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“Tornar-se mãe”: Maternidades contemporâneas no País Basco

“Becoming mother”: Contemporary maternities in the Basque Country

IMAZ MARTÍNEZ, Elixabete. Convertirse en madre:. etnografía del tiempo de la gestación. Madrid: Ediciones Cátedra, 2010

Convertirse en madre: etnografía del tiempo de la gestación, da antropóloga Elixabete Imaz Martínez, aborda a maternidade contemporânea através de uma densa etnografia do período da gestação, realizada com mulheres gestantes do País Basco que estavam em processo de se tornarem mães pela primeira vez. Através da análise e da interpretação de diferentes dimensões afetivas, corporais, de relacionamento, de trabalho e emocionais das mulheres entrevistadas, a autora busca aceder ao complexo, contraditório e, muitas vezes, conflitivo lugar que o exercício da maternidade constitui para as mulheres bascas contemporâneas.

Nesse sentido, a proposta geral do livro é abordar o “tornar-se mãe” como um processo através do qual se gesta, simultaneamente, um novo ser humano e uma mãe, isto é, as mulheres do estudo de Imaz não apenas gestam, mas são também, elas mesmas, “mães em gestação”. O livro é resultado da pesquisa de doutorado que Elixabete Imaz Martínez realizou em Antropologia Social na Universidad del País Vasco, cuja conclusão se deu em 2008, sob a orientação de Tereza Del Valle, uma das pioneiras da antropologia feminista na Espanha. A obra tem 420 páginas e está dividida em seis capítulos, mais um apêndice metodológico que contém o perfil das mulheres entrevistadas e o roteiro das entrevistas.

Considerando que a maternidade é uma das representações mais fortes da cultura ocidental, cujos sentidos desdobram-se num emaranhado de imagens e valores associados ao “feminino normativo”, a autora busca aprofundar a compreensão acerca de como essas imagens e valores se realizam em “maternidades únicas e singulares de mulheres concretas”. Seu intuito é mostrar como as mulheres bascas contemporâneas enfrentam e agenciam essas representações historicamente construídas, as quais elas mesmas têm incorporadas em sua identidade e socialização, mas que atualmente entram em disputa e conflito com outras definições que elas têm de si mesmas. Imaz considera que o momento mais oportuno para apreender essas tensões é o período em que se adquire a consciência de ser mãe pela primeira vez, isto é, durante a gestação e o nascimento do primeiro filho ou filha. Assim, em sua pesquisa entrevistou 17 mulheres, a maioria entre 28 e 31 anos de idade, dentre as quais haviam casadas, solteiras, lésbicas, heterossexuais, urbanas e interioranas, todas elas grávidas pela primeira vez.

Imaz também chama a atenção para uma ausência de investigações antropológicas acerca das metáforas e imagens através das quais se interpreta a procriação no Ocidente, e afirma que isso se deve ao fato de que as consideramos como autoevidentes. Assim, mesmo considerando que existem diversas formas de se viver e significar a maternidade na contemporaneidade, Imaz optou por dedicar sua investigação precisamente ao modelo “normal” de maternidade ocidental: aquela que resulta do parto, e na qual convergem o fisiológico, o genético, o social e o jurídico – sendo o “normal” aqui entendido na dupla acepção do termo, como estatisticamente majoritário e como mais próximo do normativo. O desafio metodológico que permeia todo o livro é, então, o de desentranhar processos sociais próprios da sociedade de pertencimento da autora a partir de uma perspectiva de estranhamento de situações cotidianas e próximas.

Para realizar sua investigação, Elixabete Imaz Martínez valeu-se de instrumentos clássicos da antropologia, tanto no trabalho de campo recorrendo à perspectiva biográfica por meio de entrevistas (organizadas em sessões antes e depois do parto) e observação participante (aproximando-se tanto do que as mães dizem quanto do que elas fazem); quanto na elaboração de referências teóricas, recorrendo à teoria da dádiva e dos ritos de passagem; além de servirse do corpus teórico mais recente relacionado à antropologia do gênero.

Para adentrar no tema a autora recorre, nos capítulos iniciais, às contribuições tanto da historiografia quanto da crítica feminista. O decorrer do livro, contudo, ampara-se abundantemente e, sobretudo, na experiência concreta das mulheres e no diálogo com as teorias antropológicas. Assim, no capítulo 1 - Una historia de la maternidad y de su ejercicio, Imaz procede a uma desconstrução da “maternalização da mulher” mostrando como, de meados do século 18 a meados do século 20, a maternidade vai se transformando no centro da identidade feminina, ao mesmo tempo em que é tomada como algo que deve ser melhorado, instruído e tutelado pelo estado, passando a ser alvo de discursos médicos, filosóficos, políticos e religiosos que constroem uma imagem de mãe cujos elementos constituem até hoje os referentes da “boa mãe”: amor incondicional reiteradamente expresso; individualização dos cuidados com as crianças, que antes eram compartilhados; a exclusividade da dedicação feminina aos trabalhos maternos e a moralização das práticas de criação e cuidado – tudo isso em um contexto marcado pela exclusão das mulheres da vida pública e da participação política, concomitante à invenção da infância e do instinto materno.

No capítulo 2 – Lecturas feministas de la maternidad, Imaz apresenta o interesse feminista pela maternidade, detendo-se principalmente em três autoras da segunda onda do feminismo – Simone de Beauvoir, Sulamith Firestone e Adrienne Rich – as quais converteram as questões reprodutivas em seu principal campo de batalha produzindo importantes reflexões sobre a sujeição das mulheres, a maternidade e o lugar que esta ocupa ou pode ocupar na emancipação feminina. Imaz destaca a influência de Beauvoir no feminismo francês, em autoras como Marie-Blanche Tahon, Françoise Héritier e Nicole Mathieu, que localizam no controle masculino sobre a capacidade reprodutiva feminina a origem da sujeição universal das mulheres. Imaz também contrasta o feminismo radical de Firestone com o feminismo maternalista de Adrienne Rich, mostrando que, enquanto a primeira propôs o fim da maternidade biológica por meio da reprodução tecnológica como condição para a liberação das mulheres, a segunda inaugurou uma linha de pensamento oposta que vê na maternidade uma fonte de prazer, conhecimento e poder especificamente femininos. A autora também discute hipóteses feministas que postulam a maternidade como origem da dominação masculina, em autoras como Sherry Ortner, Nancy Chodorow e Michele Rosaldo, e conclui, fazendo uma crítica à naturalização da maternidade nos discursos das ciências sociais, mostrando que procriação, vínculo materno-infantil e cuidados com os filhos não podem ser tomados como dados unicamente biológicos.

No capítulo 3 – Sobre el deseo de convertirse en madre, a autora inicia sua indagação a respeito dos significados atribuídos à descendência e à maternidade pelas mulheres bascas contemporâneas e sobre as motivações que as levam a querer ter filhos. Imaz vai mostrando que o “tornar-se mãe”, longe de ser a atualização de uma essência feminina latente ou oculta, é um processo complexo de aprendizagem e negociação de significados. Através da análise de depoimentos, ela mostra como o desejo de ter filhos é um desejo difuso, não objetificado, variável, vinculado a valores e imaginários diversos, e que nem sempre busca a sua realização. A autora analisa também o sentido que a maternidade adquire dentro das trajetórias de vida das mulheres, mostrando que, com o desfazimento do encadeamento noivado-matrimônio-maternidade, o “tornar-se mãe” é que se transformou em um ponto de inflexão no itinerário feminino, como uma marca que rearticula toda a biografia da mulher. Nesse sentido também é que através do ingresso na maternidade (e também na paternidade) se dá o abandono da juventude e ingresso na vida adulta para as mulheres estudadas.

O capítulo 4 – El proceso de convertirse en madre apresenta um dos principais argumentos da autora. Longe de considerar o vínculo materno-filial como espontâneo, evidente ou como algo que se dá imediatamente ao parto, Imaz o apresenta como um processo complexo. Segundo a autora, durante a gestação, ou até mesmo antes, a mulher vai transitando por uma série de etapas que a conduzem a reconhecer-se e a ser reconhecida pelos demais como “mãe de um filho ou filha”. O processo de incorporação de uma nova categoria social se estende no tempo e culmina com o reconhecimento de si mesma como mãe de uma criança que ela reconhece como sua. A conclusão do capítulo culmina, então, com a ideia de que todo filho ou filha, independente de suas origens biológicas, é adotado, ou seja, no processo de tornar-se mãe existe um trabalho intenso de identificação e aceitação de um bebê concreto como filho ou filha.

Um dos pontos fundamentais que ela apresenta nesse capítulo é a centralidade, para as mulheres entrevistadas, da ideia da maternidade como um “direito de escolha”. Aqui o mandato individualista moderno impregna o discurso: considera-se legítimo que as pessoas escolham se querem ou não ter filhos, o momento de fazê-lo, a quantidade etc. Em contrapartida, a maternidade se afigura como parte do planejamento da vida, de modo que a maternidade boa é aquela que é “planejada”. A estabilidade econômica e laboral aparece como um pré-requisito fundamental para a decisão de ser mãe, pois se considera fundamental poder garantir um entorno estável que proporcione suporte afetivo e material para os filhos. Problemas nesse aspecto levam, em geral, a um adiamento consciente da decisão de ter filhos. Além disso, Imaz mostra que a busca deliberada pela gravidez sempre se dá em meio a dúvidas, medos e incertezas. A confirmação da gravidez através de exames é apenas uma das etapas pelas quais a gestante passa, sendo reiterada aos poucos através de marcos sucessivos que vão dando materialidade ao projeto de maternidade: compras de roupinhas de bebê, o receber presentes, o comunicar aos parentes e amigos, os primeiros movimentos do feto, ecografias e exames médicos em geral e cursos para gestantes etc.

No capítulo 5 – La vivencia del cuerpo, a autora analisa algumas interpretações acerca do corpo grávido através de três diferentes “metáforas do corpo materno” e seus correlatos a respeito do feto: a gravidez como fusão (a simbiose mãe-filho), a gravidez como invasão (o feto parasita) e a gravidez como corpo dividido (o feto-indivíduo). Cada uma delas funciona como metáfora para a relação mãe-filho inclusive depois do nascimento. Elixabete Imaz Martínez mostra que, embora o modelo do corpo dividido seja o dominante na atualidade, essas imagens se sobrepõem e se combinam no imaginário, sendo que por trás delas está a concepção do corpo materno como corpo-para-o-outro: aquele que existe graças a, se perde por culpa de, ou se dilui mediante um Outro, que é o feto. A autora aponta também a desorientação e a vulnerabilidade que as mulheres sentem diante do sistema médico, o que as leva a acatar a maior parte das decisões e indicações feitas pelos médicos, sendo que um medo profundo da dor do parto aparece como algo que as acompanha desde a infância.

No sexto e último capítulo, intitulado Efectos de la maternidad en los diferentes ámbitos vitales, Imaz trata das transformações na vida das mulheres bascas contemporâneas em decorrência do nascimento da criança: as mudanças nas redes de sociabilidade, o novo protagonismo da família extensa, as mudanças na relação do casal, os dilemas da amamentação e as dificuldades de retorno e conciliação da maternidade com o trabalho. A autora mostra que o protagonismo das mulheres na decisão de ter um filho acaba conduzindo-as a se sentirem mais responsáveis em garantir os cuidados e o bem-estar da criança. Contudo, essa disponibilidade adquire um caráter de satisfação na medida em que é considerada não como algo imposto, mas sim decidido, mesmo que resulte em prejuízo em outras áreas. O abandono do trabalho ou sua redução ou adiamento, por exemplo, são percebidos menos como sacrifício e mais como um exercício de autonomia pessoal. Por outro lado, as mulheres mencionam que o nascimento da criança e os cuidados dispensados a ela implicam em maior aproximação e envolvimento da mulher com a esfera doméstica, ou seja, elas acabam assumindo o cuidar do bebê e o cuidar da casa como tarefas contíguas.

Por fim, o livro conclui detendo-se na progressiva divergência entre o modelo normativo de maternidade e as expectativas vitais que as mulheres colocam para si mesmas. A sensível etnografia de Imaz revela que as mulheres bascas contemporâneas falam da maternidade a partir de uma concepção altamente exigente que ainda coincide grandemente com o modelo de “maternidade intensiva”, recebido das gerações anteriores: disponibilidade absoluta, a mãe como responsável prioritária do bem-estar presente e futuro da criança e a centralidade da criança em detrimento de qualquer outra dimensão vital. Contudo, ao mesmo tempo em que esse modelo de maternidade é percebido como o mais adequado para a criança, ele é tido como impossível de cumprir e como frustrante para o desenvolvimento pessoal feminino – o que resulta em ambivalência, culpabilidade e sensações contraditórias por parte das mulheres.

Apesar da persistência desse modelo de cuidado intensivo, Imaz insiste em mostrar que a maternidade está mudando e que as mulheres se sentem protagonistas dessas mudanças. Assim, à diferença das gerações anteriores, a maternidade não aparece como o único destino possível para as mulheres. Muito embora elas não cheguem a romper com todos os clichês e papéis tradicionais, elas consideram que renunciar à maternidade devido às limitações que esta impõe é uma opção possível para as mulheres contemporâneas. Elas referemse também às transformações na paternidade, percebendo seus companheiros mais presentes não só na vida dos filhos, mas também na gravidez e no parto e trazem à tona reflexões sobre o cuidado e sobre a dupla jornada de trabalho feminino, na qual as mulheres assumiram responsabilidades de trabalho sem liberar-se das tradicionais responsabilidades domésticas. Elas mostram-se também abertas a novas formas familiares que estão surgindo no cenário atual, como aquelas articuladas com a reprodução assistida, a adoção, casais homossexuais ou a maternidade “independente”.

Vale assinalar que a reflexividade e a introspecção que a perspectiva biográfica impõe ao estudo rompem com os clichês da maternidade como experiência não comunicável, íntima, individual. De modo eloquente e perspicaz, Imaz enfatiza que as mulheres que se convertem em mães não podem ser consideradas passivas ou submissas diante dos modelos e estruturas sociais, mas devem ser consideradas como atrizes que desenvolvem táticas e estratégias a partir de circunstâncias pessoais e sociais. Com isso, ela afirma que a maternidade não é apenas um elemento construído historicamente, mas está em história e faz história. O livro é uma importante contribuição não só para os estudos de gênero e para os estudos acerca das maternidades contemporâneas, mas cumpre o importante papel de tirar o tema do silêncio e da privacidade, convertendo-a em debate e reflexão social. Talvez resida aí o amplo interesse que seu trabalho tem despertado no contexto espanhol, não só nos círculos acadêmicos, mas também na mídia e na sociedade em geral.

Para as/os estudantes e pesquisadoras/es brasileiras/os o livro de Elixabete Imaz Martínez é, sem dúvida, um rico subsídio para a elaboração de estudos comparativos. Considerando as maternidades brasileiras a partir das experiências de mulheres de camadas médias urbanas – sendo, estas últimas, objeto de minha pesquisa de doutorado – pode-se perceber que, de modo geral, há muitas semelhanças com relação às mulheres bascas do estudo de Imaz. Um dos aspectos da análise da autora que considero muito frutífero para pensarmos o caso brasileiro é que aqui também é possível perceber as maternidades contemporâneas se constituindo como “pontos de inflexão” que rearticulam as biografias femininas. Esses pontos de inflexão se tornaram mais prontamente perceptíveis através da emergente blogosfera materna que cotidianamente registra os movimentos e dilemas que compõem esses intensos processos de subjetivação que Imaz chamou, muito acertadamente, de “converter-se em mãe”. Nesse sentido, as mulheres brasileiras também têm se posicionado cada vez mais como sujeitos ativos de suas próprias histórias.

Contudo, cabe ressaltar que no Brasil, embora também haja muita desorientação e vulnerabilidade diante do sistema médico, vê-se emergir aqui, justamente em torno do parto e nascimento, um vigoroso ativismo materno articulado principalmente a partir das redes sociais digitais, mas também pela composição de diversos espaços de discussão e debates em rodas de gestantes e diversos grupos de militância engajados com a transformação de realidades locais, que inclui. Tais debates têm incluído não apenas os temas clássicos da gravidez, parto, pós-parto imediato e amamentação, mas também a criação dos filhos ao longo da vida, a participação do(a) companheiro(a) nessa criação, a ampliação das licenças-maternidade e paternidade, as articulações da maternidade com a carreira profissional, o aborto e os direitos sexuais e reprodutivos, a judicialização das violências institucionais no parto e um crescente envolvimento com políticas públicas de saúde materna e perinatal, dentre outras tantas pautas de reivindicação que evidenciam uma crescente (re)politização da maternidade conduzida pelas próprias mulheres. Uma (re)politização que tende a aproximar e embaralhar, cada vez mais, certos domínios que o pensamento ocidental moderno historicamente manteve separados: a ação política e a vida pessoal, o público e o privado, a maternidade e a paternidade, a natureza e a cultura. Uma nova forma de militância que, à semelhança dos novos movimentos sociais que vêm surgindo no mundo todo, não separa a vida das suas formas, mas que se constitui enquanto “forma de vida”.

Descrever e analisar essas maternidades emergentes no mundo contemporâneo constitui um grande desafio para aqueles/as que se dedicam a acompanhá-las e apreendê-las. Acostumados que estamos a abordar o tema da maternidade pelo viés do maternalismo de estado, da puericultura medicalizadora ou da denúncia da maternidade como locus de opressão das mulheres, precisamos, urgentemente, renovar nosso vocabulário teórico para melhor apreender as transformações em estão em curso. Nesse sentido, “tornar-se mãe” é uma poderosa metáfora elaborada por Imaz que muito contribuirá para compreendermos a maternidade enquanto processo, captando seus movimentos, devires e novas configurações.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2014
  • Aceito
    12 Jan 2015
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