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A família como uma realização da eticidade democrática segundo Honneth: Para além do modelo androcêntrico e do naturalismo de Hegel

The family as a realization of democratic ethicity according to Honneth: Beyond the androcentric model and the naturalism of Hegel

Resumo:

Este artigo tenciona apresentar a concepção de família como uma esfera da eticidade democrática segundo Axel Honneth, específicamente, a partir da reconstrução socionormativa desenvolvida em Das Recht der Freiheit. Honneth reconstrói como a mulher por meio da inserção no mercado de trabalho conquistou reconhecimento e rompeu com um modelo androcêntrico de divisão das tarefas familiares; analisa a transição do modelo tradicional de família baseado na marginalização da figura feminina para um modelo democrático baseado na parceria e na solidariedade. A reconstrução do modelo normativo de democracia familiar opõe-se à naturalização hegeliana das relações familiares. Honneth entende que a família na sua composição e na sua mudança tem uma base fortemente cultural, de modo que ela pode ser legitimamente composta por casais heterossexuais, homossexuais e por filhos adotivos.

Palavras-chave:
Democracia; Eticidade; Família; Hegel; Honneth

Abstract:

This paper intends to present the concept of family as a sphere of democratic ethicity according to Axel Honneth, specifically, from the social-normative reconstruction developed in Das Recht der Freiheit (The freedom's right). Honneth reconstructs how the woman through the insertion in the labor market has won recognition and broke with an androcentric model of division of family tasks; analyzes the transition from the traditional model based on the marginalization of the female figure for a democratic model based on partnership and solidarity. The reconstruction of the normative model of democratic family is opposed to Hegelian naturalization of family relationships. Honneth understands that the family in its composition and its change has a strong cultural base, so that it can be legitimately composed by heterosexual couples, gay and adopted children.

Keywords:
Democracy; Ethicity; Family; Hegel; Honneth

Introdução - diagnóstico: o papel da mulher na divisão das funções familiares

O objetivo precipuo deste artigo consiste em reconstruir o conceito de família em O direito da liberdade de Honneth (2015a)HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015a. dentro do escopo de uma eticidade democrática que pressupõe o redimensionamento social e cultural das relações familiares e, especialmente, da figura feminina, apontando para a superação de padrões androcêntricos e de matizes naturalizantes que revestem o núcleo conservador das famílias contemporâneas que defendem a centralidade do homem na condução das relações familiares, o primado da procriação como a razão de ser da união familiar e a consequente abominação das relações que não sejam heterossexuais. Para tal, metodologicamente a pesquisa apoiar-se-á numa investigação conceitual interdisciplinar que perpassa o exame de obras de cunho filosófico, sociológico e antropológico, haja vista a própria natureza e complexidade do tema em questão.

A hipótese central de trabalho é que apenas um modelo democrático das relações familiares tal como o proposto por Honneth é capaz de romper com o androcentrismo tornando, consequentemente, as relações conjugais simétricas e abertas ao reconhecimento de subjetividades comumente marginalizadas como é o caso daqueles indivíduos que lutam pelo direito à união homoafetiva. Parte-se aqui, portanto, da conjectura central que Honneth expande e suplanta o modelo naturalizado de família proposto por Hegel na sua Rechtsphilosophie por um modelo cultural e socializante baseado na triangularidade das relações familiares, não importando se, por exemplo, a família seja composta por um filho adotivo e por pais do mesmo sexo, desde que tal relação seja embasada na reciprocidade e na cooperação (Partnerschaft) entre os seus membros que devem garantir mutuamente espaços simétricos do ponto de vista de direitos e deveres.

De um ponto de vista da antropologia cultural as relações familiares são perpassadas por algumas nuances que escapam o modelo patrilinear burguês-cristão estruturado no trinômio pai-mãe-filho. Isso pode ser constatado, por exemplo, nas observações de Malinowski publicadas em 1927 no seu livro Sex and repression in savage society sobre as idiossincrasias da familia matrilinear de certas comunidades das ilhas do noroeste da Melanésia na Nova Guiné (Oceania). Diferentemente do modelo patrilinear, os nativos das ilhas Trobriand estabeleciam suas relações intrafamiliares e de parentesco a partir da figura da mãe e não a partir da figura do pai: relações de poder, sucessão e herança são antevistas tendo como ponto de referência a linhagem feminina.

Isto significa que o rapaz ou a moça pertencem à família, ao clã e à comunidade da mãe. O rapaz sucede nas dignidades e na posição social ao irmão da mãe e não é do pai, mas do tio materno ou da tia materna, respectivamente, que a criança herda suas posses. […]. Para começar, o marido não é considerado pai das crianças no sentido em que usamos esta palavra; fisiologicamente, nada tem a ver com o nascimento delas, de acordo com as ideias dos nativos, que ignoram a paternidade física. Segundo a crença dos nativos as crianças são inseridas no útero materno como minúsculos espíritos, geralmente pela ação do espírito de uma parenta morta da mãe. […]. O pai é assim um amigo amado, benevolente, mas não é reconhecido como parente dos filhos. […]. O irmão da mãe é que se acha investido de autoridade sobre os filhos. […]. O comportamento da mulher em relação ao marido não é inteiramente servil. Ela tem suas próprias posses e sua esfera de influência, privada e pública. Nunca acontece que os filhos vejam a mãe maltratada pelo pai. (Malinowski, 1973MALINOWSKI, Bronislaw. Sexo & repressão na sociedade selvagem. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1973., p. 23-24).

Já de um ponto de vista filosófico quando se analisa a história pode-se depreender que de um modo geral o tema em torno do status da mulher no que concerne à divisão do trabalho e ao poder nas relações intrafamiliares sofre de certo retrocesso e tem sido raramente explorado dentro da filosofia, possivelmente devido a irrisória e marginalizada atenção dada à figura feminina. Kant, por exemplo, no contexto do século 18 em Antropologia de um ponto de vista pragmático (2006, p. 201) considerava que a mulher tinha um papel fundamental no progresso do gênero humano através da conservação da espécie mediante a procriação e por meio do refinamento cultural do homem através da sua sensibilidade; ou seja, um “sexo frágil” que refina o “sexo bruto”.

No contexto do século 20, Rawls em Ideia de razão pública revista, parece dar um passo além quando considera a figura feminina do ponto de vista não apenas da procriação e do refinamento moral do homem, mas ressignificando-a de um ponto de vista da sua teoria da justiça; parte do pressuposto que a família na medida em que prepara o filho culturalmente através da socialização e da educação para sociedade, é um componente mesmo que indireto da razão pública, e que as esposas devem ter enquanto cidadãs os mesmos direitos que esposos. A partir disso, opõe-se à divisão androcêntrica e tradicional de tarefas intrafamiliares onde a mulher tem a incumbência exclusiva de cuidar dos filhos e do âmbito doméstico marginalizando-a de esferas mais ampliadas e restritas ao homem. Concorda com J. S. Mill que o modelo familiar tradicional constitui uma “escola de autoritarismo masculino” e, a partir disso, preceitua que sejam instituídas leis objetivando reparar os abusos sofridos pela mulher, dentre elas, a remuneração do trabalho das esposas na criação dos filhos “[…] habilitando-a a uma parcela igual dos proventos que o marido recebe durante o casamento. Em caso de divórcio, ela deve ter uma parcela igual no valor acrescido dos bens da família durante o período” (Rawls, 2001RAWLS, John. O direito dos povos, seguido de A ideia de razão pública revista. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 214).

O problema é que Rawls trata apenas en passant dessa hipótese e ele mesmo considera difícil a implantação desse tipo de normatividade porque dependeria de cenários conflituosos no legislativo e no judiciário, já que os princípios fundamentais de justiça garantem apenas prerrogativas mais genéricas como a igual liberdade, e não a sua efetivação. Honneth, a partir de seu método reconstrutivo e de sua inflexão social, é mais exitoso que Rawls neste aspecto: ele se propõe a considerar a família como uma esfera ética, observa suas transmutações do modelo tradicional para o modelo democrático e foca nas dinâmicas históricas e sociais de luta por reconhecimento ao invés de abstrair-se em princípios verticalizados.1 1 A metodologia adotada por Honneth é a reconstrutiva, isto é, parte dos contextos sociais e investiga como os agentes através de lutas por reconhecimento obtiveram êxitos normativos. Nesse sentido, ele se opõe a teorias de perfil deontológico que pressupõem princípios universalistas desacoplados de determinados contextos e sem o devido protagonismo social dos sujeitos. Pensando-se por este ângulo, é questionável o êxito no que concerne ao alcance social do próprio formato deontológico do princípio da paridade de participação previsto por Nancy Fraser em Redistribution or recognition como uma saída para equalizar a relação entre negros e brancos, homossexuais e heterossexuais, homem e mulher etc. Acerca do referido princípio, ver Fraser e Honneth (2003, p. 43.).

Honneth (2015aHONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015a., p. 291) toma como ponto de partida do seu diagnóstico das mudanças nas relações familiares operacionalizadas na transição entre uma visão pré-moderna e moderna da família a tese segundo a qual, até a década de 60 do século 20, a família era marcada por uma visão assimétrica da autoridade implementada mediante uma divisão androcêntrica de funções onde a mulher tinha como incumbência o cuidado dos filhos e da casa, portanto um trabalho doméstico, e o homem desempenhava o papel do provedor, reconhecido destarte como o mantenedor da estabilidade familiar, o “macho alfa” como usualmente se convencionou chamar no senso comum - um jargão recepcionado da zoologia introduzida nas relações intersubjetivas para designar aquele que manda, e do qual todos dependem, isto é, o líder.

O status de reconhecimento da mulher e da mãe é, em nível social, inferior ao do homem e do pai de família; dentro deste modelo androcêntrico e pré-moderno de divisão de funções familiares, a mulher é basicamente um agregado, aquela que subtraída ao âmbito doméstico tem uma imagem social dependente do esposo. A transmutação deste modelo precário, pois inferioriza a figura feminina, dá-se com a descaraterização da divisão de trabalho sistematicamente aperfeiçoada dentro da concepção burguesa de mundo: com a confrontação do machismo, do modelo patriarcal de sociedade e, ipso facto, com as lutas feministas por reconhecimento - seja em nível de esfera pública política na busca do sufrágio universal ou mesmo social com o ingresso no mercado de trabalho - a divisão de funções entre o pai e a mãe, o homem e a mulher, foi legítimamente subvertida: não há justificação plausível para a defesa da estratificação de funções e competências que limite o labor da mulher a uma função meramente doméstica e o labor do homem a uma função extradoméstica como se ambos os agentes não pudessem compartilhar das mesmas atividades e, idealmente, num mesmo patamar de igualdade e reconhecimento social. O ideal é que tanto o homem como a mulher estejam no mesmo nível de cidadania.2 2 Sobre o conceito de “cidadania”, é de fundamental importância a esquematização de Thomas Marshall em Citizenship and social class (1950) a partir do trinômio direitos civis, políticos e sociais (Marshall, 1967, p. 63).

No século 20, sobretudo no pós-guerra (1939-1945), com a crise da razão iluminista que se pretendia absoluta e definhou mediante sua insuficiência perante práticas genocidas e acusações de ela mesma ter gerado um ambiente de instrumentalização de corpos, veio abaixo uma série de valores dantes enaltecidos como sinônimos de progresso. Com uma Europa em reconstrução das ruínas da guerra foi possível a inserção de novos valores, dentre eles aqueles voltados para a libertação da mulher de todas as amarras machistas e androcêntricas; seja em maio de 68 na França, ou em outras lutas de reconhecimento, a igualdade de gênero está sempre em voga objetivando desmontar toda uma normatização cultural instituída de modo perverso a submeter a mulher a um papel ínfimo na sociedade.

Historicamente, do ponto de vista da participação da esposa e da mulher de um modo geral na esfera pública e na aquisição de prerrogativas cidadãs, a figura feminina foi alijada dos processos deliberativos desde o modelo democrático ateniense, perpassando os dez séculos de Idade Média (5°-15), chegando até a modernidade do século 19; a própria Revolução Francesa na continuidade do gap entre cidadãos ativos e passivos, isto é, entre aqueles aptos e inaptos ao voto, marginalizou a mulher da política limitando-a a tarefas domésticas, pois votar era prerrogativa apenas dos indivíduos do gênero masculino e economicamente independentes; mulheres eram inaptas por duas razões principais: por ser mulher e economicamente dependentes (do provedor, do esposo).

O que interessa aqui na abordagem honnethiana em torno das relações de reconhecimento familiar é observar como estas transmutações foram gestadas e consolidaram-se de um modo a criar uma nova normatividade que implica em mudanças estruturais no núcleo interno da família e externamente os impactos sociais que gradativamente obtêm uma nova configuração institucionalizada refletida, inclusive, nas proteções jurídicas. Óbvio que a preocupação de Honneth é como se efetivaram tais mudanças de um ponto de vista social, isto é, anterior a qualquer juridificação. Portanto, está em jogo a capacidade de alteração de vínculos familiares no que concerne à dinâmica da luta por reconhecimento. Em última instância, a questão é: como a família pode efetivar a liberdade social? Como é possível haver eticidade pensada em termos democráticos no seio familiar?

A expansão conceituai da família: com Hegel além de Hegel

Antes de tudo convém salientar que Honneth no seu livro Das Recht der Freiheit (2011) pretende reconstruir os aspectos normativos da liberdade em um nível social que supere os limites monológicos e individualistas da liberdade negativa ou jurídica hobbesiana e da liberdade reflexiva ou moral kantiana,3 3 Vale ressaltar que apesar de Honneth focar nos desdobramentos da liberdade no seu sentido social, ele mesmo deixa claro em Das Recht der Freiheit (2011, p. 35) que não se pode desprezar a conquista da liberdade no sentido da autonomia do indivíduo (die Freiheit im Sinne der Autonomie des Einzelnen) como uma condição inicial do processo de desenvolvimento da liberdade. liberdades estas que a seu ver recairiam numa patologia social que consiste numa desvinculação do sujeito das relações sociais, o que prejudica sobremaneira o seu agir normativo em sociedade. As concepções centradas no procedimentalismo como a de Kant (imperativo categórico) e Rawls (posição original) também são prejudiciais porque as normas são dadas de cima para baixo sem o protagonismo dos agentes e, além disso, são consubstanciadas mediante uma concepção de self e de autonomia vinculada a um polo excessivamente individualista; a autonomia para Honneth (2015bHONNETH, Axel. The fabric of justice: on the limits of proceduralism. In: Nythamar Oliveira; Marek Hrubec; Emil Sobottka; Giovani Saavedra (eds.). Justice and recognition: on Axel Honneth and critical theory. Porto Alegre: Prague: Pucrs/Filosofia, 2015b. p. 155-180 [A textura da justiça: sobre os limites do procedimentalismo contemporâneo. Civitas, v. 9, n. 3, p. 345-368, 2009] <10.15448/1984-7289.2009.3.6896>.
https://doi.org/10.15448/1984-7289.2009....
, p. 166), pelo contrário, é uma grandeza relacional e intersubjetiva e não uma conquista monológica como bem esclarece em The fabric of justice onde trata dos limites do procedimentalismo.

A metodologia usada por Honneth para colocar em prática seu projeto reconstrutivo da liberdade social tem como uma das fontes de inspiração Hegel, sobretudo, aquela intuída nos tempos da juventude quando o filósofo de Stuttgart prezou por um projeto de reconhecimento em termos éticos e intersubjetivos mediante o protagonismo do sujeito, ao invés do protagonismo metafísico do espírito absoluto. A eticidade4 4 É possível depreender elementos metafísicos fortes já dentro da filosofia do jovem Hegel quando em O sistema da vida ética ([1802] 1991) vincula o ético ao absoluto: “a vida ética é, por conseguinte, determinada de um modo tal que o indivíduo seja igual ao conceito absoluto, que a sua consciência empírica seja uma só coisa com a consciência absoluta”. Habermas, em Pensamento pós-metafisico (1990, p. 41), considera que a filosofia hegeliana no seu todo ainda ficou presa a um modelo metafísico autorreferenciado voltado para a redução da multiplicidade a uma unidade totalizante. hegeliana para Honneth, especialmente aquela desdobrada na dialética da filosofia do direito, ainda não alcança suficientemente a eticidade democrática, pois em última instância o processo é conduzido pelo espírito absoluto implementado na arte, na religião e na filosofia, espírito este que Feuerbach nas suas Teses provisórias para a reforma da filosofia (1988, p. 22) categorizou como sendo “o espírito defunto da teologia” ressuscitado por Hegel. Na análise de Rainer Forst (2010, p. 327), “por meio desse passo de substancialização do espírito objetivo e da mediação completa da subjetividade e objetividade no espírito absoluto, Hegel ‘reprime’ a ideia de uma constituição intersubjetiva, aberta e interminável da ‘consciência universal’”.

Para Honneth, como está explícito em Luta por reconhecimento (2003), devido à carga metafísica, a eticidade hegeliana é ainda um modelo substancialista de eticidade; a preocupação do frankfurtiano é com os desdobramentos sociais da liberdade; o que ele recepciona de Hegel é o espírito objetivo, portanto, os desdobramentos da liberdade no interior da família, da sociedade civil e do Estado, obviamente que a partir de uma roupagem e configuração distintas. A família conjecturada por Hegel ainda tem um embasamento natural forte (naturalismo), não sendo destacada suficientemente a dimensão cultural necessária para a transformação das relações familiares. Como está claro na sua Filosofia do direito (2010, § 158):

A família, enquanto substancialidade imediata do espírito, tem por sua determinação sua unidade sentindo-se, o amor, de modo que a disposição de espírito é ter a autoconsciência de sua individualidade nessa unidade enquanto essencialidade sendo em si e para si, a fim de ser nela não uma pessoa para si, porém como membro.

O aspecto vantajoso desta concepção hegeliana de família é que são reforçados os laços intersubjetivos do vínculo familiar; ou seja, a família tem por natureza uma dimensão ética, pois há uma dinâmica necessária de respeito e reconhecimento mútuos entre os membros; mas ela também acarreta um aspecto desvantajoso, a saber, a naturalização do vínculo e a da composição dos laços familiares; óbvio que não se pode prescindir do pressuposto que tais conjecturas foram esboçadas no século 19. Segundo o parecer crítico de Honneth (2015aHONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015a., p. 309),

o acesso ao elemento da liberdade na instituição da família moderna não se dá sem hipóteses fortemente naturalistas, por meio das quais parece estabelecido que o pai aspira às suas pretensões de autoridade, a mãe, à satisfação de seu impulso ao zelo, e o filho, por fim, à satisfação de suas necessidades de apoio e orientação.

Seguindo os passos dessa naturalização moderna, Hegel (2010HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Linhas fundamentais da filosofia do direito, ou direito natural e ciência do Estado em compêndio. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2010., § 160) supõe como que uma regularidade e automatismo nas relações nos desdobramentos da família apontando que esta passa por três processos fundamentais: (i) o casamento monogâmico que ele entende como um resultado do amor e da vinculação natural dos sexos; (ii) a exteriorização do vínculo quando os membros se põem nos meandros da sociedade civil burguesa a adquirir os bens, propriedades e patrimônios comuns à família; (iii) a educação e o disciplinamento do filho que como um indivíduo livre deve ser educado pelos pais para a eticidade, propriamente, para o valor da sua subjetividade e da comunidade, seguidos da consecutiva dissolução da família.

A dissolução da família pode ocorrer obviamente pela separação dos pais já que, segundo Hegel, estes não podem ser coagidos a entrar ou a permanecer no casamento: “assim como uma coação não pode entrar no casamento, tanto menos existe laço positivo apenas jurídico que possa manter juntos os sujeitos quando as disposições de espírito e as ações contrárias e hostis surgem” (2010, § 177). Sem sombra de dúvidas, este tipo de pensamento acerca da não coercibilidade dos laços familiares entre esposo e esposa é bastante bem-vindo e atual para o direito da família contemporâneo.

O outro tipo de dissolução da família tratado por Hegel é o que ele chama de “dissolução ética”, que consiste naquele que mantém o vínculo a partir da sua expansão concretizada quando os filhos completam a maioridade e constituem sua própria família: “a dissolução ética da família consiste em que as crianças, educadas para a personalidade livre, sejam reconhecidas na maioridade enquanto pessoas jurídicas e enquanto capazes, em parte, de ter uma propriedade livre própria e, em parte, de fundar sua própria família” (2010, § 178). Ou seja, a manutenção da eticidade em termos de relações familiares pressupõe um ciclo no qual os pais eduquem os filhos para uma personalidade livre e para a responsabilidade no mundo do trabalho de modo que eles estejam em condições de dar continuidade à família na medida em que constituem as suas próprias famílias.

Cabe frisar que, para Hegel, o núcleo familiar ainda tem uma base fortemente androcêntrica e patriarcal; o homem se constitui como o chefe e o representante da família. Como ele mesmo expressa na sua Rechtsphilosophie (2010, § 171), “a família, enquanto pessoa jurídica frente a outras, tem o homem para representá-la, enquanto seu chefe. Além disso, cabe-lhe principalmente a aquisição de fora, o cuidado pelos carecimentos, assim como a disposição e a administração do patrimônio familiar”.

Honneth está com Hegel quanto à necessária formatação intersubjetiva e triádica da família, quanto à educação ética dos filhos para uma personalidade livre e comunitária (socialmente antipatológica), mas, enquanto filho dos séculos 20 e 11, dá um passo além de Hegel no que diz respeito à naturalização dos laços familiares e à suposição androcêntrica da centralidade do homem na composição familiar.

Honneth (2015a)HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015a. entende que os laços familiares pré-modernos eram marcados por relações complexas que incluíam num mesmo lar o casal, serviçais, avós, tios e outros agregados caracterizando uma vivência comunal num porte de uma grande casa e de uma grande família. Com o passar do tempo, em especial nos últimos dois séculos, a família foi paulatinamente se nucleando em torno dos pais e filhos ocorrendo, assim, uma espécie de “triangularidade” do laço familiar, laço este que, mesmo sendo quantitativamente mais enxuto, já caracteriza um aspecto de efetivação da liberdade social e da eticidade democrática.

A expansão conceitual da abordagem honnethiana perante a de Hegel em torno do conceito de família, expressa-se, mormente, a partir de duas facetas: (i) da tese que a supracitada triangularidade pode ser preenchida e composta por membros do sexo oposto (heterossexuais) ou do mesmo sexo (homossexuais), (ii) e que a composição familiar não é proveniente simplesmente de um impulso da natureza, mas que pode ser gestada culturalmente. Sobre a expansão em torno do gênero envolvido na relação, diz Honneth (2015aHONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015a., p. 282):

A família moderna - tal como começou a se constituir, há cerca de duzentos anos, e tal como hoje continua a representar a normalidade - deveria ser considerada, segundo sua estrutura intersubjetiva, uma relação trifásica; assim, há muito tempo deixou de ser decisivo se os pais estão casados e compõem efetivamente um casal heterossexual ou se os filhos são realmente seus filhos (biológicos); o que importa é tão somente que a relação de dois adultos esteja mediada pela relação adicional com um terceiro, isto é, o(s) filho(s). Para a liberdade social, da qual podemos falar de olhos postos na família moderna, o fato da triangularidade constitutiva é decisivo.

Um parêntese aqui é necessário quanto à composição da triangularidade das relações familiares por parceiros homossexuais, pois Honneth apenas en passant põe em relevo a legitimidade de tal tipo de composição, mas não esmiúça os seus detalhes e desafios como se fosse um tipo de relação aceitável tranquilamente nas diversas sociedades. Ora, os contextos dizem o reverso: a taxonomía androcêntrica e heterossexista irrompida dentro de esquema mental burguês e religioso - (e o subterfúgio bíblico foi usado fortemente para conferir legitimidade a esse status quo) - no seio da modernidade implementado a partir da idealização da família composta por casais héteros capazes de procriação, implicou a marginalização dos laços afetivos entre parceiros do mesmo sexo e, concomitantemente, impossibilitou a viabilidade de uma nucleação familiar entre indivíduos homossexuais taxados discriminatoriamente como “anormais” e “doentes”. Como bem destaca Luiz Mello no seu livro Conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo,

[…] à organização da família moderna em torno das figuras do pai, da mãe e dos filhos, iniciou-se um processo de construção social que culmina com a naturalização da divisão dos indivíduos em heterossexuais e homossexuais. Enquanto os homens e as mulheres que escolhem seus iguais biológicos como parceiros afetivo-sexuais passam a ser definidos como portadores de uma doença, o homossexualismo - estando, por sua própria ‘natureza doentia’, incapacitados para a constituição de núcleos familiares -, a família burguesa assume para si o monopólio do amor romântico, restringindo a possibilidade de afloramento desse sentimento à esfera da relação homem-mulher. Da mesma maneira, a forte associação entre família e infância contribui para a exclusão dos homossexuais das representações e práticas sociais familiares, uma vez que a única forma social legítima para a realização do amor romântico era o casamento, em que o homem-pai e a mulher-mãe estariam encarregados de gerar e socializar crianças (Mello, 2005MELLO, Luiz. Novas famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Garamond, 2005., p. 43).

Vale ressaltar que a juridificação da criminalização da homofobia não implica a resolução do problema; em outras palavras, as lutas sociais por reconhecimento e suas conquistas implementadas na prática mediante a proteção jurídica não significa que tais lutas foram completadas, pois no mundo concreto - variando obviamente de um contexto para outro - o que se tem são contextos marcados por uma ambiguidade e por conflitos ente o aparato legal de reconhecimento dos direitos homossexuais e um ethos social que permanece fechado e reacionário a novas conjunturas. Com frequência, a resistência e o rechaço partem da própria família, perpassando as demais esferas sociais. Portanto, trata-se de um tema ainda não devidamente assimilado nas vivências cotidianas, apesar do seu ancoramento jurídico de proteção.

Retomando a relação Honneth-Hegel: sobre a implicação cultural nas relações familiares e sua ampliação para além do biologicismo, da vinculação natural e da substancialidade imediata do espírito explicitada por Hegel, escreve Honneth (2015aHONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015a., p. 283):

A família, como viemos a saber por meio de toda uma série de investigações, não é nenhuma constante biológica da história humana; sua forma institucional encontra-se sujeita a transformações contínuas, de modo que sua função nuclear, a da socialização dos filhos, chega a se realizar por diferentes formas.

O conceito de “família”, neste sentido, sofreu uma transmutação operacionalizada a partir de mudanças do ethos social, o que comprova que os padrões mantenedores do vínculo familiar não são naturais ou dogmáticos, mas padrões gestados dentro de um dado contexto histórico e, ipso facto, passíveis de alterações. Se nos padrões antigos, ao menos teoricamente, a família era composta por casais de sexo oposto que se uniam sob diferentes propósitos e coerções e a partir daí procriavam, no modelo contemporâneo de família urge a necessidade de uma reformulação jurídica do código civil familiar e uma reformulação social do comportamento coletivo que vislumbre uma gama de possiblidades para além dos vínculos tradicionais.

No modelo expansivo de família não interessa se o filho é adotado ou biológico, se o casal é heterossexual, bissexual ou homossexual; família não tem mais um sentido unívoco, mas é perpassada por vários sentidos e, portanto, é plurívoca. Isso implica que as transformações sociais e culturais se sobrepõem às pretensas inalterações e imobilismos. Dentro do aparato da Teoria crítica, deve-se pensar conceitos como desdobramentos e processos de desenvolvimentos contidos na história refletidos como consequências de lutas por reconhecimento. Na visão de Honneth, o modelo hegeliano naturalizado de relação familiar oblitera a possibilidade de famílias sociais mediante a adoção porque ele pensa o filho como um fruto natural da união amorosa e sexual dos pais, de um modo que estes pais se veem nos seus filhos (obra da procriação); trata-se de um modelo abaixo das expectativas normativas e sociais do contexto hodierno.

Porém, sob as condições atuais, em que muitos pais ou mães criam filhos que não são biologicamente seus, esse elemento do pensamento hegeliano perde toda a sua credibilidade: o que o casal de amantes tem diante dos olhos no ‘próprio filho, corporalmente, já não deve necessariamente ser o produto de sua relação sexual (Honneth, 2015aHONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015a., p. 311).

Postos os embasamentos da expansão do conceito de família e a demarcação de Honneth em relação a Hegel, cabe agora apresentar como na visão honnethiana ocorreram as mudanças nas relações familiares, um processo designado como uma transição de um modelo tradicional de família para um modelo democrático onde todos os agentes são reconhecidos como protagonistas da triangularidade relacional (pais e filhos nas suas diversas nuances e gênero).

As mudanças nas relações familiares segundo Honneth: da destradicionalização à democratização

Honneth parte da constatação que as relações familiares hodiernas, ao menos no ocidente, solaparam as bases do tradicionalismo assentado na divisão patriarcal e androcêntrica das funções, e tal destradicionalização implicou a instituição de laços democráticos nas dinâmicas familiares a partir de um modelo de reciprocidade e cooperação (Partnerschaft). Neste modelo, a família democrática já constitui uma realização da liberdade social e da eticidade democrática que são os focos de O direito da liberdade, rompendo com as patologias do mero contratualismo (positivismo jurídico) e da reflexividade (subjetivismo). A constatação é a seguinte:

Nos últimos sessenta anos, a família moderna transformou-se substancialmente em suas estruturas de relações internas e possui, hoje, um grau de discursividade e igualdade intersubjetivas que absolutamente não corresponde ao aspecto que tinha originalmente no início dos tempos modernos (Honneth, 2015aHONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015a., p. 289).

A subversão da divisão de tarefas posta de modo androcêntrico a sobrepor socialmente a figura do pai em detrimento da figura da mãe, foi operacionalizada a partir de movimentos de inserção da mulher no mercado de trabalho, rompendo-se a partir daí a cisão entre o pai chefe de família e provedor versus a mulher dona de casa (doméstica) e cuidadora dos filhos.

Em razão da crescente incorporação profissional das mulheres no mercado de trabalho, foi suprimido das antigas ideologias o princípio de legitimação segundo o qual as mães satisfariam a sua verdadeira natureza nas tarefas domésticas e na criação dos filhos; assim, removia-se o primeiro obstáculo à realização do princípio de reconhecimento (Honneth, 2015aHONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015a., p. 301).

Paulatinamente, foram colapsadas as bases tradicionais que supuseram a figura da mulher como um ser naturalmente vocacionado (vocare) e limitado a tarefas domésticas. O mercado que para muitos significa alienação derivada da absolutização do homo oeconomicus, neste contexto significou uma forma de parear e equalizar o status do homem e da mulher que dentro de um modelo democrático de família devem ser pensados como parceiros em interação de igualdade de funções e de direitos com total equivalência. Todavia, é preciso ressaltar que para Honneth esta mudança não ocorreu mediante uma estratégia procedimental e deontológica dada verticalmente de cima para baixo, mas adveio de lutas concretas por reconhecimento.

Mediante as lutas feministas por reconhecimento - sobretudo depois da década de 60 do século 20 - começou a se pensar a possibilidade da inversão do status quo patriarcalista: pais engajados na colaboração em torno de trabalhos domésticos e mães provedoras que saem da restrição doméstica para trabalhar e obter remuneração, de um modo que ambos se tornam ativos nas divisões de tarefas que agora se intercruzam. As relações dantes profundamente assimétricas passam a ganhar um tom mais simétrico; “[…] quanto maior era a participação da mulher na renda familiar, com sua atividade remunerada, mais difícil se tornava ao pai dar motivos convincentes para a posição de supremacia até então intocada” (Honneth, 2015aHONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015a., p. 292).

O novo contexto motivado pela inserção da mulher no mercado de trabalho impede a coação do marido em relação à esposa e, adicionalmente, faz com que a cooperação e coatuação do esposo nas tarefas domésticas tornem-se uma prática legítima e justa. A disponibilidade para realizar um trabalho remunerado fez com que a mulher reivindicasse a igual participação nos assuntos cotidianos da família e o empenho do esposo no cuidado da casa e dos filhos. Mas tal alteração no panorama normativo das relações familiares não foi pacífico; ela veio acompanhada de um fenômeno relativamente inesperado, a saber, a crescente taxa de separação e divórcio, impulsionada pela libertação da mulher dos laços patriarcalistas e das consequências do impacto do novo ethos social que desconcertava a figura masculina conservadora que tinha dificuldades em assimilar as mudanças ou que se fechava de modo reacionário às mesmas. Honneth pontua as implicações desta nova conjuntura das relações familiares para o direito nos seguintes termos:

O direito rapidamente cedeu à pressão do aumento da disposição para a dissolução dos casamentos, e no curso dos anos 1970, em muitos países, o princípio da culpabilidade foi convertido num princípio da dissolução conjugal; daí proveio a visão generalizada de que uma sociedade fortemente pluralizada já não poderia haver um código de conduta matrimonial que permita estabelecer o desvio de uma norma e, assim, a acusação de uma culpa (Honneth, 2015aHONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015a., p. 294).

Não há mais dentro de um modelo democrático de família uma norma depreendida de um contexto moral ou mesmo jurídico que obrigue a mulher a ser subserviente ao esposo numa condição de limitação a tarefas domésticas e a ser marginalizada ou obliterada socialmente. As transformações ocorridas no ethos social forçaram o direito a rever as normas androcêntricas; esta juridificação do status de igualdade da mulher na relação familiar demanda que a esposa não tenha mais a obrigação de continuar casada em condições de aviltamento. Uma relação salutar entre o casal e os filhos passa pelo nivelamento da divisão das funções e pela necessidade de reconhecimento de todos os membros, descentrando a figura do homem como aquele indivíduo unicamente capaz de obter reconhecimento intrafamiliar e extrafamiliar. As relações se estabelecem como vínculos pautados no amor e na reciprocidade, excluindo desrespeitos e outras formas não salutares de conduzir a relação; somente desta forma a eticidade democrática na esfera familiar alcança a sua efetividade.

Nos últimos cinquenta anos, a família moderna, organizada em forma de papéis atribuídos, passou de uma associação social patriarcal, organizada em papéis, a uma relação social entre pares, na qual a demanda normativa de manifestar amor uns pelos outros, como pessoas em sentido pleno, está institucionalizada em todas as necessidades concretas (Honneth, 2015aHONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015a., p. 307).

As instituições moralizadoras (igrejas etc.) devem reconhecer este novo contexto normativo, a ponto de o seu desprezo ou rechaço significar um efeito contrário contra si mesmas como, por exemplo, a visão de que são instituições meramente reacionárias e ultrapassadas que não acompanham a evolução social e a histórica. No novo contexto normativo o casal tem o direito a separar e a divorciar, não perdendo obviamente de vista o dever fundamental que é o de cuidar do desenvolvimento e do bem-estar dos filhos em suas diversas facetas, sejam elas afetivo-emocional, educacional, social, etc. Como pondera Honneth (2015aHONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015a., p. 321), “a relação entre pai e mãe, independentemente de serem casados ou não, hétero ou homossexuais, de modo muito mais acentuado hoje do que no passado ‘burguês’, gira em torno do bem-estar do filho, cujo desenvolvimento e cuja felicidade na vida futura são universalmente compreendidas com a real função da família”.

Apesar de Honneth mirar nos desenvolvimentos sociais e culturais e nos contextos históricos de luta por reconhecimento como patamares de efetivação da liberdade social e da eticidade democrática, ele não prescinde dos condicionamentos biológicos e orgânicos que incidem sobre as relações familiares. Os fatores biológico e somático trazem o imperativo do cuidado para o interior da família porque todos os membros experimentam eventos que fazem parte dos ciclos vitais como o nascer, o desenvolver e o morrer. Neste ciclo pais cuidam dos filhos e posteriormente filhos cuidam dos pais gerando, assim, uma relação de reciprocidade. Há uma passagem longa, porém emblemática, de O direito da liberdade sobre isso:

Em nenhuma outra forma social de relações pessoais a corporeidade do homem está presente e próxima do convívio, por tão longo tempo, como no seio da família. Isso se inicia com a atenção física e os cuidados corporais dirigidos aos filhos pequenos; continua para o filho em fase de crescimento na presença latente da sexualidade dos pais; costuma incluir os estados de doença ou fragilidade de um dos membros da família; e termina, se não houver a morte prematura do filho, com o falecimento do pai ou da mãe. Em todas essas fases […] a vida familiar gira em torno do ritmo orgânico da vida humana - este é o centro organizador da relação afetiva entre os membros da família (Honneth, 2015aHONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015a., p. 312-313).

Considerações finais

A família hodierna na apreciação de Honneth constitui uma realização da eticidade democrática porque está embasada normativamente na parceria e solidariedade, específicamente, no que concerne à divisão equânime das funções intrafamiliares e na reciprocidade de direitos e no reconhecimento mútuo tanto entre os membros da família quanto externamente na sociedade. A família democrática, ao menos normativamente, solapou as bases androcêntricas e machistas do modelo tradicional de família que delegava uma função fixa à mulher, a saber, cuidar dos filhos e dos afazeres domésticos.

No modelo democrático familiar, a mulher, em decorrência da sua luta por reconhecimento reivindicando direitos e deveres iguais aos do homem, saiu de um patamar marginalizado para uma plataforma de visibilidade e respaldo, sendo inclusive instituídas normas protetivas (juridificação) para a defesa do gênero feminino. Singly (2007)SINGLY, François de. Sociologia da família contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007. no seu livro Sociologia da família contemporânea argumenta que Durkheim num curso sobre a família conjugal em 1892 já tinha anunciado toda uma constante transmutação nas relações familiares que se movia entre a privatização e a intervenção do estado com vistas à regulação e proteção dos componentes da família. De um lado os membros aspiram a diferenciação rumo ao cuidado da sua subjetividade; de outro, são regulados através do direito civil familiar, o que implica que saíram da salvaguarda religiosa, mas caíram na tutela estatal. “A família moderna é, assim, vigiada. Por exemplo, foram criadas, no século 19, regras jurídicas para limitar o direito da punição paternal. O pai não é mais o chefe incontestável da família, a família não é mais patriarcal” (Singly, 2007SINGLY, François de. Sociologia da família contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007., p. 32).

Sobretudo a partir do fim do século 19, o estado interveio de um modo direto na família regulando a esfera privada no que concerne ao jurídico, econômico e institucional: (i) no que diz respeito ao jurídico interveio através de leis objetivando o direito ao aborto, à contracepção, à interrupção voluntária da gravidez e ao divórcio; (ii) em nível econômico através da previdência social, aposentadorias, incentivo à poupança, e auxílios por meio de abonos para pais e mães expressos em pensões alimentícias para lidar com a feminização da pobreza e da pauperização das famílias); (iii) institucionalmente atuou por meio da obrigatoriedade da escolarização dos filhos tornando possível a emancipação da mãe no que diz respeito à incumbência exclusiva na formação do filho.

O Estado ajudou a família a diminuir os laços de dependência: da família em relação à solidariedade da parentela e da vizinhança; da mulher em relação ao homem; da criança em relação aos seus pais. As transformações desses antigos laços de dependência têm um reverso: uma menor autonomia da família e de seus membros visà-vis os representantes do Estado, juízes, psicólogos, professores, sociólogos, etc. (Singly, 2007SINGLY, François de. Sociologia da família contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007., p. 64).

Na década de 80 do século 20 assistiu-se a uma crescente introdução de um novo modelo familiar, a saber, as famílias monoparentais compostas por mães solteiras (maternidade sem casamento), divorciadas e viúvas. De um lado, este modelo quebra com o modelo clássico (pais casados) e com o patriarcalismo, mas de outro, por ser um novo fenômeno social nas relações familiares contemporâneas, demanda ajustes, arranjos sociais e jurídicos de modo especial por parte do aparelhamento estatal com vistas a subsidiar à mulher que, de modo solitário, terá a função de ser simultaneamente pai e mãe. “A expressão ‘famílias monoparentais contribui para enfraquecer os estigmas sociais associados ao divórcio e à maternidade sem casamento e, indiretamente, à legitimidade da instituição do casamento” (Singly, 2007SINGLY, François de. Sociologia da família contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007., p. 65).

Paulatinamente a família atual passou a se caracterizar por uma instituição flexível e móvel onde a subjetividade de cada membro parece ganhar uma força até mesmo maior do que a instituição no seu conjunto. A questão subjacente a estas mudanças é se a triangularidade, solidariedade e cooperação apontadas por Honneth como bases da eticidade ainda subsistem dentro desse modelo tendente a focar na individualidade do membro familiar; ou seja: como conciliar conquistas individuais dos membros da família com a instituição familiar no seu todo? Como não ir da opressão heterossexista e patriarcalista ao polo reverso da diluição e do monologismo dos vínculos familiares?

A outra questão crucial para o êxito da configuração da família democrática diz respeito ao seguinte dilema: como a mulher pode acompanhar o desenvolvimento dos filhos e o mundo do trabalho, sobretudo em se tratando quando enquadrada num formato familiar monoparental? O contexto atual é favorável à instituição da família democrática, ou trata-se de uma mera idealização normativa quando os déficits sociais são confrontados? O próprio Honneth vislumbra essa dificuldade quando afirma que “nas sociedades ocidentais de hoje, nem a política das famílias, nem a social, nem a trabalhista estão orientadas para garantir o tipo especial de liberdade social que se esperaria nas famílias democratizadas de nosso tempo” (Honneth, 2015aHONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015a., p. 317); posteriormente arremata respondendo que a saída para a escassez de tempo “só poderia ser suprimida mediante uma reforma radical em nosso sistema de seguro social, cujo objetivo seria um amparo social a quem sacrificasse parte de sua vida economicamente ativa à criação dos filhos ou netos; no cômputo dos direitos reais de contribuição deveria entrar todo o tempo dedicado à interação com a geração futura, independente do estado civil do indivíduo” (Honneth, 2015aHONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015a., p. 318).

Enfim, é preciso frisar pontualmente um aspecto acerca das mudanças nas relações intrafamiliares que Honneth parece não ter ampliado suficientemente o seu horizonte de abordagem; trata-se da sua tese segundo a qual a emancipação feminina ocorreu especialmente com a sua entrada no mercado de trabalho. Ora, mesmo supondo um consenso que o mercado tenha sido o elemento emancipatório fundante, não se pode prescindir de detalhes importantíssimos como o controle de fecundidade mediante os métodos anticonceptivos (fator científico) e o próprio divórcio (fator jurídico) como um elemento legitimador da não obrigatoriedade do vínculo.5 5 “A família contemporânea ocidental conheceu numerosas e profundas transformações a partir dos anos 1960. Podemos dizer que, desde então, o modelo ideal de família proposto por T. Parsons na década de 1950 - o casal, legalmente constituído, e seus filhos, tendo o pai como provedor e a mãe como dona-de-casa e responsável pela educação da progenitura - perde vigor e declina à medida que as mulheres se inserem no mercado de trabalho, tendo de conciliar atividade profissional com responsabilidade familiar. Mas esse não é o único elemento mobilizador das mudanças no interior da família; outros, como o controle da fecundidade por meio da contracepção e o aumento do número de divórcios, de uniões livres e de recomposições familiares, também contribuíram para o surgimento de outras formas de vida familiar” (Peixoto, 2007, p. 11). No âmago das transmutações tais elementos encontram-se indubitavelmente articulados entre si e não podem ser entendidos separadamente como o principal vetor de emancipação feminina mesmo que se venha admitir que um se sobreponha a outro na escala de relevância.

  • 1
    A metodologia adotada por Honneth é a reconstrutiva, isto é, parte dos contextos sociais e investiga como os agentes através de lutas por reconhecimento obtiveram êxitos normativos. Nesse sentido, ele se opõe a teorias de perfil deontológico que pressupõem princípios universalistas desacoplados de determinados contextos e sem o devido protagonismo social dos sujeitos. Pensando-se por este ângulo, é questionável o êxito no que concerne ao alcance social do próprio formato deontológico do princípio da paridade de participação previsto por Nancy Fraser em Redistribution or recognition como uma saída para equalizar a relação entre negros e brancos, homossexuais e heterossexuais, homem e mulher etc. Acerca do referido princípio, ver Fraser e Honneth (2003FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribution or recognition? A political-philosophical exchange. New York: Verso, 2003., p. 43.).
  • 2
    Sobre o conceito de “cidadania”, é de fundamental importância a esquematização de Thomas Marshall em Citizenship and social class (1950) a partir do trinômio direitos civis, políticos e sociais (Marshall, 1967MARSHALL, Thomas H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967., p. 63).
  • 3
    Vale ressaltar que apesar de Honneth focar nos desdobramentos da liberdade no seu sentido social, ele mesmo deixa claro em Das Recht der Freiheit (2011, p. 35) que não se pode desprezar a conquista da liberdade no sentido da autonomia do indivíduo (die Freiheit im Sinne der Autonomie des Einzelnen) como uma condição inicial do processo de desenvolvimento da liberdade.
  • 4
    É possível depreender elementos metafísicos fortes já dentro da filosofia do jovem Hegel quando em O sistema da vida ética ([1802] 1991) vincula o ético ao absoluto: “a vida ética é, por conseguinte, determinada de um modo tal que o indivíduo seja igual ao conceito absoluto, que a sua consciência empírica seja uma só coisa com a consciência absoluta”. Habermas, em Pensamento pós-metafisico (1990, p. 41), considera que a filosofia hegeliana no seu todo ainda ficou presa a um modelo metafísico autorreferenciado voltado para a redução da multiplicidade a uma unidade totalizante.
  • 5
    “A família contemporânea ocidental conheceu numerosas e profundas transformações a partir dos anos 1960. Podemos dizer que, desde então, o modelo ideal de família proposto por T. Parsons na década de 1950 - o casal, legalmente constituído, e seus filhos, tendo o pai como provedor e a mãe como dona-de-casa e responsável pela educação da progenitura - perde vigor e declina à medida que as mulheres se inserem no mercado de trabalho, tendo de conciliar atividade profissional com responsabilidade familiar. Mas esse não é o único elemento mobilizador das mudanças no interior da família; outros, como o controle da fecundidade por meio da contracepção e o aumento do número de divórcios, de uniões livres e de recomposições familiares, também contribuíram para o surgimento de outras formas de vida familiar” (Peixoto, 2007PEIXOTO, Clarice Ehlers. As transformações familiares e o olhar do sociólogo (prefácio). In: François de Singly. Sociologia da família contemporânea. Rio de Janeiro: FGV, 2007., p. 11).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    09 Mar 2016
  • Aceito
    01 Set 2016
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