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“Nenhum sentimento para defender algo, para proteger algo”1 1 NF/FP Primavera-verão 1875, 5[125], KSA 8.73. * * Tradução de Eduardo Nasser, João Evangelista Tude de Melo Neto e Saulo Krieger. . De como, segundo Nietzsche, a estética não pode substituir o conhecimento

“No feeling to stand up for something, to protect something.” Of how, according to Nietzsche, aesthetics cannot replace knowledge.

Resumo:

O artigo se ocupa da relação entre arte (ou estética) e conhecimento na Lição inaugural, no Nascimento da tragédia e n’A genealogia da moral de Nietzsche. Seu propósito é o de mostrar que, nesses escritos, Nietzsche não propõe que a arte possa substituir o conhecimento, ou, muito menos, anulá-lo. Em vez disso, a estética desempenha um papel na estimativa de valor, o que contribui para o conhecimento. Por essa via passam a se acumular alguns mal-entendidos sobre a relação entre arte e conhecimento segundo Nietzsche, e também assoma o “autor” Nietzsche, a despeito das convenções da escrita acadêmica.

Palavras-chaves:
Nietzsche; estética; ceticismo; autor

Abstract:

The article examines the relationship between art (or aesthetics) and knowledge in Nietzsche’s Inaugural Lecture, The Birth of Tragedy and The Genealogy of Morals. Its purpose is to show that in these writings Nietzsche does not suggest that art can supplant knowledge, or even annul it, but rather that Aesthetics plays a role in the estimation of value, which contributes to knowledge. According to Nietzsche, this dispels some misconceptions about the relationship between art and knowledge. Despite academic writing conventions, the “author” Nietzsche emerges here as well.

Keywords:
Nietzsche; aesthetics; scepticism; author

Em seus escritos, Nietzsche põe repetidamente em conjunção ciência, arte e moral. Os casos mais notórios são, certamente, O nascimento da tragédia e A genealogía da moral, mas essa conjunção está presente desde os primeiros trabalhos - por exemplo, em sua lição inaugural, “Homero e a filologia clássica” ou nos apontamentos para suas lições de História da literatura grega -. Não se deve se passar por alto que sempre se trata de uma conjunção que Nietzsche trata in concreto, isto é, importam menos as generalidades do que as configurações concretas.

Ao meu entender, tal procedimento é filosoficamente relevante pelos temas de que se ocupa, como é óbvio, mas também pela dinâmica de pensamento que gera2 2 Em outra ordem de coisas, Kohlenbach atenta à figura do “nascimento” para mostrar como Nietzsche se serve de um princípio de produtividade linguística que não chega a termo (1995, p. 377). . Os casos de tal conjunção não são exemplos de uma tese, e a conjunção é apenas uma maneira de pôr em jogo elementos variáveis. Pelo que me parece, Nietzsche os põe em jogo como se se opusessem, como se competissem, como se algum deles finalmente fizesse inclinar a balança em seu favor. É uma maneira de lidar com a imensa quantidade de conhecimento histórico, com todos os farrapos da consciência histórica moderna. Que Nietzsche como filólogo detecta esse problema, é algo bem conhecido, e que é gravitante para a sua maneira de fazer filosofia dificilmente se pode pôr em dúvida. Porém como são os casos desses três elementos em conjunção - arte, ciência e moral - de que ele trata? No presente trabalho me ocuparei das dinâmicas entre estética e conhecimento em dois escritos de juventude de Nietzsche, “Homero e a filologia clássica” (1869) e O nascimento da tragédia no espírito da música (1872), assim como na Genealogia da moral (1887).

Começarei com o caso da Genealogia da moral. Ali Nietzsche perfila um antagonista de seu próprio escrito: a ciência como uma forma de fé. Que a ciência claudique ante o ideal ascético, significa que claudica em exercer seus direitos. Assim, a questão da classificação entre filosofia e ciência, proposta em Para além de bem e mal (1886), em “Nós, os eruditos”, assume uma forma particular. Para que a ciência se transmute em fé, deve operar um curioso silogismo, que discutirei sob o problema geral do ceticismo.

Em um segundo ponto, ocupar-me-ei da Lição inaugural e de O nascimento da tragédia. Intentarei fazer ver que, tampouco aqui, como na Genealogia da moral, Nietzsche se serve da estética ou da arte para pôr em questão o conhecimento, como Billings (2009)BILLINGS, J. Misreading the Chorus: A Critical Quellenforschung into Die Geburt der Tragödie. En: Nietzsche-Studien, Berlín/Nueva York, vol. 38, n. 1, pp. 246-268, 2009. propõe. Na linha proposta por Porter (2011)PORTER, J. I. “Don’t Quote Me on That!”: Wilamowitz Contra Nietzsche in 1872 and 1873. En: Journal of Nietzsche Studies, vol. 42, n. 1, pp. 73-99, 2011. sobre as más interpretações do famoso primeiro livro de Nietzsche, é o caso de se pressupor que, segundo o seu autor, a arte pode substituir o conhecimento ou a ciência, ou, quem sabe ainda mais grave, pressupor que pela via da estética se aceda a uma realidade distinta da que a ciência é capaz. Por certo que se invoca como apoio precisamente o seu primeiro livro. Uma análise mais diferenciada do problema entre arte e ciência mostra que Nietzsche cumpre em O nascimento da tragédia um certo programa anunciado na Lição inaugural. A estética acorre em apoio à ciência porque a ela diz respeito o que tem valor; mas ao acadêmico ou ao cientista essa questão pode ser indiferente, pode lhes parecer insignificante.

1. Uma fé produto de um certo ceticismo

“‘Não existe nenhum conhecer: como consequência - existe Deus’: que nova elegantia syllogismi [elegância de silogismo!] Que triunfo do ideal ascético! -” (GM/GM III, 25, KSA 5.405)3 3 Nietzsche, F. La genealogía de la moral. Trad. de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1975, p. 179. A partir de agora indicado como ASP, 1975. . Assim encerra Nietzsche um dos últimos numerais do terceiro tratado da Genealogia da moral. Com sarcasmo, com ironia, Nietzsche qualifica como “elegante” o chocante, violento, absurdo que consiste em deduzir de uma premissa o seu contrário. Não há conhecimento possível, mas sim se conhece que Deus existe. Contra tal ausência de sentido, A genealogia da moral é um escrito que busca conhecer qual é a origem, a linhagem, a família de certas valorações; rechaça, pois, de pronto, a premissa de que “não existe nenhum conhecer”.

Pois agora, a nova elegância desse silogismo é, conforme mencionei, o fechamento, a conclusão de um parágrafo no final do terceiro tratado da Genealogia da moral, este último dedicado, como se sabe, a explicar “o que significam os ideais ascéticos?”. Podem significar muitas coisas4 4 O primeiro parágrafo confere significados segundo grupos de pessoas: artistas, filósofos e eruditos, mulheres, pessoas fisiologicamente inválidas e santos. Ainda que toda a lista siga a pauta estilística de uma enumeração para chegar a um final, a eleição dos grupos implica uma observação diferenciada. Sobre a enumeração como forma artístico-filosófica em Nietzsche, cf. Mainberger (2001). , mas há uma explicação que Nietzsche põe assentada quase no começo do livro, mais exatamente ao final do primeiro parágrafo: “no fato de que o ideal ascético tenha significado tantas coisas para o homem expressa-se a realidade fundamental da vontade humana, seu horror vacui [horror ao vazio]: essa vontade necessita de uma meta - e prefere querer o nada a não querer” (GM/GM III, 1, KSA 5.339, tradução de ASP, 1975, p. 114______. La genealogía de la moral. Trad. de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1975.)5 5 A explicação - ou, se se preferir, a hipótese - de Nietzsche é o fio articulador dos distintos significados que, segundo ele, o ideal ascético adotou. Pois agora, Nietzsche dá esse último como um “fato”. Lida a passagem dessa maneira, tem-se ali obviamente um círculo vicioso. Que o assunto está longe de ser tão simples, o próprio filósofo se encarrega de nos advertir quando sustenta no famoso parágrafo 12 da terceira dissertação: “Existe (…) únicamente um ‘conhecer’ perspectivista (…)” (GM/GM III, 12, KSA 5.365). Cf. Sommer (2019, pp. 468-469) para uma síntese bastante boa das principais interpretações dessa última passagem. .

Aqui se expressa, a meu ver, uma ideia simples, mas nem por isso menos importante: a vontade é (por definição, se se quiser) querer. Agora, suas configurações são históricas, e o livro será ensinado com as configurações incentivadas pelo “ideal ascético”, entre as quais conta uma certa ciência. Elas se sustentam em uma “fé”: “na inestimabilidade, incriticabilidade da verdade” (GM/GM III, 25, KSA 5.402). Em consequência, e em tom desafiante, polêmico, Nietzsche faz sua a tarefa de “pôr em questão o valor da verdade” (GM/GM III, 24, KSA 5.401)6 6 A expressão se encontra também no primeiro parágrafo do primeiro livro de Para além de bem e mal: “Dos preconceitos dos filósofos” (KSA 5.15). Ela ensejou interpretações distintas, discutidas por Sommer (2016, pp. 75-81). O comentário de Sommer a essa expressão e passagem na Genealogia da moral aponta sobretudo para a crítica que Nietzsche faz a distintas posições de seus contemporâneos - em particular a de Dühring - sobre a aspiração à cientificidade da filosofia (2019, pp. 572 ss.). Segundo Sommer, para Nietzsche a filosofia (do futuro) é a instância legisladora que indica o caminho para a ciência. . “Pôr em questão o valor da verdade” não significa que se busque um substituto - por exemplo, a arte - como muitas vezes se conclui, e o próprio Nietzsche insinua. Considerada a questão desse outro ângulo, pode bem se tratar de “defender”, de “proteger” um mínimo sentido de verdade que seja distinta da fé; de lutar, então, contra o ideal ascético. Uma das características de dito ideal é, por certo, que prescinde da arte porque desdenha do que a arte aprecia: da Empirie7 7 Opto por empregar um termo (Empirie) pouco frequente nos textos de Nietzsche, porque tem uma conotação positiva. Ele o utiliza, até onde posso ver, em A filosofía na época trágica dos gregos e muito depois vai usá-lo em O crepúsculo dos ídolos, assim como em alguns poucos apontamentos dos Nachlass. Esse termo também faz eco à zarte Empirie, a que, segundo Georges Didi-Huberman, Goethe, como artista, aspirava (2013, p. 27). Sobre o nexo entre Goethe e Nietzsche, cf., em particular, Vivarelli (1994). . Ao sucumbir a ciência ao ideal ascético, mais não faz do que consumir-se no horror vacui da vontade, na indiferença niilista com respeito à realidade; coisa que, por outro lado, a arte não pode se permitir, a menos que também ela sucumba ao ideal ascético. Se se trata de “defender” um sentido de verdade que não a equipare com a fé, a tarefa é atacar toda forma de dogmatismo e, do mesmo modo, mostrar que o conhecimento que A genealogia da moral traz é algo muito diferente da “incriticabilidade da verdade”, e diferente também, como Nietzsche deixa claro, da ciência tal como se a pensa e se a pratica em seu tempo.

Regressemos a nosso ponto de partida: a “nova elegância do silogismo”. A premissa é: “não existe nenhum conhecimento”; a consequência: “Deus existe”. Porém, qual seria a segunda premissa? Deus é nenhum conhecimento. Agora, se se assume que a premissa é própria de um cético, teria mais de tomar-se como uma conclusão, uma vez sopesados os argumentos em favor do conhecimento ou contra ele. O certo é que como conclusão ou como premissa a sentença é dogmática (e não cética), pois sustenta que não há nenhum conhecimento. Assim se desbarata um núcleo básico do ceticismo: que não se pode criticar o que se toma por verdadeiro - ou, como expressa Nietzsche, que a verdade seja “incriticável” -. O famoso silogismo é, afinal de contas, uma posição dogmática, visto que exclui de antemão a possibilidade de pôr à prova o que se toma como verdadeiro ou conhecido8 8 Sobre o ceticismo em geral, cf. Hankinson (1995), Long (1995) e Machuca (2011). Sobre o ceticismo antigo, cf. as compilações e estudos de Bailey (2002) e Bett (2010). Nos últimos anos se realizaram importantes estudos sobre Nietzsche e o ceticismo. Para um status quaestionis, cf. Hanza (2021, pp. 284-286). .

A “nova elegância do silogismo” é também, sustenta Nietzsche, um “triunfo do ideal ascético” (GM/GM III, 25, KSA 5.405). Esse ideal é “niilista” (GM/GM III, 26, KSA 5.406) e, poderíamos concluir, ele o é em termos epistemológicos porque, em última instância, exclui por si mesmo todo afã de conhecer. Sua ausência de sentido e loucura é muito particular, porque ademais se demonstra performativamente: se se assume que não é possível conhecer (como estabelece a premissa), conclui-se qualquer coisa por fé (como estabelece a conclusão). Que essa fé diga respeito à existência de Deus, tal não faz senão reforçar que se trata justamente de uma fé - ou, mais precisamente, de um máximo de fé, de um “incriticável” -.

2. O “douto”

Desde o início, como sabemos, Nietzsche não tem escrúpulos em criticar a ciência. Inicialmente, é bastante cuidadoso. Na sua aula inaugural, “Homero e a Filologia Clássica”, num tom bastante conciliador, explica que “[se] assumimos uma atitude científica perante a Antiguidade (…) perdemos sempre o formativo maravilhoso (das wunderbar Bildende)” (HkP, KGW II.1.252). Com “artistas e naturezas artisticamente formadas” seria possível à filologia não perder de vista seu impulso formativo, que consiste num “ideal” como Winckelmann o cunhou: o da “indizível simplicidade e nobre dignidade do helênico”. Mas - e aqui se insinua o Nietzsche crítico - esse ideal é temido pelo “homem moderno”, que “se admira e se ajoelha diante de si mesmo”. O homem moderno toma os helenos como “superados”, estes são àqueles “indiferentes” (HkP, KGW II.1.251). Contra a indiferença frente ao que tem valor, há o impulso, o estímulo formativo da filologia. Por meio deste ideal de Winckelmann, tal indiferença pode ser combatida, propõe o professor debutante.

Há vários aspectos a serem considerados nesta abordagem inicial, mas gostaria de destacar um em particular. Nietzsche abrirá uma linha de crítica sobre tal “ideal”. O nascimento da tragédia, publicado quase três anos após a conferência inaugural, irá despedaçar uma imagem em particular - precisamente aquela que Winckelmann fizera dos gregos - porque trará à tona uma Antiguidade real, a qual está além daquela que Winckelmann conhece. Winckelmann, em última análise, projeta características do período helenístico para os gregos como um todo.9 9 Sobre este tema muito trabalhado pode-se consultar os trabalhos reunidos por Reschke (2017). Seu anacronismo não é tanto o problema10 10 O anacronismo não é um problema, pois dificilmente Nietzsche poderia objetar algo que ele mesmo pratica. Cf. Porter (2014). Na minha opinião, o uso deliberado do anacronismo é um dos métodos que Nietzsche emprega. Sobre os métodos de Nietzsche, cf., em particular, Denat (2010). , porém mostrar que essa realidade existe, pois passa inadvertida por falta de conhecimento histórico. Precisamente, muito do impacto do famoso primeiro livro de Nietzsche consiste em ter levado em conta alguns gregos antes mesmo do período clássico. No entanto, se voltarmos à Conferência inaugural realizada em 1869, perceberemos que o programa, o empenho, essa tarefa de “desvelamento” do real, já estava, nela, presente. É algo que compete à filologia. O “centauro” que é a filologia aspira à “perfeição da sua própria essência” para “construir uma ponte entre a Antiguidade ideal (…) e a real” (HkP, KGW II.1.253). Imagens e termos à parte, o que Nietzsche parece reter é uma esperança: que a filologia tenha uma única ambição ou propósito.

Entretanto, qual é esse propósito? Inclina-se a pensar que é “ético e estético”, ou também formativo, “pedagógico” (HkP, KGW II.1.250). Tais respostas são as usualmente esperadas de um professor que fale diante de uma audiência como a que ouvia Nietzsche. Mas o problema é que Nietzsche arrisca, e muito. Ele tem que persuadir seu público de que não é possível saber como os poemas homéricos foram possíveis, reais, se não se recorrer à estética. Nos termos da dissertação que o jovem professor leva a cabo: a difícil questão científica que Friedrich August Wolf colocou sobre a autoria dos poemas homéricos não pode ser resolvida sem o auxílio da estética (HkP, KGW II.1.257 ss., em particular 263). Em termos muito simples: “Homero” já é na Antiguidade “um juízo estético”, porque, na tradição, o antigo significado material de “Homero” (como o pai da poesia) é modificado para um protótipo da arte poética em geral, como, posteriormente, poderemos ler em Aristóteles. Para construir uma tese semelhante é muito importante ter atentado para os aspectos estéticos das manifestações artísticas: sua composição, seu público, as ocasiões em que são exibidos; e, além disso, é necessário ter ponderado quão integrados eles estavam na vida dos antigos gregos11 11 Cf., Em particular, Reibnitz (1994). .

No entanto, a aspiração conciliadora de Nietzsche no início de sua carreira docente parece ser categoricamente negada nas exaltadas afirmações de O nascimento da tragédia. Vejamos:

uma profunda representação ilusória, que pela primeira vez veio ao mundo na pessoa de Sócrates, - aquela crença inabalável de que, seguindo o fio da causalidade, o pensamento atinge os abismos mais profundos do ser, e que o pensamento é capaz não apenas de conhecê-lo , mas até mesmo de corrigi-lo. Essa sublime ilusão metafísica foi acrescentada como um instinto à ciência, e a conduz sempre novamente até aqueles limites onde deve ser transmutada em arte.(GT/NT, KSA 1.99,)12 12 Nietzsche, F. El nacimiento de la tragedia. Trad. de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1973, p. 127. A partir de agora indicado como ASP, 1973. .

“Gênio quimérico e insolência na construção de certas afirmações”, sanciona Ulrich von Wilamowitz-Möllendorff (2013, p. 58)WILAMOWITZ-MÖLLENDORFF, U. Zukunfsphilologie. Eine erwidrung auf Friedrich Nietzsches geburt der tragödie. En: REICH, H. (ed.). Rezensionen und Reaktionen zu Nietzsches Werken. Berlín/Boston: Walter de Gruyter, 2013, pp. 56-77.. Da famosa polêmica entre os dois, na qual, como se sabe, Erwin Rohde também desempenha um papel importante, vale a pena notar, como já havia assinalado James I. Porter, que não é necessário considerar-se, como Wilamowitz-Möllendorff faz e em sua defesa também Rohde, que Nietzsche esteja falando como um filólogo. O nascimento da tragédia é, em sua forma, ostensivamente não acadêmico (Porter, 2011PORTER, J. I. “Don’t Quote Me on That!”: Wilamowitz Contra Nietzsche in 1872 and 1873. En: Journal of Nietzsche Studies, vol. 42, n. 1, pp. 73-99, 2011., p. 74); por exemplo, na obra, praticamente não há fontes citadas. Diante das convenções da escrita acadêmica sobre os estudos clássicos, Porter se pergunta como localizar essa “estranha peça de escrita” (2011, p. 73). Wilamowitz opta por lê-la filologicamente e, assim, inaugura a tradição de interpretar mal a os escritos de Nietzsche (Porter, 2011PORTER, J. I. “Don’t Quote Me on That!”: Wilamowitz Contra Nietzsche in 1872 and 1873. En: Journal of Nietzsche Studies, vol. 42, n. 1, pp. 73-99, 2011., pp. 85 ss.).

Além de chamar atenção para a forma não acadêmica da obra, Porter alega que o próprio Nietzsche sabia que não estava falando como filólogo, o que ficaria evidenciado em uma carta a respeito da conferência “Sócrates e a tragédia”, escrita a Rohde em agosto de 1871. Nessa carta, Nietzsche zomba do tipo de provas que poderiam ser a ele demandadas acerca da oposição entre apolíneo e dionisíaco (KSB 3.215-216). O curioso é que justamente sobre essa oposição já existia uma profusa investigação entre os filólogos. Assim Nietzsche poderia, sim, aduzir “provas” e “testemunhos”, como pede um acadêmico, exige Wilamowitz, e Rohde, com a ajuda de Nietzsche, finalmente os oferece. Poderíamos, então, deduzir que, se Nietzsche quisesse falar como filólogo, não teria nenhum inconveniente em fazê-lo. E no longo e único parágrafo do “Prefácio a Richard Wagner”, Nietzsche faz referência a noções como “nosso público estético”, a um artista em particular, a “antítese entre excitação patriótica e dissipação estética”, a como um “problema estético é levado tão a sério”; E, caso o leitor tenha alguma dúvida, conclui: “a arte é a tarefa suprema e a atividade propriamente metafísica desta vida” (GT/NT, KSA 1.23-24). Não um filólogo, mas, digamos, um “esteta” é o autor do livro; embora tivesse sido melhor se o “poeta” tivesse ousado, como lemos muitos anos depois na “Tentativa de autocrítica” (1886), ou, ainda, o “músico” ou o filósofo “artista” nessas espécies de fugas, giros e reviravoltas que sua escrita adota.

É tão manifesto, pelas próprias expressões de Nietzsche, que não é o filólogo que fala, que é preciso admitir que há uma mudança em relação à Conferência inaugural. Nesta, de fato, quem fala é o filólogo que faz uso, como suporte para sua interpretação, de pontos de vista estéticos. Como é de esperar, no seu trabalho como docente no período da Basileia, Nietzsche continuou com essa prática. Esta, portanto, não se caracterizando como uma simples oposição entre uma abordagem histórico-filológica e um tratamento estético da literatura, como bem aponta Gerratana (1994, p. 333)GERRATANA, F. “Jetzt zieht mich das Allgemein-Menschliche an”. Ein Streifzug durch Nietzsches Aufzeichnungen zu einer “Geschichte der litterarischen Studien”. En: BORSCHE, T., GERRATANA, F. y VENTURELLI, A. (eds.). ‘Centauren-Geburten’. Wissenschaft, Kunst und Philosophie beim jungen Nietzsche. Berlín/Nueva York: Walter de Gruyter, 1994, pp. 326-350.. Na mera escolha de termos para entender como se forma a tradição da literatura - da “obra de arte da linguagem” (Sprachkunstwerk) a “Literatura para ler” (Leseliteratur) (Reibnitz, 1994______. Vom ‘Sprachkunstwerk’ zur ‘Leselitteratur’. Nietzsches Blick auf die griechische Literaturgeschichte als Gegenentwurf zur aristotelischen Poetik. En: BORSCHE, T., GERRATANA, F. y VENTURELLI, A. (eds.). ‘Centauren-Geburten’. Wissenschaft, Kunst und Philosophie beim jungen Nietzsche. Berlín/Nueva York: Walter de Gruyter, 1994, pp. 47-66., p. 56) - percebe-se o quanto Nietzsche dá atenção aos aspectos estéticos, sem abrir mão do método histórico-crítico. Existem, lemos nas notas de suas aulas, três aspectos a serem considerados quando se trata de fazer uma História da literatura grega: as próprias obras, seus efeitos e seu público, e aqueles que as produzem (KGW II, 5.8). Há, nesse sentido, uma continuidade entre os estudos de Leipzig e as últimas aulas do semestre de inverno de 1874-1875 e do semestre de verão de 1875 sobre a história da literatura grega (Reibnitz, 1994______. Vom ‘Sprachkunstwerk’ zur ‘Leselitteratur’. Nietzsches Blick auf die griechische Literaturgeschichte als Gegenentwurf zur aristotelischen Poetik. En: BORSCHE, T., GERRATANA, F. y VENTURELLI, A. (eds.). ‘Centauren-Geburten’. Wissenschaft, Kunst und Philosophie beim jungen Nietzsche. Berlín/Nueva York: Walter de Gruyter, 1994, pp. 47-66., pp. 51, 53). Para os “desvelamentos” ou diferenciações que Nietzsche empreende, as intuições e apreciações estéticas são certamente mais úteis do que as representações secas fornecidas pela ciência, mas isso não significa que ele simplesmente desdenhe a ciência. Apenas demonstra que uma narrativa alternativa em relação àquela assentada nos moldes estritos da tradição científico-acadêmica também pode ser desenvolvida. Portanto, apesar das diferenças de perspectivas existentes entre a Conferência inaugural e O Nascimento da Tragédia, ambas têm algo em comum: a “liberação da Antiguidade da musealização a ela submetida pela filologia acadêmica”, como pontuou Crescenzi (1994, p. 209)CRESCENZI, L. Philologie und deutsche Klassik. Nietzsche als Leser von Paul Graf Yorck von Wartenburg. En: BORSCHE, T., GERRATANA, F. y VENTURELLI, A. (eds.). ‘Centauren-Geburten’. Wissenschaft, Kunst und Philosophie beim jungen Nietzsche. Berlín/Nueva York: Walter de Gruyter, 1994, pp. 208-216. 13 13 Para Crescenzi, em relação à questão fundamental de O Nascimento da Tragédia sobre a natureza musical-dionisíaca do trágico, toda a intrincada relação com as ideias de Schopenhauer e Wagner pode ser vista como “contaminação” (1994, p. 215). .

Mas como é possível que Wilamowitz então confunda o autor e o público desse primeiro escrito, tomando-os como acadêmicos, e, ainda, que Rohde e Nietzsche o sigam? Duas respostas são possíveis, ambas com apoio de Porter. Primeiro, porque o livro, “por trás da fachada de indiferença do método filológico, esconde uma erudição maciça e um complexo sistema de referências a fontes antigas e modernas” (Porter, 2011PORTER, J. I. “Don’t Quote Me on That!”: Wilamowitz Contra Nietzsche in 1872 and 1873. En: Journal of Nietzsche Studies, vol. 42, n. 1, pp. 73-99, 2011., p. 89), e todos eles sabem disso. Segundo - dado acerca do qual eles também possuem conhecimento -, o livro apela para um “problema básico”: “o da incomensurabilidade entre arte e ciência” (Porter, 2011PORTER, J. I. “Don’t Quote Me on That!”: Wilamowitz Contra Nietzsche in 1872 and 1873. En: Journal of Nietzsche Studies, vol. 42, n. 1, pp. 73-99, 2011., p. 87).

Como foi dito, Nietzsche praticamente se abstém de fazer citações em O nascimento da tragédia, embora pudesse tê-lo feito. A razão é simplesmente porque ele não escreve qua acadêmico. Mas isso depende do ângulo de visão, pois fica claro que para Wagner e seus seguidores as coisas não são assim. Para eles, o acadêmico é aquele que escreve em prol de uma renovação, através da arte, de energias que se constituem, ao mesmo tempo, como históricas e metafísicas. Que, em particular, seja a arte de Wagner capaz de alcançar tal renovação é óbvio para o próprio Wagner e, devemos supor, para muitos outros, incluindo, entre eles, o jovem catedrático. Mas não devemos supor que é o catedrático aquele que se propõe a demonstrar como a arte está apta a tão - colossal, inaudita - tarefa de renovação. Entretanto, estamos autorizados a pensar, a partir do título do livro e pelo “Prólogo de Richard Wagner”, que para seu autor uma questão estética em particular (música e tragédia) é muito relevante. Portanto, nos deparamos com a segunda resposta: tanto o autor quanto os envolvidos na polêmica sobre o livro estão cientes da incomensurabilidade entre arte e ciência. Mas então por que a polêmica?

Não há dúvida de que Wilamowitz se sente compelido a responder ao livro, “ele se sente insultado acadêmica e profissionalmente” (Porter, 2011PORTER, J. I. “Don’t Quote Me on That!”: Wilamowitz Contra Nietzsche in 1872 and 1873. En: Journal of Nietzsche Studies, vol. 42, n. 1, pp. 73-99, 2011., p. 74) pelo “tom e tendência” do seu autor (2013, p. 57). “O Sr. Nietzsche não se apresenta como um pesquisador científico”, afirma Wilamowitz. (2013, p. 57), não fala como acadêmico. No entanto, Porter adverte que Wilamowitz opta por uma estratégia surpreendente de má interpretação e descuido na forma de citar Nietzsche que não condiz com sua própria prática profissional (Porter, 2011PORTER, J. I. “Don’t Quote Me on That!”: Wilamowitz Contra Nietzsche in 1872 and 1873. En: Journal of Nietzsche Studies, vol. 42, n. 1, pp. 73-99, 2011., p. 77 ss.). Como o cita e o interpreta mal, Rohde tem bastante material para, às vezes em tom erudito, replicar ao insolente que não respeita um mínimo de probidade acadêmica14 14 O estudo de Porter traz dois anexos detalhados, nos quais são especificados todos os descuidos de Wilamowitz na citação, bem como os acréscimos de Rohde. . Citar mal e interpretar mal é uma estratégia, isto é, supõe, por parte de Wilamowitz, um recorte deliberado do livro para mostrar que tem pouco respeito por ele (Porter, 2011PORTER, J. I. “Don’t Quote Me on That!”: Wilamowitz Contra Nietzsche in 1872 and 1873. En: Journal of Nietzsche Studies, vol. 42, n. 1, pp. 73-99, 2011., pp. 79-86), que não lhe concede valor. Também supõe uma sorte de alerta, como se dissesse ao autor: o desprezo que exibe pelo método filológico pode voltar-se contra si mesmo. Busca, pois, fazê-lo provar de seu próprio remédio.

O estudo de Porter, que revê os escritos da polêmica sob o ângulo da filologia do XIX e da autoridade (primária e secundária) textual, não é o único que coloca em evidência os problemas a serem enfrentados quando se trata de compreender o papel adotado pelo jovem Nietzsche em seus escritos. E justamente por se tratar de um emaranhado de problemas que as interpretações podem ser dissonantes. Muitos pretendem seguir as pistas dos autores que Nietzsche estuda como suporte: fontes, declaradas ou não, sem maiores discussões sobre se Nietzsche as distorce ou não15 15 Da importante compilação de Borsche, Gerratana e Venturelli (1994), por exemplo, temos as contribuições do mesmo Borsche, Crescenzi, Gerratana e Reibnitz. Também destacamos vários dos trabalhos em Jensen e Heit (2014), particularmente os de Most e Fries, Santini e Vivarelli. . No entanto, Billings (2009)BILLINGS, J. Misreading the Chorus: A Critical Quellenforschung into Die Geburt der Tragödie. En: Nietzsche-Studien, Berlín/Nueva York, vol. 38, n. 1, pp. 246-268, 2009. trata justamente deste último ponto em relação a O nascimento da tragédia, em um dos Beiträge zur Quellenforschung como Abhandlung. No seu entender, o livro revela uma má compreensão sistemática de teorias precedentes, quer dizer, Nietzsche distorce as fontes que utiliza. Ele não é, por certo, o único a apontar para este problema, pois Sommer observa, a partir de outro ponto de vista, que Nietzsche, em antagonismo à sua recomendação de ler lentamente e “ruminar”, pratica um tipo de leitura muito distinta. Ele devora “pedaços que engole sem mastigar e, do que digere, reproduz o digerido à vontade e raras vezes se preocupa com o contexto geral do lido. Nietzsche costuma ler estrategicamente em prol dos seus próprios fins, não do lido” (2019, p. 87). Mas atemo-nos à contribuição de Billings, tendo em conta, decerto, o alerta de Sommer de que Nietzsche pode ser completamente arbitrário em suas leituras. Para Billings, em O nascimento da tragédia “o método acadêmico de citação e referência é invertido na medida em que cada pensador é mal interpretado para que possa estar em consonância com todo o seu propósito não acadêmico” (2009, p. 247). Isto não é outra coisa senão estimular o colapso da oposição entre Antiguidade e Modernidade, para a qual o artifício, de que Nietzsche era consciente, de interpretar mal, é performativamente importante: demonstraria, no final das contas, a impossibilidade do estudo científico da Antiguidade (Billings, 2009BILLINGS, J. Misreading the Chorus: A Critical Quellenforschung into Die Geburt der Tragödie. En: Nietzsche-Studien, Berlín/Nueva York, vol. 38, n. 1, pp. 246-268, 2009., p. 247-248). Mas se temos de dar crédito ao Nietzsche esteta que esboçamos antes, as coisas bem que poderiam ser muito diferentes, em particular porque o núcleo do problema que o famoso livro “impossível” coloca - e no qual todos os especialistas, incluindo evidentemente Billings, concordam - é a relação entre música e tragédia. Que ela não possa ser conhecida é algo discutível e muito diferente de que ela não possa ser apreciada. E este último ponto concerne, é claro, ao esteta.

Eu não desejo de modo algum rejeitar a contribuição de Billings. Ela permite abordar por que Nietzsche se isentaria de empregar todo o aparato de provas, citações ou fontes, como poderiam esperar os acadêmicos - e não o “público estético”, sobre o qual ele já presume “críticas, irritações e mal-entendidos” (GT/NT, Prólogo a Richard Wagner, KSA 1.23, tradução de ASP, 1973, p. 38______. El nacimiento de la tragedia o Grecia y el pesimismo. Trad. de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1973.) pelo seu livro. Assim, as leituras que ele faz - tendenciosas, arbitrárias ou coerentes - devem-se precisamente ao fato de não estar de acordo com muitas das explicações que são dadas sobre o fenômeno estético da tragédia, pois não têm como se aproximar do drama, uma forma de exibição artística muito cativante e altamente significativa. O esteta fala porque a ciência possui limites e algumas questões só podem ser resolvidas no terreno da estético, como ele já havia defendido e procurado demonstrar na lição inaugural.

Agora, é crível que Nietzsche não tenha se dado conta que o seu livro poderia ser lido como um ataque frontal à ciência? Certamente não. Mas talvez a sua intenção não fosse a de simplesmente denegrir a ciência, senão mostrar-lhe, como Kant, os seus limites. As profusões de metáforas e performances textuais são já tema de Nietzsche ao longo de toda a sua obra. E é possível que a confusa polêmica com Wilamowitz tenha servido de lição ou de alerta. Mas antes de me explicar, eu gostaria de retornar ao problema do drama. Por que é cativante, por que é tão particular, esteticamente falando? Pois, como ele explicará muito mais tarde, numa nota de rodapé em O caso Wagner, a palavra grega dran, a raiz para o drama grego como festividade dionisíaca, é um “acontecimento” (Ereignis) (WA/CW, KSA 6.32), algo que ocorre entre o coro, os espectadores e o palco. Essa leitura é distinta da aristotélica, que entende o “drama” como “imitação de uma ação”, enfatiza o “mito” e assume ser prescindível a execução mesma da tragédia (Aristóteles, Poética 1450 b 3-19ARISTÓTELES. Poética. Edición trilingüe de Valentín García Yebra. Madrid: Gredos, 1974.). A interpretação aristotélica entende, portanto, a tragédia enquanto um “drama para leitura” (NF/FP 1869-1870, 3[66], KSA 7.78). A diferença entre a tragédia e o “drama para leitura” é inequivocamente defendida desde 186916 16 Cf. sobre esta divergência de Nietzsche com relação a Aristóteles Hanza (1989) e Reibnitz (1992). . Tal diferença é estética e não um assunto da ciência. Agora, esta pode ser cega para a pertinência da estética e, consequentemente, ser completamente indiferente ao desdobramento e concretização das manifestações artísticas - como acontece com o homem moderno, devotado a si mesmo, defronte os antigos gregos: são-lhe indiferentes. Em ambos os casos tal indiferença é inadmissível para Nietzsche. Aqui podemos encontrar, por outro lado, um dos motivos do virulento panfleto de Wilamowitz, na medida em que este nota no “tom e na intenção” do livro certa petulância, certo ar de superioridade por parte do esteta, algo que, por sua vez, lhe parecia inadmissível. Mas isso seria uma questão de especulação. O que é muito menos discutível é que o autor de O nascimento da tragédia leva “muito a sério” um “problema estético”, a ponto de não poder ser menos do que “metafísico”.

Billings está certo quando mostra que Nietzsche, neste livro, promove um colapso de vários pressupostos da prática filológica. Mas concluir como propósito e realização o mostrar que não é possível o conhecimento é arriscado, conforme eu procurei mostrar - ainda mais se, para Nietzsche, uma maneira perfeitamente legítima e necessária de conhecer o objeto a que se dedicam os estudos da Antiguidade se dá por meio da colaboração com a estética. Assim, o uso deliberadamente anacrônico de experiências estéticas (Porter, 2014______. Nietzsche’s Radical Philology. En: JENSEN, A. y HEIT, H. (eds.). Nietzsche as a Scholar of Antiquity. Londres/Nueva York: Bloomsbury, 2014, pp. 27-50.), o experimento de sentir esteticamente como modernos para apreciar e valorizar a diferença ante as manifestações artísticas da Antiguidade, pode ser entendido em favor do conhecimento. Portanto, digamos que não é que as arbitrárias interpretações sirvam para promover o colapso das diferenças temporais no interior da cultura grega e entre a era moderna e a antiga (Billings, 2009BILLINGS, J. Misreading the Chorus: A Critical Quellenforschung into Die Geburt der Tragödie. En: Nietzsche-Studien, Berlín/Nueva York, vol. 38, n. 1, pp. 246-268, 2009., p. 247). Deveríamos reconhecer, antes, a particularidade estética de uma exibição como o drama - sua sugestão é que através da música anula-se e reforça-se, simultaneamente, a experiência do tempo. Trata-se de um “acontecimento” distinguível enquanto experiência estética, que também revela uma sensibilidade histórica: antiga, moderna - em suma, do próprio tempo.

Nietzsche - e muitos estudiosos reconhecem sem hesitar17 17 Para uma breve, porém muito útil, exposição sobre o estado da pesquisa de Nietzsche enquanto filólogo, cf. Bornmann (1994, p. 69). - foi um sólido acadêmico em sua prática profissional. Mas a partir de 1873 ele já não publica nenhum trabalho filológico. Seus interesses, desde a publicação de O nascimento da tragédia, seguem uma outra direção (Bornmann, 1994BORNMANN, F. Anekdota aus dem philologischen Nachlaß der Basler Jahre (1869-1978). En: BORSCHE, T., GERRATANA, F. y VENTURELLI, A. (eds.). ‘Centauren-Geburten’. Wissenschaft, Kunst und Philosophie beim jungen Nietzsche. Berlín/Nueva York: Walter de Gruyter, 1994, pp. 67-80., p. 70). Ele prossegue com a crítica textual, com o esmero de que há sempre, em primeiro lugar, um ponto de partida conceitual e, em segundo lugar, o aspecto estilístico ou linguístico (Bornmann, 1994BORNMANN, F. Anekdota aus dem philologischen Nachlaß der Basler Jahre (1869-1978). En: BORSCHE, T., GERRATANA, F. y VENTURELLI, A. (eds.). ‘Centauren-Geburten’. Wissenschaft, Kunst und Philosophie beim jungen Nietzsche. Berlín/Nueva York: Walter de Gruyter, 1994, pp. 67-80., p. 71)18 18 Bornmann também explica como Nietzsche, em seus estudos sobre métrica grega, descobre que é impossível comparar o ritmo antigo e moderno. A Retórica de Aristóteles desempenha um papel nesta descoberta, cujos capítulos 1-13 são traduzidos por Nietzsche (1994, pp. 76-77). . Ao método rigoroso e ao senso de linguagem e de estilo muito desenvolvidos que Bornmann destaca (1994, p. 72)BORNMANN, F. Anekdota aus dem philologischen Nachlaß der Basler Jahre (1869-1978). En: BORSCHE, T., GERRATANA, F. y VENTURELLI, A. (eds.). ‘Centauren-Geburten’. Wissenschaft, Kunst und Philosophie beim jungen Nietzsche. Berlín/Nueva York: Walter de Gruyter, 1994, pp. 67-80., cumpre acrescentar um diagnóstico central para Nietzsche. Os filólogos como homens modernos não compreendem a Antiguidade, não são educadores, senão acadêmicos. Sua Antiguidade não é a real; antes, a verdadeira Antiguidade é uma demonstração contra o seu humanismo (Cancik, 1994CANCIK, H. “Philologie als Beruf”. Zu Formengeschichte, Thema und Tradition der unvollendeten vierten Unzeitgemäßen Friedrich Nietzsches. En: BORSCHE, T., GERRATANA, F. y VENTURELLI, A. (eds.). ‘Centauren-Geburten’. Wissenschaft, Kunst und Philosophie beim jungen Nietzsche. Berlín/Nueva York: Walter de Gruyter, 1994, pp. 81-96., pp. 87-89). Eles, conforme constata Nietzsche, “não possuem nenhum sentimento para defender algo, para proteger algo” (NF/FP 1875, 5[125], KSA 8.73). Comportam-se de forma indiferente.

Não pode ser por acaso que após O nascimento da tragédia Nietzsche publique um livro sobre o estilo (e a fé19 19 Sánchez Pascual aponta que o ano de aparição de O nascimento da tragédia é um ano de desalento para Nietzsche, não pela reação ao seu livro, mas porque o projeto de Bayreuth estava prestes a fracassar. Nietzsche se perguntaria por que Wagner fracassa, por que triunfam outras coisas, e indagaria pelas razões do êxito de David Friedrich Strauss. Cf. Sánchez Pascual, Introducción a NIETZSCHE, F. Consideraciones intempestivas 1. David Strauss, el confesor y el escritor. Trad. de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1988, p. 11. ) de Strauss (1873), e tampouco que quinze anos depois aborde com desenvoltura em três “tratados” a “genealogia” da moral. Poderíamos concluir que muito mais habilidade na escrita e um olhar mais aguçado para o “niilismo” da ciência servem para colocar na balança o que possui valor. Um longo aprendizado - somos tentados a sugerir - após a humilhação de seu primeiro livro, do qual, a propósito, tampouco ele parece sentir-se especialmente orgulhoso. Contudo, isso não é o mais importante. Muito mais significativo é que ele evoque O nascimento da tragédia em A genealogia da moral para levantar, mais uma vez, a questão do valor em sua conexão com a arte (GM/GM III, 25, KSA 5.403)20 20 Andreas Urs Sommer defende que Nietzsche estabelece uma oposição fundamental entre arte e ideal ascético, pois une verdade e ascetismo. Dessa forma, ciência e arte estão tão radicalmente distantes que não haveria síntese, tal como é colocado em “Homero e a filologia clássica”. É pertinente advertir que a vontade de engano pode ser um antídoto contra o ideal ascético e que a ciência tende a acolher este último, mas os direitos da vontade de engano não são como os precedentes. Ela não pode ser generalizada. Ao se construir uma ponte, por exemplo, deve-se reconhecer com toda razão os direitos da vontade de verdade antes da vontade de engano. Sobre como essa questão se aplica à Genealogia da moral, Sommer explica que, em última análise, será uma filosofia legisladora que exerce a tutela entre arte e ciência (2019, pp. 576-577). , sem que isso tenha que significar, repito, que o conhecimento seja impossível. Isso só retrata que o Nietzsche maduro, em seus últimos escritos sobre Wagner, opte por tratar novamente um problema muito “sério”, um problema estético, de uma forma que se sabe capaz: para poder rir21 21 Como é de esperar, há também aqui jogos intertextuais: Nietzsche defende repetidamente que Wagner é um “ator”, e emprega a mesma figura que este se serve para desqualificar os compositores judeus. Cf. Moore (2001), cujo artigo se ocupa da relação que Nietzsche estabelece com a psicologia de sua época para explicar a arte de Wagner. Convém também recordar que, para Cosima Wagner, Nietzsche foi tomado, após a ruptura, como pouco mais do que um plagiador. .

A “nova elegância do silogismo” - uma aberração, segundo Nietzsche, para quem almeja conhecer, como vimos na primeira parte deste trabalho - ocorre quando o afã por conhecer anula toda pergunta por aquilo que possui valor. De sua parte, a estética - nos escritos de juventude aqui estudados, mas também em A genealogia da moral - indaga e responde a essa pergunta à sua maneira: no apreço pelas manifestações artísticas mesmas. Conhecendo suas audiências, suas ocasiões, seus produtores (Erzeuger) não precisa suplantar ou competir com o apreço. Somente quem procura conhecer que deve albergar um sentimento do que deve ser “defendido”, “protegido”, enfim, apreciado e estimado22 22 Eu omiti, exceto por uma referência muito breve, a questão do valor a partir de um ponto de vista moral, porque seria impossível para mim tratá-la na extensão de um artigo. Da mesma forma, considero necessário aprofundar a pista levantada por Bornmann: o método estrito e o sentido do estilo, como Nietzsche os exige enquanto filólogo, permitem-lhe desmascarar o moralista que se intercala com o redator: é o caso da Erga, de Hesíodo (1994, pp. 75-77). .

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  • 1
    NF/FP Primavera-verão 1875, 5[125], KSA 8.73.
  • 2
    Em outra ordem de coisas, Kohlenbach atenta à figura do “nascimento” para mostrar como Nietzsche se serve de um princípio de produtividade linguística que não chega a termo (1995, p. 377)KOHLENBACH, M. Die “immer neuen Geburten”. Beobachtungen am Text und zur Genese von Nietzsches Erstlingswerk “Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik”. En: BORSCHE, T., GERRATANA, F. y VENTURELLI, A. (eds.). ‘Centauren-Geburten’. Wissenschaft, Kunst und Philosophie beim jungen Nietzsche. Berlín/Nueva York: Walter de Gruyter, 1994, pp. 351-382..
  • 3
    Nietzsche, F. La genealogía de la moral. Trad. de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1975, p. 179______. La genealogía de la moral. Trad. de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1975.. A partir de agora indicado como ASP, 1975.
  • 4
    O primeiro parágrafo confere significados segundo grupos de pessoas: artistas, filósofos e eruditos, mulheres, pessoas fisiologicamente inválidas e santos. Ainda que toda a lista siga a pauta estilística de uma enumeração para chegar a um final, a eleição dos grupos implica uma observação diferenciada. Sobre a enumeração como forma artístico-filosófica em Nietzsche, cf. Mainberger (2001)MAINBERGER, S. La enumeración como forma artístico-filosófica en Nietzsche. En: MELÉNDEZ, G. (comp.). Nietzsche en perspectiva. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2001, pp. 199-214..
  • 5
    A explicação - ou, se se preferir, a hipótese - de Nietzsche é o fio articulador dos distintos significados que, segundo ele, o ideal ascético adotou. Pois agora, Nietzsche dá esse último como um “fato”. Lida a passagem dessa maneira, tem-se ali obviamente um círculo vicioso. Que o assunto está longe de ser tão simples, o próprio filósofo se encarrega de nos advertir quando sustenta no famoso parágrafo 12 da terceira dissertação: “Existe (…) únicamente um ‘conhecer’ perspectivista (…)” (GM/GM III, 12, KSA 5.365). Cf. Sommer (2019, pp. 468-469)______. Kommentar zu Nietzsches Zur Genealogie der Moral. Berlín/Boston: Walter de Gruyter, 2019. para uma síntese bastante boa das principais interpretações dessa última passagem.
  • 6
    A expressão se encontra também no primeiro parágrafo do primeiro livro de Para além de bem e mal: “Dos preconceitos dos filósofos” (KSA 5.15). Ela ensejou interpretações distintas, discutidas por Sommer (2016, pp. 75-81)SOMMER, A. U. Kommentar zu Nietzsches Jenseits von Gut und Böse. Berlín/Boston: Walter de Gruyter, 2016.. O comentário de Sommer a essa expressão e passagem na Genealogia da moral aponta sobretudo para a crítica que Nietzsche faz a distintas posições de seus contemporâneos - em particular a de Dühring - sobre a aspiração à cientificidade da filosofia (2019, pp. 572 ss.). Segundo Sommer, para Nietzsche a filosofia (do futuro) é a instância legisladora que indica o caminho para a ciência.
  • 7
    Opto por empregar um termo (Empirie) pouco frequente nos textos de Nietzsche, porque tem uma conotação positiva. Ele o utiliza, até onde posso ver, em A filosofía na época trágica dos gregos e muito depois vai usá-lo em O crepúsculo dos ídolos, assim como em alguns poucos apontamentos dos Nachlass. Esse termo também faz eco à zarte Empirie, a que, segundo Georges Didi-Huberman, Goethe, como artista, aspirava (2013, p. 27)DIDI-HUBERMAN, G. Phalènes. Essais sur l’apparition, vol. 2. París: Les Éditions de Minuit, 2013.. Sobre o nexo entre Goethe e Nietzsche, cf., em particular, Vivarelli (1994)VIVARELLI, V. Nietzsche, Goethe und der historische Sinn. En: BORSCHE, T., GERRATANA, F. y VENTURELLI, A. (eds.). ‘Centauren-Geburten’. Wissenschaft, Kunst und Philosophie beim jungen Nietzsche. Berlín/Nueva York: Walter de Gruyter, 1994, pp. 276-291..
  • 8
    Sobre o ceticismo em geral, cf. Hankinson (1995)HANKINSON, R. J. The Sceptics. Londres/Nueva York: Routledge, 1995., Long (1995)LONG, A. A. ‘Skepsis; Skeptizismus’. En: RITTER, J. y GRÜNDER, K. (eds.). Historisches Wörterbuch der Philosophie, vol. 9. Darmstadt: WbG, 1995, pp. 938-950. e Machuca (2011)MACHUCA, D. (ed.). Pyrrhonism in Ancient, Modern, and Contemporary Philosophy. Dordrecht: Springer, 2011.. Sobre o ceticismo antigo, cf. as compilações e estudos de Bailey (2002)BAILEY, A. Sextus Empiricus and Pyrrhonean Scepticism. Oxford: Clarendon Press, 2002. e Bett (2010)BETT, R. (ed.). The Cambridge Companion to Ancient Scepticism. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.. Nos últimos anos se realizaram importantes estudos sobre Nietzsche e o ceticismo. Para um status quaestionis, cf. Hanza (2021, pp. 284-286)______. Nietzsche: Experimental Skepticism and the Question of Values. En: RAGA ROSALENY, V. y SMITH, P. J. (eds.). Sceptical Doubt and Disbelief in Modern European Thought. Cham: Springer, 2021, pp 283-299..
  • 9
    Sobre este tema muito trabalhado pode-se consultar os trabalhos reunidos por Reschke (2017)RESCHKE, R. (ed.). “… an Winckelmann anzuknüpfen”? Winckelmanns Antike, Nietzsches Klassizismuskritik und ihre Blicke in die Zukunft. Berlín/Boston: Walter de Gruyter, 2017..
  • 10
    O anacronismo não é um problema, pois dificilmente Nietzsche poderia objetar algo que ele mesmo pratica. Cf. Porter (2014)______. Nietzsche’s Radical Philology. En: JENSEN, A. y HEIT, H. (eds.). Nietzsche as a Scholar of Antiquity. Londres/Nueva York: Bloomsbury, 2014, pp. 27-50.. Na minha opinião, o uso deliberado do anacronismo é um dos métodos que Nietzsche emprega. Sobre os métodos de Nietzsche, cf., em particular, Denat (2010)DENAT, C. “Les découvertes les plus précieuses, ce sont les méthodes”: Nietzsche, ou la recherche d’une méthode sans méthodologie. En: Nietzsche-Studien, Berlín/New York, vol. 39, n. 1, pp. 282-308, 2010..
  • 11
    Cf., Em particular, Reibnitz (1994)______. Vom ‘Sprachkunstwerk’ zur ‘Leselitteratur’. Nietzsches Blick auf die griechische Literaturgeschichte als Gegenentwurf zur aristotelischen Poetik. En: BORSCHE, T., GERRATANA, F. y VENTURELLI, A. (eds.). ‘Centauren-Geburten’. Wissenschaft, Kunst und Philosophie beim jungen Nietzsche. Berlín/Nueva York: Walter de Gruyter, 1994, pp. 47-66..
  • 12
    Nietzsche, F. El nacimiento de la tragedia. Trad. de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1973, p. 127______. El nacimiento de la tragedia o Grecia y el pesimismo. Trad. de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1973.. A partir de agora indicado como ASP, 1973.
  • 13
    Para Crescenzi, em relação à questão fundamental de O Nascimento da Tragédia sobre a natureza musical-dionisíaca do trágico, toda a intrincada relação com as ideias de Schopenhauer e Wagner pode ser vista como “contaminação” (1994, p. 215).
  • 14
    O estudo de Porter traz dois anexos detalhados, nos quais são especificados todos os descuidos de Wilamowitz na citação, bem como os acréscimos de Rohde.
  • 15
    Da importante compilação de Borsche, Gerratana e Venturelli (1994)BORSCHE, T., GERRATANA, F. y VENTURELLI, A. (eds.). ‘Centauren-Geburten’. Wissenschaft, Kunst und Philosophie beim jungen Nietzsche. Berlín/Nueva York: Walter de Gruyter, 1994., por exemplo, temos as contribuições do mesmo Borsche, Crescenzi, Gerratana e Reibnitz. Também destacamos vários dos trabalhos em Jensen e Heit (2014)JENSEN, A. y HEIT, H. (eds.). Nietzsche as a Scholar of Antiquity. Londres/Nueva York: Bloomsbury, 2014., particularmente os de Most e FriesMOST, G. W. y FRIES, Th. The Sources of Nietzsche’s Lectures on Rhetoric. En: JENSEN, A. y HEIT, H. (eds.). Nietzsche as a Scholar of Antiquity. Londres/Nueva York: Bloomsbury, 2014, pp. 53-74., Santini e VivarelliSANTINI, C. The History of Literature as an Issue: Nietzsche’s Attempt to Represent Antiquity. En: JENSEN, A. y HEIT, H. (eds.). Nietzsche as a Scholar of Antiquity. Londres/Nueva York: Bloomsbury, 2014, pp. 159-180..
  • 16
    Cf. sobre esta divergência de Nietzsche com relação a Aristóteles Hanza (1989)HANZA, K. Arte como drama. Nietzsche sobre la tragedia. En: Areté, Lima, vol. 1, n. 1, pp. 59-76, 1989. e Reibnitz (1992)REIBNITZ, B. Ein Kommentar zu Friedrich Nietzsche, “Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik” (Kap. 1-12). Stuttgart: Metzler, 1992..
  • 17
    Para uma breve, porém muito útil, exposição sobre o estado da pesquisa de Nietzsche enquanto filólogo, cf. Bornmann (1994, p. 69)BORNMANN, F. Anekdota aus dem philologischen Nachlaß der Basler Jahre (1869-1978). En: BORSCHE, T., GERRATANA, F. y VENTURELLI, A. (eds.). ‘Centauren-Geburten’. Wissenschaft, Kunst und Philosophie beim jungen Nietzsche. Berlín/Nueva York: Walter de Gruyter, 1994, pp. 67-80..
  • 18
    Bornmann também explica como Nietzsche, em seus estudos sobre métrica grega, descobre que é impossível comparar o ritmo antigo e moderno. A Retórica de Aristóteles desempenha um papel nesta descoberta, cujos capítulos 1-13 são traduzidos por Nietzsche (1994, pp. 76-77).
  • 19
    Sánchez Pascual aponta que o ano de aparição de O nascimento da tragédia é um ano de desalento para Nietzsche, não pela reação ao seu livro, mas porque o projeto de Bayreuth estava prestes a fracassar. Nietzsche se perguntaria por que Wagner fracassa, por que triunfam outras coisas, e indagaria pelas razões do êxito de David Friedrich Strauss. Cf. Sánchez Pascual, Introducción a NIETZSCHE, F. Consideraciones intempestivas 1. David Strauss, el confesor y el escritor. Trad. de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1988, p. 11______. Consideraciones intempestivas, 1. David Strauss, el confesor y el escritor (y fragmentos póstumos). Trad. de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1988..
  • 20
    Andreas Urs Sommer defende que Nietzsche estabelece uma oposição fundamental entre arte e ideal ascético, pois une verdade e ascetismo. Dessa forma, ciência e arte estão tão radicalmente distantes que não haveria síntese, tal como é colocado em “Homero e a filologia clássica”. É pertinente advertir que a vontade de engano pode ser um antídoto contra o ideal ascético e que a ciência tende a acolher este último, mas os direitos da vontade de engano não são como os precedentes. Ela não pode ser generalizada. Ao se construir uma ponte, por exemplo, deve-se reconhecer com toda razão os direitos da vontade de verdade antes da vontade de engano. Sobre como essa questão se aplica à Genealogia da moral, Sommer explica que, em última análise, será uma filosofia legisladora que exerce a tutela entre arte e ciência (2019, pp. 576-577).
  • 21
    Como é de esperar, há também aqui jogos intertextuais: Nietzsche defende repetidamente que Wagner é um “ator”, e emprega a mesma figura que este se serve para desqualificar os compositores judeus. Cf. Moore (2001)MOORE, G. Hysteria and Histrionics: Nietzsche, Wagner and the Pathology of Genius. En: Nietzsche-Studien, Berlín/Nueva York, vol. 30, n. 1, pp. 246-266, 2001., cujo artigo se ocupa da relação que Nietzsche estabelece com a psicologia de sua época para explicar a arte de Wagner. Convém também recordar que, para Cosima Wagner, Nietzsche foi tomado, após a ruptura, como pouco mais do que um plagiador.
  • 22
    Eu omiti, exceto por uma referência muito breve, a questão do valor a partir de um ponto de vista moral, porque seria impossível para mim tratá-la na extensão de um artigo. Da mesma forma, considero necessário aprofundar a pista levantada por Bornmann: o método estrito e o sentido do estilo, como Nietzsche os exige enquanto filólogo, permitem-lhe desmascarar o moralista que se intercala com o redator: é o caso da Erga, de Hesíodo (1994, pp. 75-77).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Out 2021
  • Aceito
    21 Nov 2021
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