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Nietzsche, fonte de Hitler* * Publicado na Revista do Globo . Porto Alegre, v. 5, n. 108, 5 de Abril de 1933, p. 4 e 5.

Resumo

Após retornar de uma viagem a Alemanha, o autor busca refletir sobre as causas de ascensão do nacional-socialismo. Para ele não seriam os problemas econômicos que moveriam os hitleristas à guerra, mas sim "fontes espirituais", um "dinamismo filosófico" inerente à cultura germânica, com raízes em Lutero e nos românticos alemães, sintetizadas no pensamento nietzschiano. Principal responsável pela ruptura alemã com o ideal clássico dos antigos e com a racionalidade francesa, Nietzsche seria a "dinamite" na mão da geração alemã de 1900, a qual teria confundido Zaratustra com Hitler.

Palavras-chave
Nietzsche; cultura; filosofia; nacional-socialismo; Hitler

Abstract

After returning from a journey to Germany, the author searched to reflect upon the causes of the rise of Nazism. For him what would have moved Hitlerists to war were not economic problems, but "spiritual sources", a "philosophical dynamism" inherent to German culture, with roots in Martin Luther and in German romantics, summed up in Nietzschean thinking. As the main responsible for the German rupture with the classic ideal of the ancients and with French rationality, Nietzsche would be "dynamit" in the hands of the German generation of 1900, who would have confused Zarathustra with Hitler.

Keywords
Nietzsche; culture; philosophy; national socialism; Hitler

Todo o mundo fala de Hitler em todos os tons, às vezes sem conhecer nada dos assuntos alemães... Eu trago também minha pedrinha, com a escusa de ter vivido lá o verão passado. Se o chefe fascista não é de meus íntimos, ao menos tive ocasião de ver sua propaganda e seus esforços.

Crise econômica... Com isto se julga ter dito tudo. Desde quando a economia conduz o mundo? Desde o século da máquina? Se os ricos imperassem não haveria mais guerra; é evidente. Não é impressionante que o que triunfa seja a ideologia, o sentimento? Sem desconhecer a importância dos fatos econômicos, são motivos sentimentais e filosóficos que marcam as grandes diretrizes históricas, as ideias dominam o mundo.

A crise alemã tem fontes espirituais, certo dinamismo filosófico que lhe dá uma grandeza que muitos desconhecem e que constitui a sua maior gravidade.

"Sê forte!". Este lema eu vi nas bandeiras, como uma ordem de Hitler; este é o ideal de mais da metade da Alemanha atual. Nem Epiteto nem Marco Aurélio predicaram esta doutrina: eles queriam a dureza para consigo mesmo, antes de exigi-la para os demais. Os hitleristas são ativos, inspiram-se em Nietzsche: "Tudo o que não conduz à ação é vaidade".

Nietzsche? Sim, o grande profeta moderno da natureza - "Virtude indispensável para quem quer subir montanhas". Nada de piedade! A vida é o triunfo do mais forte - teoria darwiniana que conduz ao princípio famoso: a força sobre o direito. - Esta é uma das teorias familiares de Nietzsche e de Hitler. É preciso dizer: sim; e aceitar o destino. A guerra é o pai de todas as coisas, diz Zaratustra, repetindo as palavras de Heráclito.

Os ditadores alemães, que são tão pouco socialistas quanto lhes é possível, aliciam as massas alemãs no seu "exército de saúde", em nome do aristocratismo, da moral dos senhores. O paraíso hitleriano está à sombra das espadas. Uma boa guerra santifica toda a causa. O homem são vive conforme a natureza, e é insensível. A teoria sedutora aplicada por Nietzsche a Cesar Bórgia e a Napoleão foi adotada pelo chefe fascista. Advirta-se que esta teoria é romântica e alemã. Que comodidade: criar a gente uma moral para uso particular e impor a todos o seu egoísmo! Klinger, Goethe e Lutzow não a desdenhariam.

O mais notável é que a teoria do "retorno à natureza" se alia nos junkers alemães ao espírito de hierarquia. A revisão nietzschiana de valores nos ajuda a compreender as dúvidas da Alemanha presente, cheia de obscura fé em um porvir melhor. Tudo ali é provisório, pois se vive com os olhos postos "no que há de vir". Ser hoje; isto não tem sentido em Berlim. Porvir é a palavra de ordem. Já o dizia Goethe, no Fausto; e não se pode duvidar de que haja heroísmo nesta confiança cega no futuro, na força e na juventude. Há heroísmos, sem dúvida, também na luta contra a enfermidade e a loucura, na afirmação da bondade humana, no mito do eterno retorno, na aceitação da solicitude, no gosto do perigo e da audácia. Tudo isso, que é a essência nietzschiana, está no primeiro plano da Alemanha atual. "Duvidar de si mesmo é o primeiro sintoma de apodrecimento" - dizia o mestre. Extraordinária aliança de classicismo e romanticismo. São clássicos o estoicismo, o conformismo que aceita a dor da vida, o mal; clássica a vontade de buscar a dor e vencê-la. Heroísmo luterano, derivado de seu egocentrismo dionisíaco, de seu gozo de possuir Deus. É o heroísmo beethoveniano da nona sinfonia, sobre o ditirambo de Schiller: todas as criaturas, desde o verme ao arcanjo, igualmente benditas, louvando a graça do criador. Heroísmo goethiano que predica que o homem deve aceitar-se a si mesmo, realizar sua ideia finita e conformar-se.

Mas quanto romanticismo por outro lado há nesse dinamismo delirante da juventude alemã! Revolucionária e violenta contra toda a autoridade antiga, cheia de otimismo dionisíaco quanto ao advento de uma nova era e quanto à ruina da civilização burguesa. Superlativo de todos os excitantes. Com ritmo cinematográfico, isto foi Nietzsche; isto são as três quartas partes da juventude alemã. Generosidade que dá, porque julga ter tudo em abundância. Ódio ao sonho, à regularidade, à ordem; romanticismo da energia, extremamente perigoso, que termina no niilismo, na loucura da grandeza, no desencadeamento hitlerista.

O altivo preceito de Zaratustra, o sacrifício sem objetivo não pode levar senão à autodestruição. O heroísmo que não serve a ninguém é aniquilador: a dinamite nietzschiana em mãos de jovens hitleristas.

Dão-se diferentes nomes à transmutação de valores erigida por Nietzsche: objetividade, sinceridade, realismo, aceitação do fato cumprido. Repúdio ao ideal cristão. Já Lutero, antes de Calvino, aconselhava usar dos bens da terra para agradar a Deus. A noção de liberdade deve reservar-se para a vida interna; no demais, é preciso submeter-se à autoridade externa, ao Estado. Dir-se-á que Nietzsche fulminou o Estado bismarqueano; mas era por que ele tinha sonhado com algo maior e mais potente, na Alemanha futura: o ideal pangermanista de Hitler. Por sua vida, sua obras, por seu ensinamento, Nietzsche é antípoda do ideal de medida, de claridade, de razão que caracteriza o espírito clássico greco-latino.

O que me impressionou mais do outro lado do Reno foi o desprezo pelos valores artísticos e filosóficos. A razão de ser e o porvir da Alemanha, dizem, residem na ação. Não se quer nada com a cultura mediterrânea: deseja-se regressar ao germanismo descrito por Tácito e os Nibelungos. Pode-se descontar isto à exasperação nacional. Mas, ainda entre os altos intelectuais, segundo Platz, Siegburg, Curtius, há um desdém profundo pelo que nós chamamos cultura.

A Alemanha se isola de novo em sua cultura explosivamente germânica. Nietzsche foi, apesar da "Origem da Tragédia", o pioneiro do rompimento alemão com a cultura antiga. Deixou traçado o caminho para Spengler. Quis substituir com seu Zaratustra o ideal platônico; mas é preciso notar que certa vez confessou: "Se estamos faltos de sangue, temos necessidade da prédica de Zaratustra em benefício de nosso corpo; mas quando estamos sãos, Platão convém mais".

Contentar-se com o ganho, dizia Zaratustra, por parte de um alemão, é envelhecer ou marcar passo. Um alemão deve progredir sempre, pensar no porvir mais do que no presente. A Alemanha morreria se ficasse imóvel, ainda que em certo estado de grandeza. Deve aspirar sempre a subir mais alto. Aonde levará a Alemanha esta ruptura com o ideal clássico, com a "razão" francesa? Nietzsche sofreria cruelmente ao ver sua doutrina convertida no ideal hitleriano de força militar; ele, que condenou o império de 1871. Não perceberia, talvez, que sua doutrina não podia ser compreendida de outra maneira pela maioria avassaladora. Era preciso ter-se prova de fogo para derivar outro ensinamento que não fosse este, da prédica de Zaratustra. Seus aforismos foram tão antitéticos que a geração de 1900 confundiu Zaratustra com Hitler.

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    Publicado na Revista do Globo . Porto Alegre, v. 5, n. 108, 5 de Abril de 1933, p. 4 e 5.
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    Jean Gaudefroy-Demombynes (1898-1984). Historiador e professor universitário. Autor de Pensées choises pour mes camarades (1918) e La religion de la culture (1958).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016
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