Resumo
Considerando as recentes transformações do trabalho nas metrópoles brasileiras, observa-se uma multiplicação do trabalho precário baseado na circulação de mercadorias. A crise do capital e da forma-valor parece dar origem a um imperativo de circulação eficiente como condição de possibilidade para a acumulação, que se reflete na chamada urbanização logística. Este artigo apresenta uma interpretação desses processos a partir da perspectiva lefebvriana dos níveis de análise do urbano (G-M-P). Ao explorar a relação entre crise do capital, urbanização logística e a dimensão cotidiana dos entregadores de aplicativo, concluímos que a precarização do trabalho e a produção de infraestruturas logísticas aparecem como expressão material do aprofundamento da crise da valorização do valor, alterando simultaneamente as formas de luta da classe trabalhadora.
precarização do trabalho; produção logística do espaço; crise do capital; autonomia negativa
Abstract
In the context of the recent transformations undergone by work in Brazilian metropolises, there has been a multiplication of precarious jobs related to circulation of goods. The crisis of capital and of the value-form seem to be giving rise to the need of efficient circulation as a condition for accumulation, which is reflected in the so- -called logistical urbanization. The article presents an interpretation of these processes based on Lefebvre’s levels of analysis of the urban (G-M-P). By exploring the relationship between crisis of capital, logistical urbanization, and the everyday dimension of app-based delivery workers, we conclude that the precarization of work and the production of logistical infrastructures emerge as material expressions of the increasing crisis of the valorization of value; at the same time, they alter the forms of struggle of the working class.
precarization of work; logistical production of space; crisis of capital; negative autonomy
Introdução
Mbembe (2021)MBEMBE, A. (2021). Brutalismo. São Paulo, n-1 Edições. descreve, valendo-se da ideia de “brutalismo”, o que se tornou o predicamento contemporâneo: um mundo marcado pela demolição brutal dos preceitos modernos de ordenamento. Nesse contexto, a sociedade mantém seu funcionamento a partir de “trabalhos de montagem” ( assemblage ), isto é, uma forma determinada de reunir os destroços para manter, mesmo que a duras penas, o funcionamento decadente da sociedade capitalista. Uma das expressões desse trabalho de montagem está na centralidade assumida pela logística no capitalismo contemporâneo. Através de um computador ou de um smartphone , é possível demandar praticamente qualquer tipo de produto: de pilhas a maquinários tecnológicos; de artigos produzidos em larga escala a itens raros e de colecionadores. Em todo caso, como uma espécie de ritual de invocação, após digitar os números que constam em seu cartão de crédito, em poucos dias – em alguns casos, em poucas horas ou minutos –, uma aparição toca o interfone e entrega o produto desejado. Entre o comprar e o receber, a mediação aparece personificada na figura de um entregador, e o recebimento do produto oficializa a obliteração de todos os circuitos que conectam o local de produção ao local de consumo.
No entanto, o signo da globalização e da dissolução das fronteiras carrega como face obscura sucessivos processos de precarização do trabalho e de violência que se instauram nos pontos nodais desse sistema como pressuposto do próprio processo de circulação . Para que um produto fabricado do outro lado do globo chegue até você em menos de 24 horas, não é apenas uma questão de velocidade, eficiência e logística (no sentido clássico de gestão dos custos de transporte), mas, de fato, de um trabalho de montagem, um ajuntamento de escombros: supressão dos salários, desarticulação de movimentos trabalhistas e sindicais como política interna das empresas, vigilância, controle e disciplinamento do trabalho, censura, penalização por eficiência, entre outros ( Delfanti, 2021DELFANTI, A. (2021). Machinic dispossession and augmented despotism: digital work in an Amazon warehouse. New Media & Society, v. 23, n. 1, pp. 39-55. ).1 1 Ver, por exemplo, o caso recente em que a Amazon planeja lançar um aplicativo de comunicação interna da empresa em que as palavras “sindicato”, “aumento salarial”, “representação”, entre outras, serão de uso proibido. Disponível em: https://www.jacobinmag.com/2022/04/amazon-warehouse-staten-island-ldj5-union-drive .
Parafraseando Marx, talvez seja possível argumentar que, hoje, a riqueza na sociedade onde reina o modo de produção capitalista apareça, cada vez mais, como uma enorme circulação de mercadorias.2 2 Embora, na formulação original presente n’ O capital , o termo “coleção” já indique que o valor é a expressão do confronto entre diferentes mercadorias, sua substituição pelo termo circulação, aqui, busca denotar uma transformação recente no regime de acumulação de capital. Com o bloqueio das condições históricas que permitiam que a valorização do valor continuasse ocorrendo, resultado da dinâmica contraditória do capital ( Kurz, 2014KURZ, R. (2014). Dinheiro sem valor . Lisboa, Antígona. ), a circulação desempenha um papel fundamental: estando anêmico de valor, o sistema produtor de mercadorias, ou seja, diante de uma tendência de queda da massa de mais-valor produzido, a efetivação do diminuto valor restante depende da eficácia da circulação. Assim, a produção das condições concretas para a circulação (infraestrutura) e a organização eficiente desse processo (logística) tornam-se a expressão contemporânea da dinâmica de um capitalismo “ferido de morte”, para ficarmos com a expressão de Henri Lefebvre (1976)LEFEBVRE, H. (1976). The survival of capitalism: reproduction of the relations of production . Nova York, Allison & Busby. .
Nesse sentido, se, por um lado, o capitalismo depende de um constante “trabalho de montagem” para assegurar sua reprodução, ainda que precária, é possível argumentar que os trabalhadores precarizados responsáveis pela circulação de mercadorias se tornam, por outro, a expressão mesma de um “trabalho de costura ”, que reúne os retalhos de um espaço urbano e um tecido social fragmentados. Nesse processo, os trabalhadores são separados uns dos outros como resultado da fragmentação do próprio trabalho, mas são separados ao mesmo tempo que são unificados pelo algoritmo num grande “trabalho coletivo” que produz o espaço urbano contemporâneo.
Os entregadores de comida, motoristas de aplicativo, freteiros de grandes companhias multinacionais, entre outros, circulam rapidamente para realizarem as entregas nos prazos estabelecidos pelos algoritmos. Costuram entre os carros e, não raro, desrespeitam regras do trânsito e colocam sua própria vida em risco para conseguirem os bônus oferecidos pelos apps ao cumprirem o tempo previsto. As bags coloridas com os logos das empresas-aplicativos são vistas em todos os lugares. Essa forma de viração contemporânea revela algo da condição das metrópoles brasileiras. A costura que os motoboys fazem no trânsito como forma de atender às expectativas da circulação de mercadorias é a sutura necessária para esse tecido social esgarçado, um espaço urbano fragmentado e uma reprodução social que atinge um estágio crítico.
Na crise do valor, a dissolução e o definhamento do trabalho formal e assalariado e do Estado de Bem-Estar Social, que nunca se consolidaram plenamente nas periferias globais, dão origem a um processo de “multiplicação do trabalho” ( Mezzadra e Neilson, 2013MEZZADRA, S.; NEILSON, B. (2013). Border as method, or, the multiplication of labor . Durham, Duke University Press. ) que assume formas e modos de organização diversos, mas, na maior parte dos casos, marcados pelo signo da precarização das relações de trabalho. Nessa “nova paisagem proletária” ( Gago, 2018GAGO, V. (2018). A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular . São Paulo, Elefante. ), as cidades brasileiras, tal como no resto do mundo, têm se tornado cada vez mais o palco para essas formas de trabalho que se baseiam primariamente na circulação. Essa enorme massa de trabalhadores “sem salário” ( Denning, 2010DENNING, M. (2010). Wageless life. New Left Review, n. 66. ) é absorvida pela nova economia de plataforma ( Hums, 2016HUMS, U. (2016). Logged labour: a new paradigm of work organisation? Work organisation, Labour & Globalisation, v. 10, n. 1, pp. 7-19. ), baseada na gestão algorítmica do trabalho via infraestruturas digitais ( Srnicek, 2016SRNICEK, N. (2016). Platform Capitalism . Cambridge, Polity. ).
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) refere-se a um novo padrão de relações trabalhistas que se afasta cada vez mais do chamado “trabalho tradicional” (OIT, 2018). Esse novo tipo de emprego difere das relações de trabalho formais, em particular através do uso de trabalhadores como intermediários digitais em um mercado de trabalho on-line . Esse processo recebe o nome de “uberização do trabalho” e designa o modo como “as relações de trabalho são crescentemente individualizadas e invisibilizadas” ( Antunes, 2020ANTUNES, R. (2020). “Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da indústria 4.0”. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo, Boitempo. , p. 11), bem como marcadas pela intermitência, precarização e transferência dos custos de operação para o próprio trabalhador ( Abílio, 2020ABÍLIO, L. C. (2020). Plataformas digitais e uberização: globalização de um Sul administrado. Revista Contracampo, v. 39, n. 1, pp. 12-26. ). Sua presença é tamanha que hoje as cidades dependem crescentemente da oferta desses serviços dispersos, mas conectados por algoritmos, para seu pleno funcionamento.
É justamente no e através do espaço urbano que essa expressão heterogênea e difusa da logística, das infraestruturas e dos diferentes tipos de trabalho que estas articulam ganha consistência interna. Como observa Cowen (2014)COWEN, D. (2014). The deadly life of logistics: mapping violence in the global trade . Minneapolis, University of Minnesota Press. , a “revolução logística” é resultado de um conjunto de processos que marcaram os anos 1950 a 1970, como a criação de instituições, disciplinas e estratégias empresariais destinadas a fornecer uma nova perspectiva sistêmica dos encadeamentos da distribuição da produção no espaço. Eram os anos nos quais Lefebvre começava a argumentar que a urbanização tenderia, virtualmente, à escala planetária e carregava consigo uma reorientação dos problemas típicos do período industrial, isto é, problemas ligados à produção, para uma nova problemática propriamente urbana. É possível argumentar, portanto, que a urbanização é o momento e a mediação que conectam a necessidade da circulação acelerada das mercadorias às formas mais elementares de trabalhos precários, enquanto a produção capitalista do espaço é o próprio motor que anima e engendra essas duas situações aparentemente desconexas.
O presente texto pretende contribuir com as discussões recentes sobre infraestrutura, logística e precarização do trabalho, entendendo esses elementos como conectados à dinâmica global da produção capitalista do espaço. Para isso, seguimos a formulação de Lefebvre (2003)LEFEBVRE, H. (2003). Critique of everyday life . Londres, Verso Books. que propõe analisar o fenômeno urbano a partir de três níveis ou dimensões: o nível G (global), o nível M (médio/mediador) e o nível P (privado). No nível G, Lefebvre localiza o Estado e o capital em sua dinâmica abstrata de funcionamento, bem como suas estratégias e lógicas que se projetam sobre o ambiente construído do urbano. O nível M é o nível propriamente do “conjunto urbano” ( urban ensemble )(ibid., p. 80; tradução nossa), enquanto espaço que medeia as relações entre o nível global e o nível privado. O espaço urbano aparece, portanto, como a expressão material do movimento abstrato do Estado e do capital, na medida em que as infraestruturas e o ambiente construído refletem e prolongam as estratégias projetadas a partir do nível superior. O nível P, por fim, é o nível do corpo e da vida cotidiana e, portanto, o lugar para onde os vetores que emanam do nível global apontam e buscam realizar o exercício do poder. Ao mesmo tempo, é no nível P que podem ser construídas contraprojeções e contraprojetos de poder que se apoiem sobre a mediação do espaço urbano para sua efetivação. Se pensarmos o movimento recente do capital em torno da logística, das infraestruturas e da precarização do trabalho nesses termos, podemos perceber que os efeitos e as expressões dessa dinâmica também podem ser analisados em três níveis distintos.
Usaremos essa chave lefebvriana para descrever como a precarização do trabalho se amarra a uma dinâmica geral de crise da valorização do valor (G) e possui, como uma de suas estratégias, enquanto medida contratendencial, a produção de infraestruturas logísticas (físicas e digitais) como “saída de emergência” do capital em crise, que produz um tecido urbano infraestrutural e uma rede digital de infraestrutura (M) que viabilizam a exploração de trabalho hiperprecário (P).
Assim, este texto se estrutura, para além desta introdução, em quatro seções. Seguimos, como método expositivo, a mencionada estrutura de níveis proposta por Lefebvre (2003)LEFEBVRE, H. (2003). Critique of everyday life . Londres, Verso Books. . Na primeira seção, que representa o nível G, discutimos as causas e as consequências da crise estrutural do capital, tratando-a com um elevado grau de abstração, mas entendendo sua importância para destrinchar os fenômenos que analisamos na sequência. Na segunda seção, nível M, tratamos sobre a urbanização logística que se desenvolve, desde a segunda metade do século XX, mas com cada vez maior intensidade em anos mais recentes, como uma “resposta” contratendencial à crise do capital. Na terceira, o nível P, abordamos a forma como a combinação da crise e a resposta logística na forma da chamada “uberização” produzem efeitos que organizam a dinâmica cotidiana de milhares de trabalhadores precarizados, em especial, produzindo uma subjetividade atravessada pela gestão algorítmica do trabalho e da experiência do que chamaremos de “autonomia negativa”. Por fim, nas considerações finais, sumarizamos as contribuições do texto e indicamos a importância de se pensar as formas de organização e as lutas desses trabalhadores, constituindo, assim, uma importante agenda de pesquisa e um pertinente campo de ação política.
A crise estrutural do capital e o derretimento da sociedade salarial
O capital é, antes de tudo, uma forma historicamente determinada de mediação social contraditória ( Marx, 2013MARX, K. (2013). O capital . Livro I. São Paulo, Boitempo. ). Sua existência é dependente da mobilização recorrente de trabalho para que a valorização do valor seja possibilitada. Assim, o capital estruturou-se historicamente a partir de um longo processo de despossessão, descrito por Marx como “acumulação primitiva”: momento que criou as condições da generalização de sua forma social. Como se sabe, foi preciso destruir as formas de reprodução material de populações inteiras para que ficassem sem alternativas de reprodução. O trabalhador tornou-se “alguém que não tem outra mercadoria para vender, livre e solto, carecendo absolutamente de todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho” (ibid., p. 314) e, dessa maneira, foi obrigado a se submeter ao poder despótico do capital. Assim, as pessoas foram colocadas para trabalhar na produção de mercadorias que, como Marx (2022) descreve, é “a produção de mais-valor”.
A expansão da valorização do valor deve ser contínua, e, para tanto, o capital depende de ampliar continuamente a massa de mais-valor produzida. Marx (2013)MARX, K. (2013). O capital . Livro I. São Paulo, Boitempo. identificou duas estratégias para isso. A primeira nomeou de “mais-valor absoluto”. Trata-se de expandir a massa de mais-valor produzido a partir do aumento quantitativo da jornada de trabalho, ampliando, assim, o tempo de trabalho excedente. A segunda estratégia, o “mais-valor relativo”, implica a elevação da produtividade do trabalho, que faz comprimir o tempo de trabalho necessário e, consequentemente, ampliar o tempo de trabalho excedente. Se o primeiro demandava apenas a subsunção formal do trabalho, o segundo exige, de fato, a subsunção real do trabalho, cuja condição básica é o avanço das forças produtivas no conjunto da sociedade.
[...] a produção do mais-valor absoluto gira apenas em torno da duração da jornada de trabalho; a produção do mais-valor relativo revoluciona de alto a baixo os processos técnicos do trabalho e os agrupamentos sociais. Ela supõe, portanto, um modo de produção especificamente capitalista, que com seus métodos, meios e condições nasce e é formado naturalmente apenas sobre a base da subordinação formal do trabalho ao capital. No lugar da formal surge a subordinação real do trabalho ao capital. (Ibid., p. 239)
Assim, os capitais, pressionados, entre outros fatores, pela organização dos trabalhadores e pela lei coercitiva da concorrência, passam a organizar a extração de mais-valor por meio de sua forma relativa. O resultado é que, cada vez mais, as inovações produtivas e tecnológicas são fundamentais para garantir a continuidade da exploração do mais-valor relativo. Contudo, como forma contraditória que é, o capital, nesse mesmo movimento, produz sua crise interna. A elevação da composição orgânica do capital resulta na queda da taxa de lucro, na dessubstancialização do valor e na produção de uma massa de desempregados ( Kurz, 2018KURZ, R. (2018). Crise do valor de troca . Rio de Janeiro, Consequência. ).
Como argumenta Marx (2013)MARX, K. (2013). O capital . Livro I. São Paulo, Boitempo. , o capital é impelido, por uma necessidade imanente à sua própria reprodução ampliada, a elevar a produtividade do trabalho. Por consequência, o trabalho vivo é substituído por trabalho morto, a partir do desenvolvimento das forças produtivas. Como é discutido por Blank (2014)BLANK, J. (2014). Para uma crítica radical do capital e das suas forças produtivas. Libertas. Universidade Federal de Juiz de Fora, v. 11, n. 1, pp. 1-25. , o desenvolvimento tecnológico assume um papel destrutivo, visto que, subsumido à influência da forma-valor, conduz à destruição das formas sociais que o produziram ( Jappe, 2006JAPPE, A. (2006). As aventuras da mercadoria . Lisboa, Antígona. ). Diante desse descolamento da atividade produtiva pelas forças produtivas das formas de mediação social, são liberados, também, os seus potenciais destrutivos ( Kurz, 1993KURZ, R. (1993). O colapso da modernização . Rio de Janeiro, Paz e Terra. ).
A causa da crise é a mesma para todas as partes do sistema mundial produtor de mercadorias: a diminuição histórica da substância de trabalho abstrato, em consequência da alta produtividade alcançada pela mediação da concorrência. (Ibid. p. 220)
Essa formulação remete aos escritos de Marx (2013)MARX, K. (2013). O capital . Livro I. São Paulo, Boitempo. , que percebeu a necessidade intrínseca do capital de reduzir o tempo de trabalho socialmente necessário sob pena de sua própria dissolução. É essa racionalidade contraditória que guiou o desenvolvimento dessa forma social crítica até o ponto em que sua contradição se torna incontornável. Essa situação não deveria causar estranheza, uma vez que tal processo foi descrito por Marx (ibid., pp. 556-557) como o “princípio da grande indústria”, que ocasiona a “dissolução do processo produtivo em seus elementos constitutivos sem consideração para com as mãos humanas” e, dessa maneira, “torna supérfluo o próprio trabalhador e desencadeia um rito sacrificial ininterrupto da classe trabalhadora”.
O desenvolvimento das forças produtivas engendra um momento crítico nas relações sociais de produção que levariam à transformação da reprodução social: a forma da sociedade salarial que se constituiu historicamente, e teve seu ápice nas décadas de 1950 e 1960 nos países centrais, entrou em estado de decadência. A forma de reprodução social hoje tenta, de várias formas, emular o assalariamento que já se corroeu.
Se, de um lado, o capital atuou como força totalizadora que tragou as relações sociais efetivas para seu interior e imprimiu sua forma na vida social de todo o planeta; de outro, como contradição em processo, o capital é movimentado por um impulso imanente de reduzir ao mínimo sua dependência do trabalho vivo à medida que eleva a produtividade ( Marx, 2011MARX, K. (2011). Grundrisse . São Paulo, Boitempo. , 2013MARX, K. (2013). O capital . Livro I. São Paulo, Boitempo. e 2017). Como “sujeito automático”, o capital está enredado nessa contradição. Hoje, quando o desenvolvimento das forças produtivas atingiu um certo patamar irreversível de produção dos supérfluos, o capital entra numa espiral sacrificial que nega a própria fonte do valor. “Toda a forma de movimento da indústria moderna deriva, portanto, da transformação constante de uma parte da população trabalhadora em mão de obra desempregada ou semiempregada” ( Marx, 2013MARX, K. (2013). O capital . Livro I. São Paulo, Boitempo. , p. 708).
Se, como vimos na primeira seção, o nível G refere-se à escala necessária para compreendermos a dinâmica mais geral do capital e sua projeção sobre o nível M, isto é, sobre o espaço urbano e o ambiente construído, o processo autodestrutivo colocado em movimento pelas próprias contradições internas do capital irá representar um tipo de intervenção específica sobre o espaço e, especificamente, uma produção do espaço condizente com as estratégias contratendenciais empregadas. Nesse sentido, é apresentando a tendência de crise do capital que podemos compreender as transformações, como veremos, nos outros níveis.
Na seção seguinte, apresentamos como essa dinâmica de crise manifesta-se no espaço urbano (M) através da logística e da produção de infraestruturas enquanto saídas de emergência para o capital. O espaço urbano aparece atravessado pelas estratégias do capital, que encontra, no ambiente construído, uma nova possibilidade de realização do seu expediente de valorização do valor.
Urbanização logística como “saída de emergência” do capital em crise
Diante da crise estrutural que está atravessando o capitalismo como sistema de reprodução social a partir da década de 1970, um conjunto de “saídas de emergências” apareceram, em todos os níveis, para contornar a queda tendencial da taxa de lucro. Em um plano mais sistêmico, a chamada “revolução logística” ( Bonacich e Wilson, 2008BONACICH, E; WILSON, J. B. (2008). Getting the goods: ports, labor, and the logistics revolution. Ithaca, Cornell University Press. ; Cowen, 2014COWEN, D. (2014). The deadly life of logistics: mapping violence in the global trade . Minneapolis, University of Minnesota Press. ) permitiu, ao capital, reorganizar e redefinir territórios em múltiplas escalas, a fim de garantir ulteriores ciclos de acumulação ao capital em crise: por um lado, acelerando o ciclo de rotação e realização do próprio capital; por outro, a partir da criação de novos complexos infraestruturais, veiculando cotas de capital sobreacumulado em direção a empreendimentos cujos lucros são talvez menos rápidos, porém mais seguros no longo prazo, e garantidos pelos Estados a partir de uma multiplicidade de dispositivos contratuais, tais como os diversos tipos de parcerias público-privadas.
Durante os últimos anos, um conjunto de estudos ( Cowen, 2014COWEN, D. (2014). The deadly life of logistics: mapping violence in the global trade . Minneapolis, University of Minnesota Press. ; Easterling, 2014EASTERLING, K. (2014). Extrastatecraft. The power of Infrastructure Space . Londres, Verso. ; Grappi, 2016GRAPPI, G. (2016). Logistica . Roma, Ediesse. ; Comitê Invisível, 2016COMITÊ INVISÍVEL (2016). Aos nossos amigos . São Paulo, N-1 Edições. ; Hildyard, 2016HILDYARD, N. (2016). Licensed larceny. Infrastructure, financial extraction and the global South. Manchester, Manchester Capitalism MUP. ; Mezzadra e Neilson, 2019MEZZADRA, S.; NEILSON, B. (2019). The politics of operations. excavating contemporary capitalism. Durham e Londres, Duke University Press. ; Arboleda, 2020ARBOLEDA, M. (2020). Planetary mine. Territories of extraction under late capitalism. Londres, Verso. ; Peregalli, 2022PEREGALLI, A. (2022). IIRSA: entre integración regional y racionalidad logística. Nova York, Peter Lang. ) tem emergido para dar conta da logística, não apenas como um setor e atividade econômica em expansão, mas como uma verdadeira lógica ou racionalidade que atravessa de forma cada vez mais profunda uma multiplicidade de atores, setores e âmbitos do capitalismo contemporâneo. Nesse sentido, os autores mencionados adotam uma “perspectiva logística” para abordar um conjunto de circunstâncias heterogêneas, tais como as novas formas do trabalho portuário; a produção de novas territorialidades estratégicas como zonas econômicas especiais e corredores de desenvolvimento; as cadeias produtivas globais; os funcionamentos algorítmicos da indústria 4.0 e da economia de plataforma; e as novas formas de gestão dos fluxos metropolitanos. Nas palavras do coletivo Into the Black Box (2018INTO THE BLACK BOX (2018). Manifiesto de crítica logística. Disponível em: http://www.intotheblackbox.com/manifesto/manifiesto-de-critica-logistica/. Acesso em: 6 mar 2023.
http://www.intotheblackbox.com/manifesto...
, s.p.), a logística pode ser definida como uma “forma de inteligência estratégica que coordena a harmonização da produção, circulação e consumo no capitalismo global, cuida da sua reprodução e se coloca como motor para a aceleração crescente que caracteriza os processos de circulação – cada vez mais hegemônicos sobre o processo produtivo como um todo”.
Apesar da sua explosão nas últimas décadas, a “racionalidade logística” há muito tempo participa do desenvolvimento do capitalismo histórico. Retomando uma perspectiva genealógica ( Foucault, 2004FOUCAULT, M. (2004). Nietzsche, la genealogía, la historia . Valencia, Pre-Textos. ), é possível identificar um conjunto de origens da logística, bem como de momentos de ruptura e descontinuidade que dão conta da adquirida centralidade dessa lógica para as operações capitalistas. Van Creveld (1977)VAN CREVELD, M. (1977). Supplying war: logistics from wallerstein to patton. Cambridge, Cambridge University Press. identificou como principal antecedente da logística contemporânea o surgimento, entre 1560 e 1715, de uma logística militar nos principais exércitos europeus, a partir da necessidade destes últimos de organizar um complexo sistema de suprimentos durante suas longas campanhas bélicas. No começo do século XIX, encontramos reflexões sobre a logística militar diretamente nos escritos do estrategista Carl von Clausewitz e do general napoleônico Henri de Jomini. Outra proposta de trajetória genealógica foi a de Harvey e Moten (2013). Esses autores identificam a emergência da logística nas atividades comerciais transatlânticas e, especialmente, como ciência de gestão para o controle, a subjugação e o tráfico dos escravos. Já Stern (2011)STERN, P. (2011). The Company-State. Corporate Sovereignty and the Early Modern Foundation of the British Empire in India. Oxford, Oxford University Press. evidenciou o papel das Companhias das Índias dos séculos XVII e XVIII como primeiros sujeitos de caráter privado que chegaram a estabelecer um controle político sobre inteiros territórios de ultramar, prefigurando aquilo que seria, na época contemporânea, a multiplicação de territorialidades estratégicas para a gestão de fluxos de mercadorias e pessoas, como os corredores logísticos e as zonas econômicas especiais.
Todavia, se bem as origens da logística remontam aos primórdios do capitalismo, é na época posterior à Segunda Guerra Mundial que se criaram as bases para a emergência da logística contemporânea. Segundo a geógrafa canadense Cowen (2014)COWEN, D. (2014). The deadly life of logistics: mapping violence in the global trade . Minneapolis, University of Minnesota Press. , a chamada “revolução logística” deu-se a partir de um conjunto de processos ocorridos entre os anos 1950 e 1970. Em primeiro lugar, com o surgimento, nos Estados Unidos, da business logistics , isto é, uma série de novas instituições (como a American Management Association, o National Council of Physical Distribution Management e o Logistics Management Institute), de disciplinas (como a Supply Chain Management ) e de perspectivas empresariais que determinaram o verdadeiro nascimento de uma ciência de gestão da distribuição, baseada, não mais na simples redução dos custos das atividades econômicas, mas em uma nova “perspectiva de sistemas”. Esta supunha uma transformação na percepção das novas empresas multinacionais sobre a relação entre produção e circulação, não se limitando a buscar reduzir as distâncias entre pontos de extração, fabricação e venda dos produtos, mas chegando a intervir sobre o espaço econômico inteiro e a localização desses pontos em função de “esquemas de custo total” mais abrangentes.
Mas o salto rumo a uma “revolução logística” foi determinado também pela introdução em âmbito econômico de duas novas tecnologias oriundas do contexto militar. A primeira foi o contêiner, inventado pela empresa de transportes Sea Land para prover o deslocamento dos suprimentos militares para guerra no Vietnã. A difusão generalizada desse objeto, durante os anos 1970, permitiu a substituição do peso pelo volume (calculado em TEU)3 3 Um TEU ( Twenty-foot Equivalent Unit ) representa a capacidade de carga de um contêiner de transporte normal, de 20 pés de comprimento, por 8 pés de largura e 8 pés de altura. como principal unidade de medida do comércio internacional e a afirmação de um novo sistema de transporte intermodal, pelo qual um único contêiner cheio de mercadorias poderia ser transportado sem interrupções, just in time and to the point , e sobre os mais diversos meios de transporte: trens ferroviários, navios cargueiros, caminhões e até aviões para uso comercial. A segunda invenção fundamental para a logística contemporânea foi a informática: também originada em âmbito militar, com a construção por parte da empresa Rand Corporation de Arpanet, uma sofisticada rede de informações para uso do Departamento de Defesa dos EUA e que foi a antecessora da internet, o desenvolvimento das chamadas Information and Communication Technologies (ICT), e sua aplicação para a produção de mercadorias está profundamente vinculada à transição do modelo econômico fordista para as formas de organização pós-fordistas e toyotistas num primeiro momento, até a gestão algorítmica da economia de plataforma em tempos mais recentes.
Torna-se evidente, portanto, como, por detrás daquilo que é comumente conhecido como a “reestruturação produtiva” dos anos 1970 e o correlato surgimento de um novo padrão de acumulação “flexível” ( Harvey, 2000HARVEY, D. (2000). Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural . São Paulo, Loyola. ), está um profundo câmbio na arquitetura e no esqueleto físico e infraestrutural (e cada vez mais digital) do capitalismo global, promovido pela “revolução logística”. Isso supõe, então, uma disseminação do processo produtivo em uma multiplicidade de nós territoriais (um processo que Cowen definiu como “ streaching the factory ”), uma importância cada vez maior das cadeias globais de suprimento para a reprodução do sistema capitalista internacional e a emergência da forma corredor para a organização física e geográfica dos territórios.
Mezzadra e Neilson (2019)MEZZADRA, S.; NEILSON, B. (2019). The politics of operations. excavating contemporary capitalism. Durham e Londres, Duke University Press. têm evidenciado a importância crescente, não apenas da logística, como também da extração e da finança, como lógicas privilegiadas do capitalismo pós anos 1970. Segundo esses autores, esse período não apenas representou a crise do modelo fordista-taylorista-keynesiano que dominou os chamados “anos dourados” do capitalismo, mas também a crise das três figuras prevalentes do Estado da época, isto é, o Estado de bem-estar nos países do norte, o Estado socialista do bloco soviético e o Estado desenvolvimentista do Terceiro Mundo, em representar o assim chamado capital social total perante os interesses particulares dos capitalistas individuais. Na leitura deles, por um lado a crise do capitalismo industrial e do Estado pós-guerra levou à centralidade das operações logísticas, financeiras e extrativas na composição do capital social total; por outro, essas mesmas operações são menos mediadas pela ação reguladora e planificadora do Estado e são organizadas por uma governança global na qual a separação entre público e privado é cada vez mais confusa. Segundo os autores, extração, finança e logística são hoje não apenas setores econômicos, mas lógicas ou racionalidades que abarcam cada vez mais âmbitos da atividade econômica e operam em forma conjunta, isto é, entrelaçam-se em diferentes operações capitalistas. Retomando uma concepção ampliada de extração, Gago e Mezzadra (2015)GAGO, V.; MEZZADRA, S. (2015). Para una crítica de las operaciones extractivas del capital. Patrón de acumulación y luchas sociales en el tiempo de la financiarización. Nueva Sociedad, n. 255, pp. 38-52. pensam nela não apenas em seu significado literal-territorial, como a apropriação violenta do solo e do subsolo de matérias e energia, mas veem nela uma lógica muito mais abrangente do corpo social, capaz de subsumir e capitalizar dinâmicas de cooperação social e de se sobrepor aos tradicionais mecanismos de exploração do trabalho vivo. Essa noção extensa de extração se vincula em múltiplas maneiras às lógicas logísticas e financeiras.
Marx (2014)MARX, K. (2014). O capital . Livro II . São Paulo, Boitempo. já havia compreendido a importância da logística e da circulação para o processo produtivo. No segundo livro d’ O capital , o filósofo alemão discute extensivamente o valor “produtivo” de tarefas necessárias à realização do capital, como o armazenamento e o transporte. Especificamente, ele considera a função do movimento de mercadorias e a indústria de transporte como aspectos particulares e ambivalentes do ciclo produtivo:
A circulação, isto é, o curso efetivo das mercadorias no espaço, dilui-se no transporte da mercadoria. A indústria do transporte constitui, por um lado, um ramo independente de produção e, por conseguinte, uma esfera especial de investimento do capital produtivo. Por outro lado, ela se distingue pelo fato de aparecer como continuação de um processo de produção dentro do processo de circulação e para o processo de circulação. (Ibid., p. 257)
Nesse sentido, o âmbito dos transportes representa, por um lado, um verdadeiro setor industrial, dedicado à produção de determinados tipos de bens e mercadorias que são os meios e as infraestruturas de transporte como tais. Para isso, esse setor atrai importantes cotas de investimentos que se materializam na construção de contêineres, grandes navios, portos, estradas, trens e canais, investimentos que hoje em dia têm uma importante função de liberar cotas de capital financeiro excedente e sobreacumulado e amarrá-las a processos “produtivos”. Por outro lado, esse setor como “continuação de um processo de produção dentro do processo de circulação e para [este]” (ibid.) torna-se fundamental para a reprodução do capital social total em seu conjunto, através da redução dos tempos de circulação e de realização. É nesses dois aspetos que podemos entender, hoje, a importância estratégica da logística e das infraestruturas como saídas de emergência para contrapor – ou ao menos contornar – a queda tendencial da taxa de lucro, criando e abrindo continuamente novas fronteiras, mercados e territórios para os investimentos e procurando anular qualquer tipo de tempo morto no processo produtivo.
Isso pressupõe, em primeiro lugar, uma intervenção contínua na “produção” e redefinição do espaço ( Lefebvre, 2013LEFEBVRE, H. (2013). La producción del espacio . Barcelona-Madrid, Capitan Swing. ). A produção logística do espaço opera de maneira inseparável dos processos de financeirização da economia global, visto que, de fato, é exatamente quando se aumenta o peso do capital financeiro que, no nível da chamada “economia real”, surgem intentos de compensar a crise produtiva com a “intervenção sobre as geografias (isto é, sobre as formas de poder) da circulação de mercadorias e capitais” ( Into The Black Box, 2018INTO THE BLACK BOX (2018). Manifiesto de crítica logística. Disponível em: http://www.intotheblackbox.com/manifesto/manifiesto-de-critica-logistica/. Acesso em: 6 mar 2023.
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, s.p.). Isso acontece em múltiplas escalas geográficas, desde a reorganização de espaços continentais inteiros ao longo de corredores terrestres ou oceânicos, como no caso da mencionada Iniciativa do Cinturão e da Rota, até a elaboração de projetos europeus (como os Trans-European Transport Network – TEN-T) ou latino-americanos (como no caso da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana – Iirsa e do Projeto Mesoamérica). E pode ainda adquirir uma escala mais local, a partir da transformação em sentido logístico das “cidades globais” ( Sassen, 2000SASSEN, S. (2000). Cidades na economia mundial . Rio de Janeiro, Studio Nobel. ) ou da criação de verdadeiras logistics cities , no modelo de Dubai ( Cowen, 2014COWEN, D. (2014). The deadly life of logistics: mapping violence in the global trade . Minneapolis, University of Minnesota Press. ). Tendo em mente que as recentes transformações do capitalismo operam um deslocamento das consolidadas noções de escala geográfica, a revolução logística pode ser vista como vetor de um movimento transescalar rumo ao que Brenner e Schmidt (2015)BRENNER, N.; SCHMIDT, C. (2015). Towards a new epistemology of the urban? City , v. 19, n. 2-3, pp. 151-182. chamam de “urbanização planetária”.
As cidades contemporâneas podem ser analisadas, nas palavras de Cuppini (2018)CUPPINI, N. (2018). A cidade enquanto sistema logístico. Lugar Comum. Rio de Janeiro, n. 52, pp. 299-310. , enquanto “sistemas logísticos”. De acordo com esse autor, talvez estejamos deixando para trás a antiga cidade industrial, organizada ao redor de uma rígida segmentação entre bairros fabris, bairros-dormitórios e lugares de lazer, para um novo tipo de espaço urbano
cada vez mais “logistificado”, fluido, maleável e entretecido, cujos ritmos são compassados por meio da inserção de múltiplas infraestruturas (virtuais ou ‘materiais’) que servem aos fluxos globais (de mercadorias ou capitais, de turistas ou formas produtivas cada vez mais ancoradas no “território”). (Ibid., p. 301)
A intermodalidade, nascida ao longo dos grandes corredores infraestruturais e de hubs logísticos, como portos, portos secos, zonas econômicas especiais, etc., permeia hoje em dia cada vez mais a estrutura dos próprios núcleos urbanos. As áreas abandonadas pelo processo de desindustrialização são cada vez mais ressignificadas a partir da multiplicação de centros comerciais, interportos, depósitos de mercadorias e novas redes viárias, que buscam atrair investimentos de todo tipo. As cidades tornam-se, hoje em dia, o espaço privilegiado para o desenvolvimento do processo logístico de maior proximidade, chamado também de “logística urbana” ou “logística de última milha” ( last mile logistics ). É nesse âmbito que operam, hoje, os principais colossos logísticos do setor do e-commerce, como a multinacional estadunidense Amazon, o gigante chinês Alibaba, a empresa latino-americana Mercado Livre e um conjunto de plataformas de delivery para entrega de comida e outros produtos em domicílio.
Poderíamos chamar esse processo de urbanização logística ( Sengpiehl et al., 2008SENGPIEHL, C.; OAKDEN, R.; NAGEL, P.; TOH, K.; SHI, P. (2008). The emergence of logistics cities: conceptual model. Journal of Transport and Supply Chain Management, v. 2, n. 1, pp. 58-77. ; O’Shea, 2014O’SHEA, C. (2014). Logistical ecologies of the North American operational landscape . Tese de doutorado. Cambridge/MA, Harvard University. ; Diniz e Gonçalves, 2022DINIZ, N.; GONÇALVES, P. P. (2022). As cidades dos galpões: dinâmicas e contradições da urbanização logística. e-metropolis, n. 49, ano 13, pp. 7-15. ), cuja natureza está associada com o desenvolvimento e densificação de infraestruturas logísticas. As infraestruturas de conexão garantem, dessa maneira, a circulação de mercadorias e integram-se a infraestruturas digitais que viabilizam essa conectividade. Como descrevem Diniz e Gonçalves (2022DINIZ, N.; GONÇALVES, P. P. (2022). As cidades dos galpões: dinâmicas e contradições da urbanização logística. e-metropolis, n. 49, ano 13, pp. 7-15. , p. 9) “a urbanização logística corresponde à produção, gestão e conexão de espaços cuja alta densidade técnico-científico-informacional facilita e promove a fluidez do capital, especialmente em sua forma mercadoria”. A disseminação das plataformas digitais, portanto, não está dissociada da transformação necessária e (re)organização real do espaço urbano e das práticas que nele se desenrolam. Contudo, apesar dessa modernização tecnológica no processo de urbanização, como veremos, ela se dá num contexto de formação social dependente e periférico como o caso brasileiro.
A urbanização logística representa, dessa maneira, a condição para a atuação das plataformas digitais que, cada vez mais, atuam mediando as práticas socioespaciais nas grandes cidades, a partir da mobilização de um trabalho altamente precarizado. Como indica Graham (2020)GRAHAM, M. (2020) Regulate, replicate and resist - the conjunctural geographies of platform urbanism. Urban Geography, v. 41, n. 3, pp. 453-457. , novas interações socioespaciais entre usuários-consumidores e usuários-trabalhadores emergem nesse contexto e produzem uma nova geografia urbana da precariedade laboral ( Strauss, 2017STRAUSS, K. (2017). Labour geography 1: towards a geography of precarity. Progress in Human Geography, v. 42, n. 4, pp. 622-630. ).
Essas plataformas digitais de entrega estão dando vida àquilo que tem sido chamado de crowd-logistics , literalmente uma “logística multitudinária" (Mladenow, Bauer e Strauss, 2016). Se considerarmos que, devido à densidade espacial das cidades, a “logística da última milha” é tradicionalmente o trecho menos eficiente da cadeia produtiva, concentrando, de fato, 28% dos custos (Jordán, Riffo e Prado, 2017), é evidente como a superação dos gargalos urbanos é vista como uma necessidade cada vez mais central. Para essa logística da última milha, o problema do acesso ao território torna-se uma questão central. A urbanista e arquiteta Lyster (2016, pLYSTER, C. (2016). Learning from Logistics. Berlin, Birkhäuser. , p. 18) elaborou o termo timescape (paisagem temporal) para designar a propensão da logística para calibrar “o espaço segundo o tempo e assim fazer da cidade uma paisagem temporal”. Como argumenta De Stavola (2022)DE STAVOLA, F. (2022). Al sur de la plataforma: trabajo y capital en la APP latinoamericana Rappi. Tese de doutorado. Cidade do México, Universidad Nacional Autónoma de México. , se, de acordo com Marx (2011)MARX, K. (2011). Grundrisse . São Paulo, Boitempo. , a circulação orienta-se à “aniquilação do espaço através pelo tempo”, na logística contemporânea isto se integra a uma capacidade de definir o espaço com base no tempo.
Assim, a urbanização logística (que ocorre no nível M lefebvriano) envolve um desdobramento do contexto de crise anteriormente analisado. Trata-se, portanto, de uma forma determinada de desenvolvimento urbano num contexto de crise que prioriza o momento da circulação da mercadoria, buscando diminuir o tempo de rotação do capital. Esse processo ocorre a partir da mobilização de uma multidão de trabalhadores precários que atua, sobretudo, no setor das entregas. A urbanização logística é, dessa maneira, o modo pelo qual o capital em seu momento de crise encontra para continuar seu processo de acumulação decadente e, assim, costura a estrutura mais geral às dinâmicas de reprodução precária de uma massa de trabalhadores.
Como buscamos mostrar até aqui, a crise de valorização do valor (G) obriga o capital a buscar saídas emergenciais. A logística aparece aqui como uma dessas saídas e pressupõe um enorme processo de reorganização e de produção do espaço (M), que tem consequências específicas para a redefinição da geografia e da operacionalidade das cidades contemporâneas. Nesse sentido, há um vetor que conecta o nível G ao nível M e que traduz uma dinâmica de crise na própria paisagem das cidades. Ao mesmo tempo, como veremos a seguir, a logística opera e impulsiona também um gigantesco movimento rumo a uma constante redução do custo do trabalho, através das novas formas de precarização relacionadas à chamada “uberização do trabalho” ( Abílio, 2020ABÍLIO, L. C. (2020). Plataformas digitais e uberização: globalização de um Sul administrado. Revista Contracampo, v. 39, n. 1, pp. 12-26. ), que afeta diretamente a produção subjetiva da classe trabalhadora e os modos de organização política no mundo contemporâneo. Dessa forma, não apenas o espaço urbano serve de suporte e saída emergencial, por meio da intervenção logística e infraestrutura, para o capital, como também medeia e transpõe os imperativos colocados pela crise global (G) no nível da vida cotidiana e do corpo mesmo (P).
Da autonomia ao autogerenciamento subordinado
Descrevemos o movimento que liga as transformações no nível G do capital e do Estado ao nível M do urbano. Na primeira seção, vimos como há uma tendência imanente ao movimento de valorização do valor que impele o capitalismo em direção a uma constante redução de sua dependência de trabalho vivo. Esse movimento, no entanto, ameaça a própria capacidade de extração de valor e formação de uma massa de mais-valia capaz de sustentar as taxas de lucro do capital no longo prazo. A crise do valor enquanto forma social, expressão desse desenvolvimento contraditório, implica a crise do trabalho formal e assalariado e das formas de mediação engendradas pelo capital.
É seguro dizer, nesse sentido, que, no nível G, o capital funciona a partir de uma lógica imanente que se traduz no nível da vida cotidiana (P) sob a forma da constituição de uma imensa massa de desempregados ( Kurz, 2018KURZ, R. (2018). Crise do valor de troca . Rio de Janeiro, Consequência. ). Entretanto, como vimos na segunda seção, o capital encontra na logística e nas infraestruturas, isto é, no terreno da própria circulação, uma saída emergencial para a crise do valor. Embora essas estratégias sejam incapazes de refrear o movimento de crise imanente, a produção logística e infraestrutural do espaço permite ao capital uma sobrevida. No nível M, o nível do conjunto urbano, portanto, o capital funciona a partir da produção de um espaço voltado à circulação que assume, como vimos, a forma material dos corredores, portos, zonas econômicas especiais, cadeias produtivas globais, plataformas digitais e fluxos metropolitanos de toda sorte. Esses novos espaços reconfiguram e medeiam a relação entre o nível G e o nível P, na medida em que impulsionam a formação de um “novo mundo do trabalho” ( Beck, 1996BECK, U. (1996). The brave new world of work . Nova York, Polity Press. ), organizado e governado cada vez mais por uma racionalidade logística e por infraestruturas e plataformas digitais que produzem a fragmentação do trabalho e a individualização dos trabalhadores envolvidos ( Heiland, 2020HEILAND, H. (2020). Workers’ voice in platform labor: an overview. WSI Study, n. 21. Dusselforf, Hans-Böckler Stifung. ).
Um exemplo fundamental desse movimento de transformação pode ser visto na multiplicação de empresas de aplicativo e de formas de trabalho de circulação nas metrópoles brasileiras. De acordo com o coletivo Neblina (2022NEBLINA, Grupo de militantes na (2022). Incêndio: trabalho e revolta no fim de linha brasileiro . São Paulo, Contrabando. , p. 44), não é de hoje que parte indispensável do metabolismo urbano brasileiro se move sobre duas rodas:
Na expansão caótica das cidades, onde o transporte veio a reboque, remendando as partes, o preço dessa precariedade foi sempre pago pela correria de quem tem que chegar no horário. Enquanto a falta de mobilidade penaliza a mão de obra com horas extras de esforço no transporte coletivo lotado, as demais mercadorias não se viram por conta própria e demandam uma circulação sempre mais veloz. Daí a aparição, em fins dos anos 1980 – muito antes de qualquer aplicativo –, de um exército de motoboys cada vez mais numeroso capaz de cortar o engarrafamento entre os carros e garantir, sob risco de vida, a aceleração dos fluxos capitalistas nas nossas metrópoles colapsadas. Os “corredores informais e mortais das motocicletas” viabilizam a circulação do que não pode parar em meio ao trânsito parado e servem, ao mesmo tempo, para aumentar a produtividade no deslocamento dos trabalhadores reféns da imobilidade urbana, que encontram na moto a saída de emergência “que equaciona baixo custo com alta velocidade”.
Como argumenta Abílio (2019ABÍLIO, L. C. (2019). Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas: individuo y sociedade, v. 18, n. 3. , p. 2), “as plataformas digitais têm sido globalmente reconhecidas como vetores de novas formas de organização do trabalho” garantindo “novas formas de dispersar o trabalho sem perder o controle sobre ele”. Esse movimento, denominado uberização do trabalho , diz respeito a duas mudanças principais engendradas pelas plataformas nas relações de trabalho. Em primeiro lugar, a dispersão promovida pelas redes digitais, em particular diante do fácil acesso a smartphones e à internet, é acompanhada de uma crescente centralização e subordinação dos trabalhadores em “uma única empresa” (ibid). Ao contrário do trabalho produtivo fabril, no qual essa subordinação dependia da concentração de trabalhadores no mesmo ambiente de trabalho através de um processo de contratação formal, as plataformas funcionam, hoje, a partir de uma dinâmica de adesão, segundo a qual o trabalhador aparece cada vez mais como um usuário da plataforma do que força de trabalho propriamente dita. Em segundo, a dinâmica de adesão “voluntária” às plataformas digitais e às empresas-aplicativos mascara o fato de que esses trabalhadores se encontram, justamente, na condição de não empregados, "inteiramente desprovido[s] de garantias, direitos ou segurança associados ao trabalho” (ibid.). Até em termos formais e contratuais, os trabalhadores de aplicativo costumam configurar a figura jurídica de “usuários”, participantes de um mercado virtual na mesma forma que os próprios consumidores.
Por meio desses dois elementos, a possibilidade de uma dispersão espaço-temporal dos trabalhadores e uma forma voluntária de adesão às plataformas, os aplicativos são capazes de “recrutar o motoboy que está há trinta anos nas pistas, o trabalhador com emprego fixo que faz entregas depois do expediente e o jovem desempregado que tem ou aluga uma bicicleta atrás de um ‘bico’” ( Neblina, 2022NEBLINA, Grupo de militantes na (2022). Incêndio: trabalho e revolta no fim de linha brasileiro . São Paulo, Contrabando. , p. 45). A multiplicação de infraestruturas, logísticas e plataformas digitais carrega consigo, portanto, a multiplicação de formas de trabalho precarizadas nas cidades, seja na sobreposição de diferentes jornadas de trabalho, seja na extensão do próprio tempo de trabalho como forma de melhoria dos rendimentos. Em todo caso, a circulação de mercadorias na cidade parece depender cada vez mais dessa “multidão heterogênea” de trabalhadores subordinados a uma dominação descentralizada do trabalho para seu funcionamento (ibid.) – aquilo que aqui estamos chamando de um trabalho de costura operado pelos entregadores de aplicativo.
Uma vasta bibliografia vem refletindo sobre o aumento progressivo da exploração resultante dessa transformação tecnológica ( Antunes, 2020ANTUNES, R. (2020). “Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da indústria 4.0”. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo, Boitempo. ; Woodcock, 2020WOODCOCK, J. (2020). “O panóptico algorítmico da deliveroo: mensuração, precariedade e a ilusão do controle”. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo, Boitempo. ; Grohmann, 2020GROHMANN, R. (2020). “Plataformização do trabalho: características e alternativas”. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo, Boitempo. ). Alguns autores descrevem os processos de exploração a que estão submetidos os trabalhadores a partir da analogia a uma forma de “escravidão moderna na era digital” ( Antunes, 2018ANTUNES, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, Boitempo. ). Outros focam sua interpretação no tipo de discurso mobilizado por essa nova forma de negócio. Como descrito por Slee (2017)SLEE, T. (2017). What is yours is mine: against the sharing economy. Nova York, OR Books. , a racionalidade preponderante da economia de plataforma é sustentada pela ideologia do “ self-made man ”, isto é, a de um projeto individual de empreendedorismo de si como única forma de melhorar a vida. Ainda que a dimensão ideológica seja fundamental para compreender a realidade, ela não explica sozinha as transformações e as formas de adesão ao trabalho precário.
Queremos argumentar, ao contrário, que a multiplicação de formas de trabalho precário, individualizado e disperso no cotidiano das cidades (P) é, antes, a expressão de um desejo por autonomia que se expressa de maneira negativa ou subordinada e que se relaciona à mudança no horizonte de expectativa da classe trabalhadora gestado pela crise do valor (G). Esse desejo de autonomia dos trabalhadores diante de seus donos e capatazes, de autogestão dos tempos e das formas do próprio trabalho, é um sentimento antigo da classe trabalhadora no contexto do modo de produção capitalista, aflorado em múltiplas lutas sociais nos anos “dourados” do capitalismo fordista-taylorista. Todavia, diante da reestruturação produtiva começada na década de 1970, que consistiu por si mesma, em boa medida, em uma resposta aos desafios impostos ao capitalismo a partir das lutas da classe trabalhadora e diante da incapacidade intrínseca do sistema de absorver mão de obra e produzir postos de trabalho formal, a autonomia aparece como sintoma de uma classe de trabalhadores sem-salário, sem-trabalho e, por isso, sem-patrões. Nesse contexto, a autonomia pode, por vezes, assumir uma expressão negativa, na medida em que o capital encontra meios de se apropriar dos “modos de vida” que emergem da crise do valor e subordiná-los a uma lógica neoliberal (ver, por exemplo, Abílio, 2021ABÍLIO, L. C. (2021). “Informalidade e periferia no Brasil contemporâneo”. In: MARQUES, L. (org.). Trajetórias da informalidade no Brasil contemporâneo . São Paulo, Fundação Perseu Abramo. ).
Como explica Gago (2018)GAGO, V. (2018). A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular . São Paulo, Elefante. , a penetração do neoliberalismo no continente latino-americano deve ser levada a sério se quisermos explicar o surgimento de uma racionalidade e uma subjetividade neoliberal que domina os setores populares. A sua ideia de um “neoliberalismo desde baixo” sugere que o neoliberalismo não deve ser entendido apenas como um conjunto de políticas e orientações econômicas no nível do Estado e do Capital (G), mas como um tipo específico de subjetividade que precisa se desenvolver nos setores populares diante de um cenário no qual o cálculo econômico, o lucro, a precificação e outros mecanismos de mercado se tornam a forma dominante de mediação da reprodução coletiva na vida cotidiana (P). A autora argumenta que há uma pragmática vitalista que visa prover as condições de vida dos setores populares “em um contexto em que o estado não garante as condições da competição neoliberal prescritas pelo modelo ordoliberal” (ibid., p. 6). Entretanto, é justamente essa necessidade forçada de assumir a responsabilidade pela reprodução coletiva, não garantida pelo público e o privado, que “organiza uma certa ideia de liberdade, que, em seu modo particular, desafia algumas das formas mais tradicionais de obediência” (ibid.). Em outras palavras, o definhamento da forma-trabalho e a dissolução de qualquer vestígio de Estado de Bem-Estar Social, jamais consolidados na periferia do capitalismo global, forçam o trabalhador a identificar como ganho de autonomia exatamente aquilo que mina sua capacidade e garantia de reprodução social.
O discurso sobre empreendedorismo é hoje em dia uma forma de “captura” de um sentimento de autonomia e de tomada de decisão sobre tempos e formas do próprio trabalho por parte dos trabalhadores, algo que, no contexto de extrema precariedade das metrópoles periféricas, circula por meio dos cálculos e das pragmáticas vitalistas do “neoliberalismo desde baixo”. A partir de uma pesquisa sobre os trabalhadores da empresa Rappi em Buenos Aires e Cidade do México, De Stavola (2021)DE STAVOLA, F. (2021). El smartphone de Foucault: poder, trabajo y subjetividad en las plataformas digitales de entrega a domicilio: el análisis de la app latinoamericana Rappi. Arxius de Ciències Socials, n. 44, pp. 49-64. considera que, no trabalho de plataforma, para além da liberdade formal do trabalhador já identificada por Marx, existe também uma autonomia que se expressa em função de um espaço de autogestão produzido, organizado e subsumido pela arquitetura de poder que suporta o fluxo logístico, isto é, àquela da plataforma. Com base nisso, o autor propõe o conceito de “autogestão funcional do trabalho”, com o qual procura interrogar criticamente as formas de subjetivação dos trabalhadores de aplicativo, subjetivação esta que costuma ser um tipo de agência “funcional” aos objetivos de lucratividade capitalista:
A autogestão funcional do trabalho, em primeiro lugar, é subordinada. Em um nível subjetivo, ela pode ser interpretada como o resultado da ideologia que estrutura o fenômeno social ( Žižek, 2003ŽIŽEK, S. (2003). El sublime objeto de la ideología . Buenos Aires, Siglo XXI Editores. ), isto é, como produto da ordem contraditória: “desfruta de ser autónomo”. Em segundo lugar, é funcional à lógica do ciclo de valorização do capital, na medida em que, para que o entregador a possa desfrutar, não tem outra opção que se adaptar aos objetivos da empresa. Finalmente, é possível definir a autonomia da qual gozam os e as entregadores/as na autogestão do trabalho como funcional porque está submetida pelo capital na forma de dados. De fato, é condição mínima para a operação da extração, visto que o/a entregador/a, no espaço da autogestão funcional, mobiliza conhecimento, atitudes, cálculos e comportamentos que constituirão os dados objeto da própria operação. ( De Stavola, 2021DE STAVOLA, F. (2021). El smartphone de Foucault: poder, trabajo y subjetividad en las plataformas digitales de entrega a domicilio: el análisis de la app latinoamericana Rappi. Arxius de Ciències Socials, n. 44, pp. 49-64. , p. 61; tradução nossa)
Em linha com essa interpretação, Abílio (2019ABÍLIO, L. C. (2019). Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas: individuo y sociedade, v. 18, n. 3. , p. 5) dá o nome de “autogerenciamento subordinado” a esse deslocamento da figura do “empreendedorismo de si” ou do self-made man , para a do “trabalhador ‘gerente de si subordinado’”. Isso significa que as plataformas, em sua capacidade de mobilização de um trabalho disperso nas metrópoles, emulam uma forma de agência que responde a um desejo por autonomia própria dos trabalhadores. Não há gerente, não há patrão, para além de si mesmo. É possível decidir quando começar e quando parar, quando virar noites ou tirar férias. No entanto, essa autonomia aparece fundamentalmente subordinada a uma relação em que a remuneração está vinculada à disponibilidade para o trabalho. Para a autora,
[...] o que está em jogo é a terceirização de parte do gerenciamento do trabalho para o próprio trabalhador, um gerenciamento subordinado. Suas estratégias de sobrevivência, sua administração do próprio tempo, seu conhecimento são apropriados privadamente como fatores da execução de seu trabalho e de sua produtividade. (Ibid.)
Essa terceirização do gerenciamento do trabalho para o trabalhador, que é acompanhada pela a terceirização dos custos para o trabalhador dos próprios meios de produção, tais como o carro, a moto ou a bicicleta, a bag , o smartphone e os dados do celular, leva, embora sob as formas do autoengajamento “autônomo” no trabalho, a um aumento dos tempos de trabalho, isto é, a um aumento da “subsunção formal” do trabalho sob o capital. Não obstante, a partir da consideração da articulação da gestão algorítmica das plataformas com as formas de vida precárias que, historicamente presentes, constituem a estrutura e a infraestrutura social das metrópoles brasileiras, a própria Abílio (2021)ABÍLIO, L. C. (2021). “Informalidade e periferia no Brasil contemporâneo”. In: MARQUES, L. (org.). Trajetórias da informalidade no Brasil contemporâneo . São Paulo, Fundação Perseu Abramo. chega a definir a uberização como “subsunção real da viração”.
Para a autora, é preciso “escapar do par formal-informal” se se quiser revelar como o capitalismo subsume os modos de vida periféricos (ibid., p. 943). A maior parte dos trabalhadores que se encontram nesses tipos de trabalho desconhece estabilidade, garantias ou mesmo direitos relacionados à atividade desenvolvida, e, por isso, eles encontram-se em um constante movimento de combinação de “estratégias de sobrevivência” e “criação e aproveitamento de oportunidades efêmeras” (ibid). Esse movimento que Abílio denomina de “viração” ou ainda, como bem lembra a autora, aquilo que Oliveira (2003OLIVEIRA, F. (2003). Crítica da razão dualista/O Ornitorrinco . São Paulo, Boitempo. , p. 68) chamou de “talento organizatório de milhares de pseudopequenos proprietários” revela exatamente a potência da pragmática vitalista identificada por Gago (2018)GAGO, V. (2018). A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular . São Paulo, Elefante. . Diante da incapacidade de se garantir as condições mínimas de reprodução social, as classes populares são obrigadas a desenvolver diferentes formas de lidar com a insegurança e a precariedade e assumir, assim, o custo de sua própria reprodução. Essas formas assumem expressões variadas, desde o acúmulo de diferentes trabalhos, formais e informais, legais e ilegais, permanentes ou temporários – aquilo que acima chamamos, com Mezzadra e Neilson (2013)MEZZADRA, S.; NEILSON, B. (2013). Border as method, or, the multiplication of labor . Durham, Duke University Press. , de uma multiplicação do trabalho – até a adoção de práticas para maximizar a renda aferida que ameaçam a continuidade da vida do próprio trabalhador.4 4 Segundo depoimento apresentado no dia 12 de dezembro de 2022 na CPI dos Aplicativos da Câmara Municipal de São Paulo, a parcela de acidentes de moto no setor de traumas do Hospital das Clínicas da USP subiu de 20%, entre 2015 e 2016, para 80%, entre 2020 e 2021. Em torno de 70% dos acidentados estavam prestando serviço para aplicativos de entrega. Para mais, conferir Ribeiro (2022) .
Assim, se, por um lado, o trabalhador precarizado experimenta um certo tipo de autonomia em sua viração – isto é, sua aparente capacidade de definir como, onde e por quanto tempo trabalhar –; por outro, é exatamente dessa autonomia que se serve o capital no momento atual. O trabalho de costura dos trabalhadores opera, dessa forma, uma sutura ideológica, que unifica precariedade e autonomia numa unidade negativa e contraditória. Essa “apropriação monopolizada de modos de vida periféricos”, como argumenta Abílio (2021ABÍLIO, L. C. (2021). “Informalidade e periferia no Brasil contemporâneo”. In: MARQUES, L. (org.). Trajetórias da informalidade no Brasil contemporâneo . São Paulo, Fundação Perseu Abramo. , p. 943),
pode ser vista em ato nas estratégias do jovem negro que, dentre outras atividades que compõem sua entrada no mercado de trabalho, aluga uma bicicleta para ter um rendimento como bike boy; passa o dia traçando meios para não ter que enfrentar a brutalidade policial, a brutalidade do tráfego urbano, as violências raciais cotidianas; estabelece meios para intensificar seu próprio trabalho, dispõe-se a trabalhar 12 horas ininterruptas para ganhar uma bonificação ( Machado, 2019MACHADO, L. (2019). Dormir na rua e pedalar 12 horas por dia: A rotina dos entregadores por aplicativo. BBC News Brasil (22 de maio). Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48304340#:~:text=V%C3%ADdeos-,Dormir%20na%20rua%20e%20pedalar%2012%20horas%20por%20dia,rotina%20dos%20entregadores%20de%20aplicativos&text=Um%20deles%20explica%3A%20%22Dou%20entrevista,e%20eu%20n%C3%A3o%20paro%20mais%22. Acesso em: 6 mar 2023.
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48... ) e integra a distribuição do setor de alimentos.
Em outras palavras, o capitalismo esforça-se para subsumir justamente essa pragmática vitalista que anima o trabalho em um ambiente em que a reprodução social não é minimamente garantida.
Reflexões finais: precariedade, logística urbana e luta de classes
Como é possível avaliar, a partir do argumento que desenvolvemos neste texto, as profundas transformações do capitalismo em crise ocorrem em múltiplas maneiras e em diferentes escalas a reprodução social. O colapso da sociedade do valor produz uma massiva desfiliação salarial e cria espaços de precariedade, desemprego e informalidade da população “excedente”, ao mesmo tempo que mina as próprias bases de reprodução da acumulação capitalista. Tenta-se contornar a queda inexorável da taxa de lucro por meio da “produção capitalista do espaço” que se apoia na racionalidade logística, na produção de infraestrutura e no aumento dos ritmos de circulação, rotação e realização do capital. No contexto urbano, a transformação em sentido logístico das cidades encontra, na massa de “trabalhadores sem trabalho” ( Rizek, 2022RIZEK, C. (2022). “Periferias: revisitando fraturas e crises”. In: CARLOS, A. F.; RIZEK, C. (orgs.). Direito à cidade e direito à vida: perspectivas críticas sobre o urbano e a pandemia. São Paulo, IEA/USP. ), um novo tipo de trabalhador precário, que une, à falta de direitos e à informalidade própria da periferia capitalista, a inserção eficiente nos circuitos de alta lucratividade das plataformas.
Como ressaltamos neste texto, é importante, para a compreensão do fenômeno da precarização do trabalho, articular diferentes escalas. A transescalaridade que abordamos aqui, de inspiração lefebvriana, permite visualizar os efeitos combinados da dinâmica contraditória do capital. A amarração entre os níveis G, M e P, dessa maneira, contribui na interpretação crítica da urbanização logística, da situação de trabalho de milhares de entregadores de aplicativo e da crise do capital.
Essa dinâmica gera, também, profundas transformações nas lutas dos trabalhadores de aplicativo e nas formas da luta de classes na sociedade contemporânea como um todo. A compreensão do fenômeno que analisamos aqui passa, em adição, pela interpretação das resistências dos trabalhadores ante esses processos. A explosão das lutas dos entregadores no Brasil no contexto da pandemia da covid-19 – quando a regra do “fique em casa” conseguiu se realizar só por meio da exceção de um exército cada vez mais numeroso de motoboys que carregaram (e ainda carregam) em suas costas os custos e os riscos da infraestrutura social das metrópoles em colapso – trouxe à tona, não apenas um rechaço por parte desses trabalhadores a taxas de remuneração cada vez menores e de condições de trabalho cada vez mais degradantes, mas também a negativa destes em relação às tentativas de ser submetidos à normativa trabalhista tradicional da CLT.5 5 A posição negativa dos entregadores quanto à regulação de sua atividade não é unânime, mas já sinaliza uma posição que vem se consolidando nas movimentações da classe, como evidenciado pela pesquisa “Para onde vai o trabalho humano na era digital?”, realizada pelo Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e Teoria Social (UnB). O survey respondido por 247 entregadores de aplicativo, entre abril e junho de 2023, revelou uma demanda por direitos normalmente associados a segurança social proporcionada por trabalhos formais, como “adicional de periculosidade (57,49%), auxílio-doença e auxílio-acidente (55,06%)”, ao mesmo tempo que, em sua maioria, os entrevistados preferem ser reconhecidos como “autônomos/as ou por conta-própria” (60,3%) ou como “MEI” (23,9%). Além disso, “apenas 10,12% apontaram que a carteira de trabalho assinada deveria ser pauta do debate público” relacionado à regulação do trabalho dos entregadores (ver Festi et al., 2023 , s.p.). Isto é, a uma “guerra” declarada às empresas de aplicativo, acompanhou-se uma aversão aos sindicatos de categoria, a qualquer forma institucionalizada de “direção” das lutas e a todo tipo de discurso que quisesse arregimentar o trabalho dos entregadores a um vínculo empregatício associado por eles mesmos “ao universo infernal dos ‘trabalhos de merda’: horários a cumprir, salário baixo e um chefe para tornar sua vida mais difícil” ( Neblina, 2022NEBLINA, Grupo de militantes na (2022). Incêndio: trabalho e revolta no fim de linha brasileiro . São Paulo, Contrabando. , p. 46). A autonomia emerge, aqui, em duplo sentido: como autogestão do seu próprio trabalho e também de suas lutas. Entretanto, se bem, como evidenciamos neste texto, que esse desejo de autonomia se torna facilmente “negativo”, “funcional” ou “subordinado”; há um excesso que permanece desafiando, de alguma maneira, as necessidades de controle por parte da empresa, que emerge, nos momentos de maior descontento, em situações moleculares, como quando o entregador denuncia ter perdido uma entrega para se garantir uma refeição ou, mais diretas, quando a autogestão dos tempos de trabalho é posta ao serviço da auto-organização das lutas. É sobretudo como resposta a isso que, em anos recentes, a empresa brasileira iFood vem criando formas de controle mais direto sobre o tempo de trabalho dos entregadores, instituindo formas de agendamento de turnos de trabalho ou até mesmo terceirizando parte da “frota” a empresas parceiras de “operadores logísticos” (OL).
Mas as mudanças nas formas de engajamento dos trabalhadores não se limitam às contradições ínsitas no conceito de autonomia e “autogestão”, positiva ou negativa que for, do próprio trabalho. Elas envolvem, também, as próprias formas da luta no trabalho e as transformações em sentido logístico das cidades contemporâneas. A emergência, a partir da grande manifestação nacional do 1º de julho de 2020, mas com maior intensidade em todos os momentos de greves prolongadas que ocorreram no Brasil, da forma do “breque”, produziu um deslocamento da antiga prática do “piquete” fabril no espaço aberto da cidade; isto é, de uma técnica de interrupção do ciclo produtivo fordista à ruptura do ciclo de circulação das mercadorias através dos fluxos e dos corredores metropolitanos. Nessa nova situação de luta, não se trata mais de parar um momento da linha de montagem de um produto, mas de impedir, com a presença física nas portas dos shoppings , sua saída para o mercado, isto é, sua realização pela circulação.
A substituição de uma forma de luta ancorada na produção por outra direcionada à circulação tem a ver com os efeitos da revolução logística nos últimos 50 anos e pode ser lida historicamente na perspectiva da “longa duração” da história do modo de produção capitalista. Seguindo uma perspectiva braudeliana e retomando em parte os “ciclos sistêmicos de acumulação” de Arrighi (2007)ARRIGHI, G. (2007). O longo século XX . Rio de Janeiro, Contraponto. , Clover (2016)CLOVER, J. (2016). Riot. Strike. Riot. The new era of uprisings. Londres, Verso. propôs uma leitura do capitalismo sob a lente dos tipos de luta paradigmáticos de cada período histórico. Em sua análise, durante toda a época que antecedeu à Revolução Industrial, a forma de luta mais comum nas sociedades europeias e no mundo atlântico em geral foi o riot (isto é, o tumulto, o saque, o motim). Tratava-se de um tipo de luta dirigida a baixar os preços das mercadorias presentes no mercado, e por isso poderia ser definida como luta “no âmbito da circulação” ( circulation struggle ), pois os principais espaços nos quais ocorriam os riots eram os mercados, os portos e a cidade em si. Em uma época de ascensão do modo de produção capitalista, o riot configurava-se também como um rechaço à proletarização das classes populares e ao processo de privatização dos bens e das terras comuns. Durante a primeira parte do século XIX, todavia, nos países do capitalismo central, o riot foi paulatinamente, em primeiro lugar, deslocando-se rumo ao lugar da fábrica, como no caso do “ludismo”, e, em segundo lugar, substituído por outra forma de luta, a greve ( strike ). Esta última sendo dirigida não mais a baratear os preços das mercadorias presentes no mercado, mas a aumentar o preço daquela mercadoria que havia se imposto como central no modo de produção capitalista: a força de trabalho. O ano insurrecional de 1848 representou de alguma maneira o momento culminante dessa sobreposição e transição de lutas.
Um novo período de transição começou, na leitura de Clover (ibid.), exatamente no momento de crise do capital industrial e da revolução logística e foi antecipado e em alguma medida “anunciado” pela insurreição mundial de 1968. Depois desse período, o eixo da “economia-mundo” capitalista viraria novamente da produção à circulação, da fábrica à cidade e da greve ao riot . Não surpreende, nesse sentido, que muitos dos levantes que explodiram nas últimas décadas em nível mundial, desde as revoltas da banlieues parisienses às primaveras árabes, do movimento Occupy às acampadas espanholas, da revolta de junho de 2013 no Brasil às recentes insurreições em Equador, Chile, Colômbia e Hong Kong, tenham a ver com questões como a acessibilidade ao transporte público e à cidade em geral e a alta dos preços dos combustíveis e dos bens de primeira necessidade, e tenham levado a uma proliferação de bloqueios de vias, barricadas, ataques a infraestruturas de conexão e ocupação de praças urbanas, além de destruição e saque massivos de mercadorias. Até o bloqueio de rotatórias realizado pelo movimento francês dos coletes amarelos, com sua capacidade de interrupção de fluxos estratégicos para a reprodução logística fora do âmbito estritamente urbano, é uma prova de como as lutas estão acompanhando a transformação do espaço na direção de formas de urbanização planetária ( Benvegnu e Cuppini, 2020BENVEGNU, C; CUPPINI, N. (2020). “Tout le pouvoir aux ronds points!“ Una “lente logistica” sui gilets jaunes. Alternative per il socialismo, n. 58, Roma, Castelvecchi. ). Nessa perspectiva, quem sabe seja possível entrever, nas atuais lutas dos entregadores de plataforma, nas suas pulsões subjetivas e em suas práticas concretas, sinais de um “neo-ludismo” próprio da etapa de colapso da sociedade da mercadoria? Esses desafios apontam para a possibilidade de fazer emergir uma vida cotidiana transformada, que possa se generalizar ( Lefebvre, 2003LEFEBVRE, H. (2003). Critique of everyday life . Londres, Verso Books. ), uma transformação que parta do P em direção ao G. Esse é o sentido forte que Henri Lefebvre atribui ao conceito de revolução.
Seja como for, as transformações que descrevemos aqui em direção a um “trabalho sem forma” ( Oliveira, 2003OLIVEIRA, F. (2003). Crítica da razão dualista/O Ornitorrinco . São Paulo, Boitempo. ) também produziram uma “luta de classes sem forma” ( Neblina, 2022NEBLINA, Grupo de militantes na (2022). Incêndio: trabalho e revolta no fim de linha brasileiro . São Paulo, Contrabando. ). Essas questões invariavelmente estarão no horizonte da discussão nacional e no futuro das metrópoles brasileiras. Um amplo esforço de investigação combinado com maneiras de interagir politicamente com essa situação ainda estão por serem realizados. Esperamos que este texto, uma contribuição no sentido de oferecer um framework analítico, possa colaborar nessa empreitada.
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Notas
-
1
Ver, por exemplo, o caso recente em que a Amazon planeja lançar um aplicativo de comunicação interna da empresa em que as palavras “sindicato”, “aumento salarial”, “representação”, entre outras, serão de uso proibido. Disponível em: https://www.jacobinmag.com/2022/04/amazon-warehouse-staten-island-ldj5-union-drive .
-
2
Embora, na formulação original presente n’ O capital , o termo “coleção” já indique que o valor é a expressão do confronto entre diferentes mercadorias, sua substituição pelo termo circulação, aqui, busca denotar uma transformação recente no regime de acumulação de capital.
-
3
Um TEU ( Twenty-foot Equivalent Unit ) representa a capacidade de carga de um contêiner de transporte normal, de 20 pés de comprimento, por 8 pés de largura e 8 pés de altura.
-
4
Segundo depoimento apresentado no dia 12 de dezembro de 2022 na CPI dos Aplicativos da Câmara Municipal de São Paulo, a parcela de acidentes de moto no setor de traumas do Hospital das Clínicas da USP subiu de 20%, entre 2015 e 2016, para 80%, entre 2020 e 2021. Em torno de 70% dos acidentados estavam prestando serviço para aplicativos de entrega. Para mais, conferir Ribeiro (2022)RIBEIRO, P. V. (2022). Motociclistas são 70% dos internados no instituto de ortopedia e traumatologia do hospital das clínicas, diz médica na CPI dos aplicativos. The Intercept_ Brasil. Disponível em: https://theintercept.com/2022/12/12/entregadores-de-apps-sao-70-dos-internados-no-instituto-de-ortopedia-e-traumatologia-do-hospital-das-clinicas-diz-medica/. Acesso em: 6 mar 2023.
https://theintercept.com/2022/12/12/entr... . -
5
A posição negativa dos entregadores quanto à regulação de sua atividade não é unânime, mas já sinaliza uma posição que vem se consolidando nas movimentações da classe, como evidenciado pela pesquisa “Para onde vai o trabalho humano na era digital?”, realizada pelo Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e Teoria Social (UnB). O survey respondido por 247 entregadores de aplicativo, entre abril e junho de 2023, revelou uma demanda por direitos normalmente associados a segurança social proporcionada por trabalhos formais, como “adicional de periculosidade (57,49%), auxílio-doença e auxílio-acidente (55,06%)”, ao mesmo tempo que, em sua maioria, os entrevistados preferem ser reconhecidos como “autônomos/as ou por conta-própria” (60,3%) ou como “MEI” (23,9%). Além disso, “apenas 10,12% apontaram que a carteira de trabalho assinada deveria ser pauta do debate público” relacionado à regulação do trabalho dos entregadores (ver Festi et al., 2023FESTI, R.; GONTIJO, L.; GONÇALVES, N.; FRAGOSO, L. (2023). Que pensam os entregadores sobre a regulação laboral? Outras Palavras. Disponível em: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/o-que-pensam-os-entregadores-da-regulacao-laboral/?s=08. Acesso em: 14 ago 2023.
https://outraspalavras.net/trabalhoeprec... , s.p.).
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Publicação nesta coleção
01 Dez 2023 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2024
Histórico
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Recebido
6 Mar 2023 -
Aceito
17 Abr 2023