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Entre a arte e a filosofia: Nietzsche e o lugar de Platão em O nascimento da tragédia

Between art and philosophy: Nietzsche and Plato’s role in The Birth of Tragedy

Resumo:

O objetivo deste artigo é discutir o lugar ocupado por Platão em O nascimento da tragédia, levando em conta em que medida o posicionamento adotado por Nietzsche ali ecoaria também em suas Preleções sobre Platão, apresentadas entre 1871 e 1876 na Universidade da Basileia. Pretende-se analisar imagem de Platão como alguém que, por ser ao mesmo tempo filósofo e artista, nos permite problematizar as supostas fronteiras que separariam arte e filosofia, e pensar até que ponto a própria filosofia nascente na Grécia poderia ser caracterizada como uma forma de arte que nega a si mesma em seu interior.

Palavras-chave:
Nietzsche; Platão; arte; filosofia; filologia

Abstract:

The aim of this paper is to discuss the role played by Plato in The Birth of Tragedy and the extent to which Nietzsche's position in this work would have an echo in his Lectures on Plato, presented from 1871 to 1876 at the University of Basel. It analyzes Plato's image as someone who, being both a philosopher and an artist, allows us to bring into question the assumed boundaries between art and philosophy, while also making us think whether the arising philosophy in Greece could be thought of as a form of art that denies itself from within.

Keywords:
Nietzsche; Plato; Art; Philosophy; Philology

[...] nada me faz refletir mais sobre a reserva e a natureza esfíngica de Platão do que esse petit fait [pequeno fato], felizmente conservado: que sob o travesseiro do seu leito de morte não se encontrou nenhuma ‘Bíblia’, nada egípcio, pitagórico, platônico, - mas sim Aristófanes. Como poderia até mesmo um Platão suportar a vida - uma vida grega, à qual ele disse ‘não’ - sem um Aristófanes?” (JGB/BM II, 28. KSA 5.46)1 1 NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. A partir de agora referido como PCS.

No conjunto da obra de Nietzsche, O nascimento da tragédia (1872) se mostra como a publicação que talvez mais tenha exigido esforços ulteriores de seu autor. E, se de fato isto acontece, tais esforços se dão em dois momentos e níveis diferentes. Num primeiro nível, logo que o livro é publicado, ciente de que seus posicionamentos são pouco ortodoxos em comparação àqueles adotados por seus pares - filólogos conservadores - e ao mesmo tempo orgulhoso de ter desenvolvido hipóteses que entrelaçam os campos da filologia, da filosofia e da arte, Nietzsche se vê envolvido em uma grande polêmica relativa à recepção do escrito.

A partir de um universo conceitual kantiano e schopenhaueriano, e embebido na atmosfera da produção artística de Richard Wagner, o livro trata, em sua porção inicial, da gênese da arte trágica na Grécia recorrendo aos conceitos de apolíneo e dionisíaco, e aponta a tragédia ática como a mais elevada forma de manifestação artística existente. O conhecimento trágico proporcionado pela arte conectaria os gregos com o fundo dionisíaco da existência e glorificaria a vida ao revelar artística e afirmativamente suas terríveis verdades essenciais. Ao abordar o ocaso da tragédia, num segundo movimento, Nietzsche denuncia o socratismo estético e a ação internamente corrosiva de Eurípides em sua produção de dramas racionais e decadentes como os responsáveis pelo suicídio da tragédia e pela derrocada da potente visão trágica do mundo. Wagner é exaltado no terço final do livro como aquele cujos dramas musicais estariam comprometidos efetivamente com um renascimento do trágico a partir do espírito da música, abrindo a possibilidade de uma revitalização da esfera cultural alemã do século XIX.

Como mostra Roberto Machado2 2 2005, pp.11-12. em sua publicação dedicada à apresentação da polêmica e dos próprios textos que compuseram todo o embate em torno de O nascimento da tragédia, a originalidade de Nietzsche não está exatamente no modo como neste livro ele concebe a música - muito próximo ao posicionamento de Schopenhauer. Está sobretudo no fato de ele se inspirar na concepção schopenhaueriana da música “para pensar a tragédia como uma arte fundamentalmente musical, articulando Schopenhauer com o movimento de utilização da Grécia como modelo para pensar a cultura alemã, através de um renascimento do espírito trágico”. Em sua Introdução, Machado afirma que, ao se referir aos gregos como “nossos luminosos guias”, Nietzsche dá continuidade ao projeto de Winckelmann, Goethe e Schiller de pensar a obra de arte moderna a partir de uma reflexão sobre a arte grega. Contudo, diferentemente destes autores, Nietzsche não toma os gregos como essencialmente ou exclusivamente apolíneos, e os relaciona ao que, para ele próprio, seria um aspecto mais profundo da cultura grega: o dionisíaco, que não havia sido pensado por aqueles3 3 Machado, 2005, pp. 11-12. . Este teria sido um dos pontos em função dos quais toda a celeuma em torno de O nascimento da tragédia teria se iniciado. Para alguns de seus críticos (Ritschl, por exemplo, o ex-professor de Nietzsche em Leipzig), o elogio do dionisíaco seria algo mais próximo de um culto religioso que trai as práticas científicas supostamente desejáveis para uma pesquisa rigorosa em filologia. Além disso, o fato de as ideias expostas no livro, ainda que não sejam de todo originais, colocarem filologia, filosofia e arte como uma espécie de amálgama, sem o qual toda reflexão sobre a cultura contemporânea se veria prejudicada em sua mais potente vitalidade, somado à crítica ao racionalismo socrático, contribuem ainda mais para a péssima recepção do livro. Criticar a ciência racionalista e tratar a filologia não como um saber definitivamente estabelecido, que se bastaria em si mesmo, mas articulá-la e alargar suas fronteiras em função de exigências colocadas pelo pensamento filosófico e pelos desafios da produção artística parece ter sido a ousadia nietzschiana que seus contemporâneos conservadores não poderiam tolerar. Ulrich von Wilamowitz-Möllendorff, Ewin Rohde e mesmo Richard Wagner - o primeiro contra, os dois últimos a favor do livro - escrevem e publicam textos e empreendem um caloroso e desgastante debate em torno das hipóteses trazidas por Nietzsche. Inicia-se, já aqui, o penoso processo de distanciamento do jovem professor da Universidade da Basileia em relação ao universo acadêmico e sua inflexão em direção ao caminho próprio e singular de um filósofo andarilho, solitário e radicalmente dionisíaco.

Mais tarde em seu percurso, a partir de Humano, demasiado humano (1878), ele rompe explicitamente com a perspectiva metafísica em que seu primeiro livro se insere, e recusa mesmo a metafísica de artista levada a cabo ali. Com as publicações de A gaia ciência (1882) e de Assim falou Zaratustra (1883), Nietzsche aprofunda seu esforço no sentido de promover uma reabilitação dos elementos que historicamente teriam sido caluniados e desqualificados pela tradição de pensamento. Ele empreende um movimento de valorização radical das aparências, que passam a ser compreendidas exclusivamente no âmbito da imanência, sem qualquer essência subjacente, o que, em 1887, lhe permitirá chegar a apontar a arte como a principal antípoda dos ideais ascéticos: “- a arte, na qual precisamente a mentira se santifica, a vontade de ilusão tem boa consciência a seu favor, opõe-se bem mais radicalmente do que a ciência ao ideal ascético: assim percebeu o instinto de Platão, esse grande inimigo da arte, o maior que a Europa jamais produziu”. (GM/GM III, 25, KSA 5.420, tradução de PCS). Nesse contexto de radicalidade crítica crescente na constituição de sua filosofia dionisíaca, afirmativa, em 1886, ao redigir seu Ensaio de autocrítica para compor a segunda edição de O nascimento da tragédia, já há muito distante da atmosfera schopenhaueriana e wagneriana em que o primogênito é gerado, e desligado de suas funções como professor universitário, Nietzsche volta às questões suscitadas no livro, agora não tendo em vista a recepção negativa de seu escrito, mas sim privilegiando a relevância, no próprio conjunto de sua obra, dos temas que ele, neste momento, elege como os mais importantes de seu primogênito. Ele se dedica a sintonizar suas formulações de juventude com aquelas mais radicais que marcam sua filosofia madura.

É nesse sentido que ele não hesita em lamentar ter escrito sob a influência de uma linguagem schopenhaueriana e kantiana que teria comprometido a expressão de seus pensamentos mais próprios e, sobretudo, em minimizar a importância dada a Wagner - tomá-la como o maior equívoco do livro4 4 Nietzsche afirma não se perdoar por ter rendido homenagem a Wagner: “Mas havia algo muito pior no livro (que agora lamento ainda mais) do que obscurecer e estragar intuições dionisíacas com fórmulas schopenhauerianas: o fato de que estraguei o grandioso problema grego, tal como ele se me havia mostrado, com a intromissão das coisas mais modernas! De que pus esperanças onde nada havia a esperar, onde tudo apontava muito claramente para um fim!” (GT/NT, Ensaio de autocrítica 6. KSA 1. 20, tradução de PCS). . Nietzsche é também muito assertivo em apresentar o que teria sido central em sua abordagem: “o problema da ciência mesma - a ciência vista pela primeira vez como problemática, como questionável” (GT/NT, Ensaio de autocrítica 2, KSA 1.14, tradução de PCS). Entender a oposição entre o dionisíaco e o socrático como o maior conflito enfrentado pela cultura trágica grega, e ser capaz de fazê-lo por uma perspectiva outra, que não a da própria ciência, é a tarefa audaciosa que o autor festeja ter levado a cabo já em seu primeiro e problemático livro: “não desejo esconder como ele me parece desagradável agora, como se me tornou estranho após dezesseis anos - ante um olhar mais velho, cem vezes mais exigente, mas não mais frio, que não se tornou alheio à tarefa que este livro audaz ousou pela primeira vez abordar: ver a ciência pela ótica do artista, mas a arte pela ótica da vida ...”. (GT/NT, Ensaio de autocrítica” 2. KSA 1.13, tradução de PCS).

Este é o ponto em que gostaríamos de nos deter neste artigo. Tomar a ciência como algo questionável, vê-la pela ótica da arte, e arte pela ótica da vida é algo que está presente em todo o percurso filosófico de Nietzsche. A relação dos gregos com o sofrimento e a análise da tragédia como a solução artística que exalta a vida em primeiro lugar é uma forte marca da análise de seu livro de estreia. O entrelaçamento dos campos filosofia, da filologia e da arte parece algo orgânico e necessário em Nietzsche, mas não naqueles cujas posturas conservadoras o livro acaba por agredir. Não é outro senão esse o motivo principal de O nascimento da tragédia ter provocado reações negativas tanto entre filólogos quanto entre filósofos. Do mesmo modo, também não é outra a razão - mais uma vez, ver a ciência pela ótica da arte, e a arte pela ótica da vida - pela qual o autor consegue, de posse de sua genealogia, apontar a arte - e não a ciência - como a principal antípoda dos ideais ascéticos, como indicamos acima, e apontar Platão, mesmo tendo sido um artista antes de se converter aos ensinamentos do mestre Sócrates, como o maior inimigo da arte que a Europa jamais produziu. A genealogia faz o diagnóstico dos tipos de vida que teriam se manifestado através das valorações, avaliações e perspectivas que a tradição de pensamento ocidental teria sustentado historicamente, e não poupa Platão: um tipo negador da existência, que disse não a suas origens nobres e precisou se render à fraqueza do privilégio da razão sobre os instintos e o corpo. A especificidade da figura platônica é bastante intrigante para Nietzsche, e parece mesmo seduzi-lo a ponto de este fazer Platão estar presente em praticamente toda a sua obra como um antípoda que não deixa de ser admirável em muitos aspectos. A partir de que idiossincrasias se manifesta a vida em Platão? Ser poeta e inimigo dos poetas; abrir mão de suas origens nobres e artísticas e render-se às exigências da racionalidade defendida por Sócrates; ser o inventor de um “mundo verdadeiro” transcendente em oposição a um “mundo aparente”, imanente e supostamente inferior, dando ensejo a tudo o que Nietzsche chama de idealismo; redigir diálogos cuja polifonia traz para dentro de um discurso poeticamente rico a voz da moralidade que se erige como principal orientação da vida, mas que não deixa de permitir que toda a posteridade da cultura ocidental entreveja, ainda que de través, a riqueza de um cenário grego polimórfico e nobre que acaba por ruir em função mesmo da vitória da perspectiva racionalista socrática que ali fala... estes são alguns dos pontos que atraem Nietzsche, e aos quais ele se dedica desde os primeiros a seus últimos escritos.

O objetivo deste artigo é discutir justamente o lugar ocupado por Platão em O nascimento da tragédia, tendo em vista essas características singulares que ele encerra, e levando em conta que é prioritariamente através de seus diálogos que a figura de Sócrates, tão importante nesse primeiro livro, pode ser colocada em questão por Nietzsche. Analisaremos também em que medida os posicionamentos adotados por Nietzsche na primeira publicação ecoariam em suas Preleções sobre Platão, apresentadas em momentos distintos entre 1871 e 1876 na Universidade da Basileia.

Platão em O nascimento da tragédia

As abordagens de Nietzsche acerca de Platão se iniciam já no período que vai de 1871 a 1876, em textos redigidos para serem tornados públicos durante os cursos de inverno oferecidos na Universidade da Basileia, sob o título de Introdução ao estudo dos diálogos de Platão, e têm em O nascimento da tragédia a primeira de suas expressões publicadas mais importantes. Nietzsche se refere a Platão prioritariamente naquelas seções em que tem como objetivo principal atacar o racionalismo socrático e a aplicação dos parâmetros racionais à produção artística. Neste sentido, ele faz menção a Platão nas seções em que concentra suas críticas sobretudo em torno dos nomes de Sócrates e Eurípides.

No momento em que se contrapõe ao racionalismo socrático em O nascimento da tragédia, Nietzsche faz uma escolha clara pelo Sócrates platônico como seu alvo crítico principal. Para desmistificar este ídolo, cria uma imagem negativa de Sócrates afinada com aquela que se encontra nas comédias de Aristófanes5 5 Vale ressaltar o aspecto curioso de um certo pacto silencioso que Nietzsche estabelece com a perspectiva desenvolvida por Aristófanes nas comédias As nuvens e As rãs com vistas a esculpir as imagens negativas tanto de Sócrates como de Eurípides em O nascimento da tragédia. A referência explícita ao nome de Aristófanes e à obra As nuvens aparece rapidamente na seção 13 do livro. Nietzsche alude ao fato de que Sócrates e Eurípides são denunciados pelos chamados partidários dos velhos tempos como os demagogos do cenário ateniense em que o embate entre as visões trágica e teórica do mundo se dá. Afirma que não defenderá Aristófanes desses ataques, mas o faz de forma velada ao absorver para seu próprio texto muitas das características atribuídas por Aristófanes a Sócrates (em As nuvens) e a Eurípides e a Ésquilo (em As rãs). A perspectiva adotada por Nietzsche para criticar Sócrates e Eurípides é bastante alinhada com aquela desenvolvida pela arte cômica e dionisíaca de Aristófanes. (Cf. Mendonça. A. F., 2020, pp. 74-88). . Assim, em conformidade com a exigência de ver a ciência com a ótica da arte, e enxergando o discurso filosófico nascente a partir dessa perspectiva, Nietzsche se dedica, em algumas breves passagens, à análise também dos diálogos platônicos, da figura de Platão, e da relação entre ele e Sócrates.

É neste sentido que se pode interpretar a caracterização negativa que é feita de Sócrates como o “herói dialético do drama de Platão”, na seção 146 6 “Sócrates, o herói dialético do drama de Platão, nos lembra a natureza afim do herói euripidiano, que precisa defender seus atos com argumentos e contra-argumentos, e nisso frequentemente arrisca perder a nossa compaixão trágica”. (GT/NT 14, KSA 1.94, tradução de PCS). . Com ela, Nietzsche não só ratifica a escolha do Sócrates platônico como seu alvo privilegiado de ataque, como, ao mesmo tempo, traz também Platão para o centro de seus questionamentos. Questionamentos que dizem respeito tanto à natureza e ao estatuto conferido aos diálogos platônicos, quanto à relação entre mestre e discípulo que ali se delineia. Ao se reportar a Sócrates como um “herói”, e ao tratar os diálogos como “dramas”, Nietzsche abre espaço, em primeiro lugar, para polemizar a respeito da natureza e da origem pretensamente não artística do texto platônico: seriam tais diálogos textos que se opõem radicalmente a toda arte, tanto em relação ao conteúdo que veiculam quanto em relação à sua apresentação formal ou constituir-se-iam em escritos eminentemente artísticos? Não seria a própria filosofia um subconjunto da arte? Além disso, Nietzsche também coloca em foco, ainda que de modo apenas indicativo, um questionamento acerca da relação estreita entre mestre e discípulo. Neste último caso, trata-se, já nessa primeira publicação, da suposta corrupção do jovem Platão por Sócrates, e de como isto se refletiria na estrutura formal dos diálogos platônicos.

Este tema da corrupção de Platão por Sócrates, que é intensamente trabalhado por Nietzsche em seus cursos sobre Platão proferidos na Universidade da Basileia e sobretudo nos textos que integram seus últimos escritos - em Crepúsculo dos ídolos, em alguns aforismos de Além do Bem e do Mal - é apenas sugerido em O nascimento da tragédia, sem que a palavra “corrupção” seja utilizada de forma explícita. Nietzsche menciona rapidamente a relação estreita entre mestre e discípulo no momento em que trata mais especificamente das restrições de Sócrates à tragédia. Ali, alude a um Platão que, seduzido pelos preceitos racionais defendidos por Sócrates, e persuadido pelas objeções que este último faz à poesia e à arte trágica, teria abandonado sua própria origem artística para se aproximar do mestre:

ele [Sócrates] a incluía [a tragédia] nas artes lisonjeiras, que representam apenas o que é agradável, não o que é útil, e por isso exigia que os seus discípulos se privassem e mantivessem distância desses estímulos tão pouco filosóficos; com tal sucesso que o jovem tragediógrafo Platão queimou o que havia escrito para poder se tornar discípulo de Sócrates. (GT/NT 14, KSA 1.92, tradução de PCS)

O poder de sedução que Sócrates exerce sobre seu discípulo seria algo perceptível nos próprios textos de Platão, e estaria evidente, entre outras coisas, pelo fato de o mestre ocupar o lugar de maior destaque nos diálogos. O episódio em que Platão teria queimado seus poemas e abandonado a poesia trágica como forma de atender às exigências socráticas e tornar-se “aluno” de Sócrates reforçaria ainda mais esta ideia. Nietzsche caracteriza Sócrates como a personificação de uma inclinação para a decadência incipiente entre os gregos, e Platão seria alguém que, sob a influência socrática, teria também encarnado este pathos dissolvente dos instintos e o teria transposto para seus próprios textos. Neste sentido, Platão poderia ser considerado uma vítima de Sócrates, alguém que teria deixado de lado sua origem nobre e sua inclinação para a poesia trágica em nome da defesa de uma perspectiva racional e moral por excelência. Nietzsche trata, inclusive, do caráter “insurrecional” e da estranheza das ideias defendidas por Sócrates, de como a não aceitação dessas ideias por seus contemporâneos, em um primeiro momento, teriam, de certa forma, contribuído para seduzir e atrair Platão para cada vez mais perto de seu mestre, para corromper o jovem poeta. As condições que levaram Sócrates à prisão e à morte são até mesmo colocadas em evidência neste momento. O processo movido contra Sócrates por corrupção da juventude e a punição a ele dada em forma de condenação à morte - em lugar de uma sentença de banimento - teriam sido decisivos no sentido de atrair Platão definitivamente para o campo do pensamento racional; seriam uma espécie de cartada final de Sócrates - ou mesmo uma cartada póstuma, se pensarmos que a própria estruturação do socratismo nos textos platônicos, e o efeito sedutor que estes textos tiveram em nossa cultura seriam historicamente posteriores à morte de Sócrates - no sentido de cooptar não apenas seu discípulo, mas, através dele, os gregos em geral e a cultura ocidental que, a partir daí, se funda:

O fato de ser condenado à morte, não ao desterro, parece ter sido algo que o próprio Sócrates obteve, com total lucidez e sem o natural pavor da morte; ele foi para a morte com a mesma tranquilidade com que, no relato de Platão, deixou o simpósio ao amanhecer, como o último dos bebedores, para começar um novo dia; enquanto os comensais adormecidos ficaram para trás, nos bancos e pelo chão, a fim de sonhar com Sócrates, o verdadeiro erótico. Sócrates moribundo tornou-se o novo, inaudito ideal da mocidade grega nobre; mais do que todos, prostrou-se ante essa imagem aquele típico jovem heleno, Platão, com toda a ardente devoção de sua alma exaltada. (GT/NT 13, KSA 1.90, tradução de PCS)

As implicações deste quase sequestro de Platão para o terreno do pensamento racional pelo “Sócrates moribundo” teriam sido bastante favoráveis ao predomínio da orientação socrática de vida, ou, dito em outros termos, o fato de Platão ter sido atraído justamente pelo que há de fraco, decadente e avesso aos valores mais nobres da sociedade grega antiga em Sócrates teria tido consequências decisivas para a vitória e a consolidação da racionalidade na cultura ocidental. E Nietzsche não deixa de dar indicações de como isso se reflete no próprio modo pelo qual os diálogos platônicos são construídos. A presença de Sócrates como protagonista de grande parte dos diálogos, a apologia da racionalidade que neles é feita, juntamente com a crítica das artes em geral e daqueles discursos aos quais a filosofia nascente se opõe poderiam ser apontadas como provas da influência socrática sobre o discípulo.

Contudo, esta “conquista” de Platão por Sócrates não teria se dado de forma total e completa, ou, pelo menos, não teria impedido totalmente que aqueles discursos que a racionalidade se esforça por desqualificar e excluir do campo do pensamento legítimo ainda se fizessem presentes nos escritos de Platão. Tendo sido ele um jovem poeta, de origem nobre, a influência socrática teria sido determinante para que o discípulo abandonasse a poesia em seus moldes trágicos e, através de sua própria obra, fundasse as bases do discurso filosófico de caráter racional. Em contrapartida, a face artística de Platão não teria sido de todo apagada pela ação corruptora de Sócrates, e os textos platônicos retratariam também uma condição dúbia, uma certa convivência da razão com seus maiores rivais. Segundo a argumentação de Nietzsche neste momento, os diálogos platônicos, por serem obra de um poeta que teria sido corrompido pela racionalidade, estariam encurralados entre as exigências da dialética socrática e os artifícios poéticos, artísticos; trariam para a luz do dia a luta da filosofia nascente para sufocar toda arte, e a brava - porém insuficiente - resistência desta no sentido de não se deixar dobrar frente às imposições da lógica e dos padrões racionalistas considerados por Sócrates como legítimos para levar a humanidade ao conhecimento da “verdade”. Em Platão, a arte que lhe servira de berço teria sido, deste modo, envenenada pela orientação socrática de pensamento, e, mesmo debilitada pelo veneno, teria conseguido resistir à morte imediata, levando os diálogos platônicos a inaugurarem um tipo diferente de poesia - uma poesia que não brilha intensamente como aquela fomentada pelos dramas trágicos, mas que, mesmo sendo forçada a ceder aos preceitos da racionalidade, ainda sobrevive. Como afirma Nietzsche: “mesmo quando predisposições indomáveis combatiam as máximas socráticas, a força destas, juntamente com a energia daquele imenso caráter, ainda era grande o suficiente para empurrar a poesia mesma rumo a posições novas e desconhecidas” (GT/NT 14, KSA 1.93, tradução de PCS).

Esta abordagem abre espaço para se pensar na hipótese segundo a qual Platão seria, neste sentido, um artista cuja obra denuncia suas próprias origens artísticas. Os escritos platônicos, por esta interpretação, teriam inaugurado uma forma de arte inteiramente nova: uma tal que cumpre o papel de negar as mesmas manifestações artísticas que também lhe teriam dado origem; uma arte dialética, impura, híbrida, na qual a poesia convive com a razão e é estranhamente obrigada a se submeter a ela, sob o comando constrangedor do personagem central Sócrates:

Um exemplo disso é [...] Platão: ele certamente não ficou atrás de seu mestre, do ingênuo cinismo deste, na condenação da tragédia e da arte em geral, mas a franca necessidade artística o fez criar uma forma de arte que é intimamente aparentada às formas de arte existentes e por ele rejeitadas. [...] Se a tragédia absorvera em si todos os tipos de arte anteriores, o mesmo pode valer, num sentido excêntrico, para o diálogo platônico, que, gerado com a mistura de todos os estilos e formas existentes, paira entre a narrativa, a lírica e o drama, entre a prosa e a poesia, rompendo assim com a severa lei antiga da unidade de forma linguística. [...] O diálogo platônico foi, digamos, o barco em que a náufraga poesia antiga se salvou com todos os seus filhos; amontoados num estreito espaço e medrosamente submissos a Sócrates, o único timoneiro, rumavam então para um novo mundo, que jamais se cansou de ver a fantástica imagem desse cortejo. Verdadeiramente, Platão forneceu a toda a posteridade o modelo de uma nova forma de arte, [...] na qual a poesia ocupa, em relação à filosofia dialética, um posto semelhante ao que essa filosofia teve, por muitos séculos, diante da teologia: o de ancilla [serva, auxiliar]. Essa foi a nova posição da poesia, para a qual foi empurrada por Platão, sob a pressão do demoníaco Sócrates. (GT/NT 14, KSA 1.93, tradução de PCS)

Pela interpretação de Nietzsche, os diálogos platônicos, na medida em que são fruto da criação de um artista corrompido pela necessidade de racionalização da vida, não produziriam senão uma arte decadente, que repele suas irmãs mais nobres: a tragédia, a pintura, a poesia, a retórica, a sofística, e todos os outros tipos de discurso que apostam nos chamados tropos, nas figuras de linguagem, nas intervenções poéticas, no poder de sedução e embelezamento que as aparências encerram. Se a tragédia é desqualificada pelo personagem Sócrates por ser uma arte aduladora, impura, mista, e por conjugar em si todos os estilos de arte existentes que a precederam, Nietzsche não poupa Platão e o acusa de ter cometido a mesma “falta”, de ter colocado lado a lado narrativa, lírica e drama, prosa e poesia. Transformando esta última em serva de preceitos racionais, Platão teria obrigado dois tipos de discurso intimamente aparentados, mas que supostamente deveriam ocupar polos opostos, a conviverem alimentando a agonia da arte. Agonia cuja causa estaria na relação de submissão que ela teria sido forçada a manter com a razão no interior de tais diálogos. Platão teria criado um tipo de discurso que sustenta uma poesia dialética, que trai a si mesma. E este discurso, como forma de recompensa pela traição que engendra, ainda é condecorado e batizado com o nome que a tradição de pensamento que a partir dele se estrutura aprendeu a valorizar acima de todas as coisas: “Filosofia”.

Com isso, Platão realizaria no discurso filosófico nascente algo que caminha em paralelo ao que Eurípides opera em seus dramas trágicos: a criação que se nega em seu interior, a arte que desqualifica e repele a arte. A poesia dialética de Platão estaria, segundo esta visão, em conformidade com a tragédia racionalista e decadente produzida por Eurípides. E, por trás de ambos, Sócrates pairaria como uma sombra negativa, como um demônio que, ainda que de través, fala pela boca daqueles que influencia. Daí a caracterização pejorativa de Sócrates como o herói dialético no drama redigido por Platão. Por ser personagem principal de certos escritos de seu discípulo, Sócrates ocuparia o lugar de herói nos referidos textos. E estes textos, na medida em que são redigidos em forma de diálogos, encaixam-se bem no termo drama. Contudo, o conteúdo veiculado pelos escritos em questão estaria muito mais ligado à crítica das artes em geral e à defesa de uma visão racional e moral do mundo do que propriamente aos temas recorrentes nos tradicionais dramas trágicos. Por isso, o herói do drama platônico é também adjetivado como o “herói dialético”. Pode-se, assim, identificar o que seria a influência corruptora que Sócrates teria exercido em Platão. E o resultado dessa ação corruptora seria um drama híbrido e decadente.

Os ecos de O nascimento da tragédia nos cursos da Universidade da Basileia 7 7 As preleções sobre Platão apresentadas por Nietzsche na Universidade da Basileia integram uma parte do espólio do autor que não consta da edição crítica de sua obra -Kritische Gesamtausgabe(KGW) em sua versão de 1988, que foi aquela a que tivemos acesso. Por este motivo, ao nos debruçarmos sobre as anotações de Nietzsche para seus cursos sobre Platão, usaremos como referência a edição de tais textos publicada em 2020, pela Editora Martins Fontes, com tradução para o português de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. Tal tradução, como informa Moraes (2020, p. XXIV), tem como base a edição daKritische Gesamtausgabe(KGW) dasNietzsche Werke(II, 4), estabelecida por Giorgio Colli e Mazzimo Montinari, continuada por Wolfgang Müller-Lauter e Karl Pestalozzi, cujasVorlesungaufzeichnungen(WS 1871/72 - WS 1874/75) foram reeditadas por Fritz Bornmann e Mario Carpitella (Berlin - Nova York, Walter de Gruyter, 1995). Trata-se, portanto, de uma edição completa e filologicamente confiável do material em questão.

Nos textos preparados para serem levados a público durante seus cursos na Universidade da Basileia na passagem de 1871 para 1872, de 1873 para 1874, e no verão de 1876, Nietzsche não apenas volta aos pontos referentes a Platão trabalhados em O nascimento da tragédia, mas também parece levar adiante alguns dos argumentos apresentados nessa primeira publicação. Estes textos comportam as anotações do então professor Nietzsche a respeito dos diálogos platônicos, do papel que estes cumprem no tocante à consolidação de uma determinada forma de interpretar o mundo que acabou por marcar fortemente nossa cultura, e de como tais diálogos podem ser vistos como uma chave para a compreensão não apenas da figura específica de Platão, mas também da relação íntima e singular que ele estabelece com Sócrates.

De um modo geral, os cursos não estão estruturados de forma a demonstrar uma tese única a respeito de Platão. Não se trata, portanto, de um texto dissertativo que apresenta uma continuidade, ou uma ideia a ser perseguida e construída progressivamente ao longo de suas páginas. O material está dividido em três partes. Na primeira, Nietzsche tematiza trabalhos dos autores do século XIX que se dedicaram a analisar a obra de Platão, passa pela formação deste - as viagens, a educação e a atividade de ensino na Academia - e faz um quadro cronológico de sua vida e uma “vista geral” de seu percurso. Na segunda parte, faz uma pequena introdução aos diálogos particulares, na qual apresenta brevemente algumas das características que ele julga mais marcantes em vários destes textos. Já na terceira e última parte, também mantendo uma certa independência entre as seções que a compõem, Nietzsche se debruça sobre aquilo que denomina “A filosofia de Platão como testemunho proeminente do homem Platão”. Neste terceiro momento, especulações acerca das influências que teriam incidido sobre Platão desde a sua juventude até a maturidade, e acerca do modo como tais influências se fariam presentes nos diálogos ganham destaque. Nietzsche, mais uma vez, enfoca a relação entre Sócrates e Platão, e analisa a presença constante do mestre nos textos do discípulo - o modo como esta presença se refletiria nesses escritos através dos elementos éticos que ali se encontram, através do constante combate ao mundo sensível e através do moralismo manifesto nesses textos. Além disso, Nietzsche enfoca a maneira como Platão se opõe à organização político-cultural grega que vigorava até então como um todo, tendo em vista a consolidação de uma nova e totalmente diferente forma de se lidar com a realidade.

A maioria dos temas relacionados a Platão que são tratados em O nascimento da tragédia também aparece nos textos dos cursos da Universidade da Basileia. Um dos fatores que contribuem para isso é o próprio fato de estes cursos terem sido preparados e oferecidos durante um período que engloba o tempo de redação e publicação do primeiro livro de Nietzsche. Nos dois casos, Platão é evidenciado como alguém que estaria ligado, ao mesmo tempo, ao campo da arte e ao do discurso filosófico nascente. Segundo esta interpretação, Platão se destacaria na história por possuir uma característica singular, e por se diferenciar, em função desta mesma característica, tanto daqueles que o antecedem quanto dos que o sucedem na cultura grega. Essa singularidade residiria justamente na ambiguidade da figura platônica: ele seria concomitantemente, como já referimos acima, filósofo e artista, poeta e inimigo dos poetas. Por um lado, seus diálogos seriam construídos segundo um modelo de redação que recorre explicitamente a artifícios poéticos tal como acontece nos discursos artísticos em geral; por outro lado, do ponto de vista do conteúdo que veiculam, tais textos fomentariam o fortalecimento de uma visão de mundo e de uma atividade que passa a ser chamada de atividade filosófica - que rompe com a tradição que a antecede e que relega os elementos mais nobres da cultura grega antiga a um lugar depreciado, de modo que a arte começa a ser tratada como algo enganoso, falso e perigoso, como algo que não conduziria a humanidade a nenhuma verdade considerada legítima e que a afastaria dos valores morais que, a partir de então, são tomados como os mais elevados, tais como “o Bem” e “o Útil”.

Logo em sua introdução, Nietzsche sublinha este caráter ambíguo que marcaria Platão e seus diálogos propriamente ditos, e faz questão de ressaltar o que, para ele próprio, seria a importância de Platão para se compreender, do ponto de vista da filologia, a transição entre os filósofos pré-platônicos e Aristóteles. Segundo Nietzsche, por ser em um só tempo artista e filósofo, Platão seria o elo de ligação, ou o elemento de transição entre o pensamento que marca a dita tradição pré-filosófica e o pensamento tido como filosófico por excelência, sistematizado e organizado por Aristóteles:

Para o filólogo, a valorização de Platão intensifica-se ainda mais. Ele há de nos valer como substituto para os grandiosos escritos dos filósofos pré-platônicos que foram perdidos. Imaginemos Platão perdido! E a filosofia começando com Aristóteles: como poderíamos tão somente imaginar, neste caso, aquele filósofo mais antigo, que era, ao mesmo tempo, artista? Não teríamos nenhum exemplo de quanto o idealismo grego penetrou a época clássica: não compreenderíamos, absolutamente, a comoção profunda e inteiramente nova através de Sócrates, o qual, com um inacreditável radicalismo, opôs-se ao mundo existente em política, em ética e arte.8 8 NIETZSCHE, F. Introdução ao estudo dos diálogos de Platão, p. 4. Trad. de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. São Paulo: Martins Fontes, 2020. A partir de agora referidos como MSPF e FJDM.

São pelo menos três os aspectos relevantes implicados nesta passagem. Em primeiro lugar, Nietzsche chama a atenção para aquilo que caracteriza como o valor filológico dos diálogos platônicos. Para ele, os textos redigidos por Platão, além de serem importantes no sentido de trazerem em seu interior uma série de discussões que, desde então, passaram a ser identificadas ao campo do que ficou instituído como o discurso filosófico nascente, seriam também preciosos por substituírem os escritos perdidos dos chamados filósofos da natureza, que teriam antecedido Platão cronologicamente. Segundo essa argumentação, partindo-se de tais diálogos, seria possível uma aproximação com os escritos daqueles pensadores que, embora já representassem, de certo modo, uma espécie de descontinuidade em relação ao pensamento mítico-religioso que caracterizava a cultura grega antiga, ainda não rompiam com esta cultura por meio da oposição aos seus elementos mais caros - em especial, a arte -, como acontece no desenrolar dos argumentos apresentados por alguns dos personagens dos diálogos platônicos. Com base nas referências aos pré-platônicos feitas nestes diálogos, seria possível ter algum contato com os ensinamentos daqueles pensadores e vislumbrar, ainda que apenas parcialmente, a atmosfera na qual eles teriam desenvolvido algumas de suas principais formulações.

Além de ressaltar a relevância filológica dos escritos de Platão, Nietzsche faz questão de frisar a singularidade destes no que diz respeito à natureza mesma do texto platônico. Segundo Nietzsche, se os diálogos platônicos tivessem sido perdidos, e o discurso filosófico tivesse tido suas origens remontadas a Aristóteles, a ambiguidade que caracteriza Platão tão fortemente, e que faz com que ele transite tanto no universo da poesia quanto no universo que ficou demarcado como o da racionalidade não teria sido impressa no nascimento da filosofia como efetivamente o foi. Platão é apontado neste momento como um “filósofo antigo, que era ao mesmo tempo artista”, e, neste sentido, as teses desenvolvidas por Nietzsche em O nascimento da tragédia começam, aos poucos, a ressoar aqui. Se Platão é evidenciado como filósofo e artista, isto se dá porque seus textos, muito embora possam funcionar como um modo de desqualificar as artes em geral e exaltem a razão acima de tudo, recorrem inevitavelmente aos mesmos artifícios e figuras de linguagem próprios aos discursos artísticos justamente para fazê-lo de forma mais eficaz. Nos diálogos platônicos, estes recursos da linguagem são utilizados para dar voz um tipo de pensamento cuja pretensão é, entre outras, a de se opor diametralmente à visão artística do mundo que marca a cultura trágica grega, a de propor uma outra forma de a humanidade lidar com a realidade que a cerca, tomando a razão como único guia legítimo. Tais diálogos estruturam-se incorporando os tropos, as figuras de linguagem que integram todo discurso, e que, nas artes, são potencializadas e encaradas como algo positivo e bem-vindo. Entretanto, em Platão, curiosamente, esta incorporação dos artifícios da linguagem aconteceria de modo diverso, com a paradoxal finalidade de desvalorizar os discursos artísticos, que são por excelência artificiosos. Sua utilização se daria não a serviço de um elogio da poesia, ou das outras modalidades de discurso que apostam no poder de sedução e embelezamento das aparências. Em lugar disso, o apelo aos tropos inerentes a todo e qualquer discurso seria um recurso do qual Platão lançaria mão justamente para garantir a eficácia das estratégias pelas quais as próprias artes seriam desqualificadas no interior de tais textos - e isto faria os escritos platônicos ainda mais singulares. Do mesmo modo como, em sua primeira publicação, Nietzsche acena para a hipótese segundo a qual Platão poderia ser visto como um artista, e, mais ainda, como um artista que, ao defender a razão acima de todas as coisas, trai suas próprias origens artísticas, na passagem citada acima, esta interpretação já começa a se insinuar novamente, porém de uma forma um pouco menos incisiva, talvez mais sutil.

Esta imagem de Platão como um artista que opera em seus próprios diálogos uma traição da arte fica ainda mais fortalecida quando atentamos para uma espécie de comparação que é também introduzida indiretamente por Nietzsche no trecho citado: a comparação que entre Platão e Aristóteles. Ao sugerir a seu leitor que imagine a hipótese de os diálogos platônicos terem sido perdidos, e de, com isso, a filosofia ter nos textos atribuídos a Aristóteles seu marco inaugural, Nietzsche nos força a pensar em certas diferenças que vêm à tona quando se colocam frente a frente os escritos de Platão e aqueles que nos chegaram historicamente com a marca do nome Aristóteles. Tais diferenças, dentre outras coisas, dizem respeito não apenas à forma de exposição e à natureza de cada um dos textos, mas referem-se, além disso, à relação neles estabelecida entre a filosofia e as artes, e também aos efeitos obtidos em cada um dos casos no sentido de se efetuar a desqualificação daqueles discursos aos quais a filosofia se opunha. Estas singularidades próprias aos escritos platônicos e aos aristotélicos, de algum modo, poderiam ser depreendidas de sua própria apresentação formal. Em seus cursos sobre Platão, Nietzsche se mostra atento ao que haveria de intervenção, de fictício e interessado nos diálogos em questão. Ao comentar o diálogo Fédon, ele chama a atenção para o fato de que a conversa ali descrita não teria de fato acontecido. Mas, mesmo assim, a narrativa teria sido reportada indiretamente pelos personagens com toda sorte de detalhes. Segundo Nietzsche, em vez de fazê-la mais verídica, a riqueza de detalhes acabaria por revelar o que nela haveria de forjado, de inventado, visando a determinados fins: revelaria o que ele chama de uma “ilusão convincente” a serviço de certos objetivos - no caso do Fédon, um possível objetivo seria o de reforçar a imagem sóbria e supostamente neutra do filósofo (representado no diálogo por Sócrates) como o sábio por excelência9 9 “Platão, todavia, precisa de Sócrates como exemplo mítico para a demonstração de seu ponto de vista. O discurso não trata de uma ocorrência histórica determinada. Platão não estava junto a Sócrates em seu último dia de vida. A narrativa por meio de personagens indiretos é um recurso artístico: 1) para reservar-se toda liberdade; 2) por outro lado, para produzir uma ilusão convincente. Quanto mais precisos são os traços, tanto mais eles são, em geral, inventados”. (Nietzsche, Introdução ao estudo dos diálogos de Platão, II, p.106, trad. de MSPF e FJDM). . De todo modo, não se pode deixar de reconhecer que, muito embora se faça presente nos diálogos pelo filtro da redação de Platão, a polifonia que marca tais textos, além de ratificar ainda mais o valor filológico sublinhado por Nietzsche, traria para o seu interior um conjunto de vozes que defendem perspectivas rivais da filosofia. Algumas das várias formas distintas de se interpretar o mundo e de se lidar com a realidade que disputam a primazia no cenário da Grécia clássica encontrar-se-iam, de algum modo, vivas nestes escritos, e, por isso, lhes confeririam também características, por assim dizer, não filosóficas.

Mas isso não é tudo. Tendo em vista que as muitas vozes que se manifestam nos referidos diálogos trazem para dentro deles perspectivas diferentes entre si, e emprestam-lhes cores múltiplas, talvez pudéssemos afirmar que os embates que se travam em tais textos entre a filosofia e a alteridade acabam por configurar algo que se aproximaria mesmo de uma encenação teatral. Uma paradoxal encenação que, por meios artísticos, condenaria os mesmos elementos artificiosos que não apenas estariam presentes na formação artística do jovem poeta Platão, mas que se fariam notar na própria arquitetura de seus diálogos: tanto nas participações de seus diversos personagens quanto na estrutura geral da composição dramática do embate encenado pelo texto, cujos efeitos persuasivos teriam tornado extremamente eficaz a condenação das artes ali empreendida. Os diálogos de Platão, segundo esta interpretação, seriam dramas cujos roteiros contam a vitória da perspectiva teórica sobre a perspectiva artística. Se, historicamente, o efeito provocado pela aceitação e pela influência que estes escritos teriam tido em nossa cultura foi a progressiva desqualificação das artes e o crescente prestígio da visão de mundo postulada pela filosofia nascente, este efeito certamente não teria sido alcançado pelo fato de a voz da filosofia que ali se pronuncia ter, de antemão, um valor superior ao das outras, mas sim porque Platão, com a habilidade artística que lhe é própria, teria traído suas próprias origens artísticas e teria encenado confrontos cujo resultado é desfavorável aos discursos miméticos. E se, até hoje, mais de dois mil e quinhentos anos após a resolução deste conflito, esses diálogos são tomados como o marco inaugural do discurso filosófico, não seria absurdo pensar que isto só teria sido possível graças às artimanhas e aos recursos poéticos utilizados por seu redator para fazer com que a porção racional e filosófica existente neles prevalecesse sobre as demais. É através de um jogo poético-dramático encenado por Platão que se inventa esta suposta superioridade da filosofia - jogo de efeito persuasivo, que teria levado a cultura ocidental a aderir a tal perspectiva. O mito da superioridade da filosofia seria um efeito desse jogo que não dispensa artifícios poéticos. Teriam sido, portanto, as artimanhas artísticas existentes em tais diálogos que teriam tornado possível a vitória da perspectiva filosófica e a posterior recepção desses escritos como textos prioritariamente filosóficos, responsáveis pela fundação da tradição de pensamento metafísico hegemônica no ocidente. Assim, em Platão, a desqualificação das artes não se estabelece em nível estritamente conceitual. Esta certamente existe. Mas a sua força seria extraída de um conjunto de elementos essencialmente artísticos. Neste sentido, a partir das teses de Nietzsche em O nascimento da tragédia sobre a arte trágica, sobre Eurípides e sobre Platão, e a partir também das indicações dadas nestes cursos da Basileia, pode-se dizer que, enquanto Eurípides, no campo das artes propriamente ditas, por expulsar o dionisíaco da tragédia, faz um drama decadente, que dissipa o efeito trágico alcançado por Ésquilo e Sófocles, Platão, por sua vez, tentando demarcar o campo da racionalidade que pretensamente se opõe às artes em geral, criaria um drama de cunho racional, dialético, e igualmente decadente. Um drama no qual a poesia é forçada por artifícios poéticos e retóricos a se dobrar diante de preceitos racionais.

Como consequência desta desqualificação das artes, e a partir dos efeitos da aceitação que os diálogos platônicos teriam tido em nossa cultura, a poesia, a pintura, e, de modo análogo, a retórica e a sofística teriam passado a habitar um nicho marginal e desvalorizado. Nicho que remete ao não-sério, à brincadeira, à ficção, à mentira, à insegurança, ao imprevisível, e que, por isso mesmo, não deixa nunca de representar uma ameaça a ser constantemente combatida e afastada. Poderíamos dizer, então, que, no que diz respeito aos diálogos platônicos, ainda que o projeto de exclusão das artes ali empreendido tenha sido bem sucedido, e ainda que a imagem negativa que a elas é associada tenha, de certa forma, tido reflexos em nossa maneira de lidar com a realidade até hoje, a marginalização das artes, por ser efetuada através de um discurso que incorpora os artifícios artísticos da linguagem, acabou por permitir que, de algum modo, as potências de falsificação encerradas pelos simulacros ainda resistissem como uma ameaça interna ao discurso filosófico nascente. Por criticar a arte por meio da própria arte, os escritos platônicos, mesmo buscando repelir a alteridade, ainda a trariam dentro de si. Daí Nietzsche caracterizar Platão como “um filósofo mais antigo, que era, ao mesmo tempo artista”. Filosofia e arte estariam fortemente entrelaçadas no texto platônico a despeito mesmo das pretensões antiartísticas que o discurso filosófico, naquele momento, traz consigo. Não fosse assim, ao final de sua empreitada contra a poesia no livro X da República, talvez o personagem Sócrates não admitisse ironicamente a sedução que esta exerce sobre ele, e não a convidasse a voltar do exílio para se autodefender em versos - tarefa que, por sinal, parece ser impossível para a poesia, dada a bem sucedida associação que Sócrates faz desta com o engano e a falta de seriedade. Mas o que parece escapar à argumentação de Sócrates neste momento, e que vem em socorro da poesia, é que pelo fato mesmo de tais diálogos recorrerem a artifícios poéticos para desqualificar a poesia, eles estariam provocando uma espécie de colapso de sua própria lógica interna, que se estrutura com o objetivo de afastar qualquer tipo de pensamento ou forma de encarar a realidade que se mostre irracional, ou ainda paradoxal, contraditória. Por se constituírem de um modo paradoxal por excelência, os escritos platônicos afundariam involuntariamente numa espécie de terreno movediço de simulacros, do qual eles não se libertam, e fariam com que a arte, mesmo desqualificada, ainda pulsasse no interior do discurso filosófico nascente, e não somente no exílio a que fora condenada, e de onde a perspectiva racionalista e moralista de interpretação do mundo jamais gostaria de tê-la visto sair.

Referências

  • Machado, R. (Org.). Nietzsche e a polêmica sobre O Nascimento da Tragédia Tradução Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
  • Mendonça A. F. A invenção da metafísica a partir da arte: perspectivas nietzschianas Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2020.
  • NIETZSCHE, -. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe Berlin/München: Walter de Gruyter/dtv, 1988.
  • NIETZSCHE, -. Introdução ao estudo dos diálogos de Platão Tradução Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. São Paulo: Martins Fontes, 2020.
  • NIETZSCHE, -. O nascimento da tragédia Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2020.
  • NIETZSCHE, -. Além do bem e do Mal Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
  • NIETZSCHE, -. Genealogia da moral Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 1998.
  • 1
    NIETZSCHE, F. Além do bem e do malNIETZSCHE, -. Além do bem e do Mal. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998 NIETZSCHE, -. Genealogia da moral. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 1998.. A partir de agora referido como PCS.
  • 2
    2005Machado, R. (Org.). Nietzsche e a polêmica sobre O Nascimento da Tragédia. Tradução Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Zahar, 2005., pp.11-12.
  • 3
    Machado, 2005Machado, R. (Org.). Nietzsche e a polêmica sobre O Nascimento da Tragédia. Tradução Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Zahar, 2005., pp. 11-12.
  • 4
    Nietzsche afirma não se perdoar por ter rendido homenagem a Wagner: “Mas havia algo muito pior no livro (que agora lamento ainda mais) do que obscurecer e estragar intuições dionisíacas com fórmulas schopenhauerianas: o fato de que estraguei o grandioso problema grego, tal como ele se me havia mostrado, com a intromissão das coisas mais modernas! De que pus esperanças onde nada havia a esperar, onde tudo apontava muito claramente para um fim!” (GT/NT, Ensaio de autocrítica 6. KSA 1. 20, tradução de PCS).
  • 5
    Vale ressaltar o aspecto curioso de um certo pacto silencioso que Nietzsche estabelece com a perspectiva desenvolvida por Aristófanes nas comédias As nuvens e As rãs com vistas a esculpir as imagens negativas tanto de Sócrates como de Eurípides em O nascimento da tragédiaNIETZSCHE, -. O nascimento da tragédia. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2020.. A referência explícita ao nome de Aristófanes e à obra As nuvens aparece rapidamente na seção 13 do livro. Nietzsche alude ao fato de que Sócrates e Eurípides são denunciados pelos chamados partidários dos velhos tempos como os demagogos do cenário ateniense em que o embate entre as visões trágica e teórica do mundo se dá. Afirma que não defenderá Aristófanes desses ataques, mas o faz de forma velada ao absorver para seu próprio texto muitas das características atribuídas por Aristófanes a Sócrates (em As nuvens) e a Eurípides e a Ésquilo (em As rãs). A perspectiva adotada por Nietzsche para criticar Sócrates e Eurípides é bastante alinhada com aquela desenvolvida pela arte cômica e dionisíaca de Aristófanes. (Cf. Mendonça. A. F., 2020Mendonça A. F. A invenção da metafísica a partir da arte: perspectivas nietzschianas. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2020., pp. 74-88).
  • 6
    “Sócrates, o herói dialético do drama de Platão, nos lembra a natureza afim do herói euripidiano, que precisa defender seus atos com argumentos e contra-argumentos, e nisso frequentemente arrisca perder a nossa compaixão trágica”. (GT/NT 14, KSA 1.94, tradução de PCS).
  • 7
    As preleções sobre Platão apresentadas por Nietzsche na Universidade da Basileia integram uma parte do espólio do autor que não consta da edição crítica de sua obra -Kritische Gesamtausgabe(KGW) em sua versão de 1988NIETZSCHE, -. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe. Berlin/München: Walter de Gruyter/dtv, 1988., que foi aquela a que tivemos acesso. Por este motivo, ao nos debruçarmos sobre as anotações de Nietzsche para seus cursos sobre Platão, usaremos como referência a edição de tais textos publicada em 2020NIETZSCHE, -. Introdução ao estudo dos diálogos de Platão. Tradução Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. São Paulo: Martins Fontes, 2020., pela Editora Martins Fontes, com tradução para o português de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. Tal tradução, como informa Moraes (2020, p. XXIV), tem como base a edição daKritische Gesamtausgabe(KGW) dasNietzsche Werke(II, 4), estabelecida por Giorgio Colli e Mazzimo Montinari, continuada por Wolfgang Müller-Lauter e Karl Pestalozzi, cujasVorlesungaufzeichnungen(WS 1871/72 - WS 1874/75) foram reeditadas por Fritz Bornmann e Mario Carpitella (Berlin - Nova York, Walter de Gruyter, 1995). Trata-se, portanto, de uma edição completa e filologicamente confiável do material em questão.
  • 8
    NIETZSCHE, F. Introdução ao estudo dos diálogos de Platão, p. 4. Trad. de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. São Paulo: Martins Fontes, 2020NIETZSCHE, -. Introdução ao estudo dos diálogos de Platão. Tradução Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. São Paulo: Martins Fontes, 2020.. A partir de agora referidos como MSPF e FJDM.
  • 9
    “Platão, todavia, precisa de Sócrates como exemplo mítico para a demonstração de seu ponto de vista. O discurso não trata de uma ocorrência histórica determinada. Platão não estava junto a Sócrates em seu último dia de vida. A narrativa por meio de personagens indiretos é um recurso artístico: 1) para reservar-se toda liberdade; 2) por outro lado, para produzir uma ilusão convincente. Quanto mais precisos são os traços, tanto mais eles são, em geral, inventados”. (Nietzsche, Introdução ao estudo dos diálogos de PlatãoNIETZSCHE, -. Introdução ao estudo dos diálogos de Platão. Tradução Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. São Paulo: Martins Fontes, 2020., II, p.106, trad. de MSPF e FJDM).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2023
  • Aceito
    12 Jun 2023
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