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A teoria nietzschiana da vontade* * Este artigo foi publicado originalmente em inglês no Philosophers’ Imprint, vol. 7, n. 7, setember 2007, p. 2-15. Agradecemos ao Prof. Brian Leiter por ter se disposto a colaborar mais uma vez os Cadernos Nietzscheitalic> enviando um artigo para o número temático sobre Nietzsche e as Tradições morais, assim como pela cessão dos direitos autorais de seu artigo para a tradução portuguesa. Tradução de Daniel Temp. Revisão técnica de Rogério Lopes.

The Nietzschean theory of will

Resumo

O artigo procura mostrar como Nietzsche, a partir de um exame detalhado da fenomenologia do querer, constrói um argumento a favor de sua tese revisionista de que a nossa experiência do querer não rastreia uma relação causal real com nossos atos, disso resultando o colapso da ideia mesma de responsabilidade moral no sentido exigido pelas teorias incompatibilistas da liberdade da vontade. Uma premissa importante do argumento de Nietzsche depende de um Doutrina dos Tipos, segundo a qual todos os nossos pensamentos conscientes têm um estatuto de epifenômeno em relação à psicologia inconsciente e à fisiologia do agente, que por sua vez remete ao tipo psicofísico ao qual cada indivíduo deve ser vinculado. Por fim, procura-se mostrar que a teoria nietzschiana da vontade antecipa certos resultados da psicologia empírica contemporânea.

Palavras-Chave:
Doutrina dos tipos; Fenomenologia do querer; causalidade; moral

Abstract

The article intends to make explicit how Nietzsche, on the basis of an examination of the wanting phenomenology, composes an argument for his revisionist thesis that our wanting experience does not trace a real causal relation with our acts, the result of this being the breakdown of very ideia of moral responsibility in the direction requried by incompatibilists theories of will. An important premise of Nietzsche’s argument depends on a Theory of Types, according to which all our conscious thinkings have an epiphenomenical statute regarding unconscious psychology and agent’s physiology, which in turn traces to psychophysical types to which every individual must be linked. Finally it attempts to show that Nietzschean theory of will anticipates some results of contemporary empirical psychology.

Keywords:
Doctrine of Types; phenomenology of willing; causality; moral

Que Nietzsche tenha posições polêmicas sobre a natureza e a liberdade da vontade é algo bem conhecido1 1 Ao discutir a “teoria da vontade” de Nietzsche estou interessado na noção de “vontade” familiar à filosofia da ação em geral, tanto contemporânea quanto histórica; isto é, a ideia de uma faculdade humana, qualquer que seja seu caráter mais preciso, que está em algum tipo de relação necessária com a ação. Tal faculdade pode ela mesma ser causalmente determinada, ou então ela pode ser autônoma em relação à ordem causal que a antecede; seu status pode envolver questões sobre responsabilidade moral, ou tal faculdade pode simplesmente não existir. Uma teoria da vontade é uma teoria que lança alguma luz sobre esses temas. Esclareço desde já que este artigo não tem como objeto todo e qualquer uso da palavra “vontade” no corpus da obra de Nietzsche, uma vez que esses usos são bastante variados, e muitos deles têm pouco a ver com as tradicionais questões filosóficas sobre a vontade a que acabo de me referir. . Contudo, que suas posições sejam de grande interesse não é algo tão frequentemente reconhecido. Nietzsche antecipa e oferece suporte argumentativo para a nova tendência de incompatibilismo não-libertário defendido por filósofos como Derek Pereboom (2001PEREBOOM, Derk. Living Without Free Will Cambridge: Cambridge University Press, 2001.) e Galen Strawson (1994STRAWSON, Galen. “The Impossibility of Moral Responsibility”. In: Philosophical Studies 75, p. 5-24, 1994.) - a posição segundo a qual a liberdade da vontade é incompatível com o “determinismo” e que não há perspectiva de uma descrição satisfatória da mesma fora da ordem causal. Além disso, sua teoria da vontade tem sido corroborada por pesquisas recentes sobre a vontade desenvolvidas pela psicologia empírica (ver Wegner 2002WEGNER, Daniel M. The Illusion of Conscious Will Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2002.). Como um filósofo naturalista, Nietzsche via seus empreendimentos teóricos como empreendimentos que deveriam avançar em conjunto com a investigação empírica (Leiter 2002LEITER, Brian. Nietzsche on Morality London: Routledge, 2002., p. 6-11), e conforme convém à sua autodesignação como o “primeiro psicólogo”, Nietzsche antecipou resultados que os psicólogos só alcançaram um século depois.

No aforismo 124 de Aurora2 2 As referências a Nietzsche serão os acrônimos padrões em língua portuguesa para suas obras, antecedidos das iniciais no original alemão: Aurora (M/A), A Gaia Ciência (FW/GC), Além do Bem e do Mal (JGB/ABM), Crepúsculo dos Ídolos (GD/CI), etc. As traduções utilizadas serão as de Paulo César de Souza, com modificações quando conveniente, a fim de conferir uniformidade à utilização dos termos no texto. (N. T.) , Nietzsche estabelece as principais questões que devem nos ocupar aqui na nossa tentativa de entender sua teoria da vontade. Nietzsche escreve:

Rimos daquele que saiu de seu aposento no minuto em que o Sol deixa o dele, e diz: “Eu quero que o Sol nasça”; e daquele que não pode parar uma roda e diz: “Eu quero que ela rode”; e daquele que no ringue de luta é derrubado, e diz: “Estou aqui deitado, mas eu quero estar aqui deitado!”. No entanto, apesar de toda a risada, agimos de maneira diferente de algum desses três, quando usamos a expressão “eu quero”? (M/A 124, KSA 3.116)

Considero como ponto pacífico que a última questão seja meramente retórica, e que a resposta esperada seja: “Não, no fim das contas não há diferença.” Caso alguém tenha se deixado confundir pela forma interrogativa empregada por Nietzsche (e, lamentavelmente, alguns intérpretes têm sido induzidos ao erro com alguma frequência em outras ocasiões)3 3 Cf. Owen e Ridley (2003, p. 70-71), que, ao que tudo indica, confundem questões retóricas com questões genuínas, talvez devido a certa propensão a ler Nietzsche de forma demasiado literal, conjugada com falta de atenção a outras evidências textuais discutidos em Leiter (1998, 2002), assim como no presente artigo. Em verdade eu acabei por mudar de posição em relação à natureza do epifenomenalismo de Nietzsche, embora não tenha mudado de posição quanto a seu fatalismo. Retomo as críticas de Owen e Ridley abaixo, na extensa nota de número 11. , outras evidências textuais serão aduzidas em breve4 4 O próprio Nietzsche esclarece a questão alguns aforismos adiante na mesma obra, ao observar “que realmente não somos responsáveis por nossos sonhos - mas tampouco por nossa vigília” (M/A 128, KSA 3.117). , de modo a tornar claro que quando agimos e dizemos “eu quero” não é diferente e nem menos ridículo do que quando aquele “que saiu do seu aposento no minuto em que o Sol deixa o dele […] diz: 'Eu quero que o Sol nasça”.

Se essa analogia de fato se sustenta, então se segue que a experiência do querer que precede uma ação não rastreia uma relação causal real: a experiência do querer é epifenomenal (em um sentido a ser especificado) com respeito a ação. Como Nietzsche observa na Gaia Ciência, “basta [a uma pessoa] o sentimento da vontade […] para a suposição de causa e efeito” (FW/GC 127, KSA 3.482), mas cabe a Nietzsche o ônus da prova: seu argumento terá de mostrar que essa suposição é falsa. Desse modo, uma descrição adequada da teoria nietzschiana da vontade e da ação exige o esclarecimento de três pontos: primeiro, a fenomenologia do “querer” uma ação, i. é, a experiência que temos e que nos leva (causalmente) a conceber a nós mesmos como exercendo nossa vontade (a dizer “eu quero”); segundo, os argumentos de Nietzsche a favor de sua tese de que as experiências destacadas pela fenomenologia não estão causalmente conectadas com a ação resultante (ou, dito de outro modo, não estão causalmente conectadas de modo a assegurar a atribuição de responsabilidade moral); e terceiro, a explicação fornecida por Nietzsche para a verdadeira gênese causal da ação. Em relação esse último aspecto, vamos voltar nossa atenção para alguns trabalhos recentes em psicologia empírica que, de fato, justificam o ceticismo de Nietzsche em relação à suposição de que nossa “sensação” da vontade seja um guia confiável para a causação da ação.

A fenomenologia da vontade

Nietzsche reconhece que nós frequentemente nos sentimos como se estivéssemos exercitando uma vontade livre, mas ele se distingue dos filósofos na medida em que procura investigar minuciosamente essa experiência, decompondo-a em suas partes constituintes. A explicação resultante é assumidamente revisionista - no fim das contas, ela não visa sustentar a confiabilidade epistêmica dos sentimentos envolvidos - mas ela é, segundo Nietzsche, a descrição correta desses sentimentos. A discussão chave aparece no aforismo 19 de Além do Bem e o Mal, cuja descrição da fenomenologia do querer comporta uma longa citação:

[…] em todo querer existe, primeiro, uma pluralidade de sensações [Gefühlen], a saber, a sensação do estado que se deixa, a sensação do estado para o qual se vai, a sensação desse “deixar” e “ir” mesmo, e ainda uma sensação muscular concomitante, que, mesmo sem movimentarmos “braços e pernas”, entra em jogo por uma espécie de hábito, tão logo “queremos”. Portanto, assim como sentir, aliás muitos tipos de sentir, deve ser tido como ingrediente do querer, do mesmo modo, e em segundo lugar, também o pensar: em todo ato da vontade há um pensamento que comanda; - e não se creia que é possível separar tal pensamento do “querer”, como se então ainda restasse vontade! Em terceiro lugar, a vontade não é apenas um complexo de sentir e pensar, mas sobretudo um afeto [ein Affekt]: aquele afeto do comando. O que é chamado “livre-arbítrio” é, essencialmente, o afeto de superioridade em relação àquele que tem de obedecer: “eu sou livre, 'ele' tem de obedecer” - essa consciência se esconde em toda vontade […] Um homem que quer - comanda algo dentro de si que obedece, ou que ele acredita que obedece (JGB/BM 19, KSA 5.31)

Utilizemo-nos de um exemplo para ilustrar a explicação de Nietzsche. Sentado em frente ao computador, penso se devo descer ao andar de baixo para ver o que as crianças estão fazendo. Eu “decido” que devo, e então começo a me levantar da cadeira. Eu sinto como se eu tivesse querido me movimentar: eu sinto o movimento de me afastar da mesa e do computador, o movimento em direção à porta, e eu sinto também o movimento físico ou muscular. Chamemos todo esse complexo de sensações, a fim de facilitar a referência, de “sensações corporais” [bodily feelings].

Essas sensações corporais não são, porém, suficientes para a experiência da vontade: elas são meramente qualitativas, isto é, apenas a sensação “bruta” de afastar-se de ou de mover-se em direção a algo, a contração dos músculos, os membros se movendo. Ainda nos falta o “pensamento de comando” - como Nietzsche o chamou, e que devo seguir usando -, a saber, o pensamento “eu vou levantar da mesa e ir ao andar de baixo” ou algum substituto adequado. Mas de acordo com Nietzsche, as sensações corporais e o pensamento de comando ainda não são o bastante para a experiência de querer. Essa é, talvez, a principal alegação de Nietzsche. A experiência do querer é essencialmente, de acordo com Nietzsche, a meta-sensação - o “afeto”, como ele o chama - de comando. “Afeto” não está sendo usado aqui no sentido freudiano de energia ou “carga” psíquica, mas sim como algo próximo a sentir novamente. Por “afeto de comando”, Nietzsche designa a sensação de que o pensamento (isto é, o conteúdo proposicional, tal como “eu vou me levantar da mesa e ir ao andar de baixo”)5 5 Pode ser mais conveniente colocar o conteúdo proposicional na forma imperativa, de modo que ele não soe meramente como uma predicação! provoca as outras sensações corporais, isto é, as sensações de “afastar-se de”, “em direção a”, em resumo, sensações de movimento; e que este comando é quem eu sou. Ao nos identificarmos com o pensamento de comando - ao tomar ele como sendo “quem eu sou” (nessa ocasião) - nos sentimos superiores, experienciamos esse afeto de superioridade. Desse modo, uma pessoa tem a “experiência do querer” quando ela identifica a si mesma com determinado conteúdo proposicional (o pensamento de comando “eu vou me levantar da mesa e ir ao andar de baixo”) que ela toma como sendo sensações corpóreas, isto é, as sensações que ligam o “afastar-se de”, o “em direção a”, e as sensações musculares; essa identificação produz a meta-sensação de superioridade que é a sensação do querer. Em resumo, alguém tem a experiência do querer quando sente como se as sensações qualitativas do corpo estivessem obedecendo ao pensamento, e que esse pensamento de comando é “quem eu sou”.

Como Nietzsche reconhece, há algo paradoxal aqui, visto que, como ele observa no mesmo aforismo de Além do Bem e do Mal:

[…] somos ao mesmo tempo a parte que comanda e a que obedece, e como parte que obedece conhecemos as sensações de coação, sujeição, pressão, resistência, movimento, que normalmente têm início logo após o ato da vontade; [...] por outro lado, temos o hábito de ignorar e nos enganar quanto a essa dualidade, através do sintético conceito do “eu” […] (JGB/BM 19, KSA 5.31)

Em outras palavras, falar de “eu” - como em “eu vou ir ao andar de baixo” - obscurece um fato elementar: é meu corpo que está “obedecendo” minha vontade, de modo que “eu” sou também aquele que obedece, tanto quanto aquele que comanda. Evidentemente nós não experienciamos ou pensamos nisso dessa forma: nós identificamos o “eu” com a sensação do comando, não a de obedecer. Assim, nossa experiência do “eu”, nossa identificação do “eu” com o pensamento do comando, requer ela mesma uma explicação: por que não identificamos a nós mesmos com as sensações e movimentos comandados? Por que, em vez disso, identificamos a nós mesmos com a superioridade do pensamento que comanda?

Aqui está o que Nietzsche oferece a título de uma explicação, nessa mesma passagem:

[…] o querente acredita, com elevado grau de certeza, que vontade e ação sejam, de algum modo, a mesma coisa - ele atribui o êxito, a execução do querer, à vontade mesma, e com isso goza de um aumento da sensação de poder que todo êxito acarreta. “Liberdade da vontade” é a expressão para o multiforme estado de prazer do querente, que ordena e ao mesmo tempo se identifica com o executor da ordem […] (JGB/BM 19, KSA 5.31)6 6 E quanto às ações malsucedidas, que presumivelmente alguém pode experienciar como livremente queridas, embora não “realizadas”? Suponhamos, por exemplo, que eu decida levantar-me da frente do computador para ver o que as crianças estão fazendo, mas não consiga fazer isso (talvez uma das crianças tenha me colado na cadeira!). Embora a ação seja malsucedida, todos os componentes necessários para ter a experiência da vontade livre estão presentes (isto é, eu posso sentir os movimentos corporais necessários, mesmo que eles não venham a ser completamente realizados). Casos mais complicados envolvem (como foi apontado por um dos pareceristas) fadiga extrema ou paralisia, embora pelo menos no primeiro caso não seja implausível que, como no caso da ação malsucedida, eu possa ter alguma sensação muscular distintiva, mesmo que eu não venha a mover meus membros. A fenomenologia proposta por Nietzsche pode não funcionar para o caso de pessoas com paralisia, mas nós teríamos que saber mais sobre o tipo de experiência que alguém com paralisia tem, se é que tem, ao querer movimentar os membros paralisados.

Nós nos identificamos, portanto, com a sensação de comando em vez da sensação de obediência, porque identificar-se com a primeira aumenta o prazer (é prazeroso sentir o corpo “obedecendo”). Colocada dessa forma a explicação pode parecer claramente hedonista. Mas essa seria uma conclusão muito apressada, uma vez que a explicação real, como frequentemente ocorre em Nietzsche, é formulada em termos de sentimentos de poder que, por sua vez, produzem sensações prazerosas. Não precisamos decidir aqui sobre a primazia do desejo por prazer ou do desejo por poder como o mecanismo explicativo fundamental7 7 Na Gaia Ciência, Nietzsche aparentemente faz a robusta afirmação a favor do hedonismo de que para todo querer “uma representação do prazer e desprazer é necessária” (FW/GC 127, KSA 3.482). Infelizmente ele não desenvolve o pensamento, e, dessa forma, não é claro se a representação por si mesma não pode ser induzida por uma experiência de poder: em qualquer caso, nada na discussão exclui essa possibilidade. ; para a fenomenologia, tudo o que importa é o fato de que haja um sentimento de prazer presente na sensação de querer, mesmo se esse sentimento deriva de um sentimento de poder.

Temos agora a descrição da fenomenologia do querer fornecida por Nietzsche em Além do Bem e do Mal (e devo acrescentar que não conheço uma descrição mais sistemática no corpus de sua obra que conflite com essa descrição): sentimos como se estivéssemos exercendo uma vontade livre quando nos identificamos com o “pensamento de comando”, que sentimos como superior a e como sendo obedecido pela miríade de experiências qualitativas envolvidas no movimento - as sensações corporais. Nós nos identificamos com esse pensamento de comando por causa dos sentimentos de prazer e poder que surgem do “afeto da superioridade” presente nesta identificação.8 8 No que se segue, tomarei por garantida a precisão da interpretação nietzschiana da fenomenologia do querer.

Por que a fenomenologia não rastreia uma relação causal

A ideia crucial na teoria nietzschiana da vontade é que a fenomenologia do querer, não importa o quão vívida ela seja, não espelha ou reflete ou - como direi no que se segue - rastreia uma relação causal real (ou, mais precisamente, uma relação causal que baste para assegurar a atribuição de responsabilidade moral, uma qualificação crucial a que retornarei em breve). Ou seja, o pensamento de comando com o qual nos identificamos porque ele nos dá uma sensação de superioridade não é, de fato, idêntico a qualquer coisa que realmente esteja numa relação causal com a ação resultante.

Como Nietzsche escreve na longa passagem de Além do Bem e o Mal que examinamos:

[…] o querente acredita, de boa-fé, que o querer basta para agir. Como, na grande maioria dos casos, só houve querer quando se podia esperar também o efeito da ordem - isto é, a obediência, a ação -, a aparência traduziu-se em sensação, como se aí houvesse uma necessidade de efeito; em suma, o querente acredita, com elevado grau de certeza, que vontade e ação sejam, de algum modo, a mesma coisa - ele atribui o êxito, a execução do querer, à vontade mesma, e com isso goza de um aumento da sensação de poder que todo êxito acarreta. (JGB/BM 19, KSA 5.31)

Expresso em termos quase humianos, Nietzsche alega que devido ao fato de que o complexo das sensações corporais, o pensamento de comando, e a meta-sensação estarem em conjunção constante com as ações corporais que as sucedem, nós naturalmente inferimos (uma vez que isso aumenta o “sentimento de poder”) que a vontade causou as ações subsequentes. Então como, de acordo com Nietzsche, a fenomenologia nos confunde?

Cabe lembrar que a experiência da vontade, segundo Nietzsche, tem três componentes: as sensações corporais, o pensamento de comando e a meta-sensação de superioridade, i. é, a sensação de que o pensamento comanda tudo o mais. É a meta-sensação (talvez o prazer ligado à meta-sensação) que nos leva a nos identificarmos com o pensamento em vez das partes do nosso corpo que são comandadas.

Ao desacreditar a fenomenologia como guia confiável para a causação, o alvo de Nietzsche é sobretudo o pensamento de comando, e não as sensações corporais ou a meta-sensação. Seu argumento é brilhante em sua simplicidade. Ele recorre a outro elemento de nossa fenomenologia, a saber, a experiência de que “um pensamento vem quando 'ele' quer, e não quando 'eu' quero” (JGB/BM 17, KSA 5.30). O alvo de Nietzsche nesta passagem em particular é a célebre doutrina cartesiana do “penso, logo existo”. Nietzsche assinala, porém, que do fato de que há algo pensando não se segue que este algo seja “eu”, isto é, que algum objeto ou agente esteja pensando; e disso não se segue, portanto, que o “eu” exista. Conforme Nietzsche:

[…] é um falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito “eu” é a condição do predicado “penso”. Isso pensa: mas que este “isso” seja precisamente o velho e decantado “eu” é, dito de maneira suave, apenas uma suposição, uma afirmação, e certamente não uma “certeza imediata”. E mesmo com “isso pensa” já se foi longe demais; já o isso contém uma interpretação do processo, não é parte do processo mesmo. (JGB/BM 17, KSA 5.30)

Mesmo que o alvo explícito dessa passagem particular seja o “eu” cartesiano, o contexto em torno dela deixa claro seu alvo real, qual seja, a vontade. O aforismo precedente de Além do Bem e do Mal, por exemplo, trata ambos “eu penso” e “eu quero” como sendo exemplos comuns, mas equivocados, de “certezas imediatas”; e o aforismo subsequente retorna explicitamente a um ataque à “liberdade da vontade”, dando imediatamente sequência à longa passagem na qual nos concentramos, o aforismo 19 de Além do Bem e do Mal.

Ora, o que a alegação fenomenológica de Nietzsche significa neste contexto? O que significa dizer que um pensamento vem quando “ele” quer, e não quando “eu” quero? Por estarmos falando de pensamentos que “vêm”, tomo a afirmação como se referindo a pensamentos que vêm à consciência. O ponto de Nietzsche é que nossos “pensamentos” surgem na consciência sem que os tivéssemos querido: “ein Gedanke kommt, wenn ‘er’ will, und nicht wenn ‘ich’ will.” Aqui precisamos ser cautelosos, uma vez que, no fim das contas, Nietzsche está engajado em um ataque à existência da vontade, de modo que ele não pode crer que há algum sentido no qual eu poderia genuinamente querer trazer um pensamento à existência. Mas ele também não pode, é claro, pressupor isso como uma conclusão sem incorrer numa petição de princípio. Ao invés disso, nós devemos tomar as afirmações sobre “querer” como se referindo à experiência do querer, a qual Nietzsche, como vimos, admite que é real o bastante.

Desse modo, o ponto que Nietzsche quer destacar com seu apelo à fenomenologia vem a ser este: um “pensamento” que surge na consciência não é precedido pela fenomenologia do querer descrita por ele, isto é, não há um “pensamento de comando” precedendo o pensamento consciente ao qual a meta-sensação (o afeto de superioridade) se conecte (mesmo se houvesse, em alguma instância, tal pensamento de comando, isto apenas criaria uma regresso, visto que nem todo pensamento de comando seria precedido pela experiência da vontade). Uma vez que não experienciamos nossos pensamentos como voluntários [as willed] do mesmo modo como experienciamos algumas ações como voluntárias [willed actions], segue-se que nenhum pensamento vem quando “eu quero”, pois a experiência à qual o “eu quero” se conecta inexiste.9 9 Eu concordo com Katsafanas (2005, p. 11-12) quanto ao fato de JGB/BM 17 não suportar a tese do caráter epifenomênico da consciência per se, como defendi erroneamente em Leiter (1998); mas essa passagem suporta, conforme defendo aqui, o caráter epifenomênico daquelas experiências relacionas ao querer.

Antes de tudo cabe notar a estrutura perspicaz desse argumento, uma vez que sua crítica é de todo interna à perspectiva do agente que toma a si mesmo como possuindo uma vontade. O que Nietzsche faz é assinalar que o critério do “querer” que o próprio agente toma como um guia confiável para uma relação causal - ou seja, a fenomenologia descrita acima - está, na verdade, completamente ausente no caso dos pensamentos (ou, ao menos, no caso dos pensamentos que dão origem a uma cadeia inferencial de pensamentos que envolvem a experiência do querer). Enquanto questão de introspecção, parece-me que Nietzsche está plenamente correto sobre esse ponto. Se não experienciamos nossos pensamentos como voluntários, disso decorre que as ações que se seguem de nossa experiência do querer (que incluem aqueles pensamentos) não são suficientemente causadas a ponto de assegurar a atribuição de responsabilidade moral.

Chegamos a essa conclusão de forma bastante abrupta; vamos parar por um momento para tentar estabelecer com mais clareza como chegamos a ela. A conclusão de Nietzsche - de que nossa experiência do querer em verdade não nos torna moralmente responsáveis por nossas ações - requer duas premissas. A primeira é esta: um componente da experiência da vontade - a saber, o pensamento de comando - é, ele mesmo, causalmente determinado em algum ponto por algo que não é a vontade, uma vez que pensamentos que chegam à consciência são causalmente determinados por algo que não é a vontade10 10 Eu utilizarei “causado” e “causalmente determinado” de forma intercambiável, sem que com isso queira antecipar julgamento sobre questões de causação probabilística - questões que, em todo caso, Nietzsche desconhecia. (voltaremos a tratar em breve do que seja esse “algo a mais”). A segunda premissa - que até o momento não foi nem formulada nem defendida na nossa discussão sobre a teoria nietzschiana da vontade - é que ser causa de si mesmo (causa sui, conforme a denominação de Nietzsche) é uma condição necessária para a responsabilidade (cf. JGB/BM 21)11 11 Owen & Ridley objetam (2003, p. 73-74) que a sequência do aforismo (JGB/BM 21) enfraquece a posição destacada no texto, e isso por duas razões. Primeira, escrevem eles, “seria um erro atribuir a Nietzsche […] a alegação de que a vontade não é livre, no sentido de ser causalmente determinada, visto que ele explicitamente rejeita essa posição” (p. 73). Mas em que sentido precisamente Nietzsche “rejeita” essa posição? Owen & Ridley omitem o texto relevante no qual, como discuti em Leiter (2002, p. 23-24), fica claro que o aparente ceticismo de Nietzsche não tem nada que ver com o fato de que a vontade é causalmente determinada, mas com o fato de que algo é causalmente determinado: a esse respeito, Nietzsche ainda está, em JGB/BM 21, preso à visão neokantiana (que ele retira de sua leitura de Friedrich Lange) de que “causa e efeito” são características exclusivas do mundo fenomênico e não das “coisas em si mesmas”. Se Nietzsche abandona essa visão - como mesmo Owen & Ridley reconhecem ser o caso (2003, p. 74) - então o argumento de Nietzsche contra a possibilidade de algo ser causa sui permanece intocado: se nada no mundo “fenomênico” pode causar a si mesmo, e o adjetivo “fenomênico” não tem mais função alguma, então se segue que nada pode ser “causa de si mesmo” simpliciter. Owen e Ridley, em resposta aos meus comentários sobre um esboço inicial de seu ensaio, parecem reconhecer esse ponto, o que nos leva à segunda objeção, a qual eu cito: “Da rejeição por parte de Nietzsche da ideia de causa sui não se segue que ao invés disso ele abrace ou deva abraçar plenamente o determinismo clássico, visto que, como Nietzsche deixa claro, ele considera tanto a ideia de causa sui quanto o determinismo clássico como sintomas do mesmo ‘superlativo’ contrassenso ‘metafísico’ […] (mesmo concedendo que Nietzsche rejeita o ceticismo neokantiano de Lange em relação à realidade da causação), se, como Leiter aceita, o argumento contra a noção de causa sui como parte do ‘superlativo contrassenso metafísico’ ainda se sustenta mesmo depois da posição neokantiana ter sido abandonada, então ocorre o mesmo com o argumento contra o determinismo clássico. Em suma, que mais tarde Nietzsche tenha vindo a aceitar a realidade da causação não afeta em nada o aspecto puramente lógico que depreendemos da passagem em questão, ou seja, que o oposto de um contrassenso é ele mesmo um contrassenso (Owen e Ridley, 2003, p.74)”. Essa resposta é problemática em vários níveis. Primeiro, eu certamente não alego que Nietzsche abraça “plenamente o determinismo clássico” - na verdade eu distingo explicitamente o determinismo clássico do fatalismo de Nietzsche (Leiter, 1998, p. 224-225; 2002, p. 82-83) - embora um equívoco de outra ordem (ao qual retornarei em breve) possa explicar por que Owen & Ridley pensam que este resvala naquele. Segundo, Nietzsche não fala de um “superlativo contrassenso metafísico”; ao invés disso, ele diz que a ideia de causa sui reflete o “anseio por 'liberdade' na superlativa acepção metafísica”, ou seja, em termos contemporâneos, algum tipo de liberdade em sentido libertário. Mesmo concedendo que Nietzsche julgue a noção de causa sui como um contrassenso - ele diz que ela é “a maior autocontradição que já foi concebida”, apesar de não chamá-la de “superlativo contrassenso metafísico” - simplesmente não se segue, logicamente ou de qualquer outra maneira, que uma doutrina oposta seja também um contrassenso, a menos que a doutrina oposta compartilhe a premissa que torna a primeira autocontraditória. Mas o que torna a ideia de causa sui inconcebível é a ideia de que alguém possa “puxar a si mesmo pelos cabelos de dentro do pântano do nada em direção à existência” (JGB/BM 21, KSA 5.35), e essa é precisamente a ideia rejeitada pela posição que afirma que a vontade é causalmente determinada. O suposto argumento de Nietzsche contra essa última doutrina depende inteiramente do ceticismo neokantiano sobre a causação que Owen e Ridley admitem que ele abandona mais tarde. Isso, por sua vez, explica por que não havia sentido em citar aquele trecho do aforismo: o argumento contra a “não-liberdade da vontade” é um argumento ruim, afinal depende de uma doutrina neokantiana que o próprio Nietzsche vem a repudiar. Contrastando com isso, o argumento contra a noção de causa sui é sólido por si só, independente do ceticismo neokantiano, e é um argumento consistente com outras afirmações que Nietzsche faz nesta e nas obras subsequentes (por razões semelhantes, não há razão para tomar de modo particular e seriamente a afirmação de que “na vida real isso é apenas uma questão de vontades fortes e vontades fracas”, uma vez que nesse aforismo a afirmação é motivada inteiramente pelo ceticismo neokantiano com relação à causação que Nietzsche abandona). No que diz respeito à razão pela qual Owen e Ridley assimilam “determinismo clássico” e o fatalismo de Nietzsche (ou essencialismo causal, como o denominei), a resposta é sugerida pela afirmação dos dois autores de que “essencialismo causal [é] […] a visão segundo a qual, a qualquer momento dado, a trajetória da vida de uma pessoa […] é determinada por fatos relativos ao tipo [type-facts] de pessoa que ela é, somados ao ambiente em que vive; uma visão que, dado que os fatos relativos ao tipo [type-facts] somados ao ambiente equivalem à totalidade dos fatos causalmente relevantes, é indistinta do determinismo clássico” (Owen e Ridley, 2003, p. 74). Ao contrário do que afirmam Owen e Ridley, o essencialismo causal (que eles caracterizam de forma correta) ainda é discernível do determinismo clássico, visto que este requer que haja “leis da natureza”, e é precisamente devido ao fato de Nietzsche ser um empirista radical e cético quanto à leis que ele evita a linguagem do determinismo clássico. A visão “oficial” de Nietzsche (por estranho que isso possa parecer) é que nosso mundo é um mundo de necessidades de ocorrências particulares [token necessities], e não necessidades legais [lawful], e que isso é verdadeiro mesmo se as pessoas são de diferentes tipos: os tipos interagem com o ambiente de um modo que não é governado por leis. .

Uma vez tendo mostrado que o “pensamento de comando” que é parte da experiência da vontade não é causa sui, se segue que a vontade da qual ele faz parte não é causa sui, e, deste modo, qualquer ação que se seguir da experiência de “querer” não poderia sustentar a atribuição de responsabilidade moral.

É preciso reconhecer que Nietzsche simplesmente assume que liberdade da vontade e responsabilidade moral são incompatíveis com a determinação causal da vontade. Entretanto, não é difícil entender por que ele toma essa incompatibilidade por certa: ela está profundamente enraizada no pensamento moral e religioso. Conforme Galen Strawson observa, a ideia incompatibilista de responsabilidade “foi [uma ideia] central por um longo tempo nas tradições religiosas, morais e culturais do Ocidente” (Strawson, 1994STRAWSON, Galen. “The Impossibility of Moral Responsibility”. In: Philosophical Studies 75, p. 5-24, 1994., p. 8). Indiscutivelmente, apenas alguns filósofos pensam que a necessidade de um agente causar a si mesmo seja supérflua ou algo que pode ser disfarçado por meio de alguns astutos movimentos dialéticos (e, é claro, mesmo entre filósofos a insatisfação com o compatibilismo é muito difundida: cf, por exemplo, Nagel (1993, p. 113)NAGEL, Thomas. The View from NowhereNew York: Oxford University Press, 1986. para um exemplo notável).

O “argumento a partir da fenomenologia dos pensamentos” (como vou chamá-lo) -, isto é, o argumento que afirma que os pensamentos vêm quando eles querem, não quando eu quero - não é a única consideração que influencia a conclusão de Nietzsche de que a vontade é causalmente determinada. Isso na verdade é algo positivo, uma vez que esse argumento não exclui a possibilidade de que nossa experiência do “querer” nos engane quanto à nossa vontade real, e que essa vontade real é que está de fato numa relação causal apropriada com as ações. Evidentemente, essa “vontade real”, se existir, teria de ser uma vontade que o agente pode reivindicar como sua própria vontade, se devemos poder onerar o agente com a responsabilidade pela ação que ele produz. Mas retornaremos a esse assunto abaixo.

Para ver qual pode ser o outro argumento a favor da epifenomenalidade da vontade, nós precisamos lembrar - como mostrei em outro lugar (Leiter, 2002LEITER, Brian. Nietzsche on Morality London: Routledge, 2002., p. 63-71) - que Nietzsche é muito influenciado pela ideia popular entre os materialistas alemães da década de 1850 e subsequentes, de que os seres humanos são fundamentalmente organismos corporais, criaturas cuja fisiologia explica a maioria ou mesmo toda a sua vida e comportamento conscientes. Nietzsche acrescenta a essa ideia materialista a ideia proto-freudiana de que a vida psíquica inconsciente da pessoa é também de suma importância na determinação causal da vida e comportamento conscientes12 12 A posição “oficial” de Nietzsche parece ser a de que a fisiologia é primária, mas na maior parte das vezes ele se concentra em alegações psicológicas, pela razão óbvia de que ele não é um fisiologista! . Dessa forma, como tenho defendido, Nietzsche aceita o que chamaremos de “Doutrina dos Tipos” (Leiter, 1998LEITER, Brian. “The Paradox of Fatalism and Self-Creation in Nietzsche”, in Willing and Nothingness: Schopenhauer as Nietzsche’s Educator, ed. C. Janaway (Oxford: Oxford University Press ), 1998.), de acordo com a qual: “Cada pessoa tem uma constituição psicofísica fixada que a define como um tipo particular de pessoa”.

Chamemos os fatos psicofísicos aqui relevantes de “fatos relativos ao tipo” [type-facts]. Fatos relativos ao tipo [type-facts], para Nietzsche, ou são fatos fisiológicos da pessoa, ou então são fatos sobre seus impulsos e afetos inconscientes. A tese, portanto, é que cada pessoa tem certos traços físicos e fisiológicos imutáveis que constituem o “tipo” de pessoa que ele ou ela é. Embora essa não seja, evidentemente, a terminologia exata de Nietzsche, essas são ideias muito recorrentes em seus escritos.

Um argumento de forma tipicamente nietzschiana, por exemplo, é o seguinte: as crenças teóricas de uma pessoa são melhor explicadas em termos de suas crenças morais; suas crenças morais, por sua vez, são melhor explicadas em termos dos fatos naturais sobre o tipo de pessoa que ela é (i. é., em termos dos fatos relativos ao tipo [type-facts]). Tendo isso em conta, Nietzsche diz:

“toda grande filosofia foi até o momento a confissão pessoal de seu autor, uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas”; assim, para realmente compreender essa filosofia, alguém deve perguntar “a que moral isto (ele) quer chegar?” (JGB/BM 6, KSA 5.19).

Além disso, a moralidade abraçada por um filósofo dá “o decisivo testemunho de quem ele é” - i é., quem ele essencialmente é - ou seja, dos “impulsos mais íntimos de sua natureza” (JGB/BM 6, KSA 5.19). De fato, a explicação das crenças morais de uma pessoa em termos dos fatos psicofísicos sobre ela é um tema recorrente em Nietzsche: “[...] morais não passam de uma semiótica dos afetos” (JGB/BM 187, KSA 5.107), diz ele; “Podemos ver todas as […] respostas à questão do valor da existência, antes de tudo como sintomas de determinados corpos” (FW/GC Prólogo 2, KSA 3.347); “Juízos morais”, ele afirma, são “sintomas e linguagem de símbolos que revelam o processo da prosperidade ou decadência fisiológica” (Nachlass/FP 2 [165], 1885-1886, KSA 12.147); “[...] também nossos juízos e valorações morais são apenas imagens e fantasias sobre um processo fisiológico de nós desconhecido” (M/A 119, KSA 3.111), de modo que “[...] é sempre necessário […] expor o fenômeno fisiológico por trás da predisposição e preconceito moral” (M/A 542, KSA 3.309); “[...] nossa moral da simpatia […] é mais uma expressão da superexcitabilidade fisiológica” (GD/CI, Incursões de um extemporâneo, 37, 6.136); ele atribui o ressentimento - e a moralidade que surgiu dele - a uma “verdadeira causação fisiológica” (GM/GM, III, 15, KSA 5.372); no prefácio da Genealogia, Nietzsche resume bem a ideia: “nossas ideias, nossos valores, nossos sins e nossos nãos e ses e quês - todos relacionados e relativos uns aos outros, e testemunhas de uma vontade, uma saúde, um terreno, um sol” (GM/GM, Prólogo, 2, KSA 5.248).

Podemos ver a Doutrina dos Tipos de Nietzsche em pleno funcionamento na sua teoria da vontade quando passamos de Aurora e Além do Bem e do Mal para outra discussão importante acerca da vontade em uma obra mais tardia do corpus nietzschiano: a seção “Os quatro grandes erros”, de Crepúsculo dos Ídolos. Três dos quatro erros discutidos por Nietzsche se relacionam à causação: ele os denomina “o erro de confundir causa e efeito” (1-2), “o erro da falsa causalidade” (3), e “o erro das causas imaginárias” (4-6). O quarto grande erro, por contraste, é “o erro da vontade livre” (7-8), embora não haja, de fato, nas seções que concluem o capítulo, nenhum argumento a favor da tese de que a liberdade da vontade é um erro (ao invés disso, Nietzsche oferece uma explicação desmistificadora de por que as pessoas poderiam estar motivadas a crer na liberdade da vontade independentemente de sua realidade). A inferência que o leitor supostamente faz é que o erro da “vontade livre” se segue dos erros sobre a causação discutidos nos aforismos precedentes. Se nós pudermos reconstruir o argumento que emerge dessas seções, então teremos identificado a outra razão principal que Nietzsche tem para considerar a vontade como um epifenômeno e, portanto, para rejeitar a liberdade da vontade.13 13 Na seção final do artigo devo retornar à ambiguidade no que concerne à força da doutrina epifenomenalista tal como articulada até o momento.

O primeiro erro, o de “confundir causa e efeito”, pode ser esquematizado da seguinte maneira: dados dois efeitos regularmente correlacionados E1 e E2 e sua respectiva “causa profunda”, confundimos causa e efeito quando tomamos E1 como causa de E2, esquecendo de todo a existência de uma causa profunda. Chamemos esse erro de “Cornarismo”, após ver o exemplo de que Nietzsche se utiliza:

[…] todos conhecem o livro do famoso Cornaro, em que ele recomenda sua exígua dieta como receita para uma vida longa e feliz […] Duvido que algum livro (excetuando-se, naturalmente, a Bíblia) tenha causado tanto mal [..] Razão para isso: a confusão entre o efeito e a causa. O bom italiano via em sua dieta a causa de sua longa vida: ao passo que a precondição para uma longa vida, a extraordinária lentidão do metabolismo, o baixo consumo, era a causa de sua exígua dieta. Ele não tinha a liberdade de comer pouco ou muito, sua frugalidade não era uma “livre-arbítrio”: ele ficava doente quando comia mais. (GD/CI, Os quatro grandes erros, 1, KSA 6.88)

Em outras palavras, o que explica tanto a dieta magra de Cornaro quanto sua longa vida é o mesmo fato fundamental sobre seu metabolismo. O erro de Cornaro era recomendar sua dieta para todos sem considerar o quanto os indivíduos diferem em relação ao metabolismo, sendo este o fato relativo ao tipo [type-fact] relevante neste contexto.

Contudo, mesmo se concedermos que as coisas são como Nietzsche as apresenta, isso não mostraria que não existe liberdade da vontade, a menos que o erro envolvido no caso de Cornaro se estenda para além de casos tais como o de dieta e longevidade. É exatamente essa a argumentação de Nietzsche, visto que na seção seguinte ele acusa, de modo bastante geral, a moralidade e a religião de incorrerem no Cornarismo. Segundo Nietzsche,

a fórmula geral que se encontra na base de toda moral e religião é: “Faça isso, não faça isso e aquilo - assim será feliz! Caso contrário...” Cornaro recomendava uma dieta magra para se ter uma longa vida; moralidade e religião prescrevem e proíbem certas condutas a fim de se ter uma vida feliz. No entanto, [Nietzsche diz]: […] um ser que vingou […] tem de realizar certas ações e receia instintivamente outras, ele carrega a ordem que representa fisiologicamente para suas relações com pessoas e coisas (GD/CI, Os quatro grandes erros, 2, KSA 6.89)

Desse modo, moralidade e religião são acusadas de cornarismo: a conduta que elas prescrevem e proíbem com a finalidade de causar uma “vida feliz” são, em verdade, efeitos de alguma outra coisa, a saber, a ordem fisiológica representada por um agente particular, um agente que (conforme diz Nietzsche) “tem de realizar certas ações”, assim como Cornaro tem de comer uma dieta magra (ele não é “livre para comer muito ou pouco”). Que alguém realize certas ações e que alguém tenha uma vida feliz são ambos efeitos de uma determinada ordem fisiológica. Se concedemos a Nietzsche a teoria dos tipos, então realmente há razão para pensar que o cornarismo também é uma característica da moralidade, uma vez que a moralidade é incapaz de reconhecer o papel crucial desempenhado pelos fatos relativos ao tipo [type-facts] na determinação não apenas do que fazemos, mas também de qual moral abraçamos.

Com isso chegamos ao próximo “erro”, o erro da “falsa causalidade”. Esse erro consiste em pensarmos que conhecemos o que é a causação em função de nossa confiança introspectiva no que tomamos como sendo os poderes causais de nossa própria vida mental. Nietzsche explica:

Acreditávamos ser nós mesmos causais no ato da vontade; aí pensávamos, ao menos, flagrar no ato a causalidade. Tampouco se duvidava que todos os antecedentia de uma ação, suas causas, deviam ser buscados na consciência e nela se achariam novamente, ao serem buscados - como “motivos”: de outro modo não se teria sido livre para fazê-la, responsável por ela. Afinal, quem discutiria que um pensamento é causado? Que o Eu causa o pensamento? (GD/CI, Os quatro grandes erros, 3, KSA 6.90)

Evidentemente nós já sabemos, a partir do argumento da fenomenologia dos pensamentos, que Nietzsche nega que os pensamentos sejam causados pelo “ego” ou por uma ação interna que seria “livre e responsável” por eles. E nessa seção do Crepúsculo dos Ídolos ele logo deixa claro que sua posição permanece inalterada:

O “mundo interior” é cheio de miragens e fogos-fátuos: a vontade é um deles. A vontade não move mais nada; portanto, também não explica mais nada - ela apenas acompanha eventos, também pode estar ausente. O que chamam de “motivo”: outro erro. Apenas um fenômeno superficial da consciência, um acessório do ato, que antes encobre os antecedentia de um ato do que os representa. […] Que resulta disso? Não há causas mentais absolutamente! (GD/CI, Os quatro grandes erros, 3, KSA 6.90)

Na última linha Nietzsche pode querer dizer somente que não há causas mentais conscientes (ou, ao menos, que não há causas mentais conscientes daquelas ações das quais a moralidade se ocupa).14 14 Katsafanas (2005) está correto, penso, ao objetar - contraLeiter (2002) e também Gilles Deleuze - que Nietzsche não pode sustentar que a consciência per se é epifenomênica, ainda que eu seja fundamentalmente cético em relação ao modo fascinante e frequentemente engenhoso como ele apresenta a posição de Nietzsche sobre a consciência, visto que ele toma muita liberdade com os textos em pontos cruciais (ele também faz com que a ideia freudiana de desejos inconscientes se torne ininteligível, uma vez que seu conteúdo tem de ser conceitualmente articulado, embora Freud estivesse bastante correto, a meu ver, em encontrar o germe dessa ideia em Nietzsche). Há, no entanto, a clara necessidade de individuar aqueles estados conscientes cuja eficácia causal é impugnada por Nietzsche. A interessante distinção feita por Katsafanas entre a epifenomenalidade do Ego (a “faculdade substantiva” da “consciência”) versus os estados mentais conscientes causalmente eficazes (aqueles estados mentais que se distinguem por seu conteúdo conceitualmente articulado) (2005, p. 13) poderia ser um modo de caracterizar a distinção que interessa aos propósitos de Nietzsche. A interpretação de Freud - na qual esses estados mentais que conjugam uma Ideia e um Afeto são os únicos que são causalmente determinados - não permite, pelo menos não de maneira óbvia, uma tradução para o uso nietzschiano. De fato, em outras passagens ele deixa explícito que o alvo dessa crítica é a ideia segundo a qual motivos conscientes fornecem uma explicação adequada para a ação15 15 Deve-se observar que o fato de que causas mentais conscientes não são adequadas para uma explicação de ações moralmente relevantes não significa que essas causas sejam irrelevantes para a melhor explicação. O que está em jogo na alegação de que não são adequadas é apenas a consideração de que elas são epifenomênicas em relação ao tipo [type-epiphenomenal], ou seja, sua relevância causal depende da relação que elas mantêm com causas fisiológicas ou inconscientes (agradeço a um parecerista anônimo por insistir nesse ponto). . Conforme ele escreve em Aurora: “Mas talvez estejamos habituados a não levar em conta todos esses fenômenos inconscientes [unbewusst], e cogitar na preparação de um ato somente na medida em que ela é consciente [...]” (M/A 129, KSA 3.118), uma visão que Nietzsche claramente considera equivocada, tanto aqui quanto na passagem citada acima. Em verdade, o tema da “ridícula superestimação e má-compreensão da consciência” (FW/GC 11, KSA 3.382) é um tema recorrente em Nietzsche: “apenas agora começa a raiar para nós a verdade de que a atividade de nosso espírito ocorre”, diz ele, “de maneira inconsciente e não sentida por nós” (FW/GC 333, KSA 3.558; cf. FW/GC 354, KSA 3.590). Certamente há algo suspeito no que está sendo afirmado aqui que vai além dessas passagens: acreditamos que nenhuma crença consciente é parte da explicação causal de qualquer ação? Eu não vejo por que Nietzsche deva defender essa tese radical, pois aquilo que ele está interessado em desmascarar é o nexo causal entre a experiência do “querer” consciente e ações de significação moral, isto é, ações as quais se pode atribuir louvor ou censura moral.16 16 Gemes (no prelo, cf. nota 8) alega que Nietzsche não está interessado principalmente na relação entre a liberdade da vontade e a responsabilidade moral, mas baseia sua alegação na asserção bastante surpreendente (e não documentada) de que Kant não estava interessado de modo central nesse assunto. Gemes introduz uma doutrina que ele próprio chama de “liberdade da agência” [agency free will] (na qual, segundo ele, certos idealistas alemãs tardios - com os quais, é claro, Nietzsche tinha pouca familiaridade e interesse - estavam primordialmente interessados). Ainda segundo ele, esta concepção está mais focada em “autonomia” do que em “responsabilidade moral”. Na visão de Gemes, “autonomia” é o que responde à questão sobre “o que constitui uma ação como oposta ao mero acontecimento”. Por certo qualquer visão sobre liberdade da vontade e responsabilidade moral terá de distinguir “acontecimentos” e “ações”, mas o que Gemes fica nos devendo é (1) uma descrição da “ação” que, de alguma maneira, prescinda de alegações sobre responsabilidade, e (2) evidências de que esta era a preocupação primordial de Nietzsche. Com relação a (2), o melhor que Gemes pode fazer é chamar atenção para o começo da segunda dissertação da Genealogia, onde Nietzsche escreve sobre “o indivíduo soberano […], o homem da vontade própria, duradoura e independente […] Este liberto ao qual é permitido prometer, este senhor do livre-arbítrio, este soberano […]” (GM/GM, II, 2, KSA 5.293). Mesmo desconsiderando a natureza idiossincrática dessa passagem - é difícil compreender por que esse único trecho deveria ser considerado mais importante do que a extensa evidência textual considerada no corpo desse artigo -, seu significado é muito menos evidente do que Gemes pensa. Nietzsche menciona rapidamente a palavra “liberto” para sinalizar, como é evidente, que seu “indivíduo soberano” não é livre no sentido requerido para atribuição de responsabilidade moral (que em nenhum lugar da passagem é mencionada). Conforme escrevi sobre essa passagem anteriormente (Leiter, 2002, p. 228), o “indivíduo soberano”: se destaca por um traço primordial: a ele “é permitido prometer” (GM/GM, II, 2, KSA 5.293) porque ele realmente dá conta disso, isto é, seu comportamento é suficientemente regular e previsível de modo que ele pode “dispor de seu futuro” (GM/GM, II, 1, KSA 5.291), sendo capaz de se lembrar do que prometeu e honrar essa memória. Mas já sabemos, a partir das linhas de abertura da segunda Dissertação, que isso apenas significa que ele é um “tipo” de animal que foi criado da maneira correta e nada mais. Na verdade, para o caso de termos nos deixado enganar pela retórica de GM II 2, Nietzsche nos adverte na seção imediatamente subsequente sobre qual é a questão central ao perguntar: “Como conferir ao animal-homem uma memória?” (GM/GM, II, 3, KSA 5.294 - ênfase acrescentada). A resposta a essa última questão sobre cultivo envolve toda uma série de técnicas mnemônicas (muitas das quais envolvem tortura de algum tipo) que na verdade explicaria como se pode treinar um animal capaz de “manter uma promessa”. Entretanto, há muito mais em jogo na questão da liberdade da vontade e da responsabilidade moral do que cultivar animais que podem fazer e cumprir suas promessas, e nada na Genealogia sugere o contrário (devo acrescentar que sou bastante simpático à tese de Gemes segundo a qual Nietzsche vê o eu como uma hierarquia de impulsos, mas não me é claro por que ele pensa que Nietzsche confunde essa questão com a teoria da vontade tal como eu a reconstruo neste artigo).

Cabe notar, é claro, que ainda assim não há um argumento em favor dessas alegações, mas apenas declarações conclusivas sobre a inércia causal de supostas causas mentais conscientes. Mais uma vez: se aceitamos a Doutrina dos Tipos subjacente ao primeiro erro, então as alegações de agora também fazem algum sentido. Ou seja, se as ações moralmente relevantes e os estados mentais conscientes que as precedem são eles mesmos o produto de fatos relativos ao tipo [type-fact], então se segue que os estados mentais conscientes que precedem a ação e cujos conteúdos proposicionais os fariam aparecer como causalmente conectados à ação são, em verdade, epifenomenais, seja como ocorrências particulares [tokens], seja como tipos. Isso significa que eles ou são causalmente inertes com relação à ação, ou causalmente efetivos somente em virtude de outros fatos relativos ao tipo [type-facts] da pessoa.

Com isso chegamos ao último erro sobre a causação, denominado por Nietzsche de “erro das causas imaginárias” (GD/CI, Os quatro grandes erros, 4, KSA 6.92). Esse erro ocorre quando inventamos causas (post hoc) para explicar certos fenômenos na nossa experiência, fenômenos que são, na realidade, a causa da nossa invenção. Nietzsche utiliza o fascinante exemplo dos sonhos, mas vou modificar seu conteúdo: suponha que enquanto eu sonho nas primeiras horas da manhã, um carro da polícia com a sirene ligada passe por minha janela, mas não me desperte. Como ocorre frequentemente, em meu sonho emergirá uma narrativa que explica o som: talvez no sonho eu me encontre subitamente sendo perseguido pela polícia e seus carros com a sirene ligada. Nos termos de Nietzsche, “As ideias produzidas por uma certa condição foram mal-entendidas como causas dela” (GD/CI, Os quatro grandes erros, 4, KSA 6.92). Ou seja, o carro e a sirene do sonho - que são eles mesmos de fato o produto do som externo da sirene real - são agora, no sonho, tratados como causas do som.

Uma vez mais, o ponto relevante para Nietzsche é que, conforme sua formulação, “Todo o âmbito da moral e da religião se inscreve nesse conceito das causas imaginárias” (GD/CI, Os quatro grandes erros, 6, KSA 6.94). Tomemos um dos exemplos de Nietzsche. Os cristãos, diz ele, podem “explicar” “sentimentos gerais agradáveis” como produzidos pela “fé, amor, esperança - as virtudes cristãs” (GD/CI, Os quatro grandes erros, 6, KSA 6.94). Alguém se sente bem, em paz, contente, pois pratica essas virtudes cristãs - ou, ao menos, é assim que funciona a explicação religiosa. No entanto, Nietzsche objeta

Na verdade, todas essas supostas explicações são estados resultantes e, por assim dizer, traduções de sentimentos de prazer ou desprazer em um falso dialeto: pode-se ter esperança porque o sentimento fisiológico básico está novamente rico e forte […] (GD/CI, Os quatro grandes erros, 6, KSA 6.94)

Os cristãos se expressam da seguinte forma: “Que tu tenhas praticado as virtudes cristãs explica por que tu te sentes bem e estás em paz contigo mesmo”. Na verdade, diz Nietzsche, há uma explicação fisiológica do porquê de um agente que se sente em paz consigo mesmo se sinta dessa maneira, e ela é também uma explicação do porquê de suas práticas de fé, esperança e amor. A estrutura dessas críticas sugere que o erro das “causas imaginárias” é apenas uma instância do primeiro erro, o erro de “confundir causa e efeito”, uma vez que alguém confunde o efeito (por exemplo, o sentimento de esperança), com a causa de outra coisa (por exemplo, estar em paz consigo mesmo), quando em verdade ambos são efeitos de uma “causa profunda” que não foi reconhecida, isto é, “o sentimento fisiológico básico”, como é o caso no exemplo utilizado por Nietzsche17 17 O mesmo ocorre no caso dos sonhos: alguém trata o carro de polícia do sonho como a causa do som da sirene do sonho, quando em verdade ambos foram causados pelo som real da sirene. O que faz o caso das “causas imaginárias” uma instância especial do erro que confunde causa e efeito é que nesse caso E2 é ele mesmo um reflexo da causa profunda. Essa diferença, tanto quanto posso ver, não importa muito para nossos propósitos no texto. . Como no caso do primeiro erro, este erro parece depender inteiramente da aceitação da doutrina nietzschiana dos tipos, a doutrina segundo a qual os fatos psicofísicos sobre a pessoa explicam tanto sua experiência consciente quanto seu comportamento.

De todo modo se segue então que, a partir dos três erros sobre a causação - em verdade dois erros, visto que o último é uma instância do primeiro - a “liberdade da vontade” seja também um erro? O erro de confundir a causa com o efeito é um erro geral que aflige a moralidade porque esta se baseia em uma imagem da ação equivocada: pensamos que certas prescrições morais trarão certas consequências àqueles que as seguirem; contudo, a habilidade e a disposição de agir conforme essas prescrições, bem como a capacidade de desfrutar suas consequências, são possíveis somente para certos tipos de pessoas. O exercício de uma vontade livre não cumpre nenhum papel aqui, e cabe notar que esse argumento não faz nenhum apelo à fenomenologia do querer.

O erro da falsa causalidade é um erro devido a nossa inferência equivocada de que sabemos o que é a causa de algo com base em nossa experiência da vontade como tendo eficácia causal; mas a vontade não tem, de fato, eficácia causal - o que se segue da Doutrina dos Tipos. Todavia, em qualquer interpretação da liberdade da vontade e da responsabilidade moral, a vontade tem de ter eficácia causal (mesmo que não seja causa sui), a fim de que os agentes sejam livres e moralmente responsáveis por suas ações. Portanto, se o erro da falsa causalidade é um erro genuíno, então disso se segue que não há liberdade da vontade. Somente esse segundo erro envolve a fenomenologia do querer, visto que ele afirma que erramos ao pensar que sabemos o que é a causa de algo com base na nossa experiência da vontade. O argumento mostra que estamos errados pois nossa experiência da vontade nos confunde quanto aos poderes causais da vontade: “não há causas mentais absolutamente!”, nos diz Nietzsche.

Retornemos agora para a questão da qual partimos: por que, de acordo com Nietzsche, a fenomenologia do querer não é um guia confiável para saber a causa de uma ação ou, mais precisamente, a causa da ação de tal modo que sejamos moralmente responsáveis pelas ações assim causadas? Nietzsche nos deu dois argumentos como resposta: o argumento da fenomenologia dos pensamentos; e o argumento da falsa causalidade, que, por sua vez, depende da Doutrina dos Tipos.

A verdadeira gênese da ação

Se a fenomenologia do querer, de acordo com Nietzsche, não esclarece como as ações são produzidas, o que então realmente explica nossas ações? A seção “Os Quatro Grandes Erros”, do Crepúsculo dos Ídolos, e a Doutrina dos Tipos da qual ela depende, sugerem uma resposta. Fatos relativos ao tipo [type-facts] - fatos sobre a psicologia inconsciente e a fisiologia do agente - explicam nossas ações. Contudo, isso é o mesmo que pintar com um rolo e não com um pincel, pois lamentavelmente não lança muita luz sobre a efetiva estrutura causal da ação ou sua conexão com a fenomenologia do querer descrita de forma tão detalhada por Nietzsche no aforismo de Além do Bem e do Mal que discutimos no começo do texto.

Nesse momento, pode ser útil nos voltarmos para alguns trabalhos recentes em psicologia empírica, apresentados de forma muito eficiente por Daniel Wegner em seu recente livro The Illusion of Conscious Will (Wegner 2002WEGNER, Daniel M. The Illusion of Conscious Will Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2002.). Wegner, assim como Nietzsche, parte da experiência do querer e, também como Nietzsche, pretende minar nossa confiança de que essa experiência rastreia de forma acurada uma realidade causal. A fim de cumprir com esse propósito, Wegner chama atenção para casos onde a fenomenologia e a causação reconhecidamente divergem. Uma série desses casos envolve “ilusões de controle”, isto é, “casos nos quais as pessoas têm a sensação de que estão fazendo algo quando na realidade não estão fazendo nada” (Wegner, 2002WEGNER, Daniel M. The Illusion of Conscious Will Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2002., p. 9) - pense em um videogame no qual você sente que seus movimentos no controle explicam as ações na tela, quando, na verdade, a máquina apenas está rodando um programa pré-definido. Outra série de casos bem documentados envolvem “automatismos”, ou seja, casos onde há uma ação mas nenhuma “experiência do querer” (Wegner, 2002WEGNER, Daniel M. The Illusion of Conscious Will Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2002., p. 8-9) - exemplos incluiriam o uso de tabuleiros ouija e comportamentos sob hipnose. Wegner observa:

Automatismo e ilusão de controle nos lembram que a ação e a sensação de estar fazendo algo não estão inevitavelmente entrelaçadas. Elas se separam com frequência suficiente para fazer alguém se questionar sobre a possibilidade de serem produzidas por sistemas separados na mente. Os processos mentais que produzem a experiência da vontade podem ser bastante distintos dos processos mentais que produzem a ação ela mesma. (2002WEGNER, Daniel M. The Illusion of Conscious Will Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2002., p. 11)

Se os casos em questão mostram, de fato, que a fenomenologia do querer nem sempre é um guia exato para a causação, eles certamente não mostram que isso é verdadeiro de modo geral. Mas Wegner pretende fundamentar a alegação de Nietzsche, qual seja, a de que a fenomenologia do querer nos engana sistematicamente em relação à causa de nossas ações. E no lugar da “ilusão da liberdade da vontade”, como Wegner a chama, ele propõe um modelo diferente, de acordo com o qual “tanto o querer consciente quanto a ação são efeitos de uma causa inconsciente comum” (Holton, 2004HOLTON, Richard. Review of Wagner (2002), Mind 113, p. 218- 221, 2004., p. 219), sendo que a cadeia da causação não gira entre a experiência do querer e a ação; em vez disso, em termos nietzschianos, algum fato relativo ao tipo da pessoa explica tanto a experiência quanto a ação (ver o diagrama em Wegner & Wheatley 1999WEGNER, Daniel M., & WHEATLEY, Thalia. “Apparent Mental Causation: Sources of the Experience of Will”. American Psychologist 54, p. 480-492, 1999., p. 483; Wegner 2002WEGNER, Daniel M. The Illusion of Conscious Will Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2002., p. 68). Assim Wegner resume sua imagem alternativa da gênese causal da ação:

Mecanismos inconscientes e inescrutáveis criam tanto o pensamento consciente sobre a ação quanto a própria ação, e produzem também a sensação de querer que nós experienciamos ao perceber o pensamento como causa da ação. Deste modo, embora nossos pensamentos possam ter conexões causais profundas, importantes e inconscientes com nossas ações, a experiência de querer consciente emerge de um processo que interpreta essas conexões e não das conexões mesmas. (Wegner, 2002WEGNER, Daniel M. The Illusion of Conscious Will Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2002., p. 98).

Antes de examinarmos a evidência empírica que Wegner oferece para essa tese robusta, é importante recordar uma ambiguidade que surgiu na nossa primeira discussão sobre o epifenomenalismo de Nietzsche, ambiguidade essa bem ilustrada no relato causal sugerido pelo exemplo de Nietzsche sobre Cornaro. Em uma possível leitura - vamos chamá-la de a vontade como causa secundária - o metabolismo lento (o fato relativo ao tipo [type-fact] relevante nesse contexto) explica o porquê da dieta magra de Cornaro, e o fato de que ele tem uma dieta magra, por sua vez, explica sua longevidade. Se tomarmos essa versão como algo similar ao querer, então a vontade é, de fato, causal; porém não é a causa última de uma ação: algo causa a experiência do querer e então a vontade causa a ação.

Em outra leitura - a vontade como epifenômeno - o metabolismo lento explica tanto a dieta magra quanto a longevidade, sem que haja uma ligação causal entre esses dois. O próprio exemplo de Cornaro recomenda a leitura da Vontade como Causa Secundária como sendo a mais plausível (seguramente a dieta magra contribui causalmente para uma longa vida). Mas a passagem de Aurora da qual partimos recomenda antes a leitura da Vontade como Epifenômeno: se o “eu quero” é realmente análogo ao que diz uma pessoa que “saiu de seu aposento no minuto em que o sol deixa o dele e diz: ´Eu quero que o sol nasça´” (M/A 124, KSA 3.116), então não há nenhuma ligação causal entre a experiência do querer e a ação resultante, do mesmo modo como não há nenhuma ligação causal entre a pessoa querer que o sol se nasça e o nascer do sol.

No que diz respeito a essa questão, creio que os textos de Nietzsche são em geral ambíguos quanto a qual visão da vontade ele em última instância adota. A evidência empírica fornecida por Wegner, em contraste, sustenta a leitura da Vontade como Epifenômeno. Se Wegner estiver certo, por uma questão de caridade interpretativa essa é uma boa razão para interpretar Nietzsche como estando igualmente comprometido com essa visão18 18 Nos termos utilizados em Leiter (2002, p.91-92), isso significaria interpretar Nietzsche como alguém que endossa um epifenomenalismo de ocorrências particulares [Token Epiphenomenalism], contrariamente à interpretação enfatizada em meu primeiro trabalho. , isto é, para interpretá-lo como alguém que sustenta uma posição que (a) encontra apoio textual em suas obras e (b) tem mais probabilidade de estar correta do ponto de vista das ciências empíricas19 19 Caso a tese da Vontade como Epifenômeno não seja justificada pela pesquisa empírica - o veredito está claramente em aberto - então o argumento da caridade interpretativa pode, no fim das contas, ser aplicado no sentido inverso. (Agradeço a Eddy Nahmias por insistir nesse ponto). .

Wegner apresenta vários tipos de evidências em favor da ideia da Vontade como Epifenômeno, mas não será possível examinar a maioria delas aqui. Pretendo concentrar-me em uma parte ilustrativa e já familiar àqueles que estudam a literatura acerca da liberdade da vontade, mas nem tão familiar àqueles interessados em Nietzsche. São estudos de Benjamin Libet e colegas (discutidos em Wegner 2002WEGNER, Daniel M. The Illusion of Conscious Will Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2002., p. 50-51), examinando a atividade elétrica do cérebro (o “potencial de prontidão” [readiness potential] ou “RP”) que precede uma ação (tal como mover um dedo) e a experiência do querer. O que os pesquisadores observaram foi que “o querer consciente do movimento de um dedo ocorreu em um intervalo não desprezível de tempo após o início da RP (e também em um intervalo não desprezível de tempo anterior à consciência do movimento)” (Wegner, 2002WEGNER, Daniel M. The Illusion of Conscious Will Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2002., p. 53). De acordo com Wegner, “essas descobertas sugerem que o cérebro começa primeiro fazendo algo [...] e só então a pessoa se torna consciente do querer fazer a ação” que o cérebro já iniciou (Wegner, 2002WEGNER, Daniel M. The Illusion of Conscious Will Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2002., p. 53)20 20 Esse resultado experimental encontra uma ressonância bastante surpreendente numa tese fenomenológica de Nietzsche feita nos escritos póstumos (Nachlass), a saber, de que “em casos de dor súbita o reflexo vem perceptivelmente antes da sensação [consciente] da dor” (Nachlass/FP, 14 [173], 1888-1889, KSA 13.358) - (agradeço a um parecerista anônimo por chamar minha atenção para essa passagem). . Wegner (2002WEGNER, Daniel M. The Illusion of Conscious Will Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2002., p. 54) faz a seguinte citação de Libet, na qual ele nos apresenta uma síntese do significado dessas descobertas:

O dar início a um ato voluntário parece ser um processo cerebral inconsciente. O que se vê claramente é que a liberdade da vontade ou a liberdade de escolha sobre agir ou não agora não poderiam ser o agente que dá início ao ato, ao contrário da visão amplamente aceita. Isso também contradiz de forma óbvia o sentimento introspectivo de cada indivíduo de que ele/ela conscientemente dá início a tais atos voluntários; isso fornece um exemplo empírico importante da possibilidade de que a experiência subjetiva da causalidade mental não revele necessariamente a relação causal real entre eventos mentais e cerebrais.21 21 Alfred Mele (2006, p. 30-48) apresentou recentemente uma crítica cerrada à interpretação que Libet extrai de seus resultados. Mele diz que o início da experiência de querer consciente depois do RP “deixa aberta a possibilidade de que […], em vez de ter uma intenção ou tomar uma decisão do qual não é consciente [no momento da RP], o agente tem um impulso ou desejo do qual ele não é consciente”, o qual se efetiva somente em virtude de sua intenção consciente (2006, p. 33). Embora ponto levantado por Mele tenha alguma sustentação na interpretação de outros experimentos de Libet (discutidos por Mele nas páginas 34-40), ele apenas assegura que há uma interpretação alternativa, e não que essa interpretação alternativa seja a correta. Mas o desfecho dessa disputa entre Libet e Mele não importa para os propósitos de Nietzsche, uma vez que ele é um incompatibilista, e os resultados de Libet, mesmo na interpretação de Mele, mostram que a trajetória causal (seja um impulso ou uma intenção) que conduz à ação começa antes da intenção consciente de realizar a ação (independentemente de quando isso ocorra), e isso é o suficiente para minar a concepção de liberdade da vontade como causa sui.

Em outras palavras, cerca de um século depois de Nietzsche, psicólogos empíricos têm apresentado evidências em favor de sua teoria de que a fenomenologia do querer nos induz a erros no que diz respeito à verdadeira gênese causal de uma ação.

Esse não é o único ponto em que a psicologia empírica “alcançou” Nietzsche, por assim dizer - ou, para dizê-lo de modo mais caritativo, forneceu confirmação para a teoria nietzschiana da vontade. Wegner apresenta suporte, por exemplo, para o que Nietzsche chama de “o erro da falsa causalidade” (Wegner, 2002WEGNER, Daniel M. The Illusion of Conscious Will Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2002., p. 64 ff.), assim como para o “erro de confundir causa e efeito” (Wegner, 2002WEGNER, Daniel M. The Illusion of Conscious Will Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2002., p. 66, 96). O que importa enfatizar aqui, porém, é o quanto a imagem alternativa da gênese da ação sugerida por Libet e Wegner - ou seja, de que processos inconscientes explicam tanto a ação quanto a experiência do querer - encontra ressonância nas observações mais detalhadas de Nietzsche sobre a gênese da ação que aparecem na fascinante passagem do aforismo 109 de Aurora sobre o autodomínio.

Nietzsche dá início à discussão examinando seis meios diferentes de “combater a veemência de um impulso [eine Triebe]”. Aqui vemos Nietzsche no auge de sua perspicácia psicológica, catalogando seis meios diferentes para dominar um impulso poderoso: por exemplo, evitar oportunidades de satisfazer o impulso, e assim enfraquecê-lo com o passar do tempo; ou então aprender a associar pensamentos dolorosos ao impulso, de modo que sua satisfação acabe por não ter mais uma “valência positiva”.

Por mais interessantes que essas observações possam ser, para nossos propósitos a relevância real dessa passagem reside em outro lugar. Nela, Nietzsche também está preocupado em responder à questão sobre o “motivo último” do “autodomínio”. Ele o explica da seguinte forma:

[…] mas querer combater a veemência de um impulso não está em nosso poder, nem a escolha do método, e tampouco o sucesso ou fracasso desse método. Em todo esse processo, claramente, nosso intelecto é antes o instrumento cego de um outro impulso, rival daquele que nos atormenta com sua impetuosidade: seja o impulso por sossego, ou o temor da vergonha e de outras más consequências, ou o amor. Enquanto “nós” acreditamos nos queixar da impetuosidade de um impulso, é, no fundo, um impulso que se queixa de outro; isto é: a percepção do sofrimento com tal impetuosidade pressupõe que haja um outro impulso tão ou mais impetuoso, e que seja iminente uma luta, na qual nosso intelecto precisa tomar partido. (M/A 109, KSA 3.96)

Mesmo que o intelecto tenha que “tomar partido” [Partei nehmen], isso não significa que o intelecto determine qual partido prevaleça: ao contrário, o intelecto é um mero espectador da luta. Deste modo, o fato de alguém dominar a si mesmo não é produto da liberdade de sua vontade, mas sim o efeito de fatos relativos ao tipo [type-facts] característicos e fundamentais da pessoa: a saber, qual dentre seus vários impulsos é o mais forte. Não há, por assim dizer, um “si mesmo” no “domínio sobre si mesmo”: quer dizer, não há “eu” consciente que contribua de algum modo para o processo. O “autodomínio” é meramente o efeito de um jogo entre certos impulsos inconscientes, impulsos sobre os quais o eu consciente não exerce nenhum controle. Uma “pessoa” é uma arena na qual a luta dos impulsos (fatos relativos ao tipo [type-facts]) ocorre; o modo como ocorre essa luta determina o que a pessoa acredita, o que ela toma como valorável, o que ela se torna. Mas enquanto eu consciente ou “agente”, a pessoa não é parte ativa nesse processo. Nietzsche expressa essa mesma ideia, um pouco mais tarde, em Além do Bem e do Mal, nos seguintes termos: “A vontade de superar um afeto é, em última instância, tão somente a vontade de um outro ou vários outros afetos” (JGB/BM 117, KSA 5.93; cf. também GM/GM, III, 17, KSA 5.377). Em outras palavras, a vontade ou a experiência do querer (no autodomínio) é ela mesma o produto de vários impulsos e afetos inconscientes. O que, em termos ligeiramente diferentes, equivale exatamente à teoria da vontade a que a psicologia empírica chegou cem anos depois de Nietzsche.22 22 Este artigo esteve em circulação durante tanto tempo que já existe uma literatura secundária de réplicas a ele. Eu me abstive de fazer muitas mudanças ao responder às críticas publicadas (ou em circulação), mas espero fazer isso em outra ocasião. Sou grato aos estudantes de graduação do meu seminário de outono de 2003 sobre “Nietzsche e a ética”, na Universidade do Texas, em Austin, por terem me ajudado a pensar no assunto; ao público da minha palestra sobre esse tópico no encontro da Sociedade Friedrich Nietzsche na Universidade de Sussex, em setembro de 2004; aos debatedores na conferência “Nietzsche e o Naturalismo”, organizada por Mathias Risse, no Instituto Radcliffe, na Universidade de Harvard, em novembro de 2004; ao público da Universidade de Cambridge, da Universidade de Manchester, da Universidade de Washington em St. Louis, Universidade do Estado da Geórgia e a Universidade de Minnesota, Minneapolis-St. Paul, e a Reid Blackman, Daniel Came, Richard Holton, Paul Katsafanas, Derk Pereboom, e dois pareceristas anônimos por comentários bastante detalhados.

Referências bibliográficas

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  • WEGNER, Daniel M., & WHEATLEY, Thalia. “Apparent Mental Causation: Sources of the Experience of Will”. American Psychologist 54, p. 480-492, 1999.
  • *
    Este artigo foi publicado originalmente em inglês no Philosophers’ Imprint, vol. 7, n. 7, setember 2007, p. 2-15. Agradecemos ao Prof. Brian Leiter por ter se disposto a colaborar mais uma vez os Cadernos Nietzscheitalic> enviando um artigo para o número temático sobre Nietzsche e as Tradições morais, assim como pela cessão dos direitos autorais de seu artigo para a tradução portuguesa. Tradução de Daniel Temp. Revisão técnica de Rogério Lopes.
  • 1
    Ao discutir a “teoria da vontade” de Nietzsche estou interessado na noção de “vontade” familiar à filosofia da ação em geral, tanto contemporânea quanto histórica; isto é, a ideia de uma faculdade humana, qualquer que seja seu caráter mais preciso, que está em algum tipo de relação necessária com a ação. Tal faculdade pode ela mesma ser causalmente determinada, ou então ela pode ser autônoma em relação à ordem causal que a antecede; seu status pode envolver questões sobre responsabilidade moral, ou tal faculdade pode simplesmente não existir. Uma teoria da vontade é uma teoria que lança alguma luz sobre esses temas. Esclareço desde já que este artigo não tem como objeto todo e qualquer uso da palavra “vontade” no corpus da obra de Nietzsche, uma vez que esses usos são bastante variados, e muitos deles têm pouco a ver com as tradicionais questões filosóficas sobre a vontade a que acabo de me referir.
  • 2
    As referências a Nietzsche serão os acrônimos padrões em língua portuguesa para suas obras, antecedidos das iniciais no original alemão: Aurora (M/A), A Gaia Ciência (FW/GC), Além do Bem e do Mal (JGB/ABM), Crepúsculo dos Ídolos (GD/CI), etc. As traduções utilizadas serão as de Paulo César de Souza, com modificações quando conveniente, a fim de conferir uniformidade à utilização dos termos no texto. (N. T.)
  • 3
    Cf. Owen e Ridley (2003OWEN, David. & RIDLEY, Aaron. On Fate. International Studies in Philosophy 35(3), p. 63-78, 2003., p. 70-71), que, ao que tudo indica, confundem questões retóricas com questões genuínas, talvez devido a certa propensão a ler Nietzsche de forma demasiado literal, conjugada com falta de atenção a outras evidências textuais discutidos em Leiter (1998LEITER, Brian. “The Paradox of Fatalism and Self-Creation in Nietzsche”, in Willing and Nothingness: Schopenhauer as Nietzsche’s Educator, ed. C. Janaway (Oxford: Oxford University Press ), 1998., 2002), assim como no presente artigo. Em verdade eu acabei por mudar de posição em relação à natureza do epifenomenalismo de Nietzsche, embora não tenha mudado de posição quanto a seu fatalismo. Retomo as críticas de Owen e Ridley abaixo, na extensa nota de número 11.
  • 4
    O próprio Nietzsche esclarece a questão alguns aforismos adiante na mesma obra, ao observar “que realmente não somos responsáveis por nossos sonhos - mas tampouco por nossa vigília” (M/A 128, KSA 3.117).
  • 5
    Pode ser mais conveniente colocar o conteúdo proposicional na forma imperativa, de modo que ele não soe meramente como uma predicação!
  • 6
    E quanto às ações malsucedidas, que presumivelmente alguém pode experienciar como livremente queridas, embora não “realizadas”? Suponhamos, por exemplo, que eu decida levantar-me da frente do computador para ver o que as crianças estão fazendo, mas não consiga fazer isso (talvez uma das crianças tenha me colado na cadeira!). Embora a ação seja malsucedida, todos os componentes necessários para ter a experiência da vontade livre estão presentes (isto é, eu posso sentir os movimentos corporais necessários, mesmo que eles não venham a ser completamente realizados). Casos mais complicados envolvem (como foi apontado por um dos pareceristas) fadiga extrema ou paralisia, embora pelo menos no primeiro caso não seja implausível que, como no caso da ação malsucedida, eu possa ter alguma sensação muscular distintiva, mesmo que eu não venha a mover meus membros. A fenomenologia proposta por Nietzsche pode não funcionar para o caso de pessoas com paralisia, mas nós teríamos que saber mais sobre o tipo de experiência que alguém com paralisia tem, se é que tem, ao querer movimentar os membros paralisados.
  • 7
    Na Gaia Ciência, Nietzsche aparentemente faz a robusta afirmação a favor do hedonismo de que para todo querer “uma representação do prazer e desprazer é necessária” (FW/GC 127, KSA 3.482). Infelizmente ele não desenvolve o pensamento, e, dessa forma, não é claro se a representação por si mesma não pode ser induzida por uma experiência de poder: em qualquer caso, nada na discussão exclui essa possibilidade.
  • 8
    No que se segue, tomarei por garantida a precisão da interpretação nietzschiana da fenomenologia do querer.
  • 9
    Eu concordo com Katsafanas (2005KATSAFANAS, Paul. “Nietzsche’s Theory ofMind: Consciousness and Conceptualization”. European Journal of Philosophy 13, p. 1- 31, 2005., p. 11-12) quanto ao fato de JGB/BM 17 não suportar a tese do caráter epifenomênico da consciência per se, como defendi erroneamente em Leiter (1998LEITER, Brian. “The Paradox of Fatalism and Self-Creation in Nietzsche”, in Willing and Nothingness: Schopenhauer as Nietzsche’s Educator, ed. C. Janaway (Oxford: Oxford University Press ), 1998.); mas essa passagem suporta, conforme defendo aqui, o caráter epifenomênico daquelas experiências relacionas ao querer.
  • 10
    Eu utilizarei “causado” e “causalmente determinado” de forma intercambiável, sem que com isso queira antecipar julgamento sobre questões de causação probabilística - questões que, em todo caso, Nietzsche desconhecia.
  • 11
    Owen & Ridley objetam (2003OWEN, David. & RIDLEY, Aaron. On Fate. International Studies in Philosophy 35(3), p. 63-78, 2003., p. 73-74) que a sequência do aforismo (JGB/BM 21) enfraquece a posição destacada no texto, e isso por duas razões. Primeira, escrevem eles, “seria um erro atribuir a Nietzsche […] a alegação de que a vontade não é livre, no sentido de ser causalmente determinada, visto que ele explicitamente rejeita essa posição” (p. 73). Mas em que sentido precisamente Nietzsche “rejeita” essa posição? Owen & Ridley omitem o texto relevante no qual, como discuti em Leiter (2002LEITER, Brian. Nietzsche on Morality London: Routledge, 2002., p. 23-24), fica claro que o aparente ceticismo de Nietzsche não tem nada que ver com o fato de que a vontade é causalmente determinada, mas com o fato de que algo é causalmente determinado: a esse respeito, Nietzsche ainda está, em JGB/BM 21, preso à visão neokantiana (que ele retira de sua leitura de Friedrich Lange) de que “causa e efeito” são características exclusivas do mundo fenomênico e não das “coisas em si mesmas”. Se Nietzsche abandona essa visão - como mesmo Owen & Ridley reconhecem ser o caso (2003OWEN, David. & RIDLEY, Aaron. On Fate. International Studies in Philosophy 35(3), p. 63-78, 2003., p. 74) - então o argumento de Nietzsche contra a possibilidade de algo ser causa sui permanece intocado: se nada no mundo “fenomênico” pode causar a si mesmo, e o adjetivo “fenomênico” não tem mais função alguma, então se segue que nada pode ser “causa de si mesmo” simpliciter. Owen e Ridley, em resposta aos meus comentários sobre um esboço inicial de seu ensaio, parecem reconhecer esse ponto, o que nos leva à segunda objeção, a qual eu cito: “Da rejeição por parte de Nietzsche da ideia de causa sui não se segue que ao invés disso ele abrace ou deva abraçar plenamente o determinismo clássico, visto que, como Nietzsche deixa claro, ele considera tanto a ideia de causa sui quanto o determinismo clássico como sintomas do mesmo ‘superlativo’ contrassenso ‘metafísico’ […] (mesmo concedendo que Nietzsche rejeita o ceticismo neokantiano de Lange em relação à realidade da causação), se, como Leiter aceita, o argumento contra a noção de causa sui como parte do ‘superlativo contrassenso metafísico’ ainda se sustenta mesmo depois da posição neokantiana ter sido abandonada, então ocorre o mesmo com o argumento contra o determinismo clássico. Em suma, que mais tarde Nietzsche tenha vindo a aceitar a realidade da causação não afeta em nada o aspecto puramente lógico que depreendemos da passagem em questão, ou seja, que o oposto de um contrassenso é ele mesmo um contrassenso (Owen e Ridley, 2003OWEN, David. & RIDLEY, Aaron. On Fate. International Studies in Philosophy 35(3), p. 63-78, 2003., p.74)”. Essa resposta é problemática em vários níveis. Primeiro, eu certamente não alego que Nietzsche abraça “plenamente o determinismo clássico” - na verdade eu distingo explicitamente o determinismo clássico do fatalismo de Nietzsche (Leiter, 1998LEITER, Brian. “The Paradox of Fatalism and Self-Creation in Nietzsche”, in Willing and Nothingness: Schopenhauer as Nietzsche’s Educator, ed. C. Janaway (Oxford: Oxford University Press ), 1998., p. 224-225; 2002LEITER, Brian. Nietzsche on Morality London: Routledge, 2002., p. 82-83) - embora um equívoco de outra ordem (ao qual retornarei em breve) possa explicar por que Owen & Ridley pensam que este resvala naquele. Segundo, Nietzsche não fala de um “superlativo contrassenso metafísico”; ao invés disso, ele diz que a ideia de causa sui reflete o “anseio por 'liberdade' na superlativa acepção metafísica”, ou seja, em termos contemporâneos, algum tipo de liberdade em sentido libertário. Mesmo concedendo que Nietzsche julgue a noção de causa sui como um contrassenso - ele diz que ela é “a maior autocontradição que já foi concebida”, apesar de não chamá-la de “superlativo contrassenso metafísico” - simplesmente não se segue, logicamente ou de qualquer outra maneira, que uma doutrina oposta seja também um contrassenso, a menos que a doutrina oposta compartilhe a premissa que torna a primeira autocontraditória. Mas o que torna a ideia de causa sui inconcebível é a ideia de que alguém possa “puxar a si mesmo pelos cabelos de dentro do pântano do nada em direção à existência” (JGB/BM 21, KSA 5.35), e essa é precisamente a ideia rejeitada pela posição que afirma que a vontade é causalmente determinada. O suposto argumento de Nietzsche contra essa última doutrina depende inteiramente do ceticismo neokantiano sobre a causação que Owen e Ridley admitem que ele abandona mais tarde. Isso, por sua vez, explica por que não havia sentido em citar aquele trecho do aforismo: o argumento contra a “não-liberdade da vontade” é um argumento ruim, afinal depende de uma doutrina neokantiana que o próprio Nietzsche vem a repudiar. Contrastando com isso, o argumento contra a noção de causa sui é sólido por si só, independente do ceticismo neokantiano, e é um argumento consistente com outras afirmações que Nietzsche faz nesta e nas obras subsequentes (por razões semelhantes, não há razão para tomar de modo particular e seriamente a afirmação de que “na vida real isso é apenas uma questão de vontades fortes e vontades fracas”, uma vez que nesse aforismo a afirmação é motivada inteiramente pelo ceticismo neokantiano com relação à causação que Nietzsche abandona). No que diz respeito à razão pela qual Owen e Ridley assimilam “determinismo clássico” e o fatalismo de Nietzsche (ou essencialismo causal, como o denominei), a resposta é sugerida pela afirmação dos dois autores de que “essencialismo causal [é] […] a visão segundo a qual, a qualquer momento dado, a trajetória da vida de uma pessoa […] é determinada por fatos relativos ao tipo [type-facts] de pessoa que ela é, somados ao ambiente em que vive; uma visão que, dado que os fatos relativos ao tipo [type-facts] somados ao ambiente equivalem à totalidade dos fatos causalmente relevantes, é indistinta do determinismo clássico” (Owen e Ridley, 2003OWEN, David. & RIDLEY, Aaron. On Fate. International Studies in Philosophy 35(3), p. 63-78, 2003., p. 74). Ao contrário do que afirmam Owen e Ridley, o essencialismo causal (que eles caracterizam de forma correta) ainda é discernível do determinismo clássico, visto que este requer que haja “leis da natureza”, e é precisamente devido ao fato de Nietzsche ser um empirista radical e cético quanto à leis que ele evita a linguagem do determinismo clássico. A visão “oficial” de Nietzsche (por estranho que isso possa parecer) é que nosso mundo é um mundo de necessidades de ocorrências particulares [token necessities], e não necessidades legais [lawful], e que isso é verdadeiro mesmo se as pessoas são de diferentes tipos: os tipos interagem com o ambiente de um modo que não é governado por leis.
  • 12
    A posição “oficial” de Nietzsche parece ser a de que a fisiologia é primária, mas na maior parte das vezes ele se concentra em alegações psicológicas, pela razão óbvia de que ele não é um fisiologista!
  • 13
    Na seção final do artigo devo retornar à ambiguidade no que concerne à força da doutrina epifenomenalista tal como articulada até o momento.
  • 14
    Katsafanas (2005)KATSAFANAS, Paul. “Nietzsche’s Theory ofMind: Consciousness and Conceptualization”. European Journal of Philosophy 13, p. 1- 31, 2005. está correto, penso, ao objetar - contraLeiter (2002LEITER, Brian. Nietzsche on Morality London: Routledge, 2002.) e também Gilles Deleuze - que Nietzsche não pode sustentar que a consciência per se é epifenomênica, ainda que eu seja fundamentalmente cético em relação ao modo fascinante e frequentemente engenhoso como ele apresenta a posição de Nietzsche sobre a consciência, visto que ele toma muita liberdade com os textos em pontos cruciais (ele também faz com que a ideia freudiana de desejos inconscientes se torne ininteligível, uma vez que seu conteúdo tem de ser conceitualmente articulado, embora Freud estivesse bastante correto, a meu ver, em encontrar o germe dessa ideia em Nietzsche). Há, no entanto, a clara necessidade de individuar aqueles estados conscientes cuja eficácia causal é impugnada por Nietzsche. A interessante distinção feita por Katsafanas entre a epifenomenalidade do Ego (a “faculdade substantiva” da “consciência”) versus os estados mentais conscientes causalmente eficazes (aqueles estados mentais que se distinguem por seu conteúdo conceitualmente articulado) (2005KATSAFANAS, Paul. “Nietzsche’s Theory ofMind: Consciousness and Conceptualization”. European Journal of Philosophy 13, p. 1- 31, 2005., p. 13) poderia ser um modo de caracterizar a distinção que interessa aos propósitos de Nietzsche. A interpretação de Freud - na qual esses estados mentais que conjugam uma Ideia e um Afeto são os únicos que são causalmente determinados - não permite, pelo menos não de maneira óbvia, uma tradução para o uso nietzschiano.
  • 15
    Deve-se observar que o fato de que causas mentais conscientes não são adequadas para uma explicação de ações moralmente relevantes não significa que essas causas sejam irrelevantes para a melhor explicação. O que está em jogo na alegação de que não são adequadas é apenas a consideração de que elas são epifenomênicas em relação ao tipo [type-epiphenomenal], ou seja, sua relevância causal depende da relação que elas mantêm com causas fisiológicas ou inconscientes (agradeço a um parecerista anônimo por insistir nesse ponto).
  • 16
    Gemes (no prelo, cf. nota 8) alega que Nietzsche não está interessado principalmente na relação entre a liberdade da vontade e a responsabilidade moral, mas baseia sua alegação na asserção bastante surpreendente (e não documentada) de que Kant não estava interessado de modo central nesse assunto. Gemes introduz uma doutrina que ele próprio chama de “liberdade da agência” [agency free will] (na qual, segundo ele, certos idealistas alemãs tardios - com os quais, é claro, Nietzsche tinha pouca familiaridade e interesse - estavam primordialmente interessados). Ainda segundo ele, esta concepção está mais focada em “autonomia” do que em “responsabilidade moral”. Na visão de Gemes, “autonomia” é o que responde à questão sobre “o que constitui uma ação como oposta ao mero acontecimento”. Por certo qualquer visão sobre liberdade da vontade e responsabilidade moral terá de distinguir “acontecimentos” e “ações”, mas o que Gemes fica nos devendo é (1) uma descrição da “ação” que, de alguma maneira, prescinda de alegações sobre responsabilidade, e (2) evidências de que esta era a preocupação primordial de Nietzsche. Com relação a (2), o melhor que Gemes pode fazer é chamar atenção para o começo da segunda dissertação da Genealogia, onde Nietzsche escreve sobre “o indivíduo soberano […], o homem da vontade própria, duradoura e independente […] Este liberto ao qual é permitido prometer, este senhor do livre-arbítrio, este soberano […]” (GM/GM, II, 2, KSA 5.293). Mesmo desconsiderando a natureza idiossincrática dessa passagem - é difícil compreender por que esse único trecho deveria ser considerado mais importante do que a extensa evidência textual considerada no corpo desse artigo -, seu significado é muito menos evidente do que Gemes pensa. Nietzsche menciona rapidamente a palavra “liberto” para sinalizar, como é evidente, que seu “indivíduo soberano” não é livre no sentido requerido para atribuição de responsabilidade moral (que em nenhum lugar da passagem é mencionada). Conforme escrevi sobre essa passagem anteriormente (Leiter, 2002LEITER, Brian. Nietzsche on Morality London: Routledge, 2002., p. 228), o “indivíduo soberano”: se destaca por um traço primordial: a ele “é permitido prometer” (GM/GM, II, 2, KSA 5.293) porque ele realmente dá conta disso, isto é, seu comportamento é suficientemente regular e previsível de modo que ele pode “dispor de seu futuro” (GM/GM, II, 1, KSA 5.291), sendo capaz de se lembrar do que prometeu e honrar essa memória. Mas já sabemos, a partir das linhas de abertura da segunda Dissertação, que isso apenas significa que ele é um “tipo” de animal que foi criado da maneira correta e nada mais. Na verdade, para o caso de termos nos deixado enganar pela retórica de GM II 2, Nietzsche nos adverte na seção imediatamente subsequente sobre qual é a questão central ao perguntar: “Como conferir ao animal-homem uma memória?” (GM/GM, II, 3, KSA 5.294 - ênfase acrescentada). A resposta a essa última questão sobre cultivo envolve toda uma série de técnicas mnemônicas (muitas das quais envolvem tortura de algum tipo) que na verdade explicaria como se pode treinar um animal capaz de “manter uma promessa”. Entretanto, há muito mais em jogo na questão da liberdade da vontade e da responsabilidade moral do que cultivar animais que podem fazer e cumprir suas promessas, e nada na Genealogia sugere o contrário (devo acrescentar que sou bastante simpático à tese de Gemes segundo a qual Nietzsche vê o eu como uma hierarquia de impulsos, mas não me é claro por que ele pensa que Nietzsche confunde essa questão com a teoria da vontade tal como eu a reconstruo neste artigo).
  • 17
    O mesmo ocorre no caso dos sonhos: alguém trata o carro de polícia do sonho como a causa do som da sirene do sonho, quando em verdade ambos foram causados pelo som real da sirene. O que faz o caso das “causas imaginárias” uma instância especial do erro que confunde causa e efeito é que nesse caso E2 é ele mesmo um reflexo da causa profunda. Essa diferença, tanto quanto posso ver, não importa muito para nossos propósitos no texto.
  • 18
    Nos termos utilizados em Leiter (2002LEITER, Brian. Nietzsche on Morality London: Routledge, 2002., p.91-92), isso significaria interpretar Nietzsche como alguém que endossa um epifenomenalismo de ocorrências particulares [Token Epiphenomenalism], contrariamente à interpretação enfatizada em meu primeiro trabalho.
  • 19
    Caso a tese da Vontade como Epifenômeno não seja justificada pela pesquisa empírica - o veredito está claramente em aberto - então o argumento da caridade interpretativa pode, no fim das contas, ser aplicado no sentido inverso. (Agradeço a Eddy Nahmias por insistir nesse ponto).
  • 20
    Esse resultado experimental encontra uma ressonância bastante surpreendente numa tese fenomenológica de Nietzsche feita nos escritos póstumos (Nachlass), a saber, de que “em casos de dor súbita o reflexo vem perceptivelmente antes da sensação [consciente] da dor” (Nachlass/FP, 14 [173], 1888-1889, KSA 13.358) - (agradeço a um parecerista anônimo por chamar minha atenção para essa passagem).
  • 21
    Alfred Mele (2006MELE, Alfred. Free Will and Luck (Oxford: Oxford University Press), 2006., p. 30-48) apresentou recentemente uma crítica cerrada à interpretação que Libet extrai de seus resultados. Mele diz que o início da experiência de querer consciente depois do RP “deixa aberta a possibilidade de que […], em vez de ter uma intenção ou tomar uma decisão do qual não é consciente [no momento da RP], o agente tem um impulso ou desejo do qual ele não é consciente”, o qual se efetiva somente em virtude de sua intenção consciente (2006MELE, Alfred. Free Will and Luck (Oxford: Oxford University Press), 2006., p. 33). Embora ponto levantado por Mele tenha alguma sustentação na interpretação de outros experimentos de Libet (discutidos por Mele nas páginas 34-40), ele apenas assegura que há uma interpretação alternativa, e não que essa interpretação alternativa seja a correta. Mas o desfecho dessa disputa entre Libet e Mele não importa para os propósitos de Nietzsche, uma vez que ele é um incompatibilista, e os resultados de Libet, mesmo na interpretação de Mele, mostram que a trajetória causal (seja um impulso ou uma intenção) que conduz à ação começa antes da intenção consciente de realizar a ação (independentemente de quando isso ocorra), e isso é o suficiente para minar a concepção de liberdade da vontade como causa sui.
  • 22
    Este artigo esteve em circulação durante tanto tempo que já existe uma literatura secundária de réplicas a ele. Eu me abstive de fazer muitas mudanças ao responder às críticas publicadas (ou em circulação), mas espero fazer isso em outra ocasião. Sou grato aos estudantes de graduação do meu seminário de outono de 2003 sobre “Nietzsche e a ética”, na Universidade do Texas, em Austin, por terem me ajudado a pensar no assunto; ao público da minha palestra sobre esse tópico no encontro da Sociedade Friedrich Nietzsche na Universidade de Sussex, em setembro de 2004; aos debatedores na conferência “Nietzsche e o Naturalismo”, organizada por Mathias Risse, no Instituto Radcliffe, na Universidade de Harvard, em novembro de 2004; ao público da Universidade de Cambridge, da Universidade de Manchester, da Universidade de Washington em St. Louis, Universidade do Estado da Geórgia e a Universidade de Minnesota, Minneapolis-St. Paul, e a Reid Blackman, Daniel Came, Richard Holton, Paul Katsafanas, Derk Pereboom, e dois pareceristas anônimos por comentários bastante detalhados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2017
  • Aceito
    19 Jul 2017
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