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Dionisíaca Ilha: Nietzsche, o Riso e o Risível1 1 O título é uma homenagem ao meu amigo Prof. André Luis Mota Itaparica, com quem me encontrei no final deste ano de 2021 em uma banca de qualificação de doutorado (virtualmente, como coube a esse terrível ano pandêmico) e dei boas risadas com suas tiradas sempre espirituosas e bem-humoradas, na companhia de nosso amigo Clademir Araldi (em pleno dia do aniversário de 50 anos de André). Conheci André, Clademir e toda a turma desta brilhante geração de nietzschianos da Universidade de São Paulo em 1998, quando fizemos uma disciplina com Scarlett Marton sobre o Zaratustra. Aliás, André já conheci antes do início do segundo semestre letivo daquele ano na USP quando, ao pé do balcão do departamento de Filosofia, eu aguardava a secretária que me traria a prova de língua estrangeira da seleção para o mestrado (em que fui aprovado para estudar Schopenhauer com Maria Lúcia Cacciola). O episódio, a propósito, poderia figurar entre os exemplos de chistes ou eventos humorísticos que são apresentados pelos filósofos em suas teorias sobre o riso: quando a secretária lamentou não estar encontrando a prova de francês entre as outras, brinquei (com o estouvamento juvenil pessimista de alguém desencantado pela possibilidade de não lograr êxito na seleção): “então poderias me trazer de qualquer outra língua”. A que André fez um semblante comicamente irônico que me fez lembrar da Bahia (que ainda conhecia pouco na época), como que dissesse: “este se garante! Ó paí, ó!”. Foi o que faltava para aliviar a tensão do nervosismo da ocasião.

Dionysian Island: Nietzsche, Laughter and the Laughable

Resumo:

O artigo procura articular a concepção do riso em Nietzsche com a história das teorias do riso, analisando alguns estudos que apontam para uma estreita relação entre o cômico e o trágico no autor. A despeito da ênfase que geralmente é dada ao aspecto ético da função do riso como crítica da tradição moral cristã, procurou-se dar atenção especial à dimensão estética do riso dionisíaco.

Palavras-chave:
Nietzsche; romantismo; riso; risível; trágico

Abstract:

The article seeks to articulate Nietzsche’s conception of laughter with the history of theories of laughter, analyzing some studies that point to a close relationship between the comic and the tragic in the author. Despite the emphasis that is generally given on the ethical aspect of the function of laughter as a critique of the Christian moral tradition, special attention was given to the aesthetic dimension of Dionysian laughter.

Keywords:
Nietzsche; Romanticism; Laughter; Laughable; Tragic

Friedrich Wilhelm Nietzsche filosofou num estilo bastante peculiar. Constatamos isto em todos os seus contornos no excelente ensaio de André Itaparica Nietzsche: estilo e moral (Itaparica, 2002ITAPARICA, André Luís Mota. Nietzsche: estilo e moral. São Paulo, Discurso Editorial; Ijuí, Ed. Unijuí, 2002.). A discussão sobre a questão do estilo da escrita, no filósofo alemão, conecta-se necessariamente às suas investidas em relação às doutrinas erigidas sobre a fundamentação de certa concepção moral e metafísica de mundo. A leveza do estilo seria a característica, por outro lado, da escrita clara e fluente embalada pela liberdade de espírito - ausente nos estilos pesados, herméticos e rebuscados dos pensadores da tradição metafísica. Diz Nietzsche em um Póstumo, numa autocrítica a respeito do estilo de sua fase schopenhaueriana e romântica: “há leitores que preferem o rumo e o tom algo pomposo e incerto dos meus antigos escritos ao que atualmente prefiro - a maior segurança possível na designação e maleabilidade em todo movimento, a ponderação cautelosa no uso de todo artifício patético e irônico” (NIETZSCHE ApudITAPARICA, 2002ITAPARICA, André Luís Mota. Nietzsche: estilo e moral. São Paulo, Discurso Editorial; Ijuí, Ed. Unijuí, 2002., p. 26). O abandono desta cautela no uso da ironia, o desenfreado riso dionisíaco do poético estilo dos escritos da maturidade, tem sido o objeto de análise de vários estudos sobre a questão do riso na filosofia de Nietzsche. No entanto, para além desta questão estilística, o que poderíamos afirmar quando indagamos propriamente acerca de uma teoria sobre o fenômeno do riso na filosofia do autor de Zaratustra?

No período anterior a Nietzsche há uma importante discussão sobre o tema do riso (ou do risível, Lächerlich) em autores como Kant, Jean Paul e Schopenhauer (e esta discussão tem continuidade posteriormente em autores como Bergson e Freud). Contudo, a história da filosofia do riso estende-se até a Antiguidade, com Aristóteles e Cícero, por exemplo. É possível, a propósito, traçar certas perspectivas comuns em diversas teorias, como bem mostram os historiadores e antropólogos que investigaram o assunto. Em que linhagem poderíamos localizar o discurso nietzschiano acerca deste tema? Quais foram suas referências teóricas na construção da sua concepção sobre o fenômeno do riso? Se o trágico é um gênero de arte cuja presença na literatura nietzschiana é nuclear, que dizer então do cômico como ambiente estético próprio do risível?

O fato é que não há propriamente uma teoria do riso em Nietzsche, de acordo com os estudos que tratam do tema. Contudo, podemos constatar certa constância nas diversas passagens em que o filósofo fala do fenômeno: o riso entendido como a ferramenta crítica que se direciona a esta ou aquela doutrina, cuja eficácia consiste justamente no uso de uma via de argumentação alheia a esta forma de pensar e viver representada por tal doutrina; e o risível como certa tradição, construída principalmente pelo racionalismo metafísico e pela moral cristã, a ser duramente criticada pela acidez da gargalhada dionisíaca. Para esta mesma tradição o riso é tido como um desvio moral ou epistemológico a ser evitado, uma conduta inferior, que indignifica a natureza humana, levando-a ao engano e ao vício.

Por duas vezes Nietzsche questiona, no parágrafo 210 de Aurora_____. Aurora: Reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2004., o sentido do riso:

Agora se pergunta: o que é o riso? Como surge o riso? Refletimos e finalmente descobrimos que não há nada de bom, nada de belo, nada de sublime, nada de mal em si mesmo, mas existem decerto estados de alma nos quais marcamos com tais palavras as coisas fora e dentro de nós” (M/A, 210, KSA 3. 189)2 2 Não havendo indicação sobre a fonte da tradução das citações de Nietzsche é porque foram traduzidas diretamente da Digital Kritische Gesamtausgabe de Colli/Montinari (www.nietzschesource.org). .

E mais adiante, no mesmo parágrafo: “Outrora se perguntava: o que é o risível? Como se houvesse coisas fora de nós que tivessem o risível como característica, e nos esgotássemos em ideias (um teólogo disse até que seria ‘a ingenuidade do pecado’, M/A, 210, KSA 3. 189)”. E, em A gaia ciência_____. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2001., a definição mais explícita: “Riso significa: ter alegria maligna (schadenfroh sein), mas com boa consciência” (FW/GC, 200, KSA 3.506). Ou ainda, dito de modo mais poético, ao fim da terceira parte do Zaratustra:

Se minha virtude é uma virtude de dançarino e eu frequentemente saltei com ambos os pés com entusiasmo dourado-esmeralda: se minha maldade é uma maldade ridente, aclimatada aos roseirais e às sebes de lírios: - pois todo mal está concentrado no riso, mas santificado e absolvido através de sua própria bem-aventurança […] Oh, quão ansioso deveria eu estar pela eternidade e pelo nupcial anel dos anéis, - pelo anel do retorno! (Za/ZA, III, Os sete selos 6, KSA 4.290).

Nesta mesma terceira parte já havia sido decretada, no parágrafo 23: “Que seja tida por nós como falsa toda verdade que não abrigou nenhuma gargalhada”. Nietzsche se contrapunha às teorias do riso que o apresentavam como um descaminho da lógica performance do conhecimento, como nesta crítica a uma (suposta) afirmação de Hobbes:

Não obstante aquele filósofo que, como autêntico inglês, tentou difamar o riso entre as cabeças pensantes - “o riso é uma grave enfermidade da natureza humana, que toda cabeça pensante se empenharia em superar” (Hobbes) - eu chegaria mesmo a fazer uma hierarquia dos filósofos conforme a qualidade do seu riso - colocando no topo aqueles capazes da risada de ouro. E supondo que também os deuses filosofem, como algumas deduções já me fizeram crer, não duvido que eles também saibam rir de maneira nova e sobre-humana - e à custa de todas as coisas sérias! Os deuses gostam de gracejos: parece que mesmo em cerimônias religiosas não deixam de rir. (JGB/BM, 294, KSA 5.236)

Na Tentativa de autocrítica, o prefácio tardio de O nascimento da tragédia_____. O nascimento da tragédia, ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio J. Guinsburg. São Paulo, Companhia das Letras, 1992b., o riso é tomado como o símbolo da contraposição a toda filosofia metafísica: “[...] vocês deveriam aprender a rir meus jovens amigos, caso queiram permanecer completamente pessimistas; assim, algum dia talvez possam, como ridentes, mandar para o inferno toda consolação metafísica - e a metafísica com ela!” (GT/NT, Tentativa de Autocrítica, 7, KSA 1. 22).

Em sua excelente dissertação Nietzsche e o riso Thiago Leite se queixa das tentativas de compreender a temática em Nietzsche com um olhar voltado para outras teorias na história da filosofia do riso. O autor pretendeu então fazer uma análise interna relacionando o riso com outros conceitos centrais na obra nietzschiana tais como a vontade de potência e o valor3 3 É curioso notar o quanto foi negligenciado, pelas pesquisas sobre a filosofia de Nietzsche no Brasil, o caráter nuclear do riso na obra do filósofo alemão, conforme a observação de Thiago Leite em seu trabalho: e podemos mesmo concluir, após a leitura da dissertação, que o conceito do riso poderia muito bem figurar entre os componentes fundamentais classicamente conhecidos da peculiar arquitetura dos escritos do autor, como a vontade de potência, o eterno retorno, o além-do-homem etc. Além de sua dissertação, também a coletânea publicada em 2020 (organizada por Rosa Dias, entre outros) intitulada Nietzsche e o risovêm ao auxílio do preenchimento desta lacuna. . Tratou assim de “considerar o riso de Nietzsche à luz da filosofia de Nietzsche”, pois “seria pouco esclarecedor, por exemplo, buscar o sentido deste riso pela interpretação de Kant ou de Schopenhauer, ou por meio de qualquer teoria do riso exterior ao seu pensamento” (Leite, 2016LEITE, Thiago Ribeiro de Magalhães. Nietzsche e o riso. São Paulo: Universidade de São Paulo, PPGF-USP, 2016. (Dissertação de Mestrado), p. 13).

Todavia, pode-se indagar, deve o dionisíaco riso de Nietzsche ser mesmo mantido assim, ilhado?

Acreditamos que essas duas vias, a análise interna e a externa, não são excludentes, pelo contrário, são complementares e necessárias para uma visão mais ampla e fundamentada deste e de outros temas, não só em Nietzsche, mas em qualquer filósofo. Interpretamos melhor as nuances de sua singularidade e sua real contribuição se não negligenciamos o fato de todo pensador ter filosofado numa corrente histórica de pensamento que o antecede e o impulsiona. Mesmo uma filosofia assistemática como é a do autor de Zaratustra, cuja filosofia do riso se encontra dispersa em toda a sua obra publicada e manuscrita. O próprio Thiago Leite executa bem tal contextualização ao apresentar a filosofia de Schopenhauer (com alguns leves desacertos sobre sua teoria do conhecimento e sua metafísica da Vontade) como precursora da de Nietzsche, ainda que este não parta diretamente da importante tese schopenhaueriana da incongruência para pensar o riso. Contudo, dizemos nós, pode-se afirmar ainda que será fundamental em Nietzsche a crítica iniciada por Schopenhauer em relação ao abstracionismo racionalista e a tese do descompasso (e, consequentemente, defasagem) entre conceito abstrato e intuição empírica, que serve a Schopenhauer para pensar a origem subjetiva do risível. Além da incongruência, deve-se notar ainda, em Schopenhauer, a afirmação contundente da predominância do intuitivo sobre o reflexivo (tanto a sua ética quanto a sua estética estão fundadas nesta predominância, diferentemente da filosofia kantiana que o antecede). Ademais, em Schopenhauer o riso não se configura, como defende Thiago Leite, como “um fenômeno estritamente cognitivo” (Leite, 2016LEITE, Thiago Ribeiro de Magalhães. Nietzsche e o riso. São Paulo: Universidade de São Paulo, PPGF-USP, 2016. (Dissertação de Mestrado), p. 26): há uma dimensão estética que não tem sido notada pelos leitores de Schopenhauer (mesmo os especialistas). A aproximação que o autor faz entre o risível e o sublime (ao fim do capítulo 8 dos Complementos de O mundo como vontade e representação em que trata do risível) merece atenção e revela uma conexão inesperada com o romantismo alemão (especialmente com Jean Paul, citado por Schopenhauer no início), de onde provém também Nietzsche. Voltaremos a isto mais adiante.

Numa relevante obra sobre a história dos discursos acerca do riso (O riso e o risível na história do pensamentoALBERTI, Verena. O riso e o risível na história do pensamento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2002.), Verena Alberti trata da decisiva contribuição de Nietzsche para a inserção do fenômeno do riso como elemento essencial na estruturação da filosofia contemporânea. No início deste estudo (resultante de sua pesquisa de doutoramento), Alberti analisa a distinção entre o riso clássico e o riso trágico, a partir de uma classificação de Clément Rosset (em sua Lógica do pior de 1971), mostrando a importância de autores como Nietzsche e Bataille (e depois deles Freud e Foulcault) para o entendimento desta distinção e inserção da questão do riso na tessitura do saber filosófico em si mesmo. A autora nos mostra que diversos tipos de discursos remetem a um leitmotiv que apresenta o riso como o caminho para o indizível, “necessário para que o pensamento sério se desprenda de seus limites” (Alberti, 1999, p. 11) e alcance uma espécie de redenção do pensamento, até então encerrado na estreiteza da gélida rigidez da racionalidade - como já dizia Nietzsche, numa crítica a Parmênides. Exemplar, neste sentido, propõe Alberti, é o artigo “Sobre o Riso” de 1940 do alemão Joachim Ritter (1903-1974). “A noção de Dasein”, diz ela, comentando Ritter,

tem aqui um valor totalizante, compreendendo, por um lado, a ordem positiva e essencial e, por outro, aquilo que essa ordem exclui como nada. É da essência da ordem e do sério obrigar uma metade do Dasein a existir sob a forma de oposto […] Ela só se torna visível e audível, para o sério, através do riso e do cômico: “O que é posto em jogo e apreendido com o riso é o pertencimento secreto do nada ao Dasein” (Alberti, 1999, p. 11-12).

A autora analisa também a importância do riso no pensamento de Georges Bataille, que o toma como um alicerce para sua filosofia a partir de 1920. “Minha filosofia é uma filosofia do riso”, afirma Bataille em 1953. O riso, mostra Alberti, foi para ele “o dado central, o dado primeiro, e talvez o dado último da filosofia” (Bataille apud Alberti, 1999, p. 13). Na lida com este caminho inusitado para o pensamento do impensável, Bataille prestara seu tributo a Nietzsche e sua importância “na consolidação dessa relação imperativa entre o riso e o pensamento na filosofia moderna” (Alberti, 1999, p. 15), confessando a inequívoca similaridade entre os dois, no que diz respeito ao tema do riso. Para confirmar tal aproximação, a autora faz referência ao Livro I de A gaia ciência, onde Nietzsche decreta: “Rir sobre si mesmo, como se deveria rir para sair de toda a verdade, para isso os melhores não tiveram até agora suficiente sentido de verdade e os mais capazes, muito pouco gênio!” (Nietzsche apud ALBERTI, 1999, p. 15).

Contudo, além desta forma clássica do riso (como nomeou Clément Rosset), que procura dar voz ao indizível (em Freud, por exemplo, a psicanálise se apresenta como uma via para esta representação do irrepresentável) é preciso mencionar ainda o riso trágico que é caracterizado pelo pensador francês como o “riso exterminador” (Rosset apud Alberti, 1999, p. 20), que não visa mais à apresentação do sentido velado pela racionalidade, mas pela destruição do sentido:

Para realçar a especificidade desse riso, Rosset lhe opõe o riso clássico, que situa no terreno do sentido, na medida em que seu efeito cômico vem do contraste entre o sentido e a incoerência. O riso clássico, comparado ao trágico, teria uma grande fraqueza: é incapaz de ascender ao pensamento do acaso, porque pressupõe a preexistência de uma positividade do sentido. Como ri do impensável, continua pressupondo o pensável. O riso trágico, ao contrário, faria o sentido desparecer de uma só vez, como o Atlântico fez desaparecer o Titanic, sem compensar a destruição com uma razão [Rosset se referiria aí a alguns episódios envolvendo o acidente com o navio, como a ordem de manter a velocidade máxima mesmo sob a eminência do perigo quanto aos icebergs; ou a orquestra que muda o repertório para temas religiosos no momento mais desesperador - JS] (Alberti, 1999, p. 21).

O riso oriundo da absurda taxionomia citada por Foucault em As palavras e as coisas se enquadraria no riso clássico, segundo Rosset, com o que Verena Alberti discorda, criticando o autor da Lógica do pior pela impossibilidade, em seu próprio livro, de escapar ao riso clássico (ou riso cômico, segundo ela), no sentido em que sua afirmação da positividade do caos (o acaso, o nada) em relação à ordem o manteria ainda preso ao mesmo esquema anterior, situando o riso no lado de lá, no impensável.

Em última instância, a autora se contrapõe a esta linear separação entre o pretenso sem-sentido do trágico (como queria Rosset) e a afirmação, pelo riso, do sentido do indizível. A despeito disto (pois em Nietzsche também podemos falar da positivação do não-sentido) conclui Alberti, poderíamos dizer ainda que no autor de O nascimento da tragédia o riso é em si mesmo trágico, que o filósofo alemão subverte a clássica oposição entre o riso e o trágico: “trata-se de saber rir do trágico, acima e além de toda compaixão que ele possa engendrar” (Alberti, 1999, p. 22). Para consolidação desta tese a autora apresenta um Póstumo de Nietzsche (citado algumas vezes por Bataille) de 1882: “Ver naufragar as naturezas trágicas e ainda poder rir, apesar da mais profunda compreensão, da emoção e da compaixão, isto é divino” (Nietzsche apud ALBERTI, 1999, p. 22).

Uma outra tentativa de relacionar o riso e o trágico em Nietzsche, desta vez, a meu ver, sem muito êxito, encontramos no artigo “O trágico e o riso na arte da travessia” de Ricardo José Camêlo da Silva. O autor procurou analisar o aspecto pedagógico do riso que contrastaria com o “caráter de peso e aniquilação do trágico” (Silva, 2008SILVA, Ricardo José Camêlo da. O trágico e o riso na arte da travessia. In: Revista Educação. Ano 11 - n. 12 - dezembro 2008 - pp. 105-116., p. 105). A partir de referência a Bergson e sua análise do aspecto social do riso (Bergson, 2004BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004.), Ricardo Silva procura mostrar que, a despeito de Aristóteles (que relegara a comédia a um patamar inferior ao de outras artes, tomando o riso como característica do homem vil, diferentemente do herói trágico) em Nietzsche o riso se consubstancia como um elemento fundamental na concepção da educação do espírito livre. Mostra ainda que na consolidação nietzschiana da gaia ciência, na esteira de Schopenhauer, a questão do riso é um elemento estrutural nuclear em sua crítica ao racionalismo filosófico. “Talvez ainda haja um futuro também para o riso”, diz Nietzsche no primeiro parágrafo de A gaia ciência, aí citado por Ricardo Silva. Entretanto, uma outra importante discrepância em relação a Aristóteles passou despercebida ao autor do artigo: ao apontar para o significado positivo e transformador do trágico (certamente numa referência ao amor fati) e sua relação com o cômico, Ricardo Silva defende enfaticamente que “o riso é para Nietzsche a ‘catarse’ artística por excelência. Exercício pedagógico excepcional. Condição necessária para libertar o espírito do peso da gravidade para a leveza artística” (Silva, 2008SILVA, Ricardo José Camêlo da. O trágico e o riso na arte da travessia. In: Revista Educação. Ano 11 - n. 12 - dezembro 2008 - pp. 105-116., p. 111). No entanto, a tese do autor é contradita por ele mesmo, ao apresentar a conhecida passagem do parágrafo 5 do Crepúsculo dos ídolos_____. Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. em que Nietzsche se contrapõe à tese aristotélica da tragédia como catarse:

O dizer sim à vida mesma ainda em seus problemas mais estranhos e mais duros; a vontade de vida, tornando-se alegre de sua própria inesgotabilidade em meio ao sacrifício de seus tipos mais elevados - isto chamei de dionisíaco, isto decifrei enquanto a ponte para a psicologia do poeta trágico. Não para se livrar de pavores e compaixões, não para se purificar de um afeto perigoso através de sua descarga veemente - assim o compreendeu Aristóteles -: mas a fim de, para além de pavor e compaixão, ser por si mesmo o eterno prazer do vir a ser - aquele prazer que também encerra em si ainda o prazer na aniquilação (Nietzsche apudSILVA, 2008SILVA, Ricardo José Camêlo da. O trágico e o riso na arte da travessia. In: Revista Educação. Ano 11 - n. 12 - dezembro 2008 - pp. 105-116., p. 112).

Por conseguinte, torna-se sem efeito sua tentativa de aproximar o trágico do riso em Nietzsche pela via da catarse, tendo em vista que também no riso não cabe, como se mostrou acima, a referência a pavor e compaixão! Levando isto em conta seremos mais coerentes com a exortação nietzschiana (na Tentativa de autocrítica) ao pessimismo completo dos ridentes. E é neste sentido que Georges Minois em sua História do riso e do escárnio analisa a questão do riso em Nietzsche: na perspectiva de um instrumento de crítica à tradição moral cristã e ao significado (otimista, poder-se-ia dizer) dado à vida por esta tradição, fundamentado na ideia de uma harmonia preestabelecida, gerenciada por um Deus único e benevolente. Segundo ele, o riso surge em Nietzsche a partir da mesma constatação de Schopenhauer: “o homem descobre sua solidão em um universo que não tem um sentido preestabelecido” (Minois, 2003MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003., p. 517). Portanto, também na filosofia nietzschiana - nesta “gargalhada niilista” (Minois, 2003MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003., p. 518) - a risibilidade está atrelada a uma visão pessimista de mundo. “O riso e o pessimismo caminham juntos”, afirma o historiador francês, “entretêm-se mutuamente. É porque tomamos consciência de nossa condição desesperada que podemos rir seriamente, esse riso nos permite suportar esta condição” (Minois, 2003MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003., p. 519). Em Nietzsche o trágico não é uma mera tekhné (tal como em Aristóteles), uma ferramenta de produção de sentimentos catárticos (ou fruição deleitosa, no caso do cômico4 4 “Constatamos, então, que o cômico perde sua conotação artístico-salvadora, na medida em que o pensamento filosófico de Nietzsche se afasta da representação como consolação em direção à concepção propriamente afetiva da vontade de potência […]. Aqui, a 'consolação' dá lugar à 'inversão da experiência' por exuberância, onde o excesso de força permite uma tal inversão que define o riso como expressão do prazer no absurdo” (Leite, 2016, p. 142). ) mas é uma via de acesso às entranhas da vontade de potência.

Ainda quanto à questão da relação entre o trágico e o riso (e retomando a afirmação acima da raiz romântica das filosofias de Schopenhauer e Nietzsche), o artigo de Romero Freitas O cômico e o trágico no romantismo alemão nos proporciona importantes esclarecimentos: o autor apresenta ali uma análise do conceito de ironia no pensamento de Schlegel e uma reflexão sobre as comédias de Tieck como manifestações práticas da teoria do primeiro, para daí alicerçar a ideia (seguindo um ensaio de Peter Szondi) de que a estética romântica representa perfeitamente uma ideia de modernidade fragmentada em vias de busca de unidade. O artigo mostra então “como a ironia se relaciona com a expressão cômica, uma vez que a sua transformação em princípio filosófico central a coloca na vizinhança do estilo ‘elevado’ (sublime, sério ou trágico)” (Freitas, 2008FREITAS, Romero. O cômico e o trágico no romantismo alemão. In: Especiaria - Cadernos de Ciências Humanas. v. 11, n.19, jan./jun. 2008, p. 101-115., p. 102). Será compreendido então o cômico no romantismo como uma “continuação do trágico por outros meios” (Freitas, 2008FREITAS, Romero. O cômico e o trágico no romantismo alemão. In: Especiaria - Cadernos de Ciências Humanas. v. 11, n.19, jan./jun. 2008, p. 101-115., p. 102).

Schopenhauer (que já tratara de aproximar o trágico e o sublime no terceiro Livro do Tomo I de sua obra magna) falará em “parentesco” entre o cômico e o sublime ([…] dem Erhabenen verwandte Art des Lächerlichen auszusondern) nas últimas linhas de seu capítulo sobre o risível no Tomo II de O mundo. Por sua vez, Jean Paul inicia o Programa VI de seu Vorschule der ÄsthetikPAUL, Jean. Vorschule der Ästhetik. Disponível em: www.projekt-gutenberg.org/jeanpaul/vorschul/vorschul.html
www.projekt-gutenberg.org/jeanpaul/vorsc...
com uma análise do conceito de sublime, mostrando que o risível se aproxima de uma espécie de sublime, mas não aquele do infinito incomensurável (tal como encontramos em Kant com a tese dos sublimes matemático e dinâmico). Tanto em Schopenhauer quanto em Jean Paul destaca-se o papel da subjetividade na concepção do fenômeno do riso, nesta relação de antagonismo entre o sujeito e o objeto, tal como notamos também no fenômeno do sublime, em que a subjetividade se torna o suporte de uma relação incongruente entre o caráter abissal da fenomenalidade e os limites da capacidade de apreensão do sujeito. Este mesmo movimento de alternância entre o distanciamento violento e sensação de sublimidade, de elevação, é registrado no sentimento trágico5 5 Aqui se mostra com clareza que tanto no idealismo sui generis de Schopenhauer quanto no romantismo de Jean Paul a comicidade está fundada antes no “riso” do que no “risível” propriamente: depende do sujeito que ri e não do objeto de que se ri. .

O princípio de tudo isto, segundo Romero Freitas, é a mudança pela qual passara o conceito de trágico no primeiro romantismo do final do século XVIII em relação à poética clássica (desfaz-se a oposição entre o trágico e o cômico outrora encontrada em Aristóteles):

O ponto de partida dessa transformação é a teoria da tragédia desenvolvida por Schiller a partir do início da década de 1780, concebendo os “objetos trágicos” como uma contradição entre a matéria e o espírito, o instinto e a lei, o real e o ideal. Em certo sentido, essa contradição trágica é a alma da própria filosofia crítica iniciada por Kant e continuada por Schiller. Mesmo antes da teoria schilleriana da tragédia, a crítica já é trágica em si mesma, uma vez que ela descobre uma profunda cisão no interior do homem, concebido como “cidadão de dois mundos”: a razão deve limitar-se à experiência, mas suas pretensões teóricas, devido ao seu próprio “destino” (CRP A VII), tendem ao que vai além dela. (Freitas, 2008FREITAS, Romero. O cômico e o trágico no romantismo alemão. In: Especiaria - Cadernos de Ciências Humanas. v. 11, n.19, jan./jun. 2008, p. 101-115., p. 102)

Sendo assim, podemos dizer que não é descabido estender esta ponte entre Zaratustra e os românticos (ainda que bastante afunilada, tendo em vista a metafísica e a mística religiosidade de alguns destes últimos): se a obra nietzschiana se apresenta como uma filosofia ridente, isto de certo modo teria se iniciado com o romantismo (mas já antecipado por Platão, afirma Romero Freitas). “No romantismo, a comédia se torna reflexiva, e a filosofia, ao seu modo, cômica”, diz ele, e conclui: “‘Ironia’, ‘humor’ e ‘chiste’ são os nomes que a filosofia, sem deixar de ser séria (isto é, ‘elevada’, científica, metafísica), dará a seus próprios aspectos cômicos, criando uma síntese inédita entre a reflexão e o riso: uma forma de expressão cômico-filosófica só comparável à do cinismo antigo” (Freitas, 2008FREITAS, Romero. O cômico e o trágico no romantismo alemão. In: Especiaria - Cadernos de Ciências Humanas. v. 11, n.19, jan./jun. 2008, p. 101-115., p. 106).

Referências

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  • _____. Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
  • _____. O nascimento da tragédia, ou helenismo e pessimismo Trad., notas e posfácio J. Guinsburg. São Paulo, Companhia das Letras, 1992b.
  • PAUL, Jean. Vorschule der Ästhetik Disponível em: www.projekt-gutenberg.org/jeanpaul/vorschul/vorschul.html
    » www.projekt-gutenberg.org/jeanpaul/vorschul/vorschul.html
  • SILVA, Ricardo José Camêlo da. O trágico e o riso na arte da travessia. In: Revista Educação Ano 11 - n. 12 - dezembro 2008 - pp. 105-116.
  • 1
    O título é uma homenagem ao meu amigo Prof. André Luis Mota Itaparica, com quem me encontrei no final deste ano de 2021 em uma banca de qualificação de doutorado (virtualmente, como coube a esse terrível ano pandêmico) e dei boas risadas com suas tiradas sempre espirituosas e bem-humoradas, na companhia de nosso amigo Clademir Araldi (em pleno dia do aniversário de 50 anos de André). Conheci André, Clademir e toda a turma desta brilhante geração de nietzschianos da Universidade de São Paulo em 1998, quando fizemos uma disciplina com Scarlett Marton sobre o Zaratustra. Aliás, André já conheci antes do início do segundo semestre letivo daquele ano na USP quando, ao pé do balcão do departamento de Filosofia, eu aguardava a secretária que me traria a prova de língua estrangeira da seleção para o mestrado (em que fui aprovado para estudar Schopenhauer com Maria Lúcia Cacciola). O episódio, a propósito, poderia figurar entre os exemplos de chistes ou eventos humorísticos que são apresentados pelos filósofos em suas teorias sobre o riso: quando a secretária lamentou não estar encontrando a prova de francês entre as outras, brinquei (com o estouvamento juvenil pessimista de alguém desencantado pela possibilidade de não lograr êxito na seleção): “então poderias me trazer de qualquer outra língua”. A que André fez um semblante comicamente irônico que me fez lembrar da Bahia (que ainda conhecia pouco na época), como que dissesse: “este se garante! Ó paí, ó!”. Foi o que faltava para aliviar a tensão do nervosismo da ocasião.
  • 2
    Não havendo indicação sobre a fonte da tradução das citações de Nietzsche é porque foram traduzidas diretamente da Digital Kritische Gesamtausgabe de Colli/Montinari (www.nietzschesource.org).
  • 3
    É curioso notar o quanto foi negligenciado, pelas pesquisas sobre a filosofia de Nietzsche no Brasil, o caráter nuclear do riso na obra do filósofo alemão, conforme a observação de Thiago Leite em seu trabalho: e podemos mesmo concluir, após a leitura da dissertação, que o conceito do riso poderia muito bem figurar entre os componentes fundamentais classicamente conhecidos da peculiar arquitetura dos escritos do autor, como a vontade de potência, o eterno retorno, o além-do-homem etc. Além de sua dissertação, também a coletânea publicada em 2020 (organizada por Rosa Dias, entre outros) intitulada Nietzsche e o risoDIAS, Rosa ; VASQUES, Joseane ; MOURILHO, Fabio (Org.). Nietzsche e o Riso. Rio de Janeiro: Ed. 7Letras, 2020.vêm ao auxílio do preenchimento desta lacuna.
  • 4
    “Constatamos, então, que o cômico perde sua conotação artístico-salvadora, na medida em que o pensamento filosófico de Nietzsche se afasta da representação como consolação em direção à concepção propriamente afetiva da vontade de potência […]. Aqui, a 'consolação' dá lugar à 'inversão da experiência' por exuberância, onde o excesso de força permite uma tal inversão que define o riso como expressão do prazer no absurdo” (Leite, 2016LEITE, Thiago Ribeiro de Magalhães. Nietzsche e o riso. São Paulo: Universidade de São Paulo, PPGF-USP, 2016. (Dissertação de Mestrado), p. 142).
  • 5
    Aqui se mostra com clareza que tanto no idealismo sui generis de Schopenhauer quanto no romantismo de Jean Paul a comicidade está fundada antes no “riso” do que no “risível” propriamente: depende do sujeito que ri e não do objeto de que se ri.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2021
  • Aceito
    10 Dez 2021
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