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Abordagem CTS em manuais escolares de Química do 10º ano em Portugal: um estudo de avaliação

STS approach in 10th year Portuguese Chemistry textbooks: an evaluation study

Resumo:

A abordagem educativa da Ciência, numa perspectiva Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS), preconiza um ensino centrado no desenvolvimento de competências transversais dos alunos, como, por exemplo, espírito crítico, resolução de problemas, aplicação de conhecimento científico e tecnológico em situações do cotidiano. O presente estudo é parte de uma investigação que teve como objetivo avaliar se Manuais Escolares de Química do 10º ano mais adotados em Portugal exploravam os conteúdos e apresentavam atividades que buscassem o estabelecimento das relações CTS. O estudo mostra que a visão integrada da Ciência, nas suas relações com a Tecnologia e a Sociedade, não era muito evidente nos manuais analisados, o que sugere a necessidade de os professores desenvolverem recursos didáticos com uma orientação CTS.

Palavras-chave:
Ensino de química; CTS; Manual escolar; Ensino médio; Avaliação

Abstract:

An educational approach of science in a STS perspective advocates a teaching process focused on the development of students' transversal competences (for example, critical reasoning, problem solving and the application of scientific and technological knowledge in daily situations). This study is a part of a research which had the main goal to evaluate whether 10th year chemistry textbooks, that had been mostly adopted in Portugal, explore the scientific contents and present learning activities that could be related to a STS approach. The study shows that an integrated view of science (in relation to technology and society) is not evident in the textbooks analyzed, which suggests the need of developing school resources with an STS approach by the teachers.

Keywords:
Chemistry teaching; STS; School textbook; Secondary education; Evaluation

Introdução

Ao longo da história da humanidade, a Ciência tem tido um papel vital na qualidade de vida dos cidadãos. Nesse âmbito, a Química é uma área científica que envolve a compreensão de fenômenos e conceitos abstratos, como a estrutura da matéria, as propriedades dos compostos químicos e as transformações que estes sofrem, relacionando-os com os fenômenos naturais e os avanços tecnológicos que influenciam o cotidiano dos cidadãos (SIRHAN, 2007SIRHAN, G. Learning difficulties in chemistry: an overview. Journal of Turkish Science Education, Trabzon, v. 4, n. 2, p. 2-20, 2007.).

Sendo assim, a compreensão das relações entre a Ciência, a Tecnologia e a Sociedade (CTS) somente se tornará possível por meio de uma educação que possibilite a alfabetização científica dos cidadãos (ZEN, 1992ZEN, E. Scientific literacy: what it is, why it is important and what can scientists do to impothe the situation? The Australian Science Teachers Journal, Melbourne, n. 38, v. 3, p. 17-26, 1992.) em benefício de uma sociedade mais justa e democrática (SANTOS; SCHNETZLER, 2015SANTOS, W. L. P.; SCHNETZLER, R. P. Educação química: um compromisso com a cidadania. 4. ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2015.). Nesse sentido, o presente estudo reconhece o papel estratégico da Ciência e da Tecnologia na formação do ser humano na sociedade emergente. Entende-se, como Sasseron (2015, p. 56)SASSERON, L. H. Alfabetização científica, ensino por investigação e argumentação: relações entre ciências da natureza e escola. Ensaio: pesquisa em educação em ciências, Belo Horizonte, v. 17, n. spe, p. 49-67, 2015. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1983-2117201517s04>. Acesso em: 9 out. 2018.
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, "... que a Alfabetização Científica, ao fim, revela-se como a capacidade construída para a análise e avaliação de situações que permitam ou culminem com a tomada de decisões e o posicionamento...", podendo ser aporte para as relações CTS.

As orientações das políticas educativas dos países devem se vincular com as recomendações da investigação em Educação, visando a formação de cidadãos críticos e informados cientificamente. Nesse sentido, Martins et al. (2012)MARTINS, I. P. et al. Avaliação do impacte do programa de formação em ensino experimental das ciências: um estudo de âmbito nacional - relatório final. Lisboa: Ministério da Educação e Ciência: Direção-Geral da Educação, 2012. recomendam uma articulação entre as orientações das políticas educativas e as da comunidade científica; nesse caso, da investigação em educação.

As recomendações da comunidade científica em educação vão ao encontro do desenvolvimento de competências dos estudantes, como os pensamentos crítico e criativo. Em particular, a investigação em educação em Ciência/Química se tem focado na promoção do gosto e interesse dos estudantes pela aprendizagem de Ciências (VIEIRA; TENREIRO-VIEIRA; MARTINS, 2011VIEIRA, R. M.; TENREIRO-VIEIRA, C.; MARTINS, I. P. A educação em ciências com orientação CTS: Atividades para o ensino básico. Porto: Areal, 2011.).

Nessa linha de pensamento, visando à formação de estudantes cientificamente informados e atentos à Ciência e à Tecnologia, a educação em Química deve integrar uma perspectiva inter e transdisciplinar no ensino e na aprendizagem, mas também às suas aplicações (e implicações) no cotidiano das sociedades. Neste sentido, o ensino da disciplina em questão, segundo a abordagem Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS), está assentado na contextualização de situações do dia a dia que abordem questões problemáticas que relacionem os conceitos e fenômenos da Química, articulem-se com a Tecnologia e mostrem os seus impactos (locais e globais) na sociedade em que os estudantes se inserem (SANTOS; SCHNETZLER, 2015SANTOS, W. L. P.; SCHNETZLER, R. P. Educação química: um compromisso com a cidadania. 4. ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2015.).

As orientações das políticas educativas em Portugal têm variado consoante às diretrizes dos governos. Nessa linha, os programas/orientações curriculares para as diversas áreas disciplinares, como a Química, têm sido homologados por diversos despachos dos sucessivos governos responsáveis pela área de educação (PORTUGAL, 2014aPORTUGAL. Decreto-lei n.º 5/2014 de 14 de janeiro. Diário da República, Lisboa, n. 9, 14 jan. 2014a. 1ª série, p. 155-159., 2014bPORTUGAL. Despacho n. 868-B/2014. Diário da República, Lisboa, n. 13, 20 jan. 2014b. 2.ª série.).

No contexto do país investigado, Portugal, em 2001, a abordagem CTS estava presente em documentos legislativos oficiais, nomeadamente no Currículo Nacional do Ensino Básico e Secundário (GALVÃO, 2001GALVÃO, C. Ciências físicas e naturais. In: PORTUGAL. Ministério da Educação. Currículo nacional do ensino básico: competências essenciais. Lisboa, 2001. p. 127-146.). Em 2011, ocorreram mudanças de políticas em relação às orientações curriculares (PORTUGAL, 2012PORTUGAL. Decreto-Lei n.º 139/2012 de 5 de julho. Diário da República, Lisboa, n. 129, 5 jul. 2012. 1.ª série, p. 3476-3491.), havendo um maior enfoque nos conteúdos em detrimento do desenvolvimento de competências dos estudantes. É importante compreender essas relações considerando que os programas de Física e Química A, elaborados por Caldeira e Martins (2001)CALDEIRA, H.; MARTINS, I. P. (Coord.). Programa de física e química A, 10.º ou 11.º anos: curso científico-humanístico de ciências e tecnologias. [Lisboa]: Ministério da Educação, 2001., carregam esse enfoque ao longo de sua proposição. Já o desenvolvido por Fiolhais, Festas e Damião (2014)FIOLHAIS, C.; FESTAS, I.; DAMIÃO, H. Programa de física e química A 10.º e 11.º anos: curso científico-humanístico de ciências e tecnologias. Lisboa: Ministério da Educação e Ciência, 2014. Disponível em: <http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/ficheiros/programa_fqa_10_11.pdf>. Acesso em: 10 out. 2018.
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apresenta algumas propostas de atividades relacionadas ao cotidiano do aluno associadas a exemplos, o que não caracteriza o ensino de Química nessa perspectiva.

A utilização de manuais escolares para o Ensino de Química tem sido um dos recursos mais empregados pelos professores portugueses (SANTOS, 2001SANTOS, M. E. V. M. A cidadania na "voz" dos manuais escolares: o que temos? o que queremos? Lisboa: Livros Horizonte, 2001.). Todavia, alguns estudos têm mostrado que o desenvolvimento desses recursos (manuais) não tem acompanhado as recomendações oriundas da investigação, em particular no que se refere à integração da abordagem CTS como meio de promover a alfabetização científica dos estudantes (ALVES, 2005ALVES, D. F. F. Manuais escolares de estudo do meio, educação CTS e pensamento crítico. 2005. 180 f. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências no 1º Ciclo do Ensino Básico) - Departamento de Didática e Tecnologia Educativa, Universidade de Aveiro, Aveiro, Portugal, 2005.; FERNANDES, 2011FERNANDES, I. M. B. A perspectiva CTSA nos manuais escolares de ciências da natureza do 2º CEB. 2011. 132 f. Dissertação (Mestrado em Ensino das Ciências) - Escola Superior de Educação de Bragança, Instituto Politécnico de Bragança, Bragança, 2011.; FERNANDES; PIRES, 2012FERNANDES, I. M. B.; PIRES, D. M. Integração CTSA em manuais escolares de ciências da natureza do 5º ano de escolaridade. In: SEMINÁRIO IBÉRICO, 7. e SEMINÁRIO IBERO-AMERICANO CTS NO ENSINO DE CIÊNCIAS, 7., 2012, Madrid. Anais... Madrid: AIA-CTS, 2012. p. 52-58. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10198/11059>. Acesso em: 9 out. 2018.
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). Cumpre destacar que a escolha dos manuais escolares possuidores da "Menção de Certificado" competia às escolas; quanto aos demais, ou seja, os não certificados, cabia ao membro do Governo responsável pela educação defini-los por despacho (PORTUGAL, 2014aPORTUGAL. Decreto-lei n.º 5/2014 de 14 de janeiro. Diário da República, Lisboa, n. 9, 14 jan. 2014a. 1ª série, p. 155-159.). O fato é que parecia não haver uma articulação entre as decisões das escolas, as orientações políticas e as recomendações da investigação.

Nessa época, em Portugal, o sistema de ensino era organizado em Educação Pré-Escolar (estudantes dos três aos cinco anos de idade) e Educação Básica (dos seis aos quatorze anos), composto por três ciclos, de caráter obrigatório. Por sua vez, o Ensino Secundário (dos quinze aos dezessete anos) tinha a duração de três anos e se constituía de diferentes formas de acordo com os objetivos, tais como a continuidade dos estudos (acesso ao Ensino Superior) ou preparação para a vida ativa (inserção no mercado de trabalho) (PORTUGAL, 2012PORTUGAL. Decreto-Lei n.º 139/2012 de 5 de julho. Diário da República, Lisboa, n. 129, 5 jul. 2012. 1.ª série, p. 3476-3491.). Todavia, a literatura tem mostrado que, ao longo da escolaridade, a motivação dos estudantes para aprender Ciências vem diminuindo (CACHAPUZ et al., 2005CACHAPUZ, A. et al. A necessária renovação do ensino de ciências. São Paulo: Cortez, 2005.).

Cumpre enfatizar que o ingresso no Ensino Secundário para o estudante significa uma mudança de nível, tornando-se um momento marcante em sua vida, bem como a dos pais e professores. Essas mudanças, no contexto escolar, constituem nos alunos "um sentimento de começar de novo" (ABRANTES, 2005ABRANTES, P. As transições entre ciclos de ensino: entre problema social e objecto sociológico. Interacções, Lisboa, v. 1, n. 1, p. 25-53, 2005. Disponível em: <https://revistas.rcaap.pt/interaccoes/article/view/281>. Acesso em: 9 out. 2018.
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, p.28), provocando ruptura na organização já estabelecida, desestruturando suas identidades sociais. Assim, importa compreender de que forma os manuais escolares de Química do Ensino Secundário, em particular do 10º ano, adotados em Portugal, exploravam o conteúdo científico, interligando-o com a Tecnologia e Sociedade, e apresentavam atividades de aprendizagem (exercícios, resolução de problemas) que apelavam para o estabelecimento dessas relações.

Tendo em conta o exposto, este estudo procura responder à seguinte questão: de que forma a abordagem CTS está presente em manuais escolares de Química do 10º ano em Portugal? Para respondê-la, foi traçado o seguinte objetivo: avaliar de que forma os manuais escolares de Química do 10º ano, adotados em Portugal, integram dimensões numa perspectiva CTS.

O campo dos Estudos CTS

Por ser diferente em cada país, a evolução do enfoque CTS na Ciência Escolar é uma complexa história do desenvolvimento profissional e intelectual dos educadores em Ciência. (AIKENHEAD, 2005AIKENHEAD, G. Educación ciencia-tecnología-sociedad (CTS): una buena idea como quiera que se le llame. Educación Química, México, v. 16, n. 2, p. 304-315, 2005. Disponível em: <https://www.oei.es/historico/salactsi/Aikenhead01.htm>. Acesso em: 9 out. 2018.
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). Já se passaram quatro décadas desde que a Ciência, a Tecnologia e a Sociedade, pela primeira vez, foram introduzidas no contexto da educação científica. De fato, considerou-se uma coincidência histórica que, no final dos anos 70 e início dos 80 do século passado, a sentença "Ciência-Tecnologia-Sociedade" estivesse presente em vários lugares ao mesmo tempo enquanto se desenvolvia um amplo consenso entre os educadores em Ciência acerca da inovação na educação científica (PEDRETTI; NAZIR, 2011PEDRETTI, E.; NAZIR, J. Currents in STSE education: mapping a complex field, 40 years on. Science Education, Hoboken, v. 95, n. 4, p. 601-626, 2011. Disponível em: <https://doi.org/10.1002/sce.20435>. Acesso em: 9 out. 2018.
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). Nessa época, inseriram-se novas e diversas propostas de Ciência Escolar, estimuladas por vários fatores, tais como: reavaliação da cultura ocidental e o papel da Ciência Escolar nessa transformação; emergente necessidade de formação política para a ação; demanda de aproximações interdisciplinares da educação científica organizadas em torno de problemas amplos e uma nova forma de demanda de preparação vocacional e tecnocrática (SOLOMON, 1988SOLOMON, J. The dilemma of science, technology and society education. In: FENSHAM, P. J. (Ed.). Development and dilemmas in science education. New York: Falmer Press, 1988. p. 266-281.).

A Educação com abordagem CTS é um campo interdisciplinar que visa explorar e compreender as diversas maneiras que a Ciência, a Tecnologia e a Cultura modernas se relacionam (MANSOUR, 2009MANSOUR, N. Science-technology-society (STS): a new paradigm in science education. Bulletin of Science, Technology & Society, Thousand Oaks, v. 29, n. 4, p. 287-297, 2009.). Já diversos autores do século passado a identificaram como sendo uma abordagem do currículo desenhada para tornar os conceitos e processos típicos tradicionais, encontrados em programas de Ciência e Estudos Sociais, mais apropriados e relevantes para a vida dos estudantes com um currículo que abordasse uma ampla gama de problemas ambientais, industriais, tecnológicos, sociais e políticos (ZIMAN, 1980ZIMAN, J. Teaching and learning about science and society. Cambridge: Cambridge University Press, 1980.; WRAGA; HLEBOWITSH, 1991WRAGA, W. G.; HLEBOWITSH, P. S. STS education and the curriculum field. School Science and Mathematics, Hoboken, v. 91, n. 2, p. 54-59, 1991. Disponível em: <https://doi.org/10.1111/j.1949-8594.1991.tb15571.x>. Acesso em: 20 fev. 2017.
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).

Neste sentido, os estudos e programas CTS, desde seu início, seguiram três caminhos:

[...] no campo da pesquisa, como alternativa à reflexão acadêmica tradicional sobre a ciência e a tecnologia, promovendo uma nova visão não essencialista e socialmente contextualizada da atividade científica; no campo das políticas públicas, defendendo a regulação social da ciência e da tecnologia, promovendo a criação de mecanismos democráticos facilitadores da abertura dos processos de tomada de decisão sobre questões de políticas científico-tecnológicas; e, no campo da educação, esta nova imagem da ciência e tecnologia na sociedade tem cristalizado a aparição de novos programas e materiais CTS no ensino secundário e universitário em numerosos países (BAZZO et al., 2003BAZZO, W. A. et al. (Ed.). Introdução aos estudos CTS (ciência, tecnologia e sociedade). Madrid: OEI, 2003., p. 127).

Os três caminhos acima citados reúnem tradições bem diferenciadas, a saber: a norte-americana, que enfatiza as consequências sociais das inovações tecnológicas; a europeia, que dá realce especial à dimensão social acadêmica (BAZZO, 2014BAZZO, W. A. Ciência, tecnologia e sociedade: e o contexto da educação tecnológica. 4. ed. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2014.). Além disso, interligam-se por meio do que Bazzo et al. (2003, p. 127)BAZZO, W. A. et al. (Ed.). Introdução aos estudos CTS (ciência, tecnologia e sociedade). Madrid: OEI, 2003. chamam de "silogismo CTS".

Conforme o esperado, a educação não tem ficado alheia às tendências do ativismo social e pesquisa acadêmica. Isso tem se refletido em uma discussão mais crítica e contextualizada do ensino das Ciências e de tópicos relacionados à Ciência e Tecnologia na Escola Básica e no Ensino Superior, nomeando-se, assim, educação CTS. Esta pode ser entendida como uma aplicação contextualizada da Ciência e da Tecnologia, promovendo a participação pública e contrapondo-se ao estilo tecnocrático de organização institucional. O fato implica mudanças nos conteúdos, metodologias e atitudes dos grupos sociais envolvidos nos processos de ensino e aprendizagem (LÓPEZ CEREZO, 2004LÓPEZ CEREZO, J. A. Ciência, tecnologia e sociedade: o estado da arte na Europa e nos Estados Unidos. In: SANTOS, L. W. et al. (Org). Ciência, tecnologia e sociedade: o desafio da interação. Londrina: IAPAR, 2004. p. 3-38.).

Corroborando Santos (2012, p. 53)SANTOS, W. L. P. Educação CTS e cidadania: confluências e diferenças. Amazônia: revista de educação em ciências e matemáticas, Belém, v. 9, n. 17, p. 49-62, 2012., a educação CTS incorpora os objetivos da educação ambiental, "pois o movimento CTS surgiu como uma forte crítica ao modelo desenvolvimentista, que estava agravando a crise ambiental e ampliando o processo de exclusão social", motivo pelo qual é empregada no presente texto. Entretanto, muitos autores, em seus estudos, têm utilizado CTSA, destacando o compromisso com questões socioambientais (PEDRETTI et al., 2008PEDRETTI, E. G. et al. Promoting issues-based STSE perspectives in science teacher education: problems of identity and ideology. Science & Education, Dordrecht, v. 17, n. 8-9, p. 941-960, 2008. Disponível em: <https://doi.org/10.1007/s11191-006-9060-8>. Acesso em: 9 out. 2018.
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; VILCHES; GIL PÉREZ; PRAIA, 2011VILCHES, A.; GIL PÉREZ, D.; PRAIA, J. De CTS a CTSA: educação por um futuro sustentável. In: SANTOS, W. L. P.; AULER, D. (Org.). CTS e educação científica: desafios, tendências e resultados de pesquisa. Brasília: Editora UnB, 2011. p. 161-184. ).

Na Escola Básica, podem-se distinguir três modalidades de CTS no Ensino de Ciências e Humanidades, a saber: complemento curricular, complemento em matérias, e, Ciência e Tecnologia através de CTS (GONZÁLEZ GARCÍA; LÓPEZ CEREZO; LUJÁN, 1996GONZÁLEZ GARCÍA, M.; LÓPEZ CEREZO, T. A.; LUJÁN, J. L. Ciencia, tecnología y sociedade: uma introducción al estúdio social de la ciencia y tecnología. Madrid: Tecnos, 1996.). Neste trabalho, assume-se que um currículo com abordagem CTS requer mudanças fundamentais no status quo da educação científica, buscando um Ensino das Ciências (no caso, a Química) de forma interdisciplinar e voltado ao contexto da vida real do aluno do qual emergem ligações com a tecnologia e com implicações para a sociedade (temas sociais pertinentes) (MARTINS, 2002MARTINS, I. P. Problemas e perspectivas sobre a integração CTS no sistema educativo português. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, Vigo, v. 1, n. 1, p. 28-39, 2002.; MARTINS et al., 2005MARTINS, I. P. et al. Educação em química e ensino de química: perspectivas curriculares, parte II. Boletim da Sociedade Portuguesa de Química, Lisboa, n. 96, p. 33-37, 2005.).

Abordagem CTS nos Manuais Escolares de Química/Ciências

O fato de o manual escolar ser um dos principais instrumentos de que o professor dispõe na escola para o desenvolvimento das atividades diárias e a importância da sua utilização no ensino de Química foi determinante para que se buscassem trabalhos que o relacionassem ao enfoque CTS. A partir da revisão de literatura da realidade em Portugal foi possível identificar em Alves (2005)ALVES, D. F. F. Manuais escolares de estudo do meio, educação CTS e pensamento crítico. 2005. 180 f. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências no 1º Ciclo do Ensino Básico) - Departamento de Didática e Tecnologia Educativa, Universidade de Aveiro, Aveiro, Portugal, 2005., o estudo de cinco manuais escolares de Estudo do Meio (Ciências) do 4º ano de escolaridade com o intuito de caracterizar a abordagem CTS e conhecer o que os escritores desses manuais pensavam a respeito das finalidades ligadas a esse enfoque e ao Pensamento Crítico (CTS/PC). Os resultados obtidos mostram que eles, de um modo geral, não refletiam uma educação CTS/PC, e os autores tinham dificuldades e constrangimentos em responderem aos requisitos relativos às suas finalidades.

Fernandes e Pires (2012FERNANDES, I. M. B.; PIRES, D. M. Integração CTSA em manuais escolares de ciências da natureza do 5º ano de escolaridade. In: SEMINÁRIO IBÉRICO, 7. e SEMINÁRIO IBERO-AMERICANO CTS NO ENSINO DE CIÊNCIAS, 7., 2012, Madrid. Anais... Madrid: AIA-CTS, 2012. p. 52-58. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10198/11059>. Acesso em: 9 out. 2018.
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, 2013)FERNANDES, I. M. B.; PIRES, D. M. As inter-relações CTSA nos manuais escolares de ciências do 2º CEB. Eduser: revista de educação, Bragança, v. 5, n. 2, p. 35-47, 2013. Disponível em: <https://www.eduser.ipb.pt/index.php/eduser/article/view/55>. Acesso em: 9 out. 2018.
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e Fernandes (2011)FERNANDES, I. M. B. A perspectiva CTSA nos manuais escolares de ciências da natureza do 2º CEB. 2011. 132 f. Dissertação (Mestrado em Ensino das Ciências) - Escola Superior de Educação de Bragança, Instituto Politécnico de Bragança, Bragança, 2011. investigaram sete manuais escolares de Ciências da Natureza do 2º Ciclo da Educação Básica (2º CEB), editados em 2010, com o objetivo de averiguar se eles exploravam a perspectiva CTSA preconizada pelas orientações curriculares do Ensino Básico. Em seus estudos, concluíram que esta, ainda que presente nos manuais escolares, era pouco significativa.

Por sua vez, Moura (2011)MOURA, A. M. M. Interrelações ciências, tecnologia e sociedade: um estudo com manuais de ciências da natureza do 5º ano de escolaridade e respectivos autores. 2011. 191 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Educação) - Universidade do Minho, Minho, 2011. avaliou dez manuais escolares do 5º ano da Educação Básica e entrevistou oito autores. Em sua investigação, ele concluiu que tais instrumentos não eram consistentes com a perspectiva CTS, e os seus autores, embora a valorizassem, apresentavam uma compreensão insuficiente acerca dos seus fundamentos.

Para o Ensino Secundário ou Médio, identificaram-se estudos realizados em outros países, com enfoque CTS e relacionados a temas da Química abordados nos livros, como o conduzido por García-Carmona e Criado (2008)GARCÍA-CARMONA, A.; CRIADO, A. M. Enfoque CTS en la enseñanza de la energía nuclear: análisis de su tratamiento en textos de física y química de la ESO. Enseñanza de las Ciencias, Barcelona, v. 26, n. 1, p. 107-124, 2008., que investigaram o assunto Energia Nuclear em onze livros, textos das editoras, mais utilizados no Ensino de Física e de Química do 3º ano do Ensino Secundário em Andaluzia (Espanha). Os autores encontraram certa diversidade de tratamento no número e tipos de aspectos CTS relativos à Energia Nuclear. Sete textos propõem atividades integradas ao desenvolvimento dos conteúdos básicos relativos ao tema. Ademais, observaram baixa presença (cerca da quarta parte) de aspectos socioeconômicos e/ou políticos relacionados com a Energia Nuclear.

Por seu turno, Sá e Santin Filho (2009)SÁ, M. B. Z.; SANTIN FILHO, O. Relações entre ciência, tecnologia e sociedade em livros didáticos de química. Acta Scientiarum: human and social sciences, Maringá, v. 31, n. 2, p. 159-166, 2009. avaliaram o tema Radioatividade em cinco livros didáticos de Química mais citados pelos professores, utilizados no Ensino Médio no Brasil, e já estudados em outras pesquisas. Nas obras examinadas pelos autores, não há preocupação em adotar abordagens que contemplem as relações CTS. O tema é tratado de modo descontextualizado e não atende às recomendações dos documentos oficiais brasileiros.

Amaral, Xavier e Maciel (2009)AMARAL, C. L. C.; XAVIER, E. S.; MACIEL, M. D. Abordagem das relações ciência/tecnologia/sociedade nos conteúdos de funções orgânicas em livros didáticos de química do ensino médio. Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 101-114, 2009., em seu trabalho, avaliaram como a relação CTS se faz presente no conteúdo de funções orgânicas em seis livros didáticos de Química indicados no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para o Ensino Médio de 2007. Os autores concluíram que, de maneira geral, as relações CTS não são totalmente contempladas nos conteúdos investigados, fato que pode contribuir para que as aulas de Química sejam desenvolvidas por meio de atividades desvinculadas do contexto social dos estudantes.

Em seu trabalho, Barbosa e Lorenzetti (2016)BARBOSA, C. T. R.; LORENZETTI, L. A abordagem CTS em livros didáticos de química: analisando a temática termoquímica. In: JORNADAS LATINO-AMERICANAS DE ESTUDOS SOCIAIS DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA, 11., 2016, Curitiba. Anais... Curitiba: UFTPR, 2016. compararam os livros didáticos de Química aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) em 2012 (cinco livros) e 2015 (quatro livros). Os aspectos analisados foram: caracterização da obra, desenvolvimento dos conteúdos de Termoquímica, metodologias indicadas e figuras expostas. Das cinco obras de 2012, quatro permaneceram em 2015, e as mudanças mais significativas ocorreram nas apresentações das unidades/capítulos, sendo que, na maior parte delas, há compactação dos assuntos abordados. Ademais, estabelecem uma ordem de prioridade na temática termoquímica para a educação com abordagem CTS entre os livros do PNLD de 2012 e 2015. Salienta-se que, neste estudo, a análise recaiu sobre tópicos específicos de Química presentes nos materiais avaliados.

Manuais escolares: da concepção à certificação em Portugal

O manual escolar pode ser definido como "sendo um instrumento impresso, intencionalmente estruturado para se inscrever num processo de aprendizagem, com o fim de lhe melhorar a eficiência" (GÉRARD; ROEGIERS, 1998GÉRARD, F.; ROEGIERS, X. Conceber e avaliar manuais escolares. Porto: Porto Editora, 1998., p. 19). Santos (2001)SANTOS, M. E. V. M. A cidadania na "voz" dos manuais escolares: o que temos? o que queremos? Lisboa: Livros Horizonte, 2001. salienta que essa ferramenta é a "Bíblia" de professores e estudantes, sendo instrumento de trabalho de grande utilização. Como não está isento de erros, incorreções, desatualizações ou outros aspectos indesejáveis para um ensino de qualidade, torna-se fundamental a sua avaliação.

No que se refere à adoção, avaliação e certificação dos manuais escolares, estas, inicialmente, foram regulamentadas pela Lei nº 47/2006 de 28 de agosto (PORTUGAL, 2006PORTUGAL. Lei n.º 47/2006 de 28 de Agosto. Diário da República, Lisboa, n. 165, 28 ago. 2006. 1ª série, p. 6213-6218.). O Decreto-Lei n.º 5/2014 (PORTUGAL, 2014aPORTUGAL. Decreto-lei n.º 5/2014 de 14 de janeiro. Diário da República, Lisboa, n. 9, 14 jan. 2014a. 1ª série, p. 155-159.) regulamenta, atualmente, o regime de avaliação e de certificação desses manuais dos Ensinos Básico e Secundário, considerando que a sua utilização vigora por um prazo de seis anos.

Nesse sentido, o procedimento de avaliação e de certificação dos manuais escolares se inicia com o contato dos autores, editores ou outras entidades habilitadas, com as acreditadas pela Direção Geral de Educação (DGE) e comissões de avaliação constituídas para o efeito (PORTUGAL, 2014bPORTUGAL. Despacho n. 868-B/2014. Diário da República, Lisboa, n. 13, 20 jan. 2014b. 2.ª série.). Feita a escolha, os autores ou editores informam à DGE, mediante o registro no Sistema de Informação de Manuais Escolares (SIME), quais desses recursos serão avaliados e certificados. Ato contínuo, essas entidades acreditadas comunicam à DGE, com conhecimento do Editor específico, que o manual avaliado mereceu a menção "de Certificado" ou "Não Certificado" (PORTUGAL, 2014bPORTUGAL. Despacho n. 868-B/2014. Diário da República, Lisboa, n. 13, 20 jan. 2014b. 2.ª série.). Porém, essa avaliação e certificação não são intencionalmente orientadas pela pesquisa em educação.

Metodologia do estudo

O estudo desenvolvido está assentado num paradigma interpretativo, seguindo uma perspectiva qualitativa (COUTINHO, 2011COUTINHO, C. P. Metodologia de investigação em ciências sociais e humanas: teoria e prática. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2011.; CRESWELL, 1994CRESWELL, J. W. Qualitative and quantitative methods. Newbury Park: Sage, 1994.), com o propósito de estudar casos concretos (manuais escolares de Química do 10º ano de escolaridade mais adotados pelas escolas portuguesas). Empregando um plano de investigação do tipo "Avaliação" (COUTINHO, 2011COUTINHO, C. P. Metodologia de investigação em ciências sociais e humanas: teoria e prática. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2011.), procedeu-se à recolha e à análise da integração da abordagem CTS em quatro manuais escolares. Os dados envolvidos nesta pesquisa se referem aos manuais escolares certificados do 10º ano do Componente Curricular de Química. A recolha documental de dados ocorreu no período de janeiro a julho de 2016 e diz respeito aos recursos adotados no ano letivo 2015/2016.

Em seguida, apresentou-se o procedimento utilizado na seleção dos manuais escolares para serem analisados. Em primeiro lugar, fez-se um levantamento destes (em função das suas editoras) nos seiscentos e vinte e sete estabelecimentos de Ensino Secundário com base nas informações do sítio do Sistema de Informação de Manuais Escolares (SIME) (PORTUGAL, 2016PORTUGAL. Departamento Geral de Educação. Manuais secundário: ano letivo 2015-2016. Lisboa, 2016. Disponível em: <http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/ManuaisEscolares/lista_manuais_disponiveis_2015_2016_ensino_secundario.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2017.
http://www.dge.mec.pt/sites/default/file...
). Esse levantamento possibilitou a identificação de sete manuais escolares e, dentre eles, escolheram-se os quatro adotados em um maior número de estabelecimentos de Ensino Secundário. A opção se deu em função da realização posterior de estudo comparativo com as quatro coleções de livros didáticos utilizados no Brasil e indicados no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) 2015.

A Tabela 1 sistematiza os dados do procedimento seguido e os manuais analisados (104P, 105P, 106P e 107P).

Tabela 1
Número e percentual de estabelecimentos de Ensino Secundário que adotaram manuais do 10º ano no Componente Curricular de Química A

Neste estudo, adotou-se a técnica de análise de conteúdo definida como "um conjunto de técnicas de análise das comunicações que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens" (BARDIN, 2015BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2015., p. 38). Apesar de ser uma pesquisa qualitativa, os resultados foram complementados com o número de ocorrências registradas.

O instrumento de análise foi elaborado a partir dos estudos de Alves (2005)ALVES, D. F. F. Manuais escolares de estudo do meio, educação CTS e pensamento crítico. 2005. 180 f. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências no 1º Ciclo do Ensino Básico) - Departamento de Didática e Tecnologia Educativa, Universidade de Aveiro, Aveiro, Portugal, 2005. e Fernandes (2011)FERNANDES, I. M. B. A perspectiva CTSA nos manuais escolares de ciências da natureza do 2º CEB. 2011. 132 f. Dissertação (Mestrado em Ensino das Ciências) - Escola Superior de Educação de Bragança, Instituto Politécnico de Bragança, Bragança, 2011., que avaliaram manuais escolares do Ensino Básico de Ciências da Natureza e Português com adaptações para o Ensino Secundário. Organizou-se o citado instrumento em uma categoria, duas dimensões e quatorze indicadores como mostra o Quadro 1. A categoria denominada Elementos de concretização do Processo de Ensino/Aprendizagem foi escolhida em virtude de a opção recair sobre toda a forma de explorar os conteúdos e atividades de aprendizagens. As dimensões A e B se designam, respectivamente, Discurso/Informação e Atividades de Ensino/Aprendizagem. A primeira considera o texto incluído nos manuais tendo em conta o discurso utilizado e a informação que transmitem; a segunda, as atividades propostas no manual (FERNANDES, 2011FERNANDES, I. M. B. A perspectiva CTSA nos manuais escolares de ciências da natureza do 2º CEB. 2011. 132 f. Dissertação (Mestrado em Ensino das Ciências) - Escola Superior de Educação de Bragança, Instituto Politécnico de Bragança, Bragança, 2011.).

Quadro 1
Instrumento de análise da abordagem CTS em Manuais Escolares de Química do 10º

Assim como outros autores (por exemplo, FERNANDES, 2011FERNANDES, I. M. B. A perspectiva CTSA nos manuais escolares de ciências da natureza do 2º CEB. 2011. 132 f. Dissertação (Mestrado em Ensino das Ciências) - Escola Superior de Educação de Bragança, Instituto Politécnico de Bragança, Bragança, 2011.), na leitura flutuante, foram identificados episódios evidenciando as ideias explicitamente presentes nos indicadores de forma clara e precisa, e outros em que essas ideias pudessem levar à interpretação do indicador, sendo palavras, frases ou imagens. Assim, na análise, optou-se por considerar episódios explícitos (E) e implícitos (I). Por fim, aplicou-se o instrumento de análise dos Manuais Escolares de Química do 10º ano (Quadro 1) em todas as suas unidades temáticas.

Assim como outros autores (por exemplo, FERNANDES, 2011FERNANDES, I. M. B. A perspectiva CTSA nos manuais escolares de ciências da natureza do 2º CEB. 2011. 132 f. Dissertação (Mestrado em Ensino das Ciências) - Escola Superior de Educação de Bragança, Instituto Politécnico de Bragança, Bragança, 2011.), na leitura flutuante, foram identificados episódios evidenciando as ideias explicitamente presentes nos indicadores de forma clara e precisa, e outros em que essas ideias pudessem levar à interpretação do indicador, sendo palavras, frases ou imagens. Assim, na análise, optou-se por considerar episódios explícitos (E) e implícitos (I). Por fim, aplicou-se o instrumento de análise dos Manuais Escolares de Química do 10º ano (Quadro 1) em todas as suas unidades temáticas.

Resultados e discussão

O primeiro resultado global diz respeito à ausência de sessões designadas de CTS ou CTSA, ao contrário da sua existência em livros de textos no Brasil (BRASIL, 2014BRASIL. Ministério da Educação. Guia de livros didáticos: PNLD 2015: ensino médio: química. Brasília, 2014. Disponível em: <http://www.fnde.gov.br/centrais-de-conteudos/publicacoes/category/125-guias?download=9010:pnld-2015-quimica>. Acesso em: 9 out. 2018.
http://www.fnde.gov.br/centrais-de-conte...
). As sessões, designadas "Unidades Temáticas", nos manuais analisados, correspondem a designações de conteúdos de Química.

Esse resultado sugere uma não intencionalidade na consideração da perspectiva CTS como orientadora da organização do manual. Em termos mais específicos, a Tabela 2 sumariza o número de episódios identificados em função das duas dimensões e respectivos indicadores para cada um dos manuais analisados, assim como a natureza explícita (E) ou implícita (I) desses mesmos episódios.

Tabela 2
Número de episódios explícitos (E) e implícitos (I) por dimensão e respetivos indicadores contemplados nos manuais escolares avaliados

Sendo assim, dos resultados da Tabela 2, pode-se afirmar que:

a) o número total de episódios (setenta) identificado nos quatro manuais não parece ser elevado relativamente ao número total de páginas analisadas (N=842);

b) existe uma diferença considerável entre o número de episódios identificados na dimensão A (sessenta e um) relativo à B (nove), o que indica que a contextualização CTS ocorre com mais frequência quando há apresentação dos conteúdos do que nas propostas de atividades;

c) a variação no número de episódios por manual é de quinze a vinte e um, tendo essa análise mais significado quando se observa o número de episódios E e I. De fato, o manual em que se identificam mais episódios CTS (vinte e um no 105P) foi no qual predominam os implícitos (treze). O manual 104P é aquele onde aparecem mais episódios CTS explícitos (quatorze);

d) o número total de episódios E e I não difere consideravelmente (respectivamente, trinta e três e trinta e sete). Fernandes (2011)FERNANDES, I. M. B. A perspectiva CTSA nos manuais escolares de ciências da natureza do 2º CEB. 2011. 132 f. Dissertação (Mestrado em Ensino das Ciências) - Escola Superior de Educação de Bragança, Instituto Politécnico de Bragança, Bragança, 2011. identificou, aproximadamente, o mesmo percentual de episódios implícitos que o observado neste trabalho (56%), o que sugere fragilidade no enfoque CTS dos manuais escolares avaliados. Para que a perspectiva CTS seja evidenciada, os episódios devem expor as ideias com mais clareza e precisão.

Com o propósito de melhor esclarecer o que se entende por episódio E e I, em seguida, ilustra-se e justifica-se um exemplo de cada um em função do indicador em que foi classificado. Episódio explícito do indicador A2:

Os cientistas pensam que o ar que atualmente se respira não tem nada de semelhante com a atmosfera primitiva; de facto, eles acham que 99% desta atmosfera é completamente diferente da atmosfera original e por essa razão a denominam de atmosfera secundária. Os investigadores desta área pensam que a atmosfera secundária resulta de atividades vulcânicas que acontecem desde os tempos primitivos da Terra e que ainda hoje continuam... (104P, p. 157). (SIMÕES; QUEIRÓS; SIMÕES, 2015SIMÕES, T. S.; QUEIRÓS, M. A.; SIMÕES, M. O. Há química entre nós. Porto: Porto Editora, 2015., p. 157).

Esse episódio mostra o pensamento dos cientistas, porém, sem uma relação direta com o dia a dia do cidadão embora faça referência à atualidade.

Episódio implícito do indicador A1: "o vapor de água e o dióxido de carbono, para além de participarem nos processos biológicos que dão vida aos organismos - processo de fotossíntese, alimentação, etc. - exercem um papel fundamental na regulação do clima da Terra" (107P, p. 160) (DANTAS; RAMALHO, 2015DANTAS, M. C.; RAMALHO, M. D. Novo jogo de partículas. Lisboa: Texto, 2015., p. 160).

O autor faz referência à importância dos compostos em causa, mas não discute, por exemplo, as consequências do excesso de dióxido de carbono para a vida na Terra. O conteúdo científico é abordado; contudo, não parte da exploração de situações-problema com viés CTS. Ao contrário, os conhecimentos são abordados de forma essencialmente disciplinar embora citem "processos biológicos".

a) não existe uma distribuição semelhante na identificação de episódios nos diferentes indicadores quer para a dimensão A quer para a B.

A Tabela 3 resume os indicadores presentes nas duas dimensões.

Tabela 3
Dimensões e indicadores identificados nos manuais escolares avaliados

Em relação à dimensão A, os indicadores A3, A4, A7 e A8 não estão presentes em nenhum episódio nos quatro manuais avaliados (Tabela 2). O fato de não haver evidências desses quatro indicadores nos manuais pode estar relacionado ao Programa de Física e de Química A, que, em suas "orientações gerais" (FIOLHAIS; FESTAS; DAMIÃO, 2014FIOLHAIS, C.; FESTAS, I.; DAMIÃO, H. Programa de física e química A 10.º e 11.º anos: curso científico-humanístico de ciências e tecnologias. Lisboa: Ministério da Educação e Ciência, 2014. Disponível em: <http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/ficheiros/programa_fqa_10_11.pdf>. Acesso em: 10 out. 2018.
http://www.dge.mec.pt/sites/default/file...
), apenas sugere que a abordagem dos conhecimentos científicos parta de situações motivadoras, como casos da vida cotidiana, citando o ensino que privilegia o conhecimento em ação, nomeando-o ensino CTS. Já o Programa anterior (CALDEIRA; MARTINS, 2001CALDEIRA, H.; MARTINS, I. P. (Coord.). Programa de física e química A, 10.º ou 11.º anos: curso científico-humanístico de ciências e tecnologias. [Lisboa]: Ministério da Educação, 2001.), em suas "orientações para o ensino da física e da química", apresenta a questão da interdisciplinaridade como eixo principal do ensino e afirma que as estratégias de ensino e aprendizagem deveriam ser organizadas em função de situações-problema do dia a dia dos estudantes. Provavelmente, o afastamento da interdisciplinaridade como eixo principal do novo programa fez com que esses indicadores não fossem evidenciados nos manuais investigados.

Por outro lado, o indicador A5 é o mais identificado (trinta e seis episódios), seguido pelo indicador A9 (dez episódios). Um exemplo do primeiro se apresenta no manual 104P:

O principal objetivo da nanotecnologia é criar novos materiais, novos produtos e processos a partir da capacidade moderna de ver e manipular átomos e moléculas. Esta microengenharia molecular está a dar origem a uma nova revolução industrial, com importantes consequências económicas, sociais, ambientais e militares.... A nanotecnologia abre espaço a muitas possibilidades, mas também traz grandes desafios para se conseguir trabalhar numa escala tão reduzida. A maior prova dessa dificuldade é o facto de que só apenas laboratórios e indústrias com equipamentos de alta precisão conseguem utilizar esta tecnologia (104P, p. 16) (SIMÕES; QUEIRÓS; SIMÕES, 2015SIMÕES, T. S.; QUEIRÓS, M. A.; SIMÕES, M. O. Há química entre nós. Porto: Porto Editora, 2015., p. 16).

Nesse evento, os estudantes foram informados sobre a nanotecnologia e sua importância para a sociedade; porém, sem expor com profundidade essa técnica. No que diz respeito à dimensão B, o indicador B1 não está presente em nenhum dos manuais avaliados. O Programa de Física e de Química A (FIOLHAIS; FESTAS; DAMIÃO, 2014FIOLHAIS, C.; FESTAS, I.; DAMIÃO, H. Programa de física e química A 10.º e 11.º anos: curso científico-humanístico de ciências e tecnologias. Lisboa: Ministério da Educação e Ciência, 2014. Disponível em: <http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/ficheiros/programa_fqa_10_11.pdf>. Acesso em: 10 out. 2018.
http://www.dge.mec.pt/sites/default/file...
) faz referência ao trabalho prático-laboratorial onde o desempenho do aluno deve ser revelado na familiarização com a metodologia do trabalho científico. Este é um indicador (B1) que caracteriza atividades com forte cunho no enfoque CTS, pois envolve os discentes em projetos que promovem o pensamento crítico.

Com a finalidade de melhor compreender a presença da perspectiva CTS ao longo dos manuais, fez-se uma análise dos episódios por unidade temática (ver Tabela 4).

Tabela 4
Indicadores da perspectiva CTS presentes nas unidades temáticas dos manuais escolares avaliados por dimensão de análise

As unidades temáticas "Gases e dispersões" e "Transformações químicas" aparecem com maior número de indicadores presentes (seis). O fato se deve aos temas "efeito estufa" e "formação do ozono", amplamente apresentados nos manuais estudados. Um exemplo disso está expresso no 107P para o indicador A1, na unidade temática "Transformações químicas", sob o título "Formação e decomposição do ozono na estratosfera". Para esse manual,

[...] o ozono funciona como um filtro solar. As radiações ultravioletas são, normalmente, classificadas em UV-A, UV-B e UV-C por ordem crescente da respectiva energia. As radiações UV-C, as mais energéticas, são as mais perigosas, contudo não chegam à superfície da Terra [...] (107P, p. 200) (DANTAS; RAMALHO, 2015DANTAS, M. C.; RAMALHO, M. D. Novo jogo de partículas. Lisboa: Texto, 2015., p. 200).

Há evidências do indicador A5 em todas as unidades temáticas. O manual 107P, em "Gases e Dispersões, coloca: "A indústria também transforma o nitrogênio atmosférico em compostos nitrogenados, úteis ao ser humano. A produção de fertilizantes, por exemplo, permite disponibilizar nitrogénio às plantas" (107P, p. 159) (DANTAS; RAMALHO, 2015DANTAS, M. C.; RAMALHO, M. D. Novo jogo de partículas. Lisboa: Texto, 2015., p. 159). Nesse caso, o manual somente apresenta a questão, sem realizar uma discussão sobre as consequências do uso indiscriminado de fertilizantes nitrogenados no ciclo do nitrogênio, apresentando, inclusive, uma indústria de fertilizantes que dele faz parte.

Na pesquisa, o indicador A5 aparece em um maior número de episódios, corroborando as ideias apresentadas no Programa de Física e de Química A (FIOLHAIS; FESTAS; DAMIÃO, 2014FIOLHAIS, C.; FESTAS, I.; DAMIÃO, H. Programa de física e química A 10.º e 11.º anos: curso científico-humanístico de ciências e tecnologias. Lisboa: Ministério da Educação e Ciência, 2014. Disponível em: <http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/ficheiros/programa_fqa_10_11.pdf>. Acesso em: 10 out. 2018.
http://www.dge.mec.pt/sites/default/file...
). No que se refere ao conteúdo "Ondas eletromagnéticas", "um contexto que deve ser usado é o dos telescópios que captam luz vinda do espaço exterior em diferentes regiões do espetro eletromagnético, indicando exemplos" (FIOLHAIS; FESTAS; DAMIÃO, 2014FIOLHAIS, C.; FESTAS, I.; DAMIÃO, H. Programa de física e química A 10.º e 11.º anos: curso científico-humanístico de ciências e tecnologias. Lisboa: Ministério da Educação e Ciência, 2014. Disponível em: <http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/ficheiros/programa_fqa_10_11.pdf>. Acesso em: 10 out. 2018.
http://www.dge.mec.pt/sites/default/file...
, p. 25). Já Fernandes (2011)FERNANDES, I. M. B. A perspectiva CTSA nos manuais escolares de ciências da natureza do 2º CEB. 2011. 132 f. Dissertação (Mestrado em Ensino das Ciências) - Escola Superior de Educação de Bragança, Instituto Politécnico de Bragança, Bragança, 2011. obteve, nesse indicador, apenas onze ocorrências, ressaltando que, em seu estudo, os manuais avaliados estavam sujeitos aos Programas e Orientações Curriculares anteriores (PORTUGAL, 2001PORTUGAL. Ministério da Educação. Departamento da Educação Básica. Currículo nacional do ensino básico: competências essenciais. Lisboa, 2001., 2004)PORTUGAL. Ministério da Educação. Departamento da Educação Básica. Organização curricular e programas: ensino básico 1º ciclo. 4. ed. Lisboa, 2004.. Nestes, o enfoque CTS é preconizado como eixo norteador.

Para a Dimensão B, há evidências dos indicadores B2, B3 e B4. As unidades temáticas "Elementos químicos e sua organização", "Energia dos elétrons nos átomos" e "Transformações químicas" apresentam dois indicadores cada um, a saber: B2 e B4, B3 e B4, B2 e B3, respectivamente. A unidade temática "Gases e dispersões" apresentou apenas indício do indicador B3, presente no manual 104P, em um episódio na atividade laboratorial que envolve o preparo de soluções aquosas de sulfato de cobre II penta-hidratado e permanganato de potássio, sugerindo que elas podem ser usadas para pulverizar as plantas e como desinfetante, respectivamente (104P p. 175-177). Nesta atividade, tem-se apenas a aplicação das soluções, sem questionamento, por exemplo, da sua toxicidade quando preparadas com essas substâncias.

A unidade temática "Ligação química" não apresenta evidência de indicador na Dimensão B. Essa unidade é abordada nos manuais escolares de forma mais teórica, com alguns exemplos de aplicação prática e contextualização. Em todas as unidades temáticas estudadas por Fernandes (2011)FERNANDES, I. M. B. A perspectiva CTSA nos manuais escolares de ciências da natureza do 2º CEB. 2011. 132 f. Dissertação (Mestrado em Ensino das Ciências) - Escola Superior de Educação de Bragança, Instituto Politécnico de Bragança, Bragança, 2011. estão presentes o indicador B2 e, em duas, B3 e B4.

As atividades de ensino e aprendizagem (Dimensão B), com enfoque CTS, envolvem os exercícios e atividades diversificadas propostas ao longo dos Manuais e relacionadas à formação do cidadão. Por essa razão, com pouca ocorrência.

Conforme referido na seção da Metodologia, o indicador B5 foi construído a partir da leitura inicial dos manuais investigados e avaliado separadamente dos demais (Tabela 5) por não se tratar de um indicador típico CTS e, consequentemente, não apresentar uma relação da interação Ciência, Tecnologia e Sociedade. Os resultados relativos a esse indicador são expostos na tabela 5 e, posteriormente, discutidos.

Tabela 5
Quantidade do indicador B5 (Apresenta situações de aplicação no dia a dia dos novos conhecimentos) presentes em cada unidade temática)

Evidências do indicador B5 estão presentes em todas as unidades temáticas. A que aparece com o maior número de episódios (setenta e três) é "Gases e dispersões", seguida de "Transformações químicas" (cinquenta e três). A que apresentou menos evidências desse indicador foi "Tabela periódica" (quatro episódios). O manual 104P expôs o maior número de episódios do indicador B5 (sessenta e oito).

Um exemplo do indicador B5 está presente no manual 107P, nas "Questões resolvidas 2", onde tem-se que "Na tabela de informação nutricional de uma embalagem de 500 g de farinha láctea para bebés, é referido que cada 100 g dessa farinha contém 420 mg de cálcio, Ca. Calcule o número de átomos de cálcio que existem na embalagem de farinha láctea" (107P, p. 30) (DANTAS; RAMALHO, 2015DANTAS, M. C.; RAMALHO, M. D. Novo jogo de partículas. Lisboa: Texto, 2015., p. 107). A questão expõe um exemplo do cotidiano, mas não questiona a falta ou excesso de cálcio na alimentação, principalmente das crianças.

Outro episódio que evidencia o indicador B5 aparece no item "Questões e Perguntas" no manual 104P: "O gás fosgénio foi uma das primeiras armas químicas usadas na 1ª Guerra Mundial. A massa de 19,6 g deste gás ocupa o volume de 4,48 L, quando nas condições normais de pressão e temperatura (CNTP). A fórmula química para este gás é uma das seguintes, selecione-a [...]" (104P, p. 182) (SIMÕES; QUEIRÓS; SIMÕES, 2015SIMÕES, T. S.; QUEIRÓS, M. A.; SIMÕES, M. O. Há química entre nós. Porto: Porto Editora, 2015., p. 182). A questão faz referência a uma importante arma química sem fazer nenhuma menção às consequências de sua utilização nas populações em questão.

Embora a mídia divulgue alguns pontos importantes e preocupantes do desenvolvimento científico e tecnológico, tais como a produção de alimentos transgênicos, tratamento inadequado do lixo, entre outros, muitos cidadãos ainda não perceberam a importância da discussão desses temas e as consequências para as suas vidas futuras. Aliado a isso, não se deram conta de que, em função desses avanços tecnológicos, estão os grandes grupos corporativos dominantes, impondo seus interesses, instigando o consumo, sem que as necessidades da população sejam amplamente satisfeitas (PINHEIRO; SILVEIRA; BAZZO, 2007PINHEIRO, N. A. M.; SILVEIRA, R. M. C. F.; BAZZO, W. A. Ciência, tecnologia e sociedade: a relevância do enfoque CTS para o contexto do ensino médio. Ciência & Educação, Bauru, v. 13, n. 1, p. 71-84, 2007. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1516-73132007000100005>. Acesso em: 9 out. 2018.
https://doi.org/10.1590/S1516-7313200700...
).

Em síntese, pode-se afirmar que os manuais escolares avaliados evidenciam uma moderada perspectiva CTS, e menor ainda se considerada a sua presença de forma implícita. Contudo, apresentam um considerável número de episódios em que se comprova a aplicação no cotidiano dos novos conhecimentos. Uma provável interpretação é que esses resultados são uma consequência das orientações curriculares em vigor no ano letivo em estudo. Porém, a lacuna identificada alerta para a necessidade de se desenvolverem recursos complementares aos manuais com a perspectiva CTS de forma a tornar possível promover finalidades da educação em Ciências que essa abordagem potencializa.

Considerações finais

Com relação aos objetivos delineados neste trabalho, apresentam-se algumas conclusões que a investigação possibilitou, salientando que o estudo teve a finalidade de investigar a relação existente entre a proposta dos Manuais Escolares de Química do 10º ano e as dimensões da abordagem CTS. Para dar conta desse objetivo, buscou-se, por meio da análise dos manuais, responder à questão da pesquisa: De que forma a abordagem CTS está presente em Manuais Escolares de Química do 10º ano em Portugal?

Dos sete manuais escolares utilizados em Portugal no Ensino Secundário, quatro foram avaliados. Os resultados indicam que: a incorporação do enfoque CTS é pouco significativa, as relações entre a Ciência, a Tecnologia e a Sociedade não aparecem explicitamente. Mesmo nas sessões denominadas "Unidades Temáticas", o que se apresenta são tópicos de conteúdos de Química. Quanto aos científicos expostos nos citados recursos, na maioria das vezes, não são explorados de forma articulada com a Tecnologia com a qual se relacionam e o seu impacto perante a Sociedade.

Para a dimensão A (Discurso/Informação), não há evidências da ocorrência de quatro indicadores (A3, A4, A7 e A8) corroborando o Programa de Física e de Química A em vigor, sugerindo apenas que os conhecimentos científicos são abordados a partir de situações da vida cotidiana dos estudantes. Destaca-se que, no programa, há um afastamento da interdisciplinaridade como eixo principal, sendo esta de fundamental importância para o enfoque CTS, refletindo-se nos manuais escolares avaliados.

O indicador B1 (dimensão B, Atividade de Ensino/Aprendizagem) também não é evidenciado em nenhum dos quatro manuais avaliados. A justificativa se deu por meio do referido Programa, que destaca as atividades laboratoriais usadas para a familiarização com a metodologia do trabalho científico, não mencionando o envolvimento dos alunos em projetos que promovessem o pensamento crítico.

Quanto aos textos/discursos apresentados nos manuais escolares, em grande parte, apresentam os conceitos como "ciência pura" com foco no conteúdo. Nas ferramentas em questão, poucas são as atividades de ensino/aprendizagem com sugestões para explorar, compreender e avaliar as interrelações CTS. O manual escolar precisa ser o mais abrangente possível, dando orientações adequadas para quem os utiliza. Deve, também, sugerir alternativas de outros materiais e destacar que o grande objetivo da educação é a formação do cidadão. Justifica-se essa questão por não ser apenas o professor a usá-lo como aporte teórico, mas, sobretudo, o aluno, que tem nesse recurso sua principal fonte de informação.

Os manuais analisados parecem apresentar um certo ceticismo e reticência na incorporação do enfoque CTS como elemento essencial para a alfabetização científica dos estudantes. A partir do observado na investigação e para dar significado ao trabalho desenvolvido, sugere-se que os editores dos referidos recursos levem em consideração a importância dos conteúdos CTS, pois sua inclusão contribui para o desenvolvimento de valores e atitudes dos estudantes diante dos fenômenos e processos relacionados com os avanços científicos e tecnológicos. Por fim, considera-se fundamental que o professor identificado com o enfoque CTS se encoraje a produzir seu próprio material didático, deixando o uso exclusivo dos livros textos em suas práticas docentes.

Agradecimentos

Este trabalho foi financiado por Fundos Nacionais através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), I.P., no âmbito do projeto UID/CED/00194/2013.

Os autores agradecem a colaboração da Universidade do Vale do Taquari (Univates), ao Centro de Investigação em Didática e Tecnologia na Formação de Formadores (CIDTFF) da Universidade de Aveiro, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), à professora Fernanda, da Escola Secundária Homem Cristo de Aveiro.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    08 Nov 2017
  • Aceito
    08 Maio 2018
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