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Juventudes latino-americanas: desafios e potencialidades no contexto da pandemia

Juventudes latinoamericanas: desafíos y potencialidades en el contexto de la pandemia

Latin American youth: challenges and potentialities in the context of the pandemic

Resumo:

Este texto apresenta o dossiê “Juventudes latino-americanas: desafios e potencialidades no contexto da pandemia” que tem como objetivo principal visibilizar as vivências das juventudes latino-americanas durante o período da pandemia, oferecendo aportes para a resolução dos problemas revelados e aprofundados nesse tempo. O dossiê reúne dez estudos sobre cinco países da América Latina que abordam os seguintes temas: o deslocamento e a importância do tempo, do espaço e das perspectivas para o futuro entre os jovens durante a pandemia, as desigualdades educacionais reveladas e aprofundadas durante o período, especialmente, por conta do acesso desigual às Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), a vinculação precária ao mercado de trabalho e a participação política das juventudes. Por conta das importantes contribuições, consideramos o dossiê como um marco no campo de estudos sobre as juventudes latino-americanas e como um registro ímpar de como a pandemia impactou a vida das juventudes.

Palavras-chave:
Juventudes; Pandemia; América Latina

Abstract:

This text presents the dossier “Latin American youth: challenges and potentialities in the context of the pandemic” whose main objective is to make visible the experience of Latin American youth during the pandemic, offering contributions to the resolution of the revealed and deepened problems in this period. The Dossier brings together ten studies on five Latin American countries that address the themes: the displacement and importance of time, space and perspectives for the future among young people during the pandemic, inequality in the use of ICTs in the area of education, growth in precarious jobs and the political participation of youth. Due to the important contributions, we consider the Dossier as a landmark in the field of studies on Latin American youth and as a unique record of how the pandemic has impacted the lives of youth.

Keywords:
Youths; Pandemic; Latin America

Resumen:

Este texto presenta el dossier “Juventudes latinoamericanas: desafíos y potencialidades en el contexto de la pandemia”, cuyo principal objetivo es visibilizar las experiencias de los jóvenes latinoamericanos durante el período de la pandemia, ofreciendo aportes a la resolución de los problemas emergentes y que se profundizaron durante el período. El Dossier reúne diez estudios sobre cinco países de América Latina que abordan los siguientes temas: el desplazamiento y la importancia del tiempo, el espacio y las perspectivas de futuro entre los jóvenes durante la pandemia, las desigualdades educativas emergentes y persistentes durante el período, especialmente em lo referido al acceso desigual a las TICs, la precaria vinculación al mercado laboral y la participación política de los jóvenes. Consideramos el Dossier como un hito en el campo de los estudios de juventudes latinoamericanas y como un registro singular de los modos en los que la pandemia ha impactado en sus vidas.

Palabras clave:
Juventudes; Pandemia; América Latina

Introdução

A pandemia causada pela Covid-19 se alastrou pelo mundo no início do ano de 2020 e perdura até os dias de hoje (agosto de 2022). Há quase dois anos e meio convivemos com mortes e passamos a dedicar parte do tempo com o cuidado da casa, dos familiares e daqueles que ficaram doentes, atingidos diretamente ou indiretamente pelo alastramento da doença. No tempo restante, uma parte da população teve que se adaptar às Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) para trabalhar e estudar, enquanto outra parte não teve esse acesso ou ele aconteceu de forma precária. Somou-se a esse quadro, que já era ruim, outros flagelos, como desemprego, precarização do trabalho e falta de condições para o consumo do básico e de convívio social.

Os que sobreviveram terão que conviver com as consequências do período, como depressão, desemprego, déficit educacional e acirramento das desigualdades. No campo das juventudes é importante mencionar a perseguição, criminalização e repressão de jovens de setores populares ou de bairros periféricos e daqueles que se mobilizaram disputando as ruas e espaços públicos em tempos de mobilidade e atendimento restritos.

A esperança de resolução ou ao menos do amortecimento dos problemas causados pela pandemia via Estado não aconteceu como deveria. As orientações sobre como conter o avanço da doença foram confusas e, em alguns casos, contribuíram para mais mortes e doenças. A sensação é de que ficamos como um barco à deriva.

Mas vários dos problemas vividos no período da pandemia não foram bem uma novidade. Consideramos que a pandemia tornou visíveis dinâmicas sociais anteriores e produziu o surgimento de outras que persistirão. Entre as dinâmicas sociais que se tornaram visíveis pela pandemia, destacamos aqui as desigualdades sociais, que abordamos de uma perspectiva multidimensional e intersetorial. E dentre as desigualdades sociais multidimensionais, neste dossiê enfatizamos as desigualdades geracionais pela sua importância e pouco espaço de discussão.

Logo, o presente dossiê intitulado “Juventudes latino-americanas: desafios e potencialidades no contexto da pandemia” aborda a realidade das juventudes. Consideramos a juventude como uma noção dinâmica pautada por condições sociais e culturais historicamente construídas de modo situado e relacional (Vommaro 2015Vommaro, Pablo. 2015. Juventudes y políticas en la Argentina y en América Latina: tendencias, conflictos y desafios. Argentina: Grupo Editor Universitário.). Dentre os marcadores sociais que servem como delimitadores entre a fase adulta e a juventude podemos adotar “o tempo de permanência em um mesmo local de residência, o casamento, a entrada no mercado de trabalho, a posse de uma casa própria, o abandono da casa dos pais e término da escola” (Okado e Ribeiro 2015Okado, Lucas, e Ednaldo Ribeiro. 2015. Condição juvenil e a participação política no Brasil. Paraná Eleitoral (01): 53-78. https://doi.org/10.5380/pr_eleitoral.v4i1.42810.
https://doi.org/10.5380/pr_eleitoral.v4i...
, 60). Essa perspectiva se distancia do marco etário como única forma de delimitar a juventude, enfatizando o ciclo de vida.

Há que se considerar também que a juventude não é um bloco homogêneo, por isso optamos por nos referir sempre às juventudes, cientes e demarcando as diferenças entre seus segmentos. Fazem parte das juventudes, assim como da população em geral, grupos mais sujeitos a opressões sociais e com mais dificuldades de acesso a direitos, tais como: mulheres, pretas, indígenas, pobres, moradoras de periferias, deficientes e população LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, queer, intersexos, assexuais e outras possibilidades de gêneros e sexualidades dissidentes). Ponderar sobre esses marcadores sociais resulta em análises que diferenciam, por exemplo, as experiências de uma jovem negra que mora na periferia daquelas de um jovem branco morador de uma região privilegiada.

Um dos problemas no caso dos jovens é que eles têm suas vidas decididas por grupos guiados por uma visão adultocêntrica que não considera as diferenças entre as juventudes, que não compartilha das suas vivências e que, por vezes, corrobora com suas dificuldades. Justamente por conta dessa falta de espaço nas arenas decisórias é que esses grupos têm se organizado em coletivos. Os coletivos formados por jovens estudantes propõem modos de decisão mais horizontais com oportunidades para que todos os membros participem das decisões. A forma de organização horizontal seria um contraponto e uma saída para a política exercida nas arenas tradicionais consideradas pelos jovens como extremamente hierarquizadas e, por isso, pouco inclusivas e consequentemente ineficientes (Perez 2019Perez, Olivia Cristina. 2019. Relações entre coletivos com as jornadas de junho. Opinião Pública (25): 258-56. https://doi.org/10.1590/1807-01912019253577.
https://doi.org/10.1590/1807-01912019253...
; 2021Perez, Olivia Cristina. 2021. Sistematização crítica das interpretações acadêmicas brasileiras sobre as jornadas de junho de 2013. Izquierdas (1): 1-16.; Perez e Souza 2020Perez, Olivia Cristina, e Bruno M. Souza. 2020. Coletivos universitários e o discurso de afastamento da política parlamentar. Educação e Pesquisa (01): 1-19. https://doi.org/10.1590/s1678-4634202046217820.
https://doi.org/10.1590/s1678-4634202046...
). Logo, há entre as juventudes importantes recados sobre a necessidade de inclusão de grupos mais sujeitos a opressões sociais nas decisões coletivas.

Este dossiê é guiado por tais ensinamentos e tem como objetivo principal visibilizar as vivências das juventudes durante o período da pandemia. A inquietação inicial da proposta pode ser resumida na seguinte questão: como as juventudes vivenciaram o período da pandemia e quais foram seus principais desafios e formas de resistência?

Os estudos sobre as juventudes durante a pandemia já têm revelado alguns dos seus problemas e formas de superação. Dentre os problemas, foram identificados sintomas de depressão e ansiedade, que tem relação com os efeitos do tempo de exposição às telas e da inversão do sono (Vázquez et al. 2022Vázquez, Daniel A., Sheila C. Caetano, Rogerio Schlegel, Elaine Lourenço, Ana Nemi, e Andréa Slemian. 2022. Vida sem escola e a saúde mental dos estudantes de escolas públicas durante a pandemia de Covid-19. Saúde em Debate (133): 304-17. https://doi.org/10.1590/0103-1104202213304i.
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). Por outro lado, os jovens se mobilizaram politicamente reinventando e adaptando repertórios.3 3 Vázquez, Melina René Unda Lara, Jorge Benedicto, Alejandro Cozachcow, Olivia Cristina Pérez, Elisa Guaraná de Castro, Marisa Revilla Blanco et al. 2021. Acciones colectivas durante la pandemia. Informe GT Infancias e Juventudes – Clacso. Acesso em 1 ago. 2022. https://bit.ly/3sPEHFi.

Os problemas que impactam as juventudes foram agravados pelas condições das regiões em que vivem. Daí a importância dos estudos sobre as juventudes na América Latina, a partir de uma perspectiva situada, que identifica elementos únicos e comuns entre diferentes territórios e regiões. A região tem a maior desigualdade de renda do mundo, conforme relatório de desenvolvimento humano de 2019 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.4 4 Pnud. 2019. Relatório do desenvolvimento humano 2019 - Além do rendimento, além das médias, além do presente: desigualdades no desenvolvimento humano no século XXI. New York: Plaza. Acesso em 1 ago. 2022. https://bit.ly/3UiYQzo. Complementando esses dados, segundo relatório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT)5 5 Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), e Organização Internacional do Trabalho (OIT). 2020. Coyuntura laboral en América Latina y el Caribe. La dinámica laboral en una crisis de características inéditas: desafíos de política. n⁰ 23. Acesso em 1 ago. 2022. https://www.cepal.org/pt-br/node/5260. de 2020, por diversas razões, entre as pessoas que foram mais fortemente afetadas pela crise da saúde se encontram as mulheres, os jovens e os imigrantes.

Contribuindo com esse campo de reflexões, o presente dossiê reúne dez estudos que mostram de forma ampla, profunda e tocante diversos problemas que as juventudes enfrentam por conta do período da pandemia, além de oferecerem aportes para reflexões sobre como superá-los. Por conta dessas importantes contribuições, consideramos esta edição como um marco no campo de estudos sobre as juventudes latino-americanas e como um registro ímpar de como a pandemia impactou a vida das juventudes em sentido mais restrito e da própria região em sentido mais amplo.

Destacamos o alcance em termos geográficos da proposta: dos dez artigos, quatro são de pesquisadores brasileiros que refletem sobre distintas regiões do país, outro também brasileiro compara juventudes do Brasil com a realidade da Colômbia, três foram feitos por pesquisadoras argentinas, enquanto a juventude rural no México é abordada em um trabalho e as juventudes do Equador por outro. Em suma, os dez artigos reúnem reflexões sobre cinco países da América Latina, reforçando nossas semelhanças, laços e particularidades.

Detalhamos sobre os artigos que compõem o dossiê na seção seguinte. A ordem de apresentação dos textos tem relação com os temas principais dos trabalhos. Os primeiros tratam do deslocamento e da importância do tempo, do espaço e das perspectivas para o futuro entre os jovens durante a pandemia. O segundo bloco trata das desigualdades educacionais reveladas e aprofundadas durante o período, especialmente por conta do acesso desigual às TICs. A vinculação precária ao mercado de trabalho no contexto da pandemia é abordada por outro trabalho. Finalizamos a apresentação do material com um conjunto de reflexões sobre a participação política das juventudes.

Esperamos, assim, contribuir com os estudos sobre as juventudes, mas principalmente para que seus cotidianos sejam conhecidos e considerados na reformulação das instituições com vistas a amortecer as desigualdades reveladas e aprofundadas durante o período da pandemia.

Sobre os textos que compõem o dossiê

O primeiro conjunto de trabalhos do dossiê aborda o tempo, o espaço e as perspectivas para o futuro entre as juventudes durante a pandemia. O artigo que abre o dossiê, “Jóvenes ecuatorianos en pandemia: tiempo y espacio fracturados”, de autoria de Mauro Cerbino Arturi, Marco Giovanny Panchi Jima e Natalia Angulo Moncayo, trata dos efeitos das medidas para conter a pandemia entre os jovens do Equador no tocante ao seu espaço e tempo. Os achados da pesquisa mostram como as desigualdades econômicas e a falta de acesso a oportunidades, somadas a uma visão estigmatizante dos jovens, converteram essa população nas primeiras vítimas da pandemia. O texto apresenta relatos derivados de pesquisa qualitativa que mostram uma sensação entre os jovens de que o período da pandemia foi uma parte da vida perdida. Essa informação fica ainda mais importante quando consideramos que os espaços-alvo de maior proibição para conter o alastramento da doença foram também aqueles frequentados por jovens. Ainda conforme o texto, os jovens têm sentido que há poucas possibilidades de ação sobre o mundo por vários fatores que já vinham se manifestando inclusive antes da pandemia, tais como problemas de saúde mental, econômicos e por uma sensação de incerteza em relação ao futuro.

Em sentido próximo, o trabalho “Temporalidades juvenis e impactos do contexto pandêmico”, escrito por Bruna Rossi Koerich e Melissa de Mattos Pimenta, reflete sobre os impactos do contexto de pandemia nos modos como jovens experienciam o tempo. Como conclusões, a pesquisa mostra mudanças nas percepções de temporalidade em duas dimensões: na organização do tempo cotidiano e nas projeções acerca do futuro. Para alguns jovens, o tempo pareceu ter acelerado enquanto para outros, o tempo pareceu mais arrastado e entediante. Ainda conforme o trabalho, o cenário pandêmico ampliou a sensação de incertezas e inseguranças relacionadas ao futuro, seja pelo próprio temor em relação à crise sanitária, seja pelos possíveis prejuízos que esse contexto pode trazer em relação ao mercado de trabalho. Por fim, o trabalho reforça a centralidade que a instituição escolar possui nas discussões acerca das temporalidades juvenis, a partir do duplo papel que exerce na relação entre jovens e o tempo, quais sejam: contribuir na organização da rotina e propiciar construção de expectativas acerca do futuro.

Ainda no tocante ao futuro, o trabalho de María Virginia Nessi “‘Pasa que por la pandemia’: reconfiguración de proyectos laborales y educativos de jóvenes de familias hortícolas de General Pueyrredón (Buenos Aires, Argentina)” investiga a reconfiguração de projetos de juventude a partir do contexto da pandemia Covid-19 e seu condicionamento (ou não) em seus planos de vida. Como principais conclusões, o trabalho mostra que os projetos intermediários dos jovens investigados foram modificados, mas não seus planos vitais. Além disso, os jovens suspenderam alguns projetos intermediários e deram início a outros projetos alternativos que tinham sido barrados anteriormente. O trabalho estimula uma reflexão sobre o quanto a pandemia impactou a vida desses jovens, não apenas durante o período, mas na reconfiguração de seus planos a médio e longo prazos.

Ainda em diálogo com o território/espaço, David Sánchez Sánchez e Yesica Tejeda Aguayo escreveram o trabalho “Entre cumplir y aprender: vivencias de juventudes rurales en educación superior durante la pandemia” que explora a condição da juventude rural durante a pandemia de Covid-19 entre jovens estudantes do município de Cuquío, em Jalisco, México. O artigo mostra que a juventude rural apresentou uma série de desafios particulares no decorrer da pandemia ligados à desigualdade e às desvantagens por viverem no território rural. A pandemia é apresentada como um fenômeno que acentua as desigualdades já existentes nas áreas rurais, tornando visível como os jovens têm enfrentado os desafios de sustentar a educação de forma virtual, desafiando as deficiências presentes em suas famílias e comunidades. O artigo termina chamando atenção para a necessidade de que as instituições e as políticas públicas reconheçam, acompanhem e valorizem a voz e a vivência da juventude em momentos críticos como os vividos durante a pandemia.

Na sequência, o artigo “Reflexos do isolamento social no período pandêmico para juventude”, de Ricardo Gonçalves Severo, analisa os impactos da pandemia em jovens estudantes e egressos do ensino médio. Como resultados, foram percebidas mudanças de padrões de sociabilidade, via de regra com percepções negativas sobre o atual momento, dificuldades na alteração das relações presenciais para online; no aspecto educacional foram revelados sentimentos de isolamento, além das dificuldades financeiras. O autor também constatou diferença de focos narrativos conforme um recorte de classe, que não exclui o compartilhamento de preocupações entre os(as) jovens entrevistados, mas impacta na importância de cada tema abordado.

Embora todos os artigos tratem de algum modo das desigualdades digitais reveladas e aprofundadas durante a pandemia, há um conjunto de artigos no dossiê que aborda especificamente o tema, como é o caso do artigo “Inclusão digital e desempenho escolar no contexto da pandemia: uma análise comparativa entre Brasil e Colômbia”, de Jesus Izquierdo e Maria de Assunção Lima de Paulo. Os autores analisam alguns aspectos da relação entre políticas públicas de inclusão digital e desempenho escolar no contexto da pandemia. A pesquisa conclui que durante o tempo da pandemia a relação dos jovens com a escola foi fragilizada. E, ainda, a necessidade do ensino remoto colocou as políticas de inclusão digital como uma tarefa que deve ser resolvida com urgência.

No mesmo sentido, o artigo “Estrategias sociales y educativas para enfrentar la ‘continuidad pedagógica’: jóvenes estudiantes, desigualdad y apropiaciones tecnológicas en Villa María, Argentina, durante la pandemia Covid-19”, de Daiana Monti e Gonzalo Assusa, analisa a relação entre a configuração da desigualdade social, o acesso e o uso das TICs na educação durante a pandemia. O trabalho mostra que há uma desigualdade ligada à especificidade da escola (uso, acesso, apropriação das tecnologias), pois, anteriormente, há desigualdades no acesso aos direitos fundamentais (moradia, alimentação, trabalho). Assim, o trabalho reafirma a análise da pandemia como um continuum que revela e aprofunda desigualdades.

Um dos impactos importantes que a pandemia teve sobre a vida dos jovens foi o agravamento da precarização das condições de trabalho, tema abordado no artigo “O trabalho de jovens entregadores por aplicativos em tempos de pandemia”, escrito pelas pesquisadoras Marisa Feffermann, Lila Cristina Xavier Luz e Maria D’alva Macedo Ferreira. Conforme as autoras, o contexto de incertezas em relação ao trabalho exacerba nos jovens a condição da uberização e alternativas como os denominados “bicos” – formas para encontrar sobrevivência. A falta de vínculo empregatício, perda de direitos e acordos que levam mais em conta as necessidades do mercado, representam uma fonte intensa de sofrimento físico e psicológico para esses jovens.

O último bloco de textos deste dossiê trata das resistências políticas engendradas por jovens ativistas. Nesse sentido, o trabalho desenvolvido pelos coordenadores do dossiê, Olivia Cristina Perez e Pablo Vommaro, aborda as “Pautas da juventude estudantil no Brasil e na Argentina durante a pandemia”, especificamente, as notícias e postagens veiculadas durante a pandemia por duas grandes organizações de estudantes no Brasil e na Argentina: a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a Federação Universitária Argentina (FUA). Os resultados da pesquisa mostram semelhanças e diferenças na forma como as duas organizações perceberam os temas mais importantes em seus países durante o período. Enquanto na Argentina, mesmo durante a pandemia, as notícias, em sua maioria, versavam sobre o resgate da memória da ditadura, no Brasil a preocupação maior foi com a renda e as vidas ameaçadas pela má condução da pandemia por parte do governo Bolsonaro. No que diz respeito às semelhanças, as duas organizações expressaram preocupação com as desigualdades de gênero, reafirmando a importância dessa agenda nos últimos anos.

O dossiê é encerrado com o artigo da Melina Vázquez intitulado “Pandemia, políticas públicas y participación. Estrategias y modos de promoción de la participación juvenil desde ámbitos socio-estatales nacionales y locales en Argentina”. O trabalho analisa uma das estratégias adotadas como modo de gestão pública na Argentina: a realização de conversas públicas online, ou seja, formas de interações entre agentes estatais nacionais e subnacionais e jovens participantes por meio de plataformas sociodigitais. O trabalho mostra, por um lado, que as conversas organizadas durante a pandemia buscaram construir pontes e estabelecer diálogos com os jovens, ou seja, com o grupo social que as políticas públicas buscam representar. Por outro lado, o estudo permitiu reconhecer articulações entre essas intervenções e o acúmulo de desigualdades sociais. Escolhemos esse artigo para encerrar o dossiê porque ele aponta mecanismos de intervenção via políticas públicas construídas em diálogo com os jovens – aqui entendidas como uma das formas de amortizar as desigualdades reveladas e acirradas pela pandemia.

Considerações finais

Gostaríamos de destacar algumas contribuições do dossiê “Juventudes latino-americanas: desafios e potencialidades no contexto da pandemia”. Em primeiro lugar, os textos mostram que os problemas enfrentados pelas juventudes durante a pandemia não são apenas um retrato de uma época: as desigualdades e problemas revelados e acirrados durante o período são anteriores à pandemia e, provavelmente, permanecerão mesmo depois do fim da doença.

Em segundo lugar, a despeito de certa visão biológica da pandemia que foca nos problemas relacionados à saúde, os trabalhos ressaltam seu caráter social e múltiplo, dado que o alastramento da doença afetou diversos aspectos da vida dos jovens. Ainda reconhecendo o caráter amplo da pandemia, os trabalhos mostram as diversas nuances das desigualdades reveladas e aprofundadas durante o período, focando, especialmente, nas desigualdades econômicas, educativas e digitais.

Sobre esse último ponto, é interessante ressaltar que todos os artigos de alguma forma abordaram as desigualdades digitais aprofundadas durante o período. Houve nesses estudos uma tendência em relacionar a falta ou dificuldade de acesso às TICs com outros aspectos das desigualdades sociais. Essa, aliás, deve ser uma agenda de pesquisa importante no campo das juventudes.

Há também em comum nos textos uma certa constatação de que os governos não souberam amenizar os problemas enfrentados pelas juventudes durante a pandemia. Parte dos trabalhos mostra como diversas soluções adotadas para a pandemia foram transferidas do coletivo para o individual. Conforme essa chave individualizante o responsável pelo contágio e pelo alastramento das doenças foram especialmente os jovens guiados por um comportamento egoísta. Essa culpabilização individual teria relação com o sistema neoliberal, que transfere para os indivíduos o trato com a questão social.

Como forma de resposta adequada, parte dos trabalhos destacaram a diversidade das juventudes e a necessidade de que todas elas sejam consideradas e ouvidas nas decisões públicas. Nesse sentido, apostando no coletivo, encerramos este dossiê com o convite para que as(os) jovens sejam incluídas(os) como protagonistas nas principais decisões coletivas. Consideramos que eles e elas têm importantes ensinamentos sobre como sair dessa crise.

  • 3
    Vázquez, Melina René Unda Lara, Jorge Benedicto, Alejandro Cozachcow, Olivia Cristina Pérez, Elisa Guaraná de Castro, Marisa Revilla Blanco et al. 2021. Acciones colectivas durante la pandemia. Informe GT Infancias e Juventudes – Clacso. Acesso em 1 ago. 2022. https://bit.ly/3sPEHFi.
  • 4
    Pnud. 2019. Relatório do desenvolvimento humano 2019 - Além do rendimento, além das médias, além do presente: desigualdades no desenvolvimento humano no século XXI. New York: Plaza. Acesso em 1 ago. 2022. https://bit.ly/3UiYQzo.
  • 5
    Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), e Organização Internacional do Trabalho (OIT). 2020. Coyuntura laboral en América Latina y el Caribe. La dinámica laboral en una crisis de características inéditas: desafíos de política. n⁰ 23. Acesso em 1 ago. 2022. https://www.cepal.org/pt-br/node/5260.
  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação.

Referências

  • Okado, Lucas, e Ednaldo Ribeiro. 2015. Condição juvenil e a participação política no Brasil. Paraná Eleitoral (01): 53-78. https://doi.org/10.5380/pr_eleitoral.v4i1.42810
    » https://doi.org/10.5380/pr_eleitoral.v4i1.42810
  • Perez, Olivia Cristina. 2019. Relações entre coletivos com as jornadas de junho. Opinião Pública (25): 258-56. https://doi.org/10.1590/1807-01912019253577
    » https://doi.org/10.1590/1807-01912019253577
  • Perez, Olivia Cristina. 2021. Sistematização crítica das interpretações acadêmicas brasileiras sobre as jornadas de junho de 2013. Izquierdas (1): 1-16.
  • Perez, Olivia Cristina, e Bruno M. Souza. 2020. Coletivos universitários e o discurso de afastamento da política parlamentar. Educação e Pesquisa (01): 1-19. https://doi.org/10.1590/s1678-4634202046217820
    » https://doi.org/10.1590/s1678-4634202046217820
  • Vázquez, Daniel A., Sheila C. Caetano, Rogerio Schlegel, Elaine Lourenço, Ana Nemi, e Andréa Slemian. 2022. Vida sem escola e a saúde mental dos estudantes de escolas públicas durante a pandemia de Covid-19. Saúde em Debate (133): 304-17. https://doi.org/10.1590/0103-1104202213304i
    » https://doi.org/10.1590/0103-1104202213304i
  • Vommaro, Pablo. 2015. Juventudes y políticas en la Argentina y en América Latina: tendencias, conflictos y desafios Argentina: Grupo Editor Universitário.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2022
  • Aceito
    22 Ago 2022
  • Publicado
    09 Jan 2023
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