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No desligar das câmeras: experiências de estudantes de ensino superior com o ensino remoto no contexto da Covid-19

Turning off the cameras: experiences of higher education students with remote education, in the context of Covid-19

Apagando las cámaras: experiencias de estudiantes de educación superior con educación remota, en la pandemia de 2020

Resumo:

Este artigo apresenta os movimentos iniciais de uma pesquisa etnográfica realizada com estudantes de ensino superior sobre suas experiências com o ensino remoto em 2020. Após a suspensão das atividades presenciais na pandemia, professores e estudantes se viram imersos em desafios decorrentes de um afrouxamento dos vínculos que sustentam a relação ensino-aprendizagem. Dessa forma, busca-se compreender como estudantes percebem e significam suas experiências com o ensino remoto, considerando-se as condições materiais para tanto e a rede de atores e agências que passam a determinar essas experiências no espaço doméstico. Assim, este estudo se volta para a dimensão vivencial das tecnologias digitais, considerando-se sua ubiquidade na vida contemporânea. Pretende-se, por fim, contribuir para a concepção de projetos educacionais que transcendam a instrumentalização tecnológica e se alinhem às gramáticas interativas mais significativas das socialidades contemporâneas, marcadas pela pervasividade das tecnologias digitais.

Palavras-chave:
Pandemia; Ensino remoto emergencial; Etnografia; Educação Superior; Joinville

Abstract:

This article brings initial findings of an ethnographic research carried out with higher education students on their experiences with remote education in 2020. After the suspension of face-to-face activities during the pandemic, teachers and students found themselves immersed in challenges arising from the loosening of bonds that support teaching-learning relationships. The research seeks to understand how students perceive and signify their experiences with remote education, considering their material conditions to do so and the network of actors and agencies that thereafter determine these experiences in the domestic space. Thus, this study focuses on the experiential dimension of digital technologies, considering their ubiquity in contemporary life. Finally, the intention is to contribute to the design of educational projects that transcend technological instrumentalization and align with the most significant interactive grammars of contemporary socialities, shaped by the pervasiveness of digital technologies.

Keywords:
Pandemic; Remote Education; Ethnography; Higher Education; Joinville

Resumen:

Este artículo presenta los movimientos iniciales de una investigación etnográfica realizada con estudiantes de educación superior sobre sus experiencias con la educación a distancia en 2020. Luego de la suspensión de las actividades presenciales en la pandemia, docentes y estudiantes se vieron inmersos en desafíos derivados de una aflojamiento de los lazos que sostienen la relación enseñanza-aprendizaje. Se busca comprender cómo los estudiantes perciben y significan sus experiencias con la educación a distancia, considerando las condiciones materiales para esta y la red de actores y agencias que comienzan a determinar estas experiencias en el espacio doméstico. Así, este estudio gira hacia la dimensión experiencial de las tecnologías digitales, considerando su ubicuidad en la vida contemporánea. Finalmente, se pretende contribuir al diseño de proyectos educativos que trasciendan la instrumentalización tecnológica y se alineen con las gramáticas interactivas más significativas de las socialidades contemporáneas, marcadas por la omnipresencia de las tecnologías digitales.

Palabras clave:
Pandemia; Educación remota de emergencia; Etnografía; Educación universitaria; Joinville

Introdução

Esta imagem (Figura 1), que circulou em meados de agosto de 2020 em redes sociais e no WhatsApp, foi desencadeadora das principais questões norteadoras do estudo esboçado nesse artigo e que, neste momento, encontra-se em sua fase inicial. O estudo já vinha sendo desenhado quando os efeitos dessa imagem em um grupo de professores e estudantes do qual participo acabaram por sinalizar para a problemática e o viés da pesquisa.

Figura 1
Campanha de conscientização

Antes de tudo, é possível dizer que essa imagem e o apelo nela contido performam um processo. Entre os dias 16 e 20 de março de 2020, as instituições de ensino superior de Santa Catarina precisaram responder aos decretos e às orientações oficiais para a contenção da pandemia de Covid-19. As instituições privadas foram as primeiras a adotar o “ensino remoto emergencial” como estratégia de manutenção do calendário acadêmico.2 2 As instituições públicas federais e estaduais, como é sabido, tomaram mais tempo para retomar e/ou adequar as atividades de ensino, principalmente por conta das diferentes condições de acesso dos estudantes às tecnologias digitais. Aquelas que já atuavam com Ensino a Distância (EAD) ampliaram para os cursos e as disciplinas presenciais o acesso aos sistemas e às plataformas existentes. Já as instituições que atuavam integralmente em modalidade presencial precisaram criar protocolos de atuação tendo como referente as rotinas, preocupações e estratégias próprias da “sala de aula”: registros de presença, didática das aulas, estratégias de avaliação, atividades práticas, dentre tantas outras questões que passaram a ser objeto de reflexão, em busca de soluções para as contingências colocadas.

Assim contada, essa história esconde uma dimensão vivencial que é central para este estudo. Em um primeiro momento, essa transição para o “ensino remoto emergencial” pareceu ter sido marcada por certa euforia ou entusiasmo, seja pela novidade encerrada na experiência, seja pela percepção de que era o melhor a se fazer. As experiências iniciais com as aulas online desencadearam, então, uma intensa produção narrativa e performática compartilhadas nas redes sociais: prints das telas das aulas circulavam em mensagens, posts e stories,3 3 Modalidade de publicação no Instagram e Facebook em que imagens, vídeos e textos são visualizáveis por 24 horas. acompanhados de gifs e hashtags criados especialmente para esse contexto. Professores e instituições eram marcados e, mantendo o fluxo interacional, repostavam esses stories em seus perfis, configurando, inclusive, uma dinâmica de publicidade espontânea para as instituições de ensino.

Contudo, na medida em que a “quarentena” se estendia e as previsões de retomada das aulas presenciais se tornavam mais incertas, esse clima de relativa euforia foi dando lugar ao esgotamento e à insatisfação diante de uma situação que rapidamente mostrava não ser apenas contingencial. As câmeras foram sendo desligadas, os professores passaram a dar aulas com um mínimo de interação com os alunos e, paralelamente, multiplicavam-se pelas redes sociais posts, tuítes e memes sobre a “tragédia” do ensino remoto.

É desse contexto que emerge a imagem que abre este artigo e é também nesse contexto que ela performa uma tragédia que, diga-se de passagem, estava anunciada. Sem tempo suficiente para a preparação de docentes, instituições até então pouco familiarizadas com as ferramentas, linguagens e lógicas próprias das tecnologias educacionais – usadas apenas de forma complementar ao ensino presencial –, se viram em uma situação em que o aprendizado sobre o ensino remoto se dava simultaneamente à sua aplicação, à sua prática. Em cena estavam muitos professores cheios de dúvidas sobre como cumprir seus planos de ensino, construídos com base em ementas e matrizes curriculares fortemente alicerçadas nas materialidades do ensino presencial; estudantes ansiosos e insatisfeitos com as mudanças radicais no cotidiano universitário, constituído para além da presença nas aulas; e gestores imersos na administração de uma crise multidimensional que incluía desde a elaboração de complexos protocolos de segurança sanitária, passando pela iminente perda de receita com as desistências ou trancamentos de matrículas, até reflexões mais complexas de ordem pedagógica e/ou de segurança emocional e psicológica de estudantes, docentes e demais empregados do corpo técnico-administrativo.

É claro que essa cena é apenas um breve recorte que exclui vários outros aspectos da complexa trama tecida ao longo deste processo de “entrada” no ensino remoto cujos desdobramentos dependem dos destinos da própria pandemia no Brasil. Contudo, ela se configura na dimensão de dentro da qual esse estudo se desdobra e na qual ele pretende se debruçar. Trata-se, pois, de uma pesquisa situada em e a partir de experiências singulares, a começar pelo lugar ocupado pela própria autora deste artigo, situado entre a docência (e a vivência de 10 meses de ensino remoto na pandemia) e uma trajetória de pesquisa no campo da cibercultura.

Neste contexto, esse artigo tem por objetivo apresentar os primeiros movimentos de um estudo etnográfico que se debruça sobre as experiências de estudantes com o ensino remoto nas instituições privadas de Joinville, SC, dado o processo vivenciado desde março de 2020. A descrição e a compreensão das diversas condições materiais e subjetivas nas quais estudantes vêm vivenciando o ensino remoto nesses meses, bem como as percepções e os significados produzidos a partir dessa vivência, parecem cada vez mais fundamentais para a concepção de estratégias pedagógicas que envolvam as tecnologias digitais.

Em mundos distintos: efeitos da pandemia na relação professor-estudante

Voltemos à imagem inicial: no apelo, a câmera ligada representa a presença – análoga à presença física – dos estudantes nas aulas on-line. O tom da mensagem é imperativo e soa quase como chantagem: com as câmeras desligadas, estudantes estariam deixando professores sozinhos. Para quem vivenciou o ensino remoto em 2020, muito provavelmente esse sentimento já encontra lugar em um imaginário coletivo: dos seus cenários escolhidos e preparados para ministrar suas aulas online, com enquadramentos que foram se tornando marcas pessoais e parte da performance, professores encaram, na maior parte do tempo, telas “sem gente”. Ou seja, aqueles que costumamos conceber sempre no âmbito de uma relação, parecem, neste contexto, pertencer a mundos distintos. Respondendo ao apelo contido na imagem – que se replicou pelas redes como um meme – muitas turmas se organizaram para surpreender professores com as câmeras ligadas. Essas ações pontuais, devidamente filmadas, editadas e compartilhadas pelas redes em pequenos filmes mostrando professores emocionados em ver seus alunos, rapidamente davam lugar novamente às câmeras desligadas. Ligar as câmeras, como metáfora do “estar junto” participando das aulas, era uma necessidade para professores, mas não necessariamente dos estudantes.

Por trás das câmeras desligadas, essa divisão de mundos se expressa também na intensa produção de memes referentes à experiência do ensino remoto, sobretudo na perspectiva dos estudantes.

Figura 2
Meme sobre ensino remoto
Figura 3
Meme sobre ensino remoto
Figura 4
Meme sobre ensino remoto

Esses memes emergem diretamente das experiências dos estudantes, mas na medida em que circulam amplamente também têm tem efeito estruturante, pois dão sentido e têm efeitos nas formas como as experiências são vividas, produzindo pertencimentos e identificações. Segundo Ivana Bentes,4 4 Bentes, Ivana. 2016. A memética e a era da pós-verdade. Revista Cult, 31 out. 2016. Acessado 16 jan. 2021. https://revistacult.uol.com.br/home/a-memetica-e-a-era-da-pos-verdade. os memes se situam entre novas formas de “produção de consenso, por cliques, likes, compartilhamentos, anuência que cria uma comunidade imaginada de iguais, no momento em que as instituições produtoras de consenso entraram em crise de credibilidade: a justiça, a mídia, a escola, os políticos, a própria ciência”. Com origem na teoria dos genes replicantes de R. Dawkins, a memética indica, segundo Bentes,4 4 Bentes, Ivana. 2016. A memética e a era da pós-verdade. Revista Cult, 31 out. 2016. Acessado 16 jan. 2021. https://revistacult.uol.com.br/home/a-memetica-e-a-era-da-pos-verdade. novos paradigmas no pensamento sobre os meios de comunicação. Como acontece com os “genes egoístas”, que para sobreviverem e se replicarem precisam de corpos que os impulsionem, os memes também precisam de quem os transporte e os faça circular produzindo identidades e consensos. Nesse sentido, a memética interessa à comunicação na medida em que destaca “o potencial multiplicador e viralizante das ideias, imagens, sons, desenhos, valores estéticos e morais, línguas”. Essa dinâmica, coloca a autora, traz para o centro pessoas que começam a se ver e se assumir como produtores de conteúdo relevante, produzindo uma percepção de que a mídia somos nós e colocando a conversação e a memética como elementos centrais da comunicação contemporânea.

Na medida em que a quarentena se estendeu e a vivência do ensino remoto foi deixando de ser algo apenas circunstancial, a produção memética também se intensificou ressaltando diferentes nuances da experiência: estresse e esgotamento, queda na qualidade da aprendizagem, situações inusitadas do “home office” e, de forma bastante recorrente, a ruptura ou o afrouxamento da relação professor-estudante, comumente nos termos de uma divisão de mundos. Assim, memes, tuítes e posts performavam, juntos, o mundo trágico de estudantes vivenciando o ensino remoto, em uma espécie de contranarrativa.

Tuítes como estes (Figuras 5, 6 e 7) passaram a ser frequentes nas timelines de professores que, como eu, “seguem” seus estudantes nas redes sociais. Tomados como notações etnográficas, eles podem ser descritos como parte de uma tecnologia narrativa, alimentada pela produção memética, que produz a experiência coletiva do ensino remoto. De um lado, instituições de ensino buscando reafirmar a qualidade do ensino, de outro, estudantes vivenciando toda sorte de dificuldade e fazendo das redes sociais um espaço privilegiado de expressão, identificação e de partilha da experiência. Mais do que criar um problema novo, parece que a pandemia colocou em evidência dissonâncias e conflitos inerentes às relações instituições-professores-estudantes, agora potencializados pelos efeitos da quarentena. É justamente nesta controvérsia que reside a problemática desta pesquisa.

Figura 5
Tuíte de estudante de ensino superior
Figura 6
Tuíte de estudante de ensino superior
Figura 7
Tuíte de estudante de ensino superior

Afinal, por que estudantes desligam as câmeras? Que situação é essa em que jovens tão afeitos aos selfies, stories, posts e tuítes – geralmente recheados de conteúdos pessoais, do cotidiano e da vida privada – desligam as câmeras evitando a exposição? Em que medida esse comportamento pode nos indicar os modos pelos quais estudantes interpretam o ensino remoto, a partir de condições materiais e subjetivas específicas? No cerne destas questões está a percepção de que as dinâmicas, temporalidades e outras condições singulares do espaço doméstico alteram significativamente a relação ensino-aprendizagem e a experiência do e com o ensino. Partindo daí, este estudo pretende seguir os modos como estudantes descrevem suas experiências com o ensino remoto e como as atividades letivas online vêm sendo vivenciadas e percebidas por eles. No próximo tópico, são apresentados os primeiros movimentos desta pesquisa que, no limite, pretende refletir sobre os efeitos que a experiência aparentemente circunstancial com o ensino remoto terá no futuro próximo pós-pandemia, considerando-se a pervasividade das tecnologias digitais também no campo educacional.

Os caminhos da pesquisa no campo da cibercultura

A adoção do ensino remoto emergencial durante a pandemia foi acompanhada também pela formulação de saberes articulados em artigos, matérias jornalísticas, vídeos e podcasts que trazem à baila matizes, categorias e conjunturas que também compõem essa rede de associações, agentes e agências e negociações na qual a presente pesquisa toma lugar. A revisão sistemática deste material vem apontando para, pelo menos, três enfoques recorrentes: o das desigualdades sociais determinantes do acesso ao ensino remoto emergencial;5 5 Mattos, Laura. 2020. Pesquisa aponta aumento da ansiedade e tristeza em jovens na pandemia. Folha de São Paulo (Cotidiano), 19 ago. 2020. Acessado 17 jan. 2021. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/08/pesquisa-aponta-aumento-de-ansiedade-e-tristeza-em-jovens-na-pandemia.shtml. Palhares, Isabela. 2020. Pandemia pode tirar 484 mil alunos do ensino superior no país, projeta sindicato dos mantenedores. Folha de S. Paulo (Educação), 25 maio 2020. Acessado 17 jan. 2021. https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/05/pandemia-pode-tirar-484-mil-alunos-do-ensino-superior-no-pais-projeta-sindicato-de-mantenedoras.shtml. . as distinções conceituais entre EAD e ensino remoto, visando combater a percepção da “perda da qualidade” diferencial oferecida pelos cursos presenciais;6 6 Beahr, Patrícia Alejandra. 2020. O ensino remoto emergencial e a educação à distância. Jornal da Universidade (Ufrgs), 6 jul. 2020. Acessado 17 jan. 2021. https://www.ufrgs.br/coronavirus/base/artigo-o-ensino-remoto-emergencial-e-a-educacao-a-distancia. Correa, Suzana. 2020. Maioria dos alunos aponta queda na qualidade do ensino superior durante a pandemia, diz pesquisa. Jornal O Globo, 28 jul. 2020. Acessado 17 jan. 2021. https://oglobo.globo.com/sociedade/maioria-dos-alunos-aponta-queda-na-qualidade-do-ensino-superior-durante-pandemia-diz-pesquisa-24554918. Rabello, Maria Eduarda. 2020. Lições do coronavírus: ensino remoto não é EAD. Desafios da Educação. Grupo A Educação, 2 abr 2020. Acessado 17 jan. 2021. https://desafiosdaeducacao.grupoa.com.br/coronavirus-ensino-remoto. e o ensino pós pandemia e as possibilidades de melhor aproveitamento das tecnologias digitais na adoção de modalidades híbridas.7 7 Idoeta, Paula Ádamo. 2020. Os desafios e potenciais da educação à distância, adotadas às pressas em meio à quarentena. BBC News Brasil, 17 abr. 2020. Acessado 17 jan. 2021. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52208723. Alfano, Bruno e Yasmin Setubal. 2020. Adoção do ensino híbrido é o próximo nó da educação em tempos de pandemia. Jornal O Globo (Sociedade), 28 jul. 2020. Acessado 17 jan. 2021. https://oglobo.globo.com/sociedade/adocao-do-ensino-hibrido-o-proximo-no-da-educacao-em-tempos-de-pandemia-24554046. Seja qual for o enfoque, nota-se que a participação das tecnologias digitais no campo educacional ainda se baseia na divisão real/virtual, offline/online. As categorias mobilizadas para descrever a participação das tecnologias nos processos educacionais colocam, de um lado, a dimensão presencial e, de outro – inspirando novas práticas, estratégias, métodos, a dimensão “remota”, “on-line”.8 8 Rodrigues, Alessandra. 2020. Ensino remoto da educação superior: desafios e conquistas em tempos de pandemia. SBC Horizontes, 17 jun. 2020. Acessado 17 jan. 2021. http://horizontes.sbc.org.br/index.php/2020/06/17/ensino-remoto-na-educacao-superior.

Enquanto o ensino presencial é associado a “práticas tradicionais” que precisam ser revistas ou superadas, as ferramentas de comunicação remotas, já apontadas como um legado da pandemia para o ensino do futuro, costumam ser tratadas como aquilo que inspira novas práticas didático-pedagógicas. A autora Paula Sibilia (2012Sibilia, Paula. 2012. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto., 13) situa a “crise” da escola no âmbito de uma perceptível incompatibilidade entre os modos de funcionamento da instituição e os corpos e as subjetividades dos jovens do século 21. Parte dessa incompatibilidade se deve, grosso modo, às tentativas mal-sucedidas de fusão entre o universo escolar e midiático. Sob essa perspectiva, podemos pensar que as dificuldades dos estudantes – traduzidas como esgotamento, falta de concentração, desânimo – talvez não estejam associadas ao “remoto” especificamente, mas sim ao “ensino” ainda bastante moldado sob a perspectiva do disciplinamento, do trabalho civilizatório, da inserção do sujeito nas lógicas da modernidade (Sibilia 2012Sibilia, Paula. 2012. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto., 18-19).

Essa reflexão fortalece o viés teórico e metodológico desta pesquisa, que se volta para a dimensão vivencial das tecnologias e das plataformas digitais, afastando-se de abordagens centradas nos “usos” e nas “apropriações” das tecnologias, que situam a técnica como algo exterior aos processos sociais apopntando para uma compreensão extralocalizada das tecnologias (Rifiotis 2016Rifiotis, Theophilos. 2016. Desafios contemporâneos para a antropologia no ciberespaço: o lugar da técnica. In Políticas Etnográficas no Campo da Cibercultura, organizado por Jean Segata e Theophilos Rifiotis, 115-128. Brasília: ABA Publicações.). Tem-se com ponto de partida o pressuposto pontuado por Arturo Escobar (2016Escobar, Arturo. 2016. Bem-vindos à Cyberia: notas para uma antropologia da cibercultura. In Políticas Etnográficas no Campo da Cibercultura, organizado por Jean Segata e Theophilos Rifiotis, 21-66. Brasília: ABA Publicações., 22):

de que qualquer tecnologia representa uma invenção cultural, no sentido de que ela produz um mundo. Toda tecnologia emerge de condições culturais particulares ao mesmo tempo em que contribui para a criação de novas condições culturais.

Escobar (2016Escobar, Arturo. 2016. Bem-vindos à Cyberia: notas para uma antropologia da cibercultura. In Políticas Etnográficas no Campo da Cibercultura, organizado por Jean Segata e Theophilos Rifiotis, 21-66. Brasília: ABA Publicações., 22) provocando-nos a pensar na ciência e na tecnologia como “campos cruciais para a criação da cultura no mundo contemporâneo” lança algumas questões para uma antropologia da cibercultura que se mantêm atuais, sobretudo para os propósitos deste estudo: “de que maneira as pessoas vinculam-se cotidianamente a estas tecnopaisagens, e quais as consequências desses vínculos em termos de adoção de novas formas de pensamento e de ser? De que formas nossas práticas sociais e éticas mudam à medida que o projeto técnico-científico avança?” (Escobar 2016Escobar, Arturo. 2016. Bem-vindos à Cyberia: notas para uma antropologia da cibercultura. In Políticas Etnográficas no Campo da Cibercultura, organizado por Jean Segata e Theophilos Rifiotis, 21-66. Brasília: ABA Publicações., 30-31)

Está certo que Escobar (2016)Escobar, Arturo. 2016. Bem-vindos à Cyberia: notas para uma antropologia da cibercultura. In Políticas Etnográficas no Campo da Cibercultura, organizado por Jean Segata e Theophilos Rifiotis, 21-66. Brasília: ABA Publicações. lançou tais questões no final do século 20, em um cenário de surgimento das tecnologias da informação e da comunicação, em que os contornos dessa “cibercultura” estavam ainda sendo desenhados. Contudo, nota-se que seu potencial investigativo não se esgotou, a saber pelo drama social instaurado pela pandemia na adoção emergencial do ensino remoto. Embora na antropologia esse campo de estudos tenha se desenvolvido ampla e rapidamente, nas “ciências aplicadas” ainda é comum que a tecnologia seja abordada como autônoma em relação à sociedade, fruto do pensamento moderno baseado em dualidades como social e técnica, natureza e cultura, humano e não humano. Exemplo disso é a recorrente apropriação da palavra “impacto” para descrever os efeitos provocados pela “inserção” das tecnologias nos mais diferentes fenômenos sociais. Como já pontuou Lévy (1999Lévy, Pierre. 1999. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34., 21-22), essa noção de impacto igualmente revela uma concepção exteriorizada da tecnologia em relação à sociedade e à produção da cultura.

Situando a cibercultura no lugar onde ela é produzida e significada cotidianamente, onde os sujeitos são produzidos com e pelas tecnologias, este estudo procura se somar ao legado já consolidado do GrupCiber na defesa de políticas etnográficas para o campo da cibercultura (Segata e Rifiotis 2016Segata, Jean e Theophilos Rifiotis, orgs. 2016. Políticas Etnográficas no Campo da Cibercultura. Brasília: ABA Publicações., 10). Com uma abordagem sociotécnica, fortemente inspirada na teoria ator-rede, tal como sistematizada por Bruno Latour (2008)Latour, Bruno. 2008. Reensamblar lo social: una introducción a la teoría del actor-red. Buenos Aires: Manantial., coloca-se o foco sobre as ações que produzem o social, sendo essas ações realizadas no âmbito de associações entre atores humanos e não humanos. Aqui, a questão da agência é central, pois ela resulta da descrição de uma ação, de um processo (o fluxo da ação) a partir do rastreamento dos rastros observáveis (Rifiotis 2016Rifiotis, Theophilos. 2016. Desafios contemporâneos para a antropologia no ciberespaço: o lugar da técnica. In Políticas Etnográficas no Campo da Cibercultura, organizado por Jean Segata e Theophilos Rifiotis, 115-128. Brasília: ABA Publicações., 123-124).

Afinal, por que os estudantes desligam a câmera? Em uma abordagem sociotécnica, a tarefa antropológica seria a de se perguntar “de que modo algo/alguém incide no curso da ação de outro agente” e “como se dá essa incidência”? (Rifiotis 2016Rifiotis, Theophilos. 2016. Desafios contemporâneos para a antropologia no ciberespaço: o lugar da técnica. In Políticas Etnográficas no Campo da Cibercultura, organizado por Jean Segata e Theophilos Rifiotis, 115-128. Brasília: ABA Publicações., 124) Longe de ser uma simples escolha ou determinação, desligar as câmeras pode ser descrito e compreendido como efeito observável de um conjunto de (inter)ações entre indivíduos, espaços físicos, dispositivos tecnológicos, tipos de conexões com a internet. Até mesmo as didáticas, estratégias de ensino e toda sorte de condições subjetivas constituem essa rede onde as ações tomam lugar. Perguntar-se sobre os porquês das câmeras desligadas é, em última instância, estar disposto a rastrear e descrever o quê ou quem faz fazer com que desliguem as câmeras (Latour 2008Latour, Bruno. 2008. Reensamblar lo social: una introducción a la teoría del actor-red. Buenos Aires: Manantial.).

O que se traz aqui são algumas notas etnográficas e insights interpretativos decorrentes da fase inicial da pesquisa, compreendida em um trabalho de campo realizado entre junho e dezembro de 2020 na Faculdade Ielusc, instituição particular comunitária situada em Joinville, SC. Trata-se de um campo de pesquisa configurado a partir da participação direta da pesquisadora como docente que, desde o início da quarentena, moveu-se pela ideia de que a qualidade da relação professora-alunos dependia, também, de um deslocamento de olhar sobre as estratégias, metodologias, recursos pedagógicos para os modos singulares de como estudantes vinham vivenciando e significando o ensino remoto. Especificamente, sobravam questões acerca da sobreposição entre a vida doméstica e a vida universitária, isto é, sobre como se dava essa quase “invasão” da sala de aula nos espaços privados e familiares dos estudantes. Desde modo, a primeira inserção em campo se deu em uma aula preparada com o único objetivo de conversar com a turma sobre essas questões: como estava sendo para eles; quais as dificuldades; se havia alguma vantagem; se tinham um lugar adequado para participar das aulas e desenvolver as atividades; quais eram as principais interferências; como se davam as negociações dos espaços; horários e afazeres. Quais as dificuldades que vocês mais enfrentam com o ensino remoto? Essa pergunta foi pensada como mote inicial de uma conversa, no intuito de instigá-los a falar rompendo com o silêncio que se tornava praxe nas aulas.9 9 Os aspectos éticos desta pesquisa ainda estão sendo discutidos, pois esta etapa inicial foi pensada como uma oportunidade para que o próprio trabalho de campo pudesse ser mais bem desenhado. Nos termos conhecidos da etnografia, compreende-se que ética científica deve ser produto das interações e negociações realizadas em campo e não de critérios e protocolos definidos a priori. De todo modo, as motivações para a realização das conversas com os alunos, sempre em contexto de aula, foram expostas em sua dimensão científico-pedagógica, isto é, situando a pesquisa como um caminho necessário para se conhecer as realidades dos estudantes e, a partir desse conhecimento, conceber metodologias e didáticas mais assertivas para o ensino superior não apenas nessa situação emergencial. Outras cinco conversas, com outras turmas, seguiram essa primeira a partir de um aprimoramento constante do “roteiro”, considerando também os modos como cada grupo de estudantes se comportava durante a dinâmica. As conversas aconteceram pelo Google Meet, com a possibilidade de participação por áudio ou por chat, independentemente da situação das câmeras. Ao todo, aproximadamente 153 estudantes participaram dessa fase, que será apresentada adiante.

Afastando-se da ideia de “coleta de dados”, como sugere Marilyn Strathern (2014)Strathern, Marilyn. 2014. O efeito etnográfico. In O efeito etnográfico e outros ensaios, 345-406. São Paulo: Cosac Naify., a pesquisa se compromete com determinado ponto de vista “segundo o qual a vida social é complexa: ela é um fenômeno relacional e, sendo essa sua natureza, não pode ser reduzida a princípios ou axiomas elementares” (Strathern 2014Strathern, Marilyn. 2014. O efeito etnográfico. In O efeito etnográfico e outros ensaios, 345-406. São Paulo: Cosac Naify., 348). Para a autora, se a noção de coleta parece “se apropriar das posses das pessoas”, a noção de dados “mistifica o efeito social como fato”, reduzindo a complexidade do trabalho de campo, da sua relação com a escrita e do próprio processo de “produção” da realidade estudada. É com base nessa abordagem que os primeiros movimentos da pesquisa são apresentados nesse artigo que, por sua vez, que se configura como um primeiro exercício de escrita etnográfica.

A faculdade não cabe em casa: notas de um estudo etnográfico com estudantes de ensino superior em Joinville, SC

Figura 8
Tuíte de estudante de ensino superior

Começar a conversa com os estudantes a partir das “dificuldades” percebidas por eles não foi uma escolha aleatória. Os memes, posts, tuítes que circulavam em seus perfis nas redes sociais indicavam esse como um caminho. Reconhecer, sem meias palavras, que havia muitas dificuldades parecia ser uma forma de promover o encontro em lugar daquilo que, até então, parecia ser percebido como um confronto entre professores cumprindo seus planos de ensino e estudantes descrentes em relação à sua aprendizagem, recolhidos nos desligar das câmeras.

Em todas as turmas, essa questão desencadeou narrativas ricas e extensas, de modo que outras questões planejadas foram respondidas antes mesmo de serem enunciadas. E os modos como eles descrevem suas experiências com o ensino remoto mobilizam uma rede complexa de atores, de agentes que se associam, interagem e negociam em, pelo menos, três dimensões da vida que, aqui, serão apresentadas como categorias decorrentes de uma primeira leitura das narrativas dos participantes da pesquisa.

A primeira dimensão pode ser caracterizada, inicialmente, como estrutural, incluindo as condições materiais e objetivas que os estudantes possuem para acessar e participar das aulas. Um ambiente propício ao estudo, os dispositivos, e a própria conexão, estão entre os aspectos mais considerados até então, normalmente associados aos seus efeitos no aproveitamento das aulas e/ou na vida familiar:

eu tive que comprar uma penteadeira e tive que pegar o notebook, da empresa onde eu trabalho, emprestado. Porque eu não tinha nem computador nem penteadeira. Ou eu via a aula pelo celular, deitada na cama, e ia ser mais merda do que agora. Então, eu tive que fazer tudo isso (Laís, com. pess., 2020).

Essas condições materiais não são vistas, em geral, como dificuldades em si, isoladamente, mas geralmente são situadas na dinâmica familiar e nas experiências e sentidos próprios da casa, do espaço doméstico. Por um lado, prover-se de uma escrivaninha, de uma cadeira, de um notebook (ao invés do celular) ou de um ambiente silencioso passa a ser condição para livrar-se do sono, do desejo de descansar, da vida partilhada na sala ou na cozinha, das interferências do pai, da mãe, da irmã, dos filhos. Contudo, por mais que essas condições sejam alcançadas, integral ou parcialmente, percebe-se que não são suficientes para garantir a experiência satisfatória com as aulas e as atividades letivas. Como disse a Nina, outra aluna participante da pesquisa, a parte ruim, é que a cama chama muito. […] Aí essa é a parte que mais me incomoda. Estar naquele quentinho da cama e não poder dormir porque tem que fazer as coisas” (Nina, com. pess., 2020).

Foi inevitável lembrar da clássica distinção operada por DaMatta (1986DaMatta, Roberto. 1986. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco., 24) entre a casa e a rua:

quando falamos da ‘casa’, não estamos nos referindo simplesmente a um local onde dormimos, comemos ou que usamos para estar abrigados do vento, do frio ou da chuva. Mas – isto sim – estamos nos referindo a um espaço profundamente totalizado numa fonte moral. Uma dimensão da vida social permeada de valores e de realidades múltiplas.

Em oposição à rua, marcada pelo movimento e pela indiferenciação, na casa “somos únicos” e temos um “lugar singular numa teia de relações marcadas por muitas dimensões sociais importantes, como a divisão de sexo e de idade” (DaMatta 1986DaMatta, Roberto. 1986. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco., 25). Como a dimensão do trabalho, poderíamos dizer que vida acadêmica também fica “confundida” entre a casa e a rua. Com seus aspectos institucionais e relacionais, a “faculdade” – como se referem os estudantes –, pensada não apenas como um espaço físico, está longe da indiferenciação da “rua”, mas também não corresponde às posições sociais que tão fortemente conformam as relações familiares.

Embora a abordagem adotada aqui se afaste dessas categorias puras e generalizantes, priorizando hibridismos e fluxos de ações, as definições de DaMatta (1986)DaMatta, Roberto. 1986. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco. correspondem, em alguma medida, aos modos como os estudantes descrevem e interpretam suas experiências com as “aulas on-line”. É como disse Laís em uma das conversas que tivemos:

quando tu tá na sala de aula, entre aspas, tu se obriga a olhar pro professor. Agora, quando tu tá em casa, tu abre teu computador, tu pode fazer qualquer outra coisa. Ah, tem gente que lava louça vendo aula, faz outra coisa vendo aula e… tu não presta completamente atenção (Laís, com. pess., 2020).

Isso nos leva à segunda dimensão apontada nas narrativas dos estudantes, compreendida nesse momento como didática e que inclui as formas como eles sentem e percebem as estratégias pedagógicas adotadas no ensino remoto, geralmente centradas na aula expositiva ministrada em “salas virtuais”.

eu vejo que muitos professores que estão tentando passar as aulas da forma como era antes - tipo, passando slides e tudo mais, é horrível. […] Eu sei que é complicado pra vocês também, meu, é supercomplicado, eu entendo que é um momento bem difícil, mas só dando um feedback daquilo que eu estou sentindo, daquilo que a gente tá passando (Maria, com. pess., 2020).

Exatamente isso. Às vezes, a aula se torna muito exaustiva, o professor começa a falar seis e meia e vai até dez horas da noite. E a gente tá morrendo. Aí não quer gravar a aula. A gente não vai fixar aquele conteúdo, porque chega uma hora parece que tua cabeça não absorve mais, sabe? (Cleia, com. pess., 2020).

Percepções como essas estão entre as mais recorrentes na pesquisa realizada até aqui. A associação entre a falta de concentração e a forma como as aulas são conduzidas e ministradas, sugere um descompasso significativo entre o que a casa inspira fazer e o que a instituição e os professores esperam que se faça. Isso não quer dizer que essa dissonância não se estabeleça nas aulas presenciais. Pelo contrário, vêm de longe os dilemas relacionados ao uso excessivo de celulares e de notebooks nas salas de aula, que concretamente “levam” estudantes para outros lugares no tempo e no espaço das aulas. No entanto, a experiência do ensino remoto inverte essa relação, situando no online o compromisso ordinário e colocando outras possibilidades e tarefas como os vetores de distração. Mais do que isso, as narrativas nos mostram como o “on-line” não cabe em generalizações, pois sugere vivências, interesses e performances distintas. E o que parece figurar como o “a mais” nas experiências online são, justamente, as aulas

eu tô trabalhando em casa e imagino que muita gente esteja fazendo isso. Mas, a gente acorda e liga o computador. […] Aí quando tu vê, tem trabalho pra fazer. Aí tu volta pro computador. Não tem aquela folga, sabe? Tu não tem tipo, ah vou dirigir, vou pegar um ônibus, tu não tem aquela folga. Aí, a tarde tu faz trabalho, vai ver um vídeo, vai ver um filme, tu continua no computador. Depois tu vem pra faculdade e tem que ficar no computador de novo […] (Maria, com. pess., 2020).

A hipótese que a pesquisa permite construir até aqui reside sobre a concepção essencializada de “ensino presencial”. Considerar o ensino remoto como sinônimo de aulas online (em tempo real, com as mesmas metodologias) pode ser um dos “nós” desse problema. Ora, o ensino remoto é, por definição, o ensino feito a distância, contando com tecnologias comunicacionais que possibilitem que professores e estudantes interajam e trabalhem sem partilhar de um espaço físico e tempo comum. Essas categorias que normalmente organizam a nossa experiência – espaço e tempo – tendem, contudo, a se diluírem na conexão, nos fluxos informacionais, fomentando a dispersão. Sibilia (2012Sibilia, Paula. 2012. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto., 186) desenvolve essa ideia ponderando que a sociedade informacional não conecta, como costumamos pensar, mas tende a desligar, dificultando as possibilidades de dialogar ou de compor uma experiência junto com os demais. Para a autora, nos celulares e nas redes sociais, o que vemos não são jovens dialogando, mas buscando formas de permanecer em contato; “não se detêm para pensar no que lhe diz o outro, mas ‘vão mandando o que sai’” (Sibilia 2012Sibilia, Paula. 2012. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto., 187).

Nesse sentido, pensar sobre as relações professor-estudante e ensino-aprendizagem na pandemia ou depois dela, considerando-se a participação cada vez mais pervasiva das tecnologias digitais na educação, implica em pensar, como sugere Sibilia (2012Sibilia, Paula. 2012. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto., 184-185), em projetos pedagógicos realmente inovadores, capazes “de concentrar de novo a atenção do conjunto de alunos na aprendizagem”.

Isso nos leva à terceira dimensão das experiências com o ensino remoto, tal como percebidas pelos estudantes que participaram da pesquisa até aqui: a dimensão cotidiana. Sem perder de vista que as ações e significados são produzidos na articulação entre as três dimensões, é nessa esfera do cotidiano que se situam as negociações realizadas em casa, o drama do acúmulo ou sobreposição de tarefas e afazeres, dos conflitos instalados a partir da presença (online) de professores e seus conteúdos, das reconfigurações de espaços, hábitos e dinâmicas decorrentes da pandemia e do próprio ensino remoto.

De todas as conversas realizadas com estudantes neste primeiro momento da pesquisa, a narrativa de Léo descreve um conjunto de agências e interações que definem diretamente sua experiência com as aulas online:

eu teria tudo pra ter minha aula tranquila. […] só que […] geralmente, quem cuidava da casa que era minha avó, eu que estou cuidando da casa. Então, nesse período que começa a aula é o período que eu começo a fazer janta pra minha mãe que vai chegar do trabalho, já que eu convivo com três cachorros eu começo a arrumar a bagunça que o cachorro fez durante o dia todo. […]. O meu pai […] faz questão de entrar no meu quarto e opinar sobre a aula. Assim, tá bom, eu sou obrigada a aceitar. […] eu gostaria de prestar atenção na aula, só que daí eu tenho que lidar com a questão que a minha mãe precisa de alguma ajuda, preciso fazer alguma compra […]. Porque, obviamente, eu não sou do grupo de risco, então sou eu que tô saindo de casa. E aí, […] eu não quero sair da aula, então muitas vezes, se eu saio, vou andando até o mercado com o celular na mão, com meu fone de ouvido, porque eu continuo a ouvir a aula. […]aí tem cachorro, […], aí tem a minha avó gritando com os cachorros, […] aí alguém precisa fazer uma pergunta pra mim, aí precisa me passar alguma coisa que eu tenho que fazer amanhã cedo, então no meio da aula eu recebo a minha mãe, a minha vó […] eu desisti de aprender nas aulas EaD. […] Não precisava ser assim, porque tem gente que tem uma situação familiar bem diferente da minha: que tem mais gente em casa, e eu só convivo com 3 pessoas, meu pai, minha mãe e minha avó e os cachorros. Eu não tenho filho, eu tenho o meu próprio quarto que teoricamente deveria ser um local privado pra eu aprender, sabe, e isso me incomoda bastante. […] E esse era o meu relato, tinha que tirar essa coisa do peito (Léo, com. pess., 2020).

Essa narrativa nos situa naquilo que parece ser recorrente: mesmo que as condições materiais ideais para participar das aulas existam ou sejam conquistadas, o espaço doméstico está longe de ser apenas um espaço físico onde as pessoas habitam. O modo como a vida doméstica é descrita aqui encontra eco nas palavras de DaMatta (1986DaMatta, Roberto. 1986. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco., 25-26):

em casa somos classificados pela idade e pelo sexo como, respectivamente, mais velhos e mais moços e como homens e mulheres” e “nela somos determinados por tudo o que a ‘honra’, a ‘vergonha’ e o ‘respeito’, esses valores grupais, acabam determinando.

E é neste “espaço moral importante e diferenciado” (DaMatta 1986DaMatta, Roberto. 1986. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco., 27) que se decide ou se prefere “desligar as câmeras” no momento das aulas online:

eu acho que muito tem a ver com a gente estar se sentindo confortável, com a roupa que a gente quiser, com o cabelo que a gente quiser, comendo[…] eu acho que o fato da gente é, por exemplo, quando a gente está na faculdade, a gente não fica se olhando o tempo todo. Se estiver com o feijão no dente, se estiver feio, só vai descobrir depois. Aqui não, você praticamente está com um espelho na tua cara o tempo todo, fica se, além de ficar olhando os outros, você fica se olhando. Aí se fica, nossa, dessa forma eu tô feia, vamos arrumar esse cabelo, vamos endireitar essas costas (Bela, com. pess., 2020).

Ligar a câmera é assumir um compromisso de interação, mesmo que em silêncio. E toda interação é performativa. Como diz Bela: “na faculdade a gente não fica se olhando”, mas a gente se prepara para aquele cenário, para aquelas pessoas: há sempre um jeito de vestir, uma maquiagem, gestualidades e comportamentos que produzem, nos termos de Goffman (2008)Goffman, Erving. 2008. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes., uma “representação do eu”. Em casa também há performance, mas produzida em outro enquadre, para outros públicos e no contexto de outras relações.

Rapidamente, os estudantes compreenderam que podiam prescindir desta demanda performática desligando as câmeras. Enquanto isso, outras instâncias da vida online não sofrem a mesma retração. Para o professor que segue seus estudantes nas redes sociais, não é incomum encontrar tuítes e posts publicados durante as aulas, com fotos, vídeos ou narrativas pessoais. Para os propósitos dessa pesquisa, isso sugere que o ambiente, as lógicas e as bdinâmicas do ensino remoto estão distantes das linguagens que determinam as experiências mais significativas na internet.

Considerações finais

Figura 9
Tuíte de aluno de ensino superior

Este artigo teve por objetivo apresentar os primeiros movimentos de uma pesquisa etnográfica caracterizada pela “imersão” na dimensão vivencial do ensino remoto, seus hibridismos e suas controvérsias. Como afirma a Strathern (2014)Strathern, Marilyn. 2014. O efeito etnográfico. In O efeito etnográfico e outros ensaios, 345-406. São Paulo: Cosac Naify., a imersão é um movimento complexo e se dá dentro e fora do campo, na medida em que é revivida na escrita etnográfica. São essas duas dimensões relacionadas que criam o que Strathern (2014Strathern, Marilyn. 2014. O efeito etnográfico. In O efeito etnográfico e outros ensaios, 345-406. São Paulo: Cosac Naify., 350) chama de momento etnográfico que “funciona como exemplo de uma relação que junta o que é entendido (que é analisado no momento da observação) à necessidade de entender (o que é observado no momento da análise)”.

Na continuidade da pesquisa se pretende ampliar a abrangência das experiências, bem como os cenários e situações configurados a partir do início do novo ano letivo, considerando-se os desdobramentos da pandemia em Santa Catarina e suas consequências para o ensino superior. A partir dos movimentos realizados até aqui, a pesquisa se projeta em dois horizontes. Um mais imediato, em que a análise etnográfica pode subsidiar a revisão de estratégias didático-pedagógicas e de infraestruturas de ensino, alinhando-as às condições sociais e subjetivas que mediam as experiências com o ensino remoto. Aqui, a hipótese é a de que as percepções de “queda” na qualidade do ensino se originam, também, na tendência expressa de se transpor para as plataformas digitais métodos de ensino típicos do ensino presencial, sem uma reflexão mais detida sobre as condições em que os estudantes “assistem” as aulas e realizam seus estudos. Em um horizonte mais distante, a pesquisa tem o potencial de apontar possibilidades para o ensino superior pós-pandemia, organizando e aprofundando, com base em critérios científicos, as experiências e o conhecimento acumulado em 2020. Nesse ponto, pressupõe-se que a retomada das atividades presenciais não se dará nas mesmas condições anteriores. Como aponta o Manual sobre biossegurança para reabertura das escolas no contexto da Covid-19,10 10 Pereira, Ingrid D'avilla Freira et al. 2020. Manual sobre biossegurança para reabertura das escolas no contexto da Covid19. Fiocruz, 2020. Acessado 7 abr. 2021. https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos/manual_reabertura.pdf. o retorno às aulas deverá considerar novas suspensões para evitar novos surtos, bem como a adoção de modalidades híbridas.

Diante disso, as questões levantadas até aqui convidam à reflexão mais do que apontam conclusões. De saída, somos convidados a nos afastar de uma perspectiva essencialista ou triunfalista das relações entre a tecnologia e a sociedade, concebendo a “inovação” no campo educacional a partir de outros prismas.11 11 Bazzo, Walter Antonio, Irlan von Linsingen e Luiz Teixeira do Vale Pereira, orgs. 2003. Introdução aos estudos CTS (Ciências, Tecnologia e Sociedade). In Cadernos de Ibero-América, organizado pela Organização dos Estados Ibero-americanos para Educação, as Ciências e a Cultura. Acessado 29 nov. 2020. https://www.oei.es/historico/salactsi/Livro_CTS_OEI.pdf. No lugar da mera instrumentalização, sugere-se a renovação de conteúdos curriculares e de técnicas didáticas na educação superior, de forma a operar uma mudança na imagem da ciência e da tecnologia, não mais como atividades autônomas, mas como processo social cuja gênese e trajetória são afetadas também por valores morais, pressões econômicas e conjunturas políticas.

Retomo, aqui, um questionamento de Paula Sibilia em sua reflexão sobre a “escola em tempos de dispersão”. Como produzir alguma aprendizagem quando os motivos pelos quais os jovens assistem as aulas (mesmo presenciais) não correspondem necessariamente às expectativas escolares ou universitárias? Considerando que os meios informacionais exigem a hiperconexão em diversas interfaces desarticuladas entre si, “é preciso desenvolver estratégias ativas para intervir na desordem em busca de coesão e pensamento” (Sibilia 2012Sibilia, Paula. 2012. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto., 188). Estaria a escola, pergunta a autora, em condições de assumir esse compromisso?

É importante considerar, nesse sentido, que as instituições encontram muitas dificuldades para conceber e implantar projetos pedagógicos efetivamente inovadores no que diz respeito à participação das tecnologias digitais nos processos didático-pedagógicos. Não só a concepção como as práticas associadas ao ensino presencial estão articuladas a uma infraestrutura educacional que inclui mínimo de dias letivos, indicadores de avaliação interna e externa, diretrizes nacionais e matrizes curriculares, ementas, relação entre conteúdos previstos e realizados e, principalmente, questões trabalhistas relativas aos regimes de contratação (no caso específico das instituições privadas) que representam toda sorte de obstáculos para a relativização de certas estratégias. Em geral, diminuição do tempo de aula, combinação entre dinâmicas presenciais e a distância, flexibilização de horários e diversificação de espaços acabam resultando, ao contrário do que se espera, na precarização do trabalho docente, mesmo que sob o manto da “inovação”.

Em reportagem da Agência Pública, Thiago Domenici12 12 Domenici, Thiago. É cruel: professores relatam de aulas online com 300 alunos a demissões por pop-up. Agência Pública, 22 set. 2020, acessado em 5 abr. 2021, https://apublica.org/2020/09/e-cruel-professores-relatam-de-aulas-on-line-com-300-alunos-a-demissoes-por-pop-up. apresenta o delicado cenário das universidades privadas em São Paulo, marcado por demissões em massa, reduções na jornada de trabalho de docentes e por aulas online superlotadas, em um quadro de evidente redução de custos. Trata-se de uma tendência que chega às instituições de Santa Catarina e que nos inspira a vislumbrar saídas que sigam atendendo às contingências da pandemia e pós-pandemia sem prescindir da qualidade do ensino e, principalmente, das trocas e vínculos inerentes à constituição da vida acadêmica. E, embora essa realidade corresponda quase que especificamente às instituições privadas, é importante considerar que, segundo o último censo da educação superior brasileira, tem-se aproximadamente 45% de estudantes matriculados em faculdades e centros universitários, a maioria deles privados.13 13 Brasil. Censo da educação superior mostra aumento de matrículas no ensino à distância. Notícias, 23 out. 2020, acessado em 6 abr. 2020, https://www.gov.br/pt-br/noticias/educacao-e-pesquisa/2020/10/censo-da-educacao-superior-mostra-aumento-de-matriculas-no-ensino-a-distancia. Em um horizonte mais amplo, portanto, esta pesquisa se compromete com uma perspectiva da educação superior que se afasta de projetos mercantilizados e busca saídas no atual cenário priorizando valores inerentes à experiência universitária.

Referências

  • DaMatta, Roberto. 1986. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco.
  • Escobar, Arturo. 2016. Bem-vindos à Cyberia: notas para uma antropologia da cibercultura. In Políticas Etnográficas no Campo da Cibercultura, organizado por Jean Segata e Theophilos Rifiotis, 21-66. Brasília: ABA Publicações.
  • Goffman, Erving. 2008. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes.
  • Latour, Bruno. 2008. Reensamblar lo social: una introducción a la teoría del actor-red. Buenos Aires: Manantial.
  • Lévy, Pierre. 1999. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34.
  • Rifiotis, Theophilos. 2016. Desafios contemporâneos para a antropologia no ciberespaço: o lugar da técnica. In Políticas Etnográficas no Campo da Cibercultura, organizado por Jean Segata e Theophilos Rifiotis, 115-128. Brasília: ABA Publicações.
  • Sibilia, Paula. 2012. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto.
  • Segata, Jean e Theophilos Rifiotis, orgs. 2016. Políticas Etnográficas no Campo da Cibercultura Brasília: ABA Publicações.
  • Strathern, Marilyn. 2014. O efeito etnográfico. In O efeito etnográfico e outros ensaios, 345-406. São Paulo: Cosac Naify.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2021
  • Aceito
    06 Abr 2021
  • Publicado
    24 Ago 2021
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