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Cidade à venda: inflexão ultraliberal na produção do espaço em Florianópolis

City for sale: ultraliberal inflection in the production of space in Florianópolis

Resumo

Este artigo analisa o processo de produção do espaço urbano em Florianópolis a partir da articulação entre Estado, capital imobiliário e imprensa tradicional, para atender aos interesses dos grupos dominantes locais e facilitar a expansão imobiliária. Para isso, foi necessário o desmonte dos órgãos e instrumentos públicos de planejamento e de fiscalização pela via da reforma administrativa. O ápice foi a aprovação da revisão do Plano Diretor em 2023, ignorando as demandas dos movimentos populares. Esse processo se beneficiou das esferas econômica, política e ideológica, definidas como as principais formas de controle do espaço urbano, sob a égide da cidade-empresa. Contrapondo-se a isso, a capital catarinense é campo de lutas sociais pelo acesso à terra urbanizada e pelo direito à cidade.

produção do espaço; plano diretor; inflexão ultraliberal; direito à cidade; Florianópolis

Abstract

This article analyses urban space production in the city of Florianópolis based on the articulation between government, real state capital and traditional press to meet the local ruling classes’ interests and facilitate real estate expansion. To achieve this, it was necessary to dismantle public agencies and instruments of planning and inspection through an administrative reform. The apex was the approval of the revision of the Master Plan in 2023, ignoring the demands of popular movements. This process benefited from the economic, political and ideological spheres, which are the main forms adopted by the ruling classes to control the urban space, under the auspices of the city-corporation. In opposition to that, Florianópolis, the capital city of the state of Santa Catarina, is a field of social struggles for access to urban land and for the right to the city.

space production; master plan; ultraliberal inflection; right to the city; Florianópolis

Introdução

O jornal Notícias do Dia, do grupo catarinense de mídia ND, filiado à Rede Record, publicou uma notícia em 29 de abril de 2014 que, relida hoje, oferece indícios dos embates que estavam por vir na capital catarinense, conhecida como “Capital Turística do Mercosul” e “Ilha da Magia”. A notícia tratava da condenação, por crime ambiental, de quatro integrantes do Grupo ETC. O motivo era o conjunto de cerca de 40 interferências feitas em muros, viadutos e marquises da cidade, ao longo de 2013, com a mensagem “Cidade à venda”.

O motivo era assim apresentado por um dos integrantes do grupo entrevistado pelo jornalista: “Esta intervenção denuncia a política de espetacularização imobiliária e o processo de leiloamento da cidade, que tem como catálogo o plano diretor aprovado pela atual gestão do município [à época o prefeito era César Souza Júnior]” (Diogo, 2014DIOGO, M. (2014). Grupo responde por crime ambiental após espalhar a mensagem “Cidade à Venda” pela Capital. Notícias do Dia, de 29 abril.). Para justificar o processo por crime ambiental contra o grupo, a prefeitura afirmou, ao jornal, que a interferência “Cidade à venda” (Figura 1) não era considerada artística por “[...] conter cunho político e manifestação clara contra a gestão municipal. As pichações [...] procuraram denegrir claramente a imagem do prefeito e da administração” (ibid.).

Figura 1
– Intervenção do Grupo ETC em Florianópolis (SC)

É preciso examinar a estrutura econômica, social e política para compreender o motivo pelo qual o então prefeito criminalizou um grupo artístico por explicitar, no espaço público, as palavras de ordem “Cidade à Venda”.

Para isso, este artigo analisa o processo de produção do espaço urbano em Florianópolis a partir da articulação entre Estado, capital imobiliário e imprensa tradicional para atender aos interesses dos grupos dominantes locais – aqui compreendidos como aqueles ligados à Associação FloripAmanhã e ao Movimento Floripa Sustentável. O processo nessa lógica foi desencadeado na aprovação, em janeiro de 2021, do chamado segundo “Pacotaço” do então prefeito Gean Loureiro (MDB, depois DEM e, agora, União Brasil), em meio à pandemia de covid-19. De forma concomitante, são analisadas a lei complementar n. 482/2014 e a lei complementar n. 739/2023 (Florianópolis, 2023FLORIANÓPOLIS (2023). Lei complementar n. 739 de 4 de maio de 2023, que altera a lei complementar n. 482 de 2014 (Plano Diretor de Florianópolis) e consolida seu processo de revisão. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/sc/f/florianopolis/lei-complementar/2023/74/739/lei-complementar-n-739-2023-altera-a-lei-complementar-n-482-de-2014-plano-diretor-de-florianopolis-e-consolida-seu-processo-de-revisao. Acesso em: 20 maio 2023.
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), que alteram o plano diretor e instituíram um novo marco regulatório urbano de natureza privatista. A aprovação do Pacotaço e das duas leis mencionadas beneficiou-se das esferas econômica, política e ideológica, definidas por Villaça (1998)VILLAÇA, F. (1998). Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel, Fapesp, Lincoln Institute. como as principais formas de controle do espaço urbano pela classe dominante, sob a égide da cidade-empresa, analisada por Vainer (2000)VAINER, C. (2000). “Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano”. In: ARANTES, O; MARICATO, E; VAINER, C. O. Cidade do pensamento único. Petrópolis, RJ, Vozes, pp. 75-104.. Contrapondo-se a isso, a capital catarinense experimenta a agudização das lutas sociais pelo acesso à terra urbanizada e pelo direito à cidade.

Este artigo se divide em três partes: 1) Estado neoliberal e a constituição da cidade-empresa; 2) O projeto neoliberal em Florianópolis em três esferas; 3) A cidade como direito: lutas sociais e a resistência ao projeto de cidade neoliberal. Com isso, será demonstrado como Florianópolis vai se afastando de um projeto sintonizado com o que apregoa o Estatuto da Cidade – lei n. 10.257/2001 (Brasil, 2001BRASIL (2001). Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal e estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Presidência da República Casa Civil: Subchefia para Assuntos Jurídicos. Brasília. O Estatuto da Cidade. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acesso em: 20 maio 2023.
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) – em se promove o desenvolvimento urbano que inclua as populações e o bem comum como elementos orientadores do processo de planejamento urbano – para a preponderância do capital privado, particularmente o imobiliário, em detrimento dos interesses coletivos, ambientais e difusos (públicos), na linha de análise feita por Peres e Sugai (2021)PERES, L. F. B.; SUGAI, M. I. (2021). “O Plano Diretor de Florianópolis à luz dos 20 anos do Estatuto da Cidade: revisão ou oportunismo?”. In: SILVA, B. F. et al. (orgs.) A cidade em disputa: Planos Diretores e participação no cenário da pandemia. Marília, Lutas Anticapital, pp. 99-120.. Nesse processo, a prefeitura busca, pela mídia, reproduzir um discurso de legitimação do projeto ultraliberal, que é sua face ideológica, criminalizando os movimentos sociais.

Estado neoliberal e a constituição da cidade-empresa

A cidade contemporânea é desenhada para o capital em sua fase monopolista, ao longo do século XX, e, em especial, a partir dos anos 1970, com a crise mundial e o recuo do modelo keynesiano de desenvolvimento, ascendendo o Estado neoliberal ou Estado mínimo, que vem se expandindo com os planos de austeridade, amparados no receituário do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial e do Consenso de Washington. Esse processo se agravou com a crise de 2008 desencadeada nos EUA. Essas crises têm se expressado territorial e urbanisticamente em um processo crescente de financeirização das transações imobiliárias, analisadas por Fix (2011)FIX, M. de A. B. (2011). Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário. Campinas/SP, Universidade Estadual de Campinas, Departamento de Economia.. A esse respeito, Vainer (2000VAINER, C. (2000). “Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano”. In: ARANTES, O; MARICATO, E; VAINER, C. O. Cidade do pensamento único. Petrópolis, RJ, Vozes, pp. 75-104., pp. 77-78) analisa o planejamento estratégico urbano, destacando a cidade em três analogias, dimensões na fase neoliberal do capitalismo: a cidade é uma mercadoria, a cidade é uma empresa e a cidade é uma pátria, em que o projeto de cidade implica a direta e imediata apropriação dela por interesses empresariais globalizados, o que depende, em grande medida, do banimento da política e da eliminação do conflito e das condições de exercício da cidadania. Dialogando com Vainer, Rizzo (2013)RIZZO, P. M. B. (2013). O planejamento urbano no contexto da globalização: caso do plano diretor do Campeche em Florianópolis, SC. Tese de doutorado. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina. assinala que “as associações patronais ocupam sem mediação a cena pública; é a democracia direta, da burguesia. É a relação direta e aberta entre poder público e empresários, organizando conjuntamente um plano” (p. 294).

Esse processo político e econômico tem levado à desregulamentação do Estado, com a investida do capital privado na administração pública, o agressivo processo de privatização e terceirização e a destinação de parte do orçamento público ao setor privado. Nesse sentido, uma simbiose entre governos, parlamentos e capitais de incorporação, de financiamento e de construção acabou promovendo um boom imobiliário que tomou as cidades de assalto. Como aponta Maricato (2015)MARICATO, E. (2015). Para entender a crise urbana. São Paulo, Expressão Popular., se nos EUA o mote da bolha imobiliária se deu no contexto especial da especulação financeira, no Brasil, o core do boom aliou ganhos financeiros à histórica especulação fundiária de cunho patrimonialista, a qual se manteve agora no contexto da financeirização. “O ‘nó da terra’ continua como trava, revisitada na globalização, para a superação do que podemos chamar de subdesenvolvimento urbano” (ibid., p. 39).

A partir de então, estabelece-se uma forma de gestão baseada no modelo de cidade corporativa, no sentido de aglutinar vários e múltiplos capitais (comercial, financeiro, imobiliário) em circuito local, nacional e internacional, que, alinhada aos imperativos de uma economia globalizada, irá exigir maciços investimentos em equipamentos urbanos e serviços destinados a atender às necessidades e aos padrões de consumo da classe dominante, processo que ocorre também em Florianópolis e Região Metropolitana, que experimenta a égide do capital, em sua fase financeira, repercutindo sob diferentes formas de controle da produção do espaço urbano.

De acordo com Villaça (1998)VILLAÇA, F. (1998). Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel, Fapesp, Lincoln Institute., essas formas de controle se expressarão por meio das seguintes esferas: econômica (envolvendo o controle do mercado imobiliário e o processo de valorização espacial); política (a partir da legislação, dos investimentos públicos e do aparelho repressor estatal como forma de controle sobre o uso e a ocupação do solo urbano); e ideológica (enquanto um conjunto de valores e crenças que visam, em última instância, sustentar ideologicamente a dominação de classes no espaço urbano).

Às formas de controle indicados por Villaça (ibid.), incorpora-se o componente espacial, compreendido por Santos (2020)SANTOS, M. (2020). Espaço e método. São Paulo, Edusp. como uma instância social que contém e é contida pelas demais instâncias econômicas, político-institucionais e cultural-ideológicas. Tomado como algo material, tangível, que dispõe de certa autonomia e influência sobre outras estruturas sociais, o espaço irá se apresentar como um componente fundamental da totalidade social, é “matéria trabalhada por excelência; uma forma durável, que não se desfaz paralelamente à mudança de processos” (Santos, 2012SANTOS, M. (2012). Por uma geografia nova: da crítica da geografia a uma geografia crítica. São Paulo, Edusp., p. 173). Enquanto síntese e base territorial por meio da qual as relações sociais e os conflitos se desenvolvem, o espaço, considerando a sua produção, apresentará um valor próprio que será determinado por suas características físico-territoriais atreladas a processos de âmbito econômico, político e social.

Nessa perspectiva, Florianópolis começa a se aproximar do planejamento estratégico como cidade-empresa com o projeto Floripa 2030,1 1 Segundo Aguiar (2015, p. 26), o Floripa 2030, reunindo as forças econômicas dominantes da cidade e região, foi “a primeira proposta concreta de planejamento para toda a cidade. Aglutinou a lei n. 2193/1985, que versa sobre os balneários e lei complementar 1/1997, que versa sobre o distrito sede [...] a essência do Floripa 2030 é a expressão local e conjuntural de um movimento de longa duração intrínseco ao setor imobiliário da cidade e sua busca por conexão com o mercado global”. nascido em 2008, por meio do qual os grupos dominantes locais aprofundaram seu programa de futuro com o apoio explícito do poder público. O projeto se apresenta como a agenda do desenvolvimento sustentável para Florianópolis, agregando setores da construção civil, comércio e serviços para formular uma proposta de plano diretor.

Sem abordar os problemas estruturais que a cidade tinha até ali (saneamento, habitação e transporte, por exemplo), o Floripa 2030 adotou a retórica da sustentabilidade, aglutinando os principais setores empresariais em torno de seu projeto até a aprovação do plano diretor em finais de 2013 e início de 2014 (lei complementar n. 482/2014), e recentemente, uma revisão concretizada na lei complementar n. 739/2023 (Florianópolis, 2023FLORIANÓPOLIS (2023). Lei complementar n. 739 de 4 de maio de 2023, que altera a lei complementar n. 482 de 2014 (Plano Diretor de Florianópolis) e consolida seu processo de revisão. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/sc/f/florianopolis/lei-complementar/2023/74/739/lei-complementar-n-739-2023-altera-a-lei-complementar-n-482-de-2014-plano-diretor-de-florianopolis-e-consolida-seu-processo-de-revisao. Acesso em: 20 maio 2023.
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).

O projeto Floripa 2030 é um marco, visto que o discurso da sustentabilidade deu o corpo ideológico que faltava para impulsionar o projeto imobiliário, o qual alicerçou os interesses econômicos posteriores, a seguir analisados. Hoje, esse projeto dos setores empresariais tem continuação no Movimento Floripa Sustentável e na Associação FloripAmanhã, que dão sustentação ao Floripa 2030, com novas pautas, além da economia criativa, geração de empregos e da sustentabilidade. Agora, aparecem, nos manifestos e discursos dessas entidades,2 2 No seu Estatuto, quando foi fundada, em novembro de 2005, a Associação FloripAmanhã (https://floripamanha.org/) define-se como uma “entidade civil, dotada de personalidade jurídica de direito privado, sem fins econômicos, com número ilimitado de associados”, voltada ao terceiro setor (parágrafo único do art. 1º). Nos seus objetivos, que buscariam o bem-estar da população pelo planejamento urbano com vocação regional, assinala-se a importância da inovação, criatividade e cidade inteligente e da cooperação público-privada. Mas ao que temos assistido é que seus membros são majoritariamente de empresas e entidades privadas e que, em geral, alinham-se com as administrações públicas, as quais estamos analisando neste artigo, cujas práticas contradizem os objetivos da entidade. Já o Floripa Sustentável, em seu site (https://floripasustentavel.com.br/), define-se como “um movimento apartidário, criado em agosto de 2017 por entidades, empresas e pessoas que se uniram para debater ideias, fomentar soluções eficazes e projetar o futuro de Florianópolis com um crescer responsável”, tendo quatro pilares: preservação ambiental, crescimento econômico, desenvolvimento social do Floripa Sustentável e planejamento urbano. Integram o Floripa Sustentável 45 entidades, entre elas a Associação Comercial e Industrial de Florianópolis (Acif) e o Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon). a inclusão social e, já de forma aberta e pública, a necessidade de desburocratizar o poder público, dando-lhe agilidade administrativa, pela forma de implantação de Organizações Sociais (OS), sob a insígnia da terceirização da administração pública, que ficaram ficou mais evidentes foi aprofundada na administração de Gean Loureiro e agora de seu sucessor, Topázio Neto (PSD), que assumiu a prefeitura depois que Gean Loureiro se afastou para concorrer ao governo do estado nas eleições de 2022.

O projeto neoliberal em Florianópolis em três esferas

Esfera econômica: o controle do espaço pelo mercado imobiliário

O município de Florianópolis abrange a Ilha de Santa Catarina, com 424,4 km2 2 No seu Estatuto, quando foi fundada, em novembro de 2005, a Associação FloripAmanhã (https://floripamanha.org/) define-se como uma “entidade civil, dotada de personalidade jurídica de direito privado, sem fins econômicos, com número ilimitado de associados”, voltada ao terceiro setor (parágrafo único do art. 1º). Nos seus objetivos, que buscariam o bem-estar da população pelo planejamento urbano com vocação regional, assinala-se a importância da inovação, criatividade e cidade inteligente e da cooperação público-privada. Mas ao que temos assistido é que seus membros são majoritariamente de empresas e entidades privadas e que, em geral, alinham-se com as administrações públicas, as quais estamos analisando neste artigo, cujas práticas contradizem os objetivos da entidade. Já o Floripa Sustentável, em seu site (https://floripasustentavel.com.br/), define-se como “um movimento apartidário, criado em agosto de 2017 por entidades, empresas e pessoas que se uniram para debater ideias, fomentar soluções eficazes e projetar o futuro de Florianópolis com um crescer responsável”, tendo quatro pilares: preservação ambiental, crescimento econômico, desenvolvimento social do Floripa Sustentável e planejamento urbano. Integram o Floripa Sustentável 45 entidades, entre elas a Associação Comercial e Industrial de Florianópolis (Acif) e o Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon). (97,22% do total), e uma pequena porção continental de 12,1 km2 2 No seu Estatuto, quando foi fundada, em novembro de 2005, a Associação FloripAmanhã (https://floripamanha.org/) define-se como uma “entidade civil, dotada de personalidade jurídica de direito privado, sem fins econômicos, com número ilimitado de associados”, voltada ao terceiro setor (parágrafo único do art. 1º). Nos seus objetivos, que buscariam o bem-estar da população pelo planejamento urbano com vocação regional, assinala-se a importância da inovação, criatividade e cidade inteligente e da cooperação público-privada. Mas ao que temos assistido é que seus membros são majoritariamente de empresas e entidades privadas e que, em geral, alinham-se com as administrações públicas, as quais estamos analisando neste artigo, cujas práticas contradizem os objetivos da entidade. Já o Floripa Sustentável, em seu site (https://floripasustentavel.com.br/), define-se como “um movimento apartidário, criado em agosto de 2017 por entidades, empresas e pessoas que se uniram para debater ideias, fomentar soluções eficazes e projetar o futuro de Florianópolis com um crescer responsável”, tendo quatro pilares: preservação ambiental, crescimento econômico, desenvolvimento social do Floripa Sustentável e planejamento urbano. Integram o Floripa Sustentável 45 entidades, entre elas a Associação Comercial e Industrial de Florianópolis (Acif) e o Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon). , sendo a cabeça da Região Metropolitana, como Grande Florianópolis3 3 A Região Metropolitana da Grande Florianópolis – RMF, instituída pelo art. 1º da lei complementar n. 636, de 9/9/2014, é constituída por Florianópolis e os municípios conturbados de São José, Biguaçu e Palhoça. Integram a Área de Expansão Metropolitana da RMF mais 18 municípios. Florianópolis tinha população estimada, segundo o IBGE, de 516.524 habitantes em 2021. O município compreende a Ilha de Santa Catarina e um pequeno território continental, totalizando 438,5 km, sendo composto por 12 distritos originários de antigos núcleos de povoação do século XVIII. O Distrito-Sede abrange a área urbana insular e a porção continental. (Mapa 1). A variedade de tipos de solos e de relevos favoreceu o desenvolvimento de um ambiente diversificado composto por restingas, costões, lagoas, dunas e manguezais. Em função do relevo e das unidades de conservação, 13.873,76 hectares da Ilha – cerca de 42% de seu território – constituem Áreas de Preservação Permanente (APPs), encontrando-se preservados e protegidos por decretos-lei e pelo Código Florestal.

Mapa 1
– Localização de Florianópolis (SC)

A história recente de Florianópolis mostra como os grupos dominantes locais orientaram a produção espacial a partir de um projeto de exclusão dos empobrecidos (Sugai, 2015SUGAI, M. I. (2015). Segregação silenciosa: investimentos públicos e distribuição sócio-espacial na área conurbada de Florianópolis. Florianópolis, Editora UFSC.). Já no final do século XIX, a população negra escravizada foi forçada a subir o Maciço do Morro da Cruz, em frente ao centro histórico insular e que se estende de norte a sul da Ilha, por medidas de “higienização”. A modernização conservadora reproduziu-se no Plano Diretor de 1976, concebido para adaptar o sistema viário ao automóvel e aos interesses turísticos, lógica que se estendeu aos planos subsequentes, apesar de avanços na proteção de APPs e na consolidação de unidades de conservação, com parcos processos participativos.4 4 Como este artigo vai se referir frequentemente ao Plano Diretor de Florianópolis, apresenta-se aqui um resumo do processo. Para examinar a fase de planos diretores (1952, 1976, 1985, 1997 e 2014), valemo-nos de Teixeira e Silva (1999); Peres et al. (2013), Wolff (2015), Peres e Sugai (2021, pp. 101-113), Peres (2022) e Schinke (2022, pp. 275-286). Em janeiro de 2014, foi aprovada, na Câmara Municipal, a lei complementar n. 482, encaminhada pelo prefeito Cesar Souza Júnior, com mais de 300 emendas incluídas por vereadores, as quais beneficiaram interesses empresariais, sem discussão com a sociedade. Houve algumas vitórias do movimento social e ambientalista, como a limitação a dois pavimentos em áreas sensíveis ambientalmente, mas grande parte da cidade foi adensada e verticalizada, o que beneficiou o setor imobiliário, mesmo com uma série de inseguranças jurídicas. Depois de muitas ações no Ministério Público Federal, judicializou-se a LC 482, e a prefeitura foi obrigada a promover uma série de oficinas comunitárias. Mas, com o prefeito seguinte, Gean Loureiro, interrompeu-se o processo com ação no TRF-4 e no STJ, retirando a atribuição do Ministério Público Federal para a atuação em esfera estadual, o que fez com que a LC 482 continuasse em vigor até a aprovação da lei complementar n. 739, de maio de 2023. Essa Lei também foi judicializada no Ministério Público Estadual, buscando maior participação popular, visto que as audiências públicas foram realizadas de forma burocrática, sem oficinas comunitárias preparatórias e sem direito ao contraditório. O processo foi igualmente excludente na Câmara Municipal, que promoveu apenas cinco audiências públicas em espaços menores e aprovou o projeto em 2023 sem discussão ampla, sem contraditório e sem oficinas comunitárias. Com isso, encerrou-se um longo período de judicialização da lei anterior, a de 2014, ainda que as perspectivas sejam de se abrir novas judicializações da lei atual, por ter igualmente gerado inconstitucionalidades e insegurança jurídica, principalmente na área ambiental, segundo estudos de técnicos do Ipuf, ICMBio e Ibama e por um Grupo Técnico e Comunitário dos movimentos sociais.

Pesquisas de Campos (1991)CAMPOS, N. J. de (1991). Terras comunais em Santa Catarina. Florianópolis, FCC/EdUFSC. e de Schinke (2017)SCHINKE, G. (2017). O golpe da “Reforma Agrária” – fraude bilionária na entrega de terras públicas em Santa Catarina. Florianópolis. Insular. revelam como as oligarquias locais, em meados do século XX, apropriaram-se de terras públicas (comunais) e fizeram uma reforma agrária às avessas, doando terras a quem não precisava delas, tendo o poder público como aliado ou avalista das iniciativas. Essa forma de apropriação fundiária está na base da estruturação territorial e urbanística de Florianópolis, dificultando um planejamento territorial e urbano efetivo. Somente em 2012 a capital catarinense obteve o seu primeiro plano de habitação, sem a criação de um banco ou de estoque de terras.

Verifica-se, portanto, que as formas de uso e ocupação do solo no município, além de conservarem elementos estruturais próprios da formação social brasileira, apresentarão determinantes econômicos, políticos e culturais ligados ao modo específico de colonização e de povoamento do litoral catarinense. Essa articulação entre processos estruturais e fatores conjunturais irá influir nas condições gerais de produção e ocupação do espaço, determinando a distribuição das classes sociais e o modo de acesso à terra no município. Tal distribuição espacial vai ser caracterizada pela expansão das áreas de pobreza tanto na parte continental quanto nos morros da região central da Ilha, e, também, pela concentração das camadas de mais alta renda nos principais balneários localizados na parte insular da capital, condição que vai contribuir para a consolidação dos processos de periferização e de segregação espacial no contexto conurbado (Florianópolis, São José, Palhoça e Biguaçu), conforme o Mapa 2.

Mapa 2
– Concentração populacional por extremos de renda – 2010

Como parte do processo de formação e, sobretudo, de produção espacial do próprio município, a apropriação das terras públicas passará por um momento acelerado de mercantilização, em especial a partir da década de 1970, quando os grupos dominantes locais começam a direcionar os seus capitais e investimentos para atividades imobiliárias voltadas a compra e venda de grandes glebas urbanas, transformando-se em sócios de construtoras e, também, empresários do setor imobiliário e turístico. A partir de então, investir em imóveis passará a ser uma das formas mais utilizadas de rentabilização do capital em Florianópolis.

Apresentando-se, atualmente, como uma das cidades brasileiras mais caras para se adquirir um terreno ou imóvel residencial, a capital catarinense vem apresentando, desde o ano de 2013, um aumento constante do preço de venda dos imóveis residenciais, conforme o Gráfico 1.

Gráfico 1
– Série histórica do comportamento de preço médio de venda de imóveis residenciais (%) em Florianópolis desde 2013

Outro indicador relacionado ao processo de valorização espacial diz respeito aos números do déficit habitacional apresentados pelo município. A partir de pesquisas realizadas pela Fundação João Pinheiro em parceria com o Ministério das Cidades (2013) com base no Censo de 2010, o número registrado em Florianópolis apresentou um déficit de 14.847, com o ônus excessivo com aluguel se destacando dos outros três componentes (domicílios precários, coabitação familiar e adensamento excessivo), constituindo um total de 7.527 unidades ou 50% do déficit de moradias do município.5 5 Estima-se que o déficit habitacional passou de 14.847 unidades de domicílios, em 2010, para cerca de 18.648 unidades em 2021. O dado é ainda conservador, porque Florianópolis recebe forte contingente populacional migrante.

Outro ponto importante a ganhar destaque refere-se ao número expressivo de domicílios vagos em relação ao total de imóveis ocupados. Observando o caso da capital catarinense, a partir dos dados do Censo demográfico 2010, nota-se que, de um total de 46.691 imóveis não ocupados no município, cerca de 21.552 se enquadra na categoria de domicílios particulares não ocupados vagos, ou seja, imóveis que não estão disponíveis para venda nem para aluguel, tratando-se, ao que tudo indica, de habitações à espera de maior valorização no mercado imobiliário, que passou a exercer um enorme controle sobre o solo urbano, restringindo cada vez mais o acesso à moradia pelas populações de baixa renda através da crescente taxação do preço da terra/casa no município.

Muito embora tenham sido construídas habitações de caráter social através dos programas federais, a exemplo do Programa Minha Casa Minha Vida, a constante tendência à valorização imobiliária/fundiária acabou promovendo a um só tempo um maior controle do mercado sobre o solo urbano e, também, um agravamento da precariedade habitacional no município. Tal condição pode ser verificada por meio do aumento expressivo do preço da terra urbana e, consequentemente, também dos aluguéis; dos números crescentes do déficit habitacional; do índice significativo de imóveis vazios à espera de maior valorização; da carência de uma política habitacional destinada às populações de mais baixa renda (núcleo do déficit); além das questões vinculadas ao aumento populacional das últimas décadas e do adensamento e expansão das áreas de pobreza no município.

Este artigo destaca, mais adiante, que esse processo fundiário excludente de valorização imobiliária vai ser potencializado pela lei n. 707/2021, denominada “Destrava Floripa” (Florianópolis, 2021FLORIANÓPOLIS (2021). Lei complementar n. 707, de 27 de janeiro de 2021. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/sc/f/florianopolis/lei-complementar/2021/71/707/lei-complementar-n-707-2021-institui-o-projeto-destrava-floripa-altera-dispositivos-da-lei-complementar-n-060-de-2000-codigo-de-obras-e-da-lei-complementar-n-374-de-2010-e-da-outras-providencias. Acesso em: 21 maio 2023.
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), que institui a autodeclaração (libera as análises prévias de licenciamento, bastando o empreendedor autodeclarar o imóvel, sendo o processo de controle e análise feito por sorteio) e dispõe “sobre a regularização de construções irregulares e clandestinas na forma que especifica, de atividade não residencial sem licença para funcionamento e dá outras providências". Com isso, e com a lei n. 739/2023 (Florianópolis, 2023)FLORIANÓPOLIS (2023). Lei complementar n. 739 de 4 de maio de 2023, que altera a lei complementar n. 482 de 2014 (Plano Diretor de Florianópolis) e consolida seu processo de revisão. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/sc/f/florianopolis/lei-complementar/2023/74/739/lei-complementar-n-739-2023-altera-a-lei-complementar-n-482-de-2014-plano-diretor-de-florianopolis-e-consolida-seu-processo-de-revisao. Acesso em: 20 maio 2023.
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, sancionada recentemente, que se vai examinar mais adiante, combinado com o que se analisou neste item sobre o processo especulativo de imóveis vazios, encarecendo a terra urbanizada, tem-se um processo generalizado de “esquentamento” de terras irregulares para o setor imobiliário, nas quais grande parte da população de baixa renda reside.

Esfera política: a construção da inflexão ultraliberal nas administrações municipais

Em duas gestões, de 1997 a 2004, Angela Amin (PP), que se seguiu ao governo popular de Sérgio Grando (PPS), reorientou o município à linha neoliberal do governo FHC.6 6 Aguiar (2015, p. 33), referindo-se ao período escolhido de estudo (1996-2013) e a essas forças, afirma: “[...] por atravessarem diferentes gestões à frente do poder municipal, que possuem ‘divergências’ apesar de comporem o mesmo bloco de poder, demonstrando que independentemente de quem governa, a lógica de produção do espaço da cidade permanece”. Mas foi nas duas gestões de Dário Berger (MDB e hoje PSB), uma de César Souza Júnior (PSD), duas de Gean Loureiro e a continuidade com seu vice, Topázio Neto (hoje PSD), em curso, que evoluiu o alinhamento das gestões municipais com os interesses do capital imobiliário. Em resumo, para obter verbas federais, o ex-prefeito Dário Berger ensaiou a adesão a um processo participativo para mudar o plano diretor, ao mesmo tempo que se constituía o citado projeto Floripa 2030, conjunto de propostas sob a lógica do desenvolvimento sustentável que privilegiava o setor empresarial e o interesse especialmente turístico, provocando a crescente rejeição de segmentos comunitários e ambientalistas ao projeto do então prefeito.

Com César Souza Júnior, a discussão foi retomada, porém o Executivo ignorou as contribuições desses mesmos segmentos e, na câmara municipal, os vereadores aprovaram, no final de 2013 e início de 2014, um novo plano, sob forte repressão policial, com cerca de 300 emendas aprovadas e negociadas de última hora diretamente no Legislativo. O resultado foi uma lei com vários problemas, o que ocasionou críticas do próprio setor da construção civil, que reclamava da insegurança jurídica, e César Souza Júnior não logrou impor o projeto empresarial como pretendia.

Foi somente a administração seguinte, de Gean Loureiro, que conseguiu articular os grupos dominantes para concretizar o projeto de cidade-empresa, sendo Florianópolis mais um laboratório nacional do processo de inflexão ultraliberal que vem ocorrendo nas cidades brasileiras. O governo dele e de seu vice e sucessor, Topázio Neto, surge em uma conjuntura de cortes e retrocessos nas políticas públicas e sociais.7 7 Conjuntura que se gerou, em grande parte, do golpe que sofreu a ex-presidenta Dilma Rousseff, com os governos posteriores de Michel Temer e Jair Bolsonaro, que implantaram as reformas trabalhista e previdenciária, e com a aprovação da emenda do teto de gastos (emenda constitucional n. 95). Veremos, a seguir, como a administração municipal de Florianópolis alinhou-se ao perfil privatizante dos últimos governos federais com as medidas que adotou e que passamos a comentar.

Já no primeiro mês da primeira gestão, em janeiro de 2017, Gean Loureiro implementou um “Pacotaço” de cerca de 40 projetos de lei, com destaque para uma reforma administrativa privatizante e desregulamentadora, com participação ativa do setor empresarial na máquina pública, pelo “serviço voluntário” e pela ampliação de cargos comissionados. A gestão foi marcada por contratações de organizações sociais em setores da educação e da saúde denunciadas por irregularidades e teve como marca o investimento em asfalto, a chamada “Operação Asfaltaço”, contrastando com a falta de política e de recursos para habitação.

Já, no segundo semestre de 2020, em meio à pandemia de covid-19, Gean Loureiro pautou na câmara municipal o Projeto de Lei Complementar (PLC) n. 1801, que, a pretexto de agilizar a fiscalização de obras, previa a demolição sumária de habitações. Organizada em seis atos em frente à câmara municipal, a mobilização dos moradores de ocupações urbanas da Área Conurbada de Florianópolis conseguiu impedir a votação do referido projeto de lei.

Em janeiro de 2021, reeleito, Gean Loureiro apresentou o segundo Pacotaço, em pleno recesso parlamentar e em período de agravamento da pandemia, para vender 52 terrenos públicos,8 8 As áreas afetadas ou vendidas são as seguintes, por localização, número de terrenos e área total (m2): Canasvieiras (46 e 25.377); Rio Tavares (01 e 4.000); Coqueiros (01 e 3.828); Jurerê (01 e 26.681); Córrego Grande (01 e 2.589); Saco dos Limões (01 e 945); Jardim Atlântico (01 e 375); perfazendo um total de 52 terrenos com 39.795 m2, sendo a maior parte dos terrenos localizada na parte insular norte, a mais valorizada do município. ampliar a presença empresarial nos Conselhos de Direito, extinguir 20% dos artigos do Código de Obras e reintroduzir o dispositivo da demolição sumária, sob a justificativa de controlar construções irregulares e clandestinas, afligindo os moradores de ocupações urbanas, desassistidos em função da falta de política habitacional e em precária situação diante da pandemia.9 9 Esse projeto de lei, depois de muita mobilização, foi aprovado na Câmara Municipal em janeiro de 2021, depois de ter sido retirado daquela casa legislativa no segundo semestre de 2020, em plena pandemia, por pressão principalmente de parte das ocupações urbanas e dos movimentos de luta pela moradia.

Um dos projetos que mais mobilizou a população foi a reforma administrativa, tendo como principal alvo a Comcap (Autarquia de Melhoramentos da Capital) – que, entre 19 atribuições, faz a limpeza urbana da capital catarinense –, desestruturando-a ao atingir o plano de cargos e salários dos servidores, cerceando, ao mesmo tempo, a atividade sindical do Sintrasem (Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal), dentro de uma estratégia nacional e estadual de desmonte da máquina pública, inclusive de setores bem avaliados pela população, como é o caso da Comcap. O segundo Pacotaço previa, ainda, alterações no plano diretor, as quais, naquela ocasião, não foram aprovadas na Câmara, faltando apenas um voto.10 10 As medidas favorecem as concessões para empresas terceirizadas e, ao mesmo tempo, impedem o crescimento da empresa, criminalizando o sindicato da categoria, precarizando o trabalho e fortalecendo a terceirização administrativa, que já vinha ocorrendo com diversas contratações por sistema de organizações sociais, denunciadas em inquéritos. A Operação Chabu marcou o período, com o Ministério Público Federal investigando vazamento de informações sigilosas a políticos e empresários sobre operações das polícias civil e federal, envolvendo o então prefeito Gean Loureiro, indiciado junto a comissionados. A administração municipal anterior também foi investigada por envolvimento, com vereadores e empresários, em vendas de projetos de lei, fraude em licitação e contratos com prejuízos de aproximadamente R$30 milhões de reais aos cofres públicos. Essa operação foi chamada Ave de Rapina. Outra ação à época foi a Operação dos Radares, que investigou fraudes nos contratos entre a prefeitura da capital e empresas que operam o sistema de fiscalização eletrônica.

Para um maior entendimento das implicações contidas na aprovação das demolições sumárias em 2021, é necessário voltar ao projeto de lei que inicialmente deu base para tal possibilidade. Batizado popularmente de PLC das Demolições Sumárias, o já citado PLC n. 1801 foi produzido pelo poder executivo municipal e enviado à câmara de vereadores em 19 de novembro de 2019. Fruto da articulação da prefeitura, de grupos empresariais e da mídia comercial, a proposta, com pedido de tramitação em regime de urgência, dispunha sobre atos infracionais contra a ordem urbanística, estabelecendo procedimentos de fiscalização e dando outras providências.

Alvo de forte contestação e repúdio, o PLC n. 1801/2019 provocou manifestações envolvendo setores combativos da sociedade civil, tais como entidades partidárias, sindicais, movimentos sociais e populações sem teto, que juntos apontaram diversas irregularidades e ilegalidades contidas no projeto (Figura 2). Um dos principais pontos referia-se ao caráter de urgência, previsto no artigo 45:

Figura 2
– Terceiro ato contra o PLC 1801/2019, em 3 de novembro de 2020

poderá a partir da fiscalização de obras, autorizada pelo Secretário Municipal do órgão licenciador, efetuar, diretamente ou através de empresa contratada para esse fim, a demolição sumária ou desfazimento de atividade, quando considerada urgente para proteção da ordem urbanística, meio ambiente e segurança pública ou de imóveis vizinhos, nos seguintes casos [...]. (Florianópolis, 2019FLORIANÓPOLIS (2019). Projeto de Lei Complementar n. 1801 de 19 de novembro. Dispõe sobre os atos infracionais contra a ordem urbanística, estabelece procedimentos de fiscalização e dá outras providências. Disponível em: https://paperlessgov-editor.cmf.sc.gov.br/visualizador/publico/anexo/1533/download/original . Acesso em: 20 maio 2023.
https://paperlessgov-editor.cmf.sc.gov.b...
)

De acordo com a nota técnica DPE n. 01-21/2020, produzida pela Defensoria Pública do estado de Santa Catarina, tratava-se de um dos pontos de maior preocupação, uma vez que “a legislação não define o que considera urgência ou risco iminente de caráter público” que viabilizaria a demolição sumária, de modo que ficaria a cargo de cada agente fiscalizador a classificação da urgência ou risco, podendo haver conclusões diferentes sobre uma mesma situação, a depender de cada agente. A nota da Defensoria dizia ainda que “tal subjetivismo é incompatível com os princípios da administração pública, especialmente o da publicidade e da legalidade e do respeito ao devido processo legal” (Defensoria Pública do estado de Santa Catarina, 2020).

Outro parecer, emitido pelo Instituto Gentes de Direitos (IGentes) e pelo Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), constava que o PLC n. 1801/2019 violava a Constituição Federal no que dizia respeito ao devido processo legal, uma vez que autorizava demolir habitações sumariamente, dando margem a precedentes que poderiam prejudicar, de forma irreversível, o contraditório e a ampla defesa previstos na Constituição Federal, sem que o autuado tivesse o direito de se defender. Além disso, o mesmo parecer ressaltava que o projeto, ao instituir a figura da demolição sumária, autorizava a ocorrência de despejos forçados, violando a Constituição Federal e os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, além do direito à participação e ao controle social tornados obrigatórios pelo Estatuto da Cidade. Por fim, o parecer concluía que o projeto não tratava de matéria de urgência: “[...] é um projeto inconstitucional, arbitrário, [que] tem vícios de forma e deve ser retirado de pauta, cabendo a sua avaliação e aperfeiçoamento, visando seu alinhamento com os ditames da ordem constitucional e infraconstitucional brasileira” (IBDU, 2020IBDU (2020). Lançado o parecer sobre PLC1801/2019, de Florianópolis/SC. IBDU. Disponível em: https://ibdu.org.br/2020/09/21/lancado-o-parecer-sobre-plc1801-2019-de-florianopolis-sc/. Acesso em: 20 maio 2023.
https://ibdu.org.br/2020/09/21/lancado-o...
).

Aprovada, a lei que permite a demolição sumária de moradias, com base em argumentos genéricos de “proteção da ordem urbanística, meio ambiente e segurança pública”, na verdade favorece a expansão imobiliária em Florianópolis, pois combina-se com outras aprovadas em janeiro de 2021, como a Floripa Mais Empregos, que desmonta o Código de Obras com a eliminação de mais de 40% de seus artigos, implanta a autodeclaração nos licenciamentos e prevê outras medidas na direção da desregulamentação do poder público em seu papel constitucional de planejar e fiscalizar o uso do solo urbano. Assim, Gean Loureiro conseguiu direcionar a produção do espaço urbano na lógica do pacto com os grupos dominantes, para os quais interessa reservar a Ilha de Santa Catarina, parte predominante da capital catarinense, para quem pode pagar pelo metro quadrado cada vez mais valorizado.

O conjunto de medidas implementadas pelo então prefeito vai se aprofundar com o seu vice, Topázio Neto, em meados de 2022. Topázio Neto formula nova reforma administrativa, desmontando os órgãos de planejamento e de fiscalização, com o aumento expressivo de cargos comissionados, em detrimento dos de carreira, e consequente aprofundamento da terceirização com as organizações sociais. Ele também consegue articular a aprovação, na câmara municipal, da revisão do plano diretor, a ser analisada mais adiante, para a qual Gean Loureiro não teve sucesso. Ocorre um avanço significativo da privatização da administração pública, com a presença direta de representantes de setores empresariais, por nomeação, na gestão da máquina administrativa, o que agudiza a inflexão ultraliberal.

Esfera ideológica: da criminalização das populações periféricas ao apoio às demolições sumárias

O controle e a dominação do espaço urbano pelos grupos dominantes são encobertos por uma construção ideológica, em que uma parte da cidade acaba tomando o lugar do todo, ou seja, a cidade da elite colocando-se como a cidade real. Para Maricato (2007)MARICATO, E. (2007). “Globalização e política urbana na periferia do capitalismo”. In: RIBEIRO, L. C. Q.; JUNIOR, O. A. S. (orgs.). As metrópoles e a questão social brasileira. Rio de Janeiro, Revan., essa representação ideologizada tem por objetivo encobrir privilégios, tendo, principalmente, um papel econômico ligado diretamente à captação da renda imobiliária. Como expressão dessa representação, têm-se, portanto, a definição e a propagação de uma imagem ideologizada da cidade.

Em Florianópolis, essa imagem de cidade apresenta particularidades, com forte apelo às características físicas, ambientais e socioculturais. De acordo com Sugai (2015)SUGAI, M. I. (2015). Segregação silenciosa: investimentos públicos e distribuição sócio-espacial na área conurbada de Florianópolis. Florianópolis, Editora UFSC., desde o final dos anos 1990, os veículos da mídia corporativa já buscavam reforçar e difundir a ideia de que a capital catarinense se distinguia das demais cidades brasileiras por proporcionar qualidade de vida, tendo sucesso na redução da pobreza e no controle da violência urbana. Para a autora, trata-se de uma referência enganosa, uma vez que tal ideologia parte da elaboração de um discurso amparado na ideia de que a delimitação territorial da cidade se encontra restrita a uma condição exclusivamente insular, ignorando a parte continental que compõe o município. Assim, a difusão dessa imagem de cidade insular não será inócua, uma vez que “faz parte do ideário e do discurso dominante e, no campo ideológico, cumpre papel importante na estruturação urbana, na distribuição dos investimentos públicos e no processo de segregação espacial” (ibid. p. 29). Como destaca Abreu (2023)ABREU, M. S. de (2023). O cavalo de Tróia da revisão do Plano Diretor de Florianópolis. Jornalismo e Cidade. Blog. Disponível em: https://jornalismoecidade.blogspot.com/2023/02/o-cavalo-de-troia-da-revisao-do-plano.html. Acesso em: 20 maio 2023.
https://jornalismoecidade.blogspot.com/2...
, ao longo dos últimos 20 anos, nos embates em torno do Plano Diretor de Florianópolis, nas colunas jornalísticas aparecem frequentemente, além da expressão “do contra”, muitas outras: “ecochatos”, “militantes”, “ideólogos da esquerda”, “ativistas da esquerda”, “turma do atraso”. A base ideológica dos ataques, calcada nos interesses dos grupos dominantes da capital, é a “vocação turística” de Florianópolis.

É a partir dessa compreensão que se analisa a conivência da mídia local às medidas da gestão de Gean Loureiro, em especial os Pacotaços, revestindo-as de legitimidade. Dos grupos de mídia estadual, ND e NSC, o primeiro é o que tem cobertura local mais expressiva e o que mais sistematicamente divulga as medidas da prefeitura. A notícia da derrota do prefeito em 2012 em relação ao projeto de flexibilização do plano diretor, parte do Pacotaço daquele ano, traz uma declaração que sintetiza a abordagem da imprensa local:

De acordo com Michel Mittmann, secretário de Mobilidade Urbana da Capital, as alterações visam corrigir o atual plano diretor que “contribui com a clandestinidade no território”. Também ajudaria a possibilitar o licenciamento de obras. (Notícias do Dia, 27 jan. 2021)

Destaca-se a menção à clandestinidade, palavra que vem do latim e significa "às ocultas". Feito às escondidas. No jornal, a atribuição de clandestinidade é frequentemente associada às ocupações, organizadas ou não, tratadas como invasões e vistas como ameaça à cidade.

Em 22-23 de agosto de 2020, quando o prefeito Gean Loureito tentou pela primeira vez aprovar o projeto que previa a demolição sumária de moradias, o Grupo publicou o Relatório ND, com a manchete “Cidade ameaçada”. Tratava-se de um caderno de 36 páginas encartado na edição daquele dia e disponibilizado, também, no site do jornal, acompanhado de reportagens nos noticiários de tevê. O tema foi inicialmente abordado em março de 2019, quando o Grupo ND fez circular o Dossiê Floripa, impresso de 20 páginas que elegia as ocupações, chamadas de “invasões”, como um dos principais problemas de Florianópolis, sob a manchete “Invasões e omissão”. A manchete e a linha de apoio do Relatório ND foram as seguintes:

Cidade ameaçada

Invasões e construções clandestinas que se alastram pela Grande Florianópolis provocam desordem urbana e levantam a questão: qual tipo de cidade queremos para viver? O ND foi atrás de respostas.

A associação das favelas e da pobreza à violência e ao narcotráfico, com prejuízos à paisagem e ao turismo, justificação ideológica das organizações dos grupos dominantes de Florianópolis, aparece já na primeira matéria do caderno, na página 4, intitulada “Invasão define o caos urbano”, com destaque para o seguinte trecho:

As montanhas de Florianópolis, que conjugam com as praias e lagoas, perdem o verde e viram morros com tons de cimento e tábua. São moradias que se amontoam em pedaços de terra na vertical. O resultado é uma paisagem indesejável, que lembra o lado sombrio do Rio de Janeiro: as favelas, a violência, o narcotráfico. (Notícias do Dia, 22-23/8/2020, p. 4)

A necessária distinção entre ocupações para moradia e parcelamentos clandestinos de solo, operados por organizações criminosas, aparece nas páginas 6 e 7, com o título “A ramificação da clandestinidade”, mas a edição do caderno como um todo associa as ideias de crime, clandestinidade e destruição da natureza às moradias “faveladas”, como registra uma das chamadas da capa do caderno: “Região conflagrada pelo crime era área verde e foi alvo de invasões”.

Outro aspecto importante da cobertura é o conjunto de convidados para interpretar o espaço urbano de Florianópolis. Ao longo de 36 páginas do Relatório ND, praticamente todas as entrevistas das reportagens são com fontes oficiais, empresariais, institucionais e especializadas, conforme classificação de Schmitz (2011)SCHMITZ, A. (2011). Fontes de notícias: ações e estratégias das fontes empresariais no jornalismo. Florianópolis, Combook.. Fora uma única declaração de três linhas de uma moradora não nomeada da Ocupação Marielle Franco – atualmente uma das mais criminalizadas em Florianópolis, por estar em área central que passou a ser valorizada após maciços investimentos públicos – e outra declaração de sete linhas do presidente da associação de moradores de uma das ocupações no município vizinho de Palhoça, o caderno não entrevista moradores de ocupação.

Do ponto de vista da ideologia, para o grupo jornalístico, as populações empobrecidas ameaçam a cidade, ainda que não sejam as responsáveis pela maior parte das construções irregulares em Florianópolis, fato ressaltado no próprio caderno, segundo o qual 51% dos empreendimentos da cidade foram construídos de maneira irregular: “Ao contrário do que se imagina, a maior parte das construções irregulares em Florianópolis não estão nas áreas consideradas de interesse social ou são ocupadas por população de baixa renda” (Notícias do Dia, 22-23/8/2020, p. 15).

Essa cidade ameaçada expressa o medo provocado pelas ditas invasões de propriedade, duramente combatidas pelos especuladores da terra, mas ignora a omissão do estado em relação às políticas habitacionais que garantiriam o direito à moradia. A defesa da demolição dos casebres passa a ser de interesse de toda a cidade, para evitar o que o grupo define como “desordem urbana”. A suposta ameaça, portanto, não é analisada do ponto de vista do espaço vivido dos ocupantes, que cotidianamente são vítimas das forças repressoras do Estado, sem ter para onde ir e sem condições de pagar aluguel, forçados a ocupar áreas vulneráveis e sem infraestrutura ou que são visadas pelo setor imobiliário e estão à espera de valorização. A lógica do Relatório ND reproduz-se em outras coberturas jornalísticas e também nas colunas e nos editoriais do grupo mencionado.

Em suma, as gestões de Gean Loureiro e de Topázio Neto são as que mais sintetizam, em Florianópolis, os três níveis abordados (econômico, político e ideológico), articulando interesses voltados para a cidade do capital ou cidade-empresa, governando para uma elite econômica, uma parte recortada da cidade, com apoio da maioria da câmara municipal.

Plano diretor sintonizado com os grupos dominantes: a aprovação da lei complementar n. 739/2023

O ciclo iniciado com o então prefeito César Souza Júnior, que aprovou o Plano Diretor sancionado em 2014 (lei complementar n. 482/2014), passa pelas duas gestões de Gean Loureiro e se encerra com Topázio Neto, que logrou aprovar a revisão do plano em 2023, sob a forma da lei complementar n. 739/2023 (Florianópolis, 2023FLORIANÓPOLIS (2023). Lei complementar n. 739 de 4 de maio de 2023, que altera a lei complementar n. 482 de 2014 (Plano Diretor de Florianópolis) e consolida seu processo de revisão. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/sc/f/florianopolis/lei-complementar/2023/74/739/lei-complementar-n-739-2023-altera-a-lei-complementar-n-482-de-2014-plano-diretor-de-florianopolis-e-consolida-seu-processo-de-revisao. Acesso em: 20 maio 2023.
https://leismunicipais.com.br/a/sc/f/flo...
), instituindo um novo marco regulatório urbano. A resistência popular deu-se desde 2021, concentrada no Fórum da Cidade, que há 22 anos agrega entidades e movimentos sociais, e no Coletivo Tecendo Redes, dos quais saiu o Grupo Técnico de lideranças comunitárias e acadêmicas que construiu proposta alternativa inédita, posteriormente apresentada pelos partidos de oposição (PT e PSol) como substitutivo global, porém derrotada na câmara municipal na votação em março e abril de 2023 (dois turnos).11 11 Ainda em 2021, um Grupo de Trabalho técnico e acadêmico que analisou a minuta de revisão do Plano Diretor da Prefeitura durante seis meses constatou os inúmeros incentivos de potencial construtivo sem estudo efetivo da capacidade de suporte, o avanço do setor imobiliário sobre áreas alagáveis e a flexibilização das Áreas Verdes de Lazer (AVL) e Áreas Comunitárias Institucionais (ACI), entre outros dispositivos permissivos. Ver Lidera Sul da Ilha (2023). A lei complementar 739/2023 (ibid.), entre outros dispositivos, incentiva o potencial construtivo acumulativo através da outorga onerosa, adensando e verticalizando a cidade. Os estudos feitos pelo movimento popular12 12 Disponível em: https://planodiretor.libertar.org/s/planodiretorpopular/page/apresentacao. Acesso em: 18 maio 2023. identificaram 26 inconstitucionalidades, paralelamente aos estudos dos técnicos do ICMBio, do Ibama e do Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (Ipuf), que foram igualmente desconsiderados pela câmara municipal no ato da aprovação da nova lei.13 13 Os técnicos desses órgãos, em documento divulgado ao público, fazem severas críticas aos impactos que até então o PLC n. 1911/2022 iria ocasionar ao ambiente. Estão nos seguintes pareceres: parecer técnico n. 130/2022-NLA-SC/Ditec-SC/Supes-SC, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama); parecer técnico Ptec n. 840/Floram/Dilic/Delic/2022, da Fundação Municipal do Meio Ambiente do município de Florianópolis, que propõe medidas que visem proteger os ecossistemas do PLC n. 1911/2022, que tramitou na Câmara Municipal e virou a lei complementar n. 739/2023, do novo Plano Diretor. Disponível em: file:///C:/Users/2274/Downloads/Informa%C3%A7%C3%A3o%20T%C3%A9cnica%2041%20ICMBio%20(1).pdf . Acesso em: 15 maio 2023.

Na gestão de Topázio Neto, a reforma administrativa foi aprofundada, com o desmonte do Ipuf e da Fundação Municipal do Meio Ambiente (Floram), cujos técnicos de carreira foram transferidos para outros setores sem atribuição específica. Diante dessas condições institucionais de desregulamentação do sistema de planejamento e fiscalização,14 14 Ver análise desse tema em Sintrasem (2023). a lei n. 739/2023 (ibid.) aprofunda a explosão imobiliária sem instrumentos efetivos de controle institucional, administrativo e social.

Como exemplo, a revisão do plano diretor não garante o provimento habitacional, abrindo mão da atribuição constitucional (habitação como direito social), lógica que vem desde o Plano Diretor de 1997, quando se efetivou o solo criado, estabelecendo que os recursos oriundos seriam destinados em 50% às obras de urbanização de interesse social. A lei complementar n. 739/2023 (ibid.) vai na mesma direção, quando assinala, no artigo 295-K: “incentivo à produção de habitações de interesse social pela autorização de incentivos na forma de índices urbanísticos a serem aplicados em qualquer empreendimento”. Com isso, fica o setor privado responsável pelo provimento habitacional, quando se sabe que é o poder público municipal que deveria assumir essa responsabilidade por meio de orçamento específico em fundo municipal, com os fundos estadual e federal, o que em Florianópolis não vem ocorrendo há vários anos, com a produção de poucas unidades habitacionais ao longo da administração de Gean Loureiro e Topázio Neto A Secretaria de Habitação como órgão próprio foi desmontada pelo prefeito anterior, César Souza Júnior, e fundida à SMDU (Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano), sem programa específico de habitação, e até hoje o Plano Municipal de Habitação de Interesse Social (PMHIS), criado em 2012, está parado, sem projetos e sem captação de recursos federais.15 15 Como se examinou no item “Esfera econômica: o controle do espaço pelo mercado imobiliário”, o processo de aprovação e implementação da suposta regularização fundiária (que de fato é de titulação fundiária) é o outro braço da expansão imobiliária, via outorga onerosa, com a densificação e verticalização apontadas neste item com a sanção da lei n. 739/2023. A titulação em massa já vem ocorrendo no bairro da Tapera, em Florianópolis, com o cadastro de mil famílias dos 3.600 imóveis pelo Lar Legal, programa que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina vem implementando com a prefeitura, que busca a titulação do imóvel e terreno para evitar insegurança jurídica (ver ND+, 2021). Por falta de espaço no presente artigo, não será desenvolvida aqui a hipótese de que esse Programa, ainda que se refira à regularização urbanística, na prática, vai coadjuvar um processo de “esquentamento” do mercado imobiliário nos setores antes informais da população de baixa renda, que se denominou mercado informal (Sugai e Peres, 2006). Baseada na lei n. 13.465/2017, e não na extinta lei n. 11.977/2009, que previa regularização fundiária com inclusão social e provisão de equipamentos e infraestrutura, como condição prévia e concomitante à titulação, essa iniciativa, apoiada na lei n. 707/2021, como mencionado anteriormente no item “Esfera econômica...”, será um mecanismo de explosão imobiliária sem precedentes. Principalmente o REURB-S, regularização fundiária destinada à população de baixa renda, até 3,0 s.m., e que incumbe ao poder público dotar de infraestrutura e equipamentos, vem sendo pouco implementado pela prefeitura de Florianópolis, apesar do decreto n. 2290/2021, que institui comissão para sua implementação, pois exige muito investimento, e o Lar Legal é mais rápido e permite titular antes de dotação de infraestrutura. Com isso e na prática, a atual administração municipal, alinhada com a expansão imobiliária, vai estimular a escrituração em massa, desvinculando-a de uma efetiva regularização urbanística, mais que fundiária, que preveja inclusão social com dotação de serviços e infraestrutura adequada.

Com todo esse processo assinalado, instala-se de forma mais cabal a inflexão ultraliberal na administração municipal de Florianópolis, o que permite caracterizar que a cidade está à venda, ou seja, criam-se as condições institucionais para a realização do projeto privatista e do desmonte da administração pública.16 16 Observa-se que, sob forte pressão e mobilização dos servidores públicos federais, a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 32, da reforma administrativa, foi interrompida na transição do governo Bolsonaro para o de Lula em final de 2022. Os principais pontos da PEC 32 são: proibição de concessão de estabilidade no emprego ou de proteção contra demissão de empregados de empresas públicas, sociedades de economia mista e das subsidiárias dessas empresas e sociedades por meio de negociação, coletiva ou individual, ou de ato normativo que não seja aplicável aos trabalhadores da iniciativa privada. O projeto permitia a contratação temporária na administração pública por processo seletivo simplificado, pelo prazo máximo de até 10 anos e com possibilidade de prorrogações. Essa seleção só poderia ser dispensada em casos de urgência, como calamidade e emergências associadas à saúde.

A cidade como direito: lutas sociais e a resistência ao projeto de cidade neoliberal

Florianópolis não apresenta maior degradação ambiental e de exploração fundiária e econômica graças à resistência popular, que inviabilizou vários projetos e empreendimentos dos grupos dominantes, como o planejado de hotel de 22 andares na Ponta do Coral, a sede da prefeitura e hotel no Parque da Luz, na cabeceira insular da ponte Hercílio Luz, e a marina do Porto da Barra, no canal da Barra da Lagoa, na parte leste insular.17 17 Hotel na Ponta do Coral (promontório na avenida Beira-mar norte insular, na embocadura do Manguezal de Itacorubi, na parte norte do centro de Florianópolis), que não foi construído pela luta de resistência dos movimentos ambientalistas, como o Movimento Ponta do Coral 100% Pública. Compõe, com a Ponta do Goulart e a Ponta do Lessa, as três pontas da entrada do Manguezal do Itacorubi. Outra luta de resistência foi quando o movimento ambientalista, nos anos 1990, evitou que se construísse a sede da prefeitura e um hotel cinco estrelas na parte insular na cabeceira da ponte Hercílio Luz, em que se encontra a estátua de Hercílio Luz e de onde se avista a parte continental do município e o Pico do Cambirela. Depois de muita mobilização e lutas judiciais, conseguiu-se implantar o Parque da Luz, como área pública, no local. Como resultado de mobilização de acadêmicos da UFSC e dos movimentos ambientalistas e com a solidariedade dos pescadores e da população local, em ação do Ministério Público Federal, também se impediu a construção da Marina do Porto da Barra, que previa a entrada, na Lagoa da Conceição, de 300 barcos, com alto risco de contaminação das águas da Lagoa, em função da manutenção dos barcos e também pela própria construção e aterros para a construção de condomínios de luxo.

Desde os anos 1980, diversas agendas de luta têm se aglutinado em torno do ideário do direito à cidade. Contudo, a última década destaca-se pelo aumento das mobilizações de rua, formação de novos coletivos políticos, bem como por parcerias e engajamentos de estudantes, ativistas e militantes através de assessorias e projetos de extensão realizados com grupos e movimentos populares com forte expressão e atuação local.

De modo abreviado, incluem-se as diversas formas de resistência que buscam um projeto de cidade de direitos, não a cidade do pensamento único (Arantes, Maricato e Vainer, 2000VAINER, C. (2000). “Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano”. In: ARANTES, O; MARICATO, E; VAINER, C. O. Cidade do pensamento único. Petrópolis, RJ, Vozes, pp. 75-104.), mas a de pensamento múltiplo: a luta por um Plano Diretor Participativo, com largo histórico de atuação, propondo um ideário de cidade baseado na justiça social e espacial; a luta por moradia, que localmente completou 30 anos em 2020,18 18 A luta auto-organizada pela moradia em Florianópolis, não considerando as mais antigas, localizadas no Maciço do Morro da Cruz, de maioria negra, mas que foi se dando ao longo de décadas, desde o início do século XX, teve como marco a ocupação de Monte Cristo, antiga área chamada de Pasto do Gado, na madrugada de julho de 1990, que foi a maior e primeira ocupação urbana organizada em Santa Catarina. Está localizada no entorno do conjunto habitacional Panorama, construído no último governo militar (1982), que foi cercado por várias comunidades ocupadas. Pela sua resistência contra a repressão policial, foram permanecendo na área, através de muita negociação, tendo posteriormente investimentos, com o governo popular de Sérgio Grando (1993-1996) e com o Programa Habitar Brasil/BID, na administração posterior de Angela Amin (1997-2003). O processo de ocupação e luta é analisado em Peres (1994). As lutas vão se ampliar a partir de 2010, por diminuição dos investimentos em moradia e abandono das políticas sociais, sendo a “solução” da não solução oficial pelo Estado. abarcando desde as ocupações urbanas até grupos, partidos, sindicatos, universidades e demais sujeitos políticos comprometidos com a pauta do direito à cidade; a mobilização por direitos sociais, que tem se expressado nas ruas por meio dos inúmeros atos de resistência contra o golpe jurídico-parlamentar e midiático de 2016 e as posteriores mobilizações pelo “Fora Temer” e “Fora Bolsonaro”, configurando um ambiente de aglutinação das diversas agendas de luta nas ruas, envolvendo pautas feministas, antirracistas, LGBTQIA+, da população em situação de rua, dos sem-teto, etc.; a luta ambiental contra megaprojetos que degradam o meio ambiente e privatizam espaços públicos; chegando ao contexto mais recente de mobilização em torno de um projeto popular e inclusivo de cidade, que culminou na constituição de uma das maiores frentes de esquerda do País nas eleições municipais de 2020.

Enquanto manifestação direta da disputa de projeto de cidade, essa diversidade de expressões da luta acabou abrindo possibilidades de questionamento e contestação acerca do modo de produção capitalista do espaço na escala local. Tal modo de produção começa a ser questionado pelos atos de resistência e de luta pela terra, requerendo o território (enquanto espaço usado) para fins do uso social e coletivo, como vimos com a luta pela moradia desde os anos 1990. Com forte destaque na cena política local, tais lutas abarcam desde pautas indígenas e quilombolas pelo reconhecimento e demarcação das terras, a exemplo da população Guarani do Morro dos Cavalos, no município de Palhoça, dos Kaigang que ocuparam o Terminal do Sacos dos Limões (Tisac) e do Quilombo Vidal Martins, localizado ao norte da parte insular de Florianópolis, até a luta por moradia digna protagonizada pelas diversas ocupações urbanas presentes no contexto conturbado (Figura 3). Apresentando um número cada vez mais expressivo de populações sem teto, a Região Metropolitana de Florianópolis conta atualmente com diversas áreas de resistência, a exemplo das ocupações urbanas Marielle Franco, Anita Garibaldi, Lar Fabiano de Cristo, Contestado, Carlos Mariguella e Nova Esperança (reconhecida como uma das maiores ocupações do estado de Santa Catarina), entre outras (Calheiros, 2020CALHEIROS, F. (2020). Ocupações urbanas e os efeitos socioespaciais da disputa pela terra em Florianópolis: o caso das ocupações Marielle Franco e Fabiano de Cristo. Dissertação de mestrado. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina.).

Figura 3
– Ato unificado dos sem-teto da Região Metropolitana de Florianópolis em 29 de junho de 2018

No que se refere à resistência contra a venda da cidade no âmbito do plano diretor, as mobilizações sociais vêm, desde os anos 1990, passando pela luta contra as aprovações do plano de 2014 e posterior processo de judicialização durante os anos de 2015 a 2017 (Burgos, 2022BURGOS, R. (2022). “Planejamento participativo – A saga da participação social no processo de elaboração do Plano Diretor de Florianópolis (1993-2013-2017)”. In: PERES, Lino F. B. (org.). Confrontos na cidade: luta pelo plano diretor nos 20 anos do Estatuto da Cidade. Florianópolis, Departamento de Arquitetura e Urbanismo/Instituto Cidade e Território, pp. 493-524. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/241947. Acesso em: 20 maio 2023.
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e Schinke, 2022SCHINKE, G. (2022). “O poder ‘fundiário’ no plano Diretor de Florianópolis”. In: PERES, L. F. B. Confrontos na Cidade: luta pelo plano diretor nos 20 anos do Estatuto da Cidade. Florianópolis, Departamento de Arquitetura e Urbanismo/Instituto Cidade e Território, pp. 267-292. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/241947. Acesso em: 20 maio 2023.
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) e, entre 2019 a 2023, na revisão do plano diretor, com inúmeras atividades organizadas pelos movimentos sociais (comunitários e ambientalistas ou ecológicos), mesmo diante do forte aparato repressivo da Prefeitura de Florianópolis.

Assim, ao denunciarem o processo de especulação e valorização espacial, as lutas criam, na prática, novas possibilidades de transformação dos espaços por meio do predomínio do valor de uso, tendo como finalidade última a realização da vida social, na perspectiva do direito à cidade de Henri Lefebvre (1991)LEFEBVRE, H. (1991). O direito à cidade. São Paulo, Moraes..

Muito embora a correlação de forças seja historicamente desfavorável às formas de contestação das classes trabalhadoras, a contraposição acionada pelo conjunto das lutas vai possibilitar que as contradições da cidade real se expressem. Ao constituírem-se material e simbolicamente enquanto práticas de resistência ao processo de segregação urbana e ao modelo de cidade neoliberal, tais lutas urbanas acabam por assumir um papel importante de denúncia do poder exercido pelo capital imobiliário, através da guerra de lugares, como assinala Rolnik (2015)ROLNIK, R. (2015). Guerra dos lugares. São Paulo, Boitempo., em detrimento da função social da cidade e da propriedade, além das práticas segregacionistas promovidas pelas classes dominantes via políticas de Estado.

Afirmando-se na própria necessidade de enfrentamento das formas de produção e gestão da cidade, submetidas à lógica de mercado, os processos de resistência urbana vêm colaborando para dar materialidade ao ideário do direito à cidade, este que tem atribuído, às diversas agendas de luta, um papel decisivo de contraposição ao processo de mercantilização da vida e, também, da construção de alternativas reais ao projeto cada vez mais autoritário, opressor e excludente de cidade e sociedade. Na medida em que proclamam sobre a necessidade e urgência de democratização do acesso ao solo urbano, como terra urbanizada, ultrapassam a escala de atuação local, juntando-se às demais lutas sociais por condições fundamentais de reprodução das classes trabalhadoras no meio urbano, contribuindo, assim, para a agenda em torno de um projeto utópico por uma nova cidade, mais justa, democrática e emancipadora.

Considerações finais

Florianópolis experimenta a hegemonia do setor imobiliário, que influencia diretamente a administração pública levando a uma inflexão ultraliberal, em especial nas gestões de Gean Loureiro e, agora, de Topázio Neto. Isso se expressa na intensificação das políticas de segregação espacial, na valorização espacial, na mercantilização e privatização das terras públicas e nas violações dos marcos regulatórios (Estatuto da Cidade, processos participativos do plano diretor e outras formas de participação social) e dos direitos sociais em seu conjunto, com a criminalização das populações periféricas e das lutas sociais, através de uma mídia a serviço desse projeto.

Aprofundando o ideário das administrações anteriores, o prefeito Gean Loureiro encontrou um clima político de mudanças constitucionais e reformas conservadoras de corte ultraliberal, sob os governos Temer e Bolsonaro, e de chegada da pandemia de covid-19, que dificultou inicialmente a organização do movimento popular. Nesse sentido, as medidas do primeiro e do segundo Pacotaços contribuíram para o avanço das agendas e pautas ultraliberais, com a explosão da especulação imobiliária/fundiária, através do aumento do preço da terra e dos imóveis no município. Trata-se, assim, do agravamento do processo de segregação espacial e de apropriação do patrimônio público, inviabilizando grandes parcelas das classes trabalhadoras, sobretudo as de mais baixa renda, do acesso ao solo urbano e, também, à moradia no município de Florianópolis.

As medidas aprovadas pelos Pacotaços têm um papel econômico diretamente ligado à captação da renda da terra, deixando o caminho livre para a especulação imobiliária, cumprindo ao mesmo tempo uma função importante na estruturação urbana e no processo de segregação e expulsão das populações empobrecidas.

Constatamos que, na prática, por um lado, as medidas formuladas pelo Executivo e aprovadas na câmara municipal, como as da reforma administrativa, desregulamentam o controle público sobre os licenciamentos (desmonte do código de obras e flexibilização do plano diretor), demanda principalmente do capital imobiliário hegemônico, e legalizam irregularidades construtivas para o médio e baixo segmento do setor da construção civil. Por outro lado, implementam, com o discurso ideológico de querer evitar as irregularidades, as demolições sumárias, a exemplo das inúmeras demolições de casas que vinham ocorrendo nas principais ocupações e regiões periféricas do município desde 2018.

De modo geral, tais medidas aprovadas são uma forma de acelerar a mercantilização/privatização do que ainda resta de terras públicas, ao mesmo tempo que criminalizam a luta por moradia, expulsando os mais vulneráveis para a periferia da Área Conurbada e Região Metropolitana, garantindo, assim, a exclusividade das áreas centrais valorizadas ao capital imobiliário e seus gestores.

Com essas condições institucionais de desregulamentação do sistema de planejamento e fiscalização, a recente revisão do Plano Diretor – lei n. 739/2023 (Florianópolis, 2023FLORIANÓPOLIS (2023). Lei complementar n. 739 de 4 de maio de 2023, que altera a lei complementar n. 482 de 2014 (Plano Diretor de Florianópolis) e consolida seu processo de revisão. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/sc/f/florianopolis/lei-complementar/2023/74/739/lei-complementar-n-739-2023-altera-a-lei-complementar-n-482-de-2014-plano-diretor-de-florianopolis-e-consolida-seu-processo-de-revisao. Acesso em: 20 maio 2023.
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) acelera a explosão imobiliária sem instrumentos efetivos de controle institucional, administrativo e social, instalando-se, em Florianópolis, o modelo de reforma administrativa até agora barrado no Congresso Nacional, configurado na proposta de emenda constitucional n. 32. Vários municípios no País estão implementando processos privatizantes e de terceirização em suas administrações, com a contratação, por exemplo, de organizações sociais no lugar de realização de serviços públicos pelos órgãos municipais ou estaduais.

Chega-se, portanto, à conclusão de que tanto o objetivo quanto o resultado final das medidas adotadas pela gestão Gean/Topázio consistem na manutenção do processo de produção do espaço urbano pelos grupos dominantes e na reprodução das relações de dominação. Mas esse processo, embora esteja se consolidando, acaba não tendo as condições necessárias para exercer o total controle sobre o espaço urbano a ponto de impedir que ocorram insurgências das lutas pelo direito à cidade, através de várias mobilizações dos movimentos sociais, tanto no âmbito da moradia, como na área ambiental e do planejamento urbano por um plano diretor participativo.

Trata-se, portanto, e de modo geral, de uma luta histórica e de um problema de ordem estrutural. Enquanto a sociedade brasileira e a florianopolitana não desatarem o nó da terra, que é a base fundiária urbana e exercerem o efetivo controle social do solo urbano, dando-lhe transparência e propondo a resolução das enormes desigualdades sociais e espaciais, haverá conflitos, lutas e resistências pelo acesso ao solo urbano. Juntas, todas as insurgências pelo direito à cidade representam hoje uma das mais importantes formas de enfrentamento e resistência ao modelo ultraliberal de cidade.

Por sua vez, cabem, ao conjunto das lutas sociais, o fortalecimento e a defesa de um projeto radicalmente democrático de cidade, que busque integrar as pessoas e não as expulsar para as periferias. Um projeto em que o ser humano seja o centro e não mais o capital e o lucro. Somente um ideário que busque promover a justiça social e espacial poderá enfrentar o modelo cada vez mais perverso de cidade, voltado contra os trabalhadores e trabalhadoras da capital catarinense. Como se vê, a condenação do Grupo ETC, em 2014, prenunciava o que hoje se consuma em Florianópolis: a cidade está comprovadamente à venda.

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    » https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/241947
  • SCHINKE, G.; PERES, L. F. B.; TAHINE, P.; CAMPOS, R.; RAULINO, S.; VARGAS, Z. (2022). Proposta Popular para o Plano Diretor de Florianópolis. Grupo Coordenador. Disponível em: https://planodiretor.libertar.org/s/planodiretorpopular/page/proposta Acesso em: 20 maio 2023.
    » https://planodiretor.libertar.org/s/planodiretorpopular/page/proposta
  • SCHMITZ, A. (2011). Fontes de notícias: ações e estratégias das fontes empresariais no jornalismo. Florianópolis, Combook.
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    » http://www.sintrasem.org.br/Default/Noticia/27938/nota-de-repudio-contra-o-imobilismo-fiscalizatorio-gerado-pela-reforma-administrativa-de-topazio
  • SUGAI, M. I.; PERES, L. F. B. (2006). Relatório Final de Pesquisa. Mercados Informais de solos urbanos nas cidades brasileiras e o acesso dos pobres ao solo – Área Conurbada de Florianópolis. Florianópolis: Grupo de Pesquisa Infosolo, mar. 2006.
  • SUGAI, M. I. (2015). Segregação silenciosa: investimentos públicos e distribuição sócio-espacial na área conurbada de Florianópolis. Florianópolis, Editora UFSC.
  • TEIXEIRA, J. P. e SILVA, J. E. (org.) (1999). A discussão pública do Plano Diretor. Florianópolis, Instituto Cidade Futura/Cecca.
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  • WOLFF, E. (2015). As bases de um planejamento urbano participativo em Florianópolis: os últimos anos de elaboração do Plano Diretor do distrito sede de 1997. Dissertação de mestrado. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina.

Notas

  • 1
    Segundo Aguiar (2015AGUIAR, A. R. de. (2015). Analisando o Floripa 2030: um modelo hegemônico de cidade. Dissertação de mestrado. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: file:///C:/Users/2274/Downloads/337931%20(4).pdf. Acesso em: 20 maio 2023.
    file:///C:/Users/2274/Downloads/337931%2...
    , p. 26), o Floripa 2030, reunindo as forças econômicas dominantes da cidade e região, foi “a primeira proposta concreta de planejamento para toda a cidade. Aglutinou a lei n. 2193/1985, que versa sobre os balneários e lei complementar 1/1997, que versa sobre o distrito sede [...] a essência do Floripa 2030 é a expressão local e conjuntural de um movimento de longa duração intrínseco ao setor imobiliário da cidade e sua busca por conexão com o mercado global”.
  • 2
    No seu Estatuto, quando foi fundada, em novembro de 2005, a Associação FloripAmanhã (https://floripamanha.org/) define-se como uma “entidade civil, dotada de personalidade jurídica de direito privado, sem fins econômicos, com número ilimitado de associados”, voltada ao terceiro setor (parágrafo único do art. 1º). Nos seus objetivos, que buscariam o bem-estar da população pelo planejamento urbano com vocação regional, assinala-se a importância da inovação, criatividade e cidade inteligente e da cooperação público-privada. Mas ao que temos assistido é que seus membros são majoritariamente de empresas e entidades privadas e que, em geral, alinham-se com as administrações públicas, as quais estamos analisando neste artigo, cujas práticas contradizem os objetivos da entidade. Já o Floripa Sustentável, em seu site (https://floripasustentavel.com.br/), define-se como “um movimento apartidário, criado em agosto de 2017 por entidades, empresas e pessoas que se uniram para debater ideias, fomentar soluções eficazes e projetar o futuro de Florianópolis com um crescer responsável”, tendo quatro pilares: preservação ambiental, crescimento econômico, desenvolvimento social do Floripa Sustentável e planejamento urbano. Integram o Floripa Sustentável 45 entidades, entre elas a Associação Comercial e Industrial de Florianópolis (Acif) e o Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon).
  • 3
    A Região Metropolitana da Grande Florianópolis – RMF, instituída pelo art. 1º da lei complementar n. 636, de 9/9/2014, é constituída por Florianópolis e os municípios conturbados de São José, Biguaçu e Palhoça. Integram a Área de Expansão Metropolitana da RMF mais 18 municípios. Florianópolis tinha população estimada, segundo o IBGE, de 516.524 habitantes em 2021. O município compreende a Ilha de Santa Catarina e um pequeno território continental, totalizando 438,5 km, sendo composto por 12 distritos originários de antigos núcleos de povoação do século XVIII. O Distrito-Sede abrange a área urbana insular e a porção continental.
  • 4
    Como este artigo vai se referir frequentemente ao Plano Diretor de Florianópolis, apresenta-se aqui um resumo do processo. Para examinar a fase de planos diretores (1952, 1976, 1985, 1997 e 2014), valemo-nos de Teixeira e Silva (1999)TEIXEIRA, J. P. e SILVA, J. E. (org.) (1999). A discussão pública do Plano Diretor. Florianópolis, Instituto Cidade Futura/Cecca.; Peres et al. (2013)PERES, A. et al. (2013). Reconstruindo paisagens: desafios socioespaciais para a Grande Florianópolis. Florianópolis, Editora da UFSC., Wolff (2015)WOLFF, E. (2015). As bases de um planejamento urbano participativo em Florianópolis: os últimos anos de elaboração do Plano Diretor do distrito sede de 1997. Dissertação de mestrado. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina., Peres e Sugai (2021PERES, L. F. B.; SUGAI, M. I. (2021). “O Plano Diretor de Florianópolis à luz dos 20 anos do Estatuto da Cidade: revisão ou oportunismo?”. In: SILVA, B. F. et al. (orgs.) A cidade em disputa: Planos Diretores e participação no cenário da pandemia. Marília, Lutas Anticapital, pp. 99-120., pp. 101-113), Peres (2022)PERES, L. F. B.(2022). Confrontos na Cidade: luta pelo plano diretor nos 20 anos do Estatuto da Cidade. Florianópolis, Departamento de Arquitetura e Urbanismo/Instituto Cidade e Território. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/241947. Acesso em: 20 maio 2023.
    https://repositorio.ufsc.br/handle/12345...
    e Schinke (2022SCHINKE, G. (2022). “O poder ‘fundiário’ no plano Diretor de Florianópolis”. In: PERES, L. F. B. Confrontos na Cidade: luta pelo plano diretor nos 20 anos do Estatuto da Cidade. Florianópolis, Departamento de Arquitetura e Urbanismo/Instituto Cidade e Território, pp. 267-292. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/241947. Acesso em: 20 maio 2023.
    https://repositorio.ufsc.br/handle/12345...
    , pp. 275-286). Em janeiro de 2014, foi aprovada, na Câmara Municipal, a lei complementar n. 482, encaminhada pelo prefeito Cesar Souza Júnior, com mais de 300 emendas incluídas por vereadores, as quais beneficiaram interesses empresariais, sem discussão com a sociedade. Houve algumas vitórias do movimento social e ambientalista, como a limitação a dois pavimentos em áreas sensíveis ambientalmente, mas grande parte da cidade foi adensada e verticalizada, o que beneficiou o setor imobiliário, mesmo com uma série de inseguranças jurídicas. Depois de muitas ações no Ministério Público Federal, judicializou-se a LC 482, e a prefeitura foi obrigada a promover uma série de oficinas comunitárias. Mas, com o prefeito seguinte, Gean Loureiro, interrompeu-se o processo com ação no TRF-4 e no STJ, retirando a atribuição do Ministério Público Federal para a atuação em esfera estadual, o que fez com que a LC 482 continuasse em vigor até a aprovação da lei complementar n. 739, de maio de 2023. Essa Lei também foi judicializada no Ministério Público Estadual, buscando maior participação popular, visto que as audiências públicas foram realizadas de forma burocrática, sem oficinas comunitárias preparatórias e sem direito ao contraditório. O processo foi igualmente excludente na Câmara Municipal, que promoveu apenas cinco audiências públicas em espaços menores e aprovou o projeto em 2023 sem discussão ampla, sem contraditório e sem oficinas comunitárias. Com isso, encerrou-se um longo período de judicialização da lei anterior, a de 2014, ainda que as perspectivas sejam de se abrir novas judicializações da lei atual, por ter igualmente gerado inconstitucionalidades e insegurança jurídica, principalmente na área ambiental, segundo estudos de técnicos do Ipuf, ICMBio e Ibama e por um Grupo Técnico e Comunitário dos movimentos sociais.
  • 5
    Estima-se que o déficit habitacional passou de 14.847 unidades de domicílios, em 2010, para cerca de 18.648 unidades em 2021. O dado é ainda conservador, porque Florianópolis recebe forte contingente populacional migrante.
  • 6
    Aguiar (2015AGUIAR, A. R. de. (2015). Analisando o Floripa 2030: um modelo hegemônico de cidade. Dissertação de mestrado. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: file:///C:/Users/2274/Downloads/337931%20(4).pdf. Acesso em: 20 maio 2023.
    file:///C:/Users/2274/Downloads/337931%2...
    , p. 33), referindo-se ao período escolhido de estudo (1996-2013) e a essas forças, afirma: “[...] por atravessarem diferentes gestões à frente do poder municipal, que possuem ‘divergências’ apesar de comporem o mesmo bloco de poder, demonstrando que independentemente de quem governa, a lógica de produção do espaço da cidade permanece”.
  • 7
    Conjuntura que se gerou, em grande parte, do golpe que sofreu a ex-presidenta Dilma Rousseff, com os governos posteriores de Michel Temer e Jair Bolsonaro, que implantaram as reformas trabalhista e previdenciária, e com a aprovação da emenda do teto de gastos (emenda constitucional n. 95).
  • 8
    As áreas afetadas ou vendidas são as seguintes, por localização, número de terrenos e área total (m2): Canasvieiras (46 e 25.377); Rio Tavares (01 e 4.000); Coqueiros (01 e 3.828); Jurerê (01 e 26.681); Córrego Grande (01 e 2.589); Saco dos Limões (01 e 945); Jardim Atlântico (01 e 375); perfazendo um total de 52 terrenos com 39.795 m2, sendo a maior parte dos terrenos localizada na parte insular norte, a mais valorizada do município.
  • 9
    Esse projeto de lei, depois de muita mobilização, foi aprovado na Câmara Municipal em janeiro de 2021, depois de ter sido retirado daquela casa legislativa no segundo semestre de 2020, em plena pandemia, por pressão principalmente de parte das ocupações urbanas e dos movimentos de luta pela moradia.
  • 10
    As medidas favorecem as concessões para empresas terceirizadas e, ao mesmo tempo, impedem o crescimento da empresa, criminalizando o sindicato da categoria, precarizando o trabalho e fortalecendo a terceirização administrativa, que já vinha ocorrendo com diversas contratações por sistema de organizações sociais, denunciadas em inquéritos. A Operação Chabu marcou o período, com o Ministério Público Federal investigando vazamento de informações sigilosas a políticos e empresários sobre operações das polícias civil e federal, envolvendo o então prefeito Gean Loureiro, indiciado junto a comissionados. A administração municipal anterior também foi investigada por envolvimento, com vereadores e empresários, em vendas de projetos de lei, fraude em licitação e contratos com prejuízos de aproximadamente R$30 milhões de reais aos cofres públicos. Essa operação foi chamada Ave de Rapina. Outra ação à época foi a Operação dos Radares, que investigou fraudes nos contratos entre a prefeitura da capital e empresas que operam o sistema de fiscalização eletrônica.
  • 11
    Ainda em 2021, um Grupo de Trabalho técnico e acadêmico que analisou a minuta de revisão do Plano Diretor da Prefeitura durante seis meses constatou os inúmeros incentivos de potencial construtivo sem estudo efetivo da capacidade de suporte, o avanço do setor imobiliário sobre áreas alagáveis e a flexibilização das Áreas Verdes de Lazer (AVL) e Áreas Comunitárias Institucionais (ACI), entre outros dispositivos permissivos. Ver Lidera Sul da Ilha (2023)LIDERA SUL DA ILHA (2023). Estudos técnicos avaliam proposta da prefeitura para mudar plano diretor de Florianópolis. Disponível em: https://liderasuldailha.com.br/estudos-tecnicos-avaliam-proposta-da-prefeitura-para-mudar-plano-diretor-de-florianopolis/. Acesso em: 18 maio 2023.
    https://liderasuldailha.com.br/estudos-t...
    .
  • 12
  • 13
    Os técnicos desses órgãos, em documento divulgado ao público, fazem severas críticas aos impactos que até então o PLC n. 1911/2022 iria ocasionar ao ambiente. Estão nos seguintes pareceres: parecer técnico n. 130/2022-NLA-SC/Ditec-SC/Supes-SC, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama); parecer técnico Ptec n. 840/Floram/Dilic/Delic/2022, da Fundação Municipal do Meio Ambiente do município de Florianópolis, que propõe medidas que visem proteger os ecossistemas do PLC n. 1911/2022, que tramitou na Câmara Municipal e virou a lei complementar n. 739/2023, do novo Plano Diretor. Disponível em: file:///C:/Users/2274/Downloads/Informa%C3%A7%C3%A3o%20T%C3%A9cnica%2041%20ICMBio%20(1).pdf . Acesso em: 15 maio 2023.
  • 14
    Ver análise desse tema em Sintrasem (2023)SINTRASEM (2023). Nota de repúdio: contra o imobilismo fiscalizatório gerado pela Reforma Administrativa de Topázio. Disponível em: http://www.sintrasem.org.br/Default/Noticia/27938/nota-de-repudio-contra-o-imobilismo-fiscalizatorio-gerado-pela-reforma-administrativa-de-topazio. Acesso em: 20 maio 2023.
    http://www.sintrasem.org.br/Default/Noti...
    .
  • 15
    Como se examinou no item “Esfera econômica: o controle do espaço pelo mercado imobiliário”, o processo de aprovação e implementação da suposta regularização fundiária (que de fato é de titulação fundiária) é o outro braço da expansão imobiliária, via outorga onerosa, com a densificação e verticalização apontadas neste item com a sanção da lei n. 739/2023. A titulação em massa já vem ocorrendo no bairro da Tapera, em Florianópolis, com o cadastro de mil famílias dos 3.600 imóveis pelo Lar Legal, programa que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina vem implementando com a prefeitura, que busca a titulação do imóvel e terreno para evitar insegurança jurídica (ver ND+, 2021). Por falta de espaço no presente artigo, não será desenvolvida aqui a hipótese de que esse Programa, ainda que se refira à regularização urbanística, na prática, vai coadjuvar um processo de “esquentamento” do mercado imobiliário nos setores antes informais da população de baixa renda, que se denominou mercado informal (Sugai e Peres, 2006SUGAI, M. I.; PERES, L. F. B. (2006). Relatório Final de Pesquisa. Mercados Informais de solos urbanos nas cidades brasileiras e o acesso dos pobres ao solo – Área Conurbada de Florianópolis. Florianópolis: Grupo de Pesquisa Infosolo, mar. 2006.). Baseada na lei n. 13.465/2017, e não na extinta lei n. 11.977/2009, que previa regularização fundiária com inclusão social e provisão de equipamentos e infraestrutura, como condição prévia e concomitante à titulação, essa iniciativa, apoiada na lei n. 707/2021, como mencionado anteriormente no item “Esfera econômica...”, será um mecanismo de explosão imobiliária sem precedentes. Principalmente o REURB-S, regularização fundiária destinada à população de baixa renda, até 3,0 s.m., e que incumbe ao poder público dotar de infraestrutura e equipamentos, vem sendo pouco implementado pela prefeitura de Florianópolis, apesar do decreto n. 2290/2021, que institui comissão para sua implementação, pois exige muito investimento, e o Lar Legal é mais rápido e permite titular antes de dotação de infraestrutura. Com isso e na prática, a atual administração municipal, alinhada com a expansão imobiliária, vai estimular a escrituração em massa, desvinculando-a de uma efetiva regularização urbanística, mais que fundiária, que preveja inclusão social com dotação de serviços e infraestrutura adequada.
  • 16
    Observa-se que, sob forte pressão e mobilização dos servidores públicos federais, a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 32, da reforma administrativa, foi interrompida na transição do governo Bolsonaro para o de Lula em final de 2022. Os principais pontos da PEC 32 são: proibição de concessão de estabilidade no emprego ou de proteção contra demissão de empregados de empresas públicas, sociedades de economia mista e das subsidiárias dessas empresas e sociedades por meio de negociação, coletiva ou individual, ou de ato normativo que não seja aplicável aos trabalhadores da iniciativa privada. O projeto permitia a contratação temporária na administração pública por processo seletivo simplificado, pelo prazo máximo de até 10 anos e com possibilidade de prorrogações. Essa seleção só poderia ser dispensada em casos de urgência, como calamidade e emergências associadas à saúde.
  • 17
    Hotel na Ponta do Coral (promontório na avenida Beira-mar norte insular, na embocadura do Manguezal de Itacorubi, na parte norte do centro de Florianópolis), que não foi construído pela luta de resistência dos movimentos ambientalistas, como o Movimento Ponta do Coral 100% Pública. Compõe, com a Ponta do Goulart e a Ponta do Lessa, as três pontas da entrada do Manguezal do Itacorubi. Outra luta de resistência foi quando o movimento ambientalista, nos anos 1990, evitou que se construísse a sede da prefeitura e um hotel cinco estrelas na parte insular na cabeceira da ponte Hercílio Luz, em que se encontra a estátua de Hercílio Luz e de onde se avista a parte continental do município e o Pico do Cambirela. Depois de muita mobilização e lutas judiciais, conseguiu-se implantar o Parque da Luz, como área pública, no local. Como resultado de mobilização de acadêmicos da UFSC e dos movimentos ambientalistas e com a solidariedade dos pescadores e da população local, em ação do Ministério Público Federal, também se impediu a construção da Marina do Porto da Barra, que previa a entrada, na Lagoa da Conceição, de 300 barcos, com alto risco de contaminação das águas da Lagoa, em função da manutenção dos barcos e também pela própria construção e aterros para a construção de condomínios de luxo.
  • 18
    A luta auto-organizada pela moradia em Florianópolis, não considerando as mais antigas, localizadas no Maciço do Morro da Cruz, de maioria negra, mas que foi se dando ao longo de décadas, desde o início do século XX, teve como marco a ocupação de Monte Cristo, antiga área chamada de Pasto do Gado, na madrugada de julho de 1990, que foi a maior e primeira ocupação urbana organizada em Santa Catarina. Está localizada no entorno do conjunto habitacional Panorama, construído no último governo militar (1982), que foi cercado por várias comunidades ocupadas. Pela sua resistência contra a repressão policial, foram permanecendo na área, através de muita negociação, tendo posteriormente investimentos, com o governo popular de Sérgio Grando (1993-1996) e com o Programa Habitar Brasil/BID, na administração posterior de Angela Amin (1997-2003). O processo de ocupação e luta é analisado em Peres (1994)PERES, L. F. B. (1994). Da crise do padrão habitacional de grande escala à expansão das periferias urbanas: os sem-teto como a ponta do iceberg do processo de segregação e exclusão sócio-espacial (1964-1992). Tese de doutorado. México/DF, Universidad Nacional Autónoma do México.. As lutas vão se ampliar a partir de 2010, por diminuição dos investimentos em moradia e abandono das políticas sociais, sendo a “solução” da não solução oficial pelo Estado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2021
  • Aceito
    03 Nov 2022
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