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Walter F. Otto - "Der junge Nietzsche" (O jovem Nietzsche) - 1936* * Publicado no Diário de Pernambuco. Pernambuco, domingo, 14 de fevereiro de 1937, p. 2. (Arquivo DP/D.A. Press, em 28/07/2016).

Resumo

Convicto de que nenhum outro filósofo operou uma transformação tão radical no século XX quanto Nietzsche, e de que seu pensamento é o que melhor caracteriza a época atual, o autor busca refletir sobre um ensaio de Walter Otto recentemente publicado na Alemanha. Em seu estudo sobre a juventude de Nietzsche, Otto teria esclarecido as origens clássicas e humanistas de sua filosofia, mas, ao mostrar as "coincidências entre as ideias de Nietzsche e as afirmações nazistas", teria perdido de vista determinadas posições que tornam o filósofo um antípoda do nacional-socialismo, entre as quais a sua admiração pelo espírito mediterrâneo.

Palavras-chave
Nietzsche; filosofia; Walter Otto; nazismo; espírito mediterrâneo

Abstract

Convinced that no other philosopher has promoted such a radical transformation in 20th century and that his thought is the one that best characterizes the current age, the author intends to reflect on an essay authored by Walter Otto, recently published in Germany. In his study about the youth of Nietzsche, Otto would have clarified the classical and humanists origins of his philosophy, but, as a matter or fact, in showing the "coincidences between Nietzsche´s ideas e Nazi´s statements", he would have overlooked some positions that make the philosopher an antipode of national-socialism, among which is his admiration for the Mediterranean spirit.

Keywords; Nietzsche; philosophy; Walter Otto; nazism; mediterranean spirit

Nada caracteriza melhor a época, que estamos vivendo, do que a terrível atualidade da filosofia de Nietzsche. Nenhum filósofo está mais próximo de nós, nenhuma ideologia apresenta maior similitude com as ideias que inspiram o homem moderno, nenhuma personalidade do passado exerce mais forte atração do que a misteriosa figura do solitário de Sils Maria.

A doutrina sanguinária de Nietzsche passou a ser a explicação teórica das mais cruéis atitudes políticas e a crença na superioridade das raças fortes constitui o fermento ativíssimo das mais graves complicações internacionais.

O princípio de que o fraco deve ser aniquilado não inspira nenhuma repulsa aos adeptos dos regimes antidemocráticos, e o sentimento heroico da vida é a mola real do movimento das massas magnetizadas pela vontade de poder dos ditadores. A exaltação da crueldade, da astúcia tortuosa e da animalização progressiva das massas encontra argumentos mais que favoráveis na prática e teoria dos governos totalitários.

Por toda a parte, o maquiavelismo político facilita a difusão de uma ideologia oposta às virtudes e aos valores cristãos. O antiliberalismo, pregado abertamente por Nietzsche, desde a sua juventude, não é mais do que a consequência necessária de uma filosofia oposta à moderação e a singeleza da caridade evangélica.

A política abandonou o princípio da justiça, a fim de se tornar um instrumento de domínio manejado pelas ditaduras pouco escrupulosas. Em quase todos os departamentos da cultura, na maioria dos credos políticos e das formas ativas da civilização ocidental, a influência de Nietzsche se exerce livremente, embora quase sempre, os mais escravizados à doutrina nietzschiana desconheçam completamente a fonte inspiradora de suas atitudes.

Nietzsche operou uma transformação radical nas diretrizes e tendências do Século XX. A sua teoria sobre a moral dos senhores e a moral dos escravos difundiu-se como a inconsciência justificativa de todas as hábeis explorações dos sentimentos coletivos em beneficio de um grupo ou de um homem privilegiado. A imposição de um sacrifício cruel às massas, para preparar o advento do super-homem, é acolhida, atualmente, por todos, como o mais legítimo recurso a fim de manter os grupos coletivos em uma tensão propícia aos empreendimentos heroicos.

De tal modo se radicou entre as nações civilizadas a tendência para a vida perigosa que os sacrifícios coletivos mais rigorosos, preconizados por Nietzsche, assumiram o feitio de uma passeata alegre ou de uma excursão ao país das maravilhas. O filósofo alemão não poderia prever nunca que tudo aquilo que se apresentava como dura experiência ou ato heroico pareça às modernas organizações totalitárias um plano ameno para lisonjear o instinto da multidão.

Seria, entretanto, deformar o pensamento do pensador e alterar os traços essenciais da imagem que conservamos da sua obra, circunscrever a ação das ideias nietzschianas ao âmbito estreito da política e da técnica partidária. Todo o pensamento filosófico da atualidade guarda vestígios mais ou menos visíveis da passagem luminosa de Nietzsche pelos caminhos eternos da especulação. Ele é o responsável pela teoria da exaltação permanente da vida e do instinto, e o inspirador de todos esses sistemas metafísicos que colocam os valores vitais acima de qualquer principio eterno ou absoluto. Essa posição de Nietzsche ficará esclarecida pelo estudo das origens clássicas e humanistas de sua filosofia. É o que faz Walter Otto nesta pequena monografia sobre a juventude do filósofo.

Nenhum pensador moderno teve uma juventude mais fecunda do que a de Nietzsche. Mergulhado nos seus estudos de filosofia clássica, entregue ao mais vibrante entusiasmo pela Grécia e pelos ideais dionisíacos, dominado por uma curiosidade insaciável de conhecer e de desvendar os segredos da natureza humana, Nietzsche é um espírito em ebulição incessante, disposto a todas as aventuras de uma vida perigosa e ascendente.

Pela primeira vez, na filosofia moderna, como lembra Walter Otto, o ponto de partida da especulação se desloca do plano das matemáticas, das ciências naturais, da teoria do conhecimento ou da teologia para o domínio dos problemas puramente humanos. Pela primeira vez, a especulação sobre a verdade e o erro sobre o bem e o mal é substituída pela ardente curiosidade de penetrar todas as forças de ação criadora. O problema da criação artística deixa de constituir um capítulo dos tratados de estética para se tornar o principal objeto da investigação filosófica.

A filosofia de Nietzsche realiza, já nos seus primeiros esboços, a íntima fusão dos valores estéticos com os conceitos especulativos. É impossível distinguir o conteúdo de um aforismo da sua forma ou expressão artística. Filosofia e estética só podem ser realmente grandes quando se interpenetram, tão intimamente, que não é mais possível separá-las. A lição da sabedoria é também uma lição de bom gosto e de beleza interior. Essa tendência estética talvez seja a qualidade mais acentuada dos primeiros escritos de Nietzsche, que soube conservar-se fiel, em tudo o que escreveu, ao ideal de perfeição que torna a sua linguagem tão impressiva e penetrante.

A influência da Grécia sobre o filósofo é, sobretudo, educativa, porque foram o equilíbrio, a harmonia e a estética dos ideais gregos que prepararam o seu espírito para apreender as formas sutis e raras do pensamento filosófico.

Nietzsche definiu, no seu primeiro ensaio verdadeiramente notável, o que significavam, para a tragédia grega, o espírito apolíneo, isto é, a beleza das formas puras e claras, e o ideal dionisíaco que exprimia a profundidade, a escuridão e a embriaguez oculta da vida. O filósofo permaneceu sempre fiel à concepção dionisíaca da existência, e a tenebrosa noite que envolveu os seus últimos anos foi a consequência de uma vida dedicada aos prazeres mais violentos que o culto de Dionísio proporciona. O pensador germânico sempre foi sensível ao excessivo, às cores sombrias ou álacres, à eloquência em tom maior, ao voo lírico e à exaltação das forças criadoras.

A cultura para Nietzsche é o fermento insubstituível da vida perigosa, da libertação, da crueldade, do heroísmo e da vontade de poder. São essas as verdadeiras virtudes e são esses os verdadeiros valores do humanismo nietzschiano. Não há argumento algum que justifique a concepção cristã da cultura, toda ela feita, segundo Nietzsche, de transigências, de fraquezas, de manifestações, de desilusão e impotência perante as formas heroicas de viver. Mais tarde, o filósofo aprofundará ainda a sua crítica impiedosa do cristianismo, e defenderá, em estilo evangélico, tudo o que foi até agora considerado mal, pecaminoso, baixo e repulsivo pela moral conservadora.

É tudo isso que explica a terrível atualidade de Nietzsche. A Alemanha, esquecida dos tremendos epítetos com que ele flagelou a obstinação e a opacidade espiritual da maioria dos seus compatriotas, festeja no filósofo um precursor do nacional-socialismo e das teorias atualmente em voga sobre a pureza da raça, a necessidade de um condutor e a primazia da vida sobre o espírito.

Entre os seus discípulos, Klages pretende transmitir intacto o conteúdo essencial da sua mensagem, e Rosenberg reflete muito bem, no "Mito do Século XX", o que acontece a algumas ideias de Nietzsche, desacompanhadas do gênio e da potência criadora do seu autor.

Os alemães modernos se esquecem facilmente de que o filósofo da vontade de poder tinha excelentes disposições musicais para não perceber no hino dionisíaco do nacional-socialismo, algumas dissonâncias desagradáveis e bárbaras. O entusiasmo pela verdadeira grandeza e o ouvido apurado afastariam o filósofo, cada vez mais, de uma ditadura fanática e ruidosa como a de Hitler, que se mantém a custa daquelas manias e ingenuidades tão ridicularizadas por Nietzsche nos seus frequentes ataques ao povo alemão.

Nada disso escaparia a perspicácia de um fino observador das reações coletivas como Nietzsche, que era, ao mesmo tempo, um perito especializado em anotar os contrastes e as inconsequências da alma germânica. O filósofo arguto não se iludiria com a ostentação aparatosa de uma unanimidade aparente, e procuraria investigar as fontes desse movimento revolucionário que se preza de prolongar uma tradução obscurecida pelos inimigos da Alemanha.

É bem provável que a crítica de Nietzsche fosse bastante hostil ao falso espírito dionisíaco que empolga atualmente os seus compatriotas. Nada nos autoriza a crer que o solitário de Sils Maria participasse, espontaneamente, do entusiasmo popular por qualquer ideologia política. Em vez das coincidências entre as ideias de Nietzsche e as afirmações nazistas, salientadas por Walter Otto, seria mais curioso indagar quais as atitudes dos partidários de Hitler que o filósofo não aprovaria.

Nietzsche nunca poderia concordar com o aviltamento da filosofia à interpretação estrita dos valores germânicos. A arte nunca seria para ele uma atividade subordinada ao ideal de beleza da raça ariana, e a psicologia significava para Nietzsche muito mais do que o conhecimento prático do homem e das representações, estilos, ideias e atitudes peculiares aos diferentes tipos raciais, como apregoa agora um impressionante documento da nova Alemanha (Nationalsozialistische Monatshefte - December - 1936, p. 1121).

Embora ferrenho adversário do liberalismo, como confessa em uma carta dirigida a Wagner, aos vinte e seis anos de idade, Nietzsche não poderia concordar com a eliminação da crítica, com a obediência passiva a espíritos sem finura, a princípios dogmáticos e a ideais fictícios.

É útil lembrar que a palavra de Zaratustra exprimia uma saudação ao advento do super-homem e não ao triunfo do condutor de milícias escravizadas pelo medo, pelo sofrimento e pelo amargo despeito. Nietzsche amava a tragédia, o heroísmo, a luta, cruenta e dura, mas as suas poesias entoam, também, o louvor do sol, do amor, do êxtase e do espírito mediterrâneo.

Se as tendências da sua filosofia denunciam a inquietação e profundeza dos pensadores germânicos, quantas de suas páginas estão impregnadas de respeito pelas virtudes latinas, de entusiasmo pelos grandes escritores franceses como Montaigne, Stendhal, os moralistas do séc. XVII, e de paixão pela vida e pela arte que refletem o claro brilho do sol mediterrâneo!

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    Publicado no Diário de Pernambuco. Pernambuco, domingo, 14 de fevereiro de 1937, p. 2. (Arquivo DP/D.A. Press, em 28/07/2016).
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    Euryalo Cannabrava (1906-1981). Filósofo brasileiro. Autor de Seis temas do espírito moderno (1941) e Teoria da decisão filosófica (1977).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016
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