionais de procedimentos de ensino de professores de ciências do Ensino Médio 2007. 290f.Tese (Doutorado) Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.
  • 1
    Rua Maria Burgueta Marcondes Pestana, 54, São Paulo, SP, 05.587–200
  • 2
    Para tentar distinguir, pelo menos em parte, a reconstrução dos eventos da interpretação dos autores, orientada pelo referencial psicanalítico, a primeira será escrita em itálico.
  • 3
    Na psicanálise,
    Outro (grande Outro) indica a referência implícita da criança, introduzida quando de sua entrada na linguagem (FINK, 1988). Inicialmente, seus representantes são os pais, posteriormente, qualquer instância social que a capture.
  • 4
    Grupo de suposição básica é uma denominação encontrada por Bion para designar estados emocionais manifestados na dinâmica dos pequenos grupos, nos quais diferentes emoções se articulam de forma intensa para desempenhar um importante papel na organização do grupo. Dependendo do conflito que o grupo vivencia, uma suposição básica pode vir a ser preponderante na sua dinâmica, de forma a cobrir as angústias de seus membros e proporcionar–lhes satisfação. Em particular, o pressuposto de
    dependência sugere que o grupo está reunido para receber de alguém ou de alguma idéia a sua segurança; o de
    luta–fuga é a fantasia coletiva de atacar e ser atacado por um inimigo; e o pressuposto básico de
    acasalamento é uma mentalidade de grupo na qual os membros esperam que um fato ou uma idéia vindouros salvará o grupo de suas ansiedades persecutórias.
  • 5
    Para ele existe um
    momento originário de constituição do grupo, no qual são construídos tanto uma identificação entre cada um dos membros para a realização de seus desejos (
    contrato narcísico comum) quanto os mecanismos de defesa contra os perigos que podem ameaçar a grupalidade em construção (
    pactos denegativos). Articulada a esse
    momento temos uma
    fase inicial
    , que tem uma função unificadora em virtude de uma angústia muitas vezes intensa, que resultará na formação do conjunto. Uma segunda fase começa com a emergência de exigências individuais dos sujeitos e de novas tarefas e compromissos elaborados pelo próprio grupo: é a colocação de
    um envelope grupal, com o enunciado das primeiras regras em comum. Finalmente, se o grupo conseguir evoluir ulteriormente, alcançará
    a fase mitopoética, na qual o grupo não é mais um prolongamento dos sujeitos, mas o resultado de uma colaboração personalizante com a contribuição de cada um. A partir dessa conquista, o problema do grupo é encontrar instrumentos que permitam enfrentar os sucessivos desafios e as demandas da realidade.
  • 6
    O conceito de
    intermediário é proposto por Kaës (1997) como mecanismo de passagem, isto é, como um conector em um momento de ruptura entre os laços que mantêm as relações intersubjetivas e/ou entre dois espaços heterogêneos. Esse intermediário, que pode ser inclusive uma idéia, é construído para assegurar os apoios narcísicos necessários para o desenvolvimento tanto do sujeito como do grupo, isto é, para dar condições ao sujeito de encontrar um lugar no qual ele seja investido pela nova forma de trabalho proposta.
  • 7
    A
    ilusão grupal, conceito–chave na obra de Anzieu, colaborador de Kaës, representa uma fase inevitável na formação dos grupos, sendo uma tentativa dos sujeitos de não experimentarem a situação de distinção entre "o grupo e eu". Daí a ênfase colocada no caráter caloroso das relações entre os membros de um grupo que vive a ilusão grupal.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Ago 2007

    Histórico

    • Aceito
      Jun 2007
    • Recebido
      Dez 2006
    Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências, campus de Bauru. Av. Engenheiro Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01, Campus Universitário - Vargem Limpa CEP 17033-360 Bauru - SP/ Brasil , Tel./Fax: (55 14) 3103 6177 - Bauru - SP - Brazil
    E-mail: revista@fc.unesp.br