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Ensaio de autocrítica, “ante um olhar mais velho, cem vezes mais exigente, mas não mais frio”

Self-critical essay, “to an older gaze, a hundred times more demanding, but not colder”

Resumo:

O artigo revisita o Ensaio de autocrítica, redigido por Nietzsche como prefácio tardio paraO nascimento da tragédia, na edição de 1886. A intenção é mostrar como sua interpretação do conceito de dionisíaco alcança suas obras de maturidade, entre elasEcce Homo,Além de bem e maleAssim falou Zaratustrae como sua autocrítica deixa notar que a presença de Dioniso jamais deixaria de ocupar um lugar decisivo em seu pensamento.

Palavras-chave:
Nietzsche; Dioniso; dionisíaco

Abstract:

The article revisits the "Essay on Self-Criticism", written by Nietzsche as a late preface toThe Birth of Tragedy, in the 1886 edition. The intention is to show how his interpretation of the Dionysian concept reaches his mature works, among themEcce Homo,Beyond Good and EvilandThus Spoke Zarathustra, and how his self-criticism shows that the presence of Dionysus would never cease to occupy a decisive place in his thought.

Keywords:
Nietzsche; Dionysus; Dionysian

Para o Ernani e o Oswaldo

Celebrar os 150 anos de publicação da 1ª edição d’O nascimento da tragédia tem um sabor estranho que envolve memória, tempo e pensamentos diversos, nem sempre fáceis de organizar. O professor Ernani Chaves orientou meu Trabalho de Conclusão de Curso, defendido em 1997, portanto há exatos 25 atrás. Meu tema de pesquisa estava limitado, por prudência do orientador, a um breve texto, mas não um texto qualquer; tratava-se de uma análise do prefácio de 1886 escrito por NietzscheNIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe. G. Colli und M. Montinari (Hg). Berlin: Walter de Gruyter, Neuausgabe 1999. 15 Bd. para a reedição do seu livro de estreia, o chamado Ensaio de autocrítica, que todos nós que lemos Nietzsche conhecemos bem. Sem que eu soubesse naquela ocasião, aquele TCC seria ampliado poucos meses depois, também sob sua supervisão, abarcando os demais quatro prefácios redigidos por Nietzsche naquele mesmo ano - para Humano, demasiado humano I e II, Aurora e A gaia ciência - e aprovado como um projeto de mestrado na Unicamp, que viria a ser orientado pelo professor Oswaldo Giacoia. O resto, como se diz, é história. Neste ano de 2022, que marca os 150 anos de publicação do livro que estamos celebrando, para mim marca também exatos 30 anos desde meu primeiro contato com ele, informação que pude atestar na assinatura do volume da Companhia das Letras, na tradução de Jacó Guinsburg, comprado na livraria Jinkings, em Belém, com data de 1992. Paro por aqui a sessão nostalgia, antes de parecer um saudosista, embora muitas coisas daquela época me façam muita falta.

Considerei tudo isso ao sentar para redigir este breve texto. Tendo em mãos a nova tradução d’O nascimento da tragédia por Paulo César de Souza, decidi revisitar justamente o prefácio de 1886 a este livro, propondo a mim mesmo o desafio da releitura do primeiro texto de Nietzsche com o qual me ocupei. Como o Ensaio de autocrítica me soa hoje, como diria Nietzsche no próprio texto, “ante um olhar mais velho, cem vezes mais exigente, mas não mais frio” (GT/NT, Ensaio de autocrítica 2, KSA 1.14)? Começo exatamente deste ponto.

Nietzsche frisa que seu retorno ao livro, dezesseis anos depois da primeira publicação, embora com olhar amadurecido e cem vezes mais exigente - o que não é pouco -, não é mais frio, como se quisesse nos dizer que, mesmo dentro de um movimento de autocrítica, não estava alheio ao que lhe despertara na juventude “uma questão de primeira ordem e máximo interesse, e, além disso, extremamente pessoal” (GT/NT, Ensaio de autocrítica 1, KSA 1.11) e que a fonte do livro não poderia ser avaliada à distância. A frase expõe um curioso extremo sobre os começos do livro. O nascimento da tragédiaNIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. teria nascido de uma dupla fonte: ao mesmo tempo geral e pessoal, ou se preferirmos, universal e passional, são elas a Grécia e sua paixão musical juvenil por Wagner. Nietzsche, no Ensaio de autocrítica, reencontrou seu objeto dezesseis anos depois de “perdê-lo”. No entanto, Nietzsche jamais retornaria à música juvenil da mesma maneira, tanto que tenta nos provar, a qualquer custo, no prefácio tardio, que

o que então agarrei, algo terrível e perigoso, um problema com chifres, não necessariamente um touro, mas um problema novo, em todo caso − hoje eu diria que era o problema da ciência mesma − a ciência vista pela primeira vez como problemática, como questionável. Mas o livro em que minha juvenil coragem e desconfiança acharam vazão − que livro impossível teria de nascer de uma tarefa tão avessa à juventude! (GT/NT, Ensaio de autocrítica 2, KSA 1. 13)

Brinquemos de filologia por um momento. Esta frase serve bem para os jovens leitores de Nietzsche, porque mostra que jamais devemos confiar plenamente nas suas palavras quando relê e comenta a própria obra. É sutil, mas está ali, entre hífens, um detalhe que nunca atentei, quando ele diz que “hoje eu diria que era o problema da ciência mesma”. Fui no original e está lá, Heute, hoje. Por que esse deslocamento temporal “hoje eu diria”, quase como no verso da famosa canção de Chico Buarque, “agora eu era”? Porque Nietzsche está se referindo ao tempo coetâneo do prefácio, em 1886, anos depois da publicação do livro, mas, de modo algum a tentativa extemporânea ajuda a entender o que o livro queria ser na origem.

Nietzsche não podia simplesmente ludibriar seus leitores com uma artimanha editorial e com uma sugestão de desvio de foco tão grosseiro, e tenta a todo custo nos fazer reler o livro sob sua nova lupa, onde a ciência aparece como centro da obra:

O livro em que minha juvenil coragem e desconfiança acharam vazão − que livro impossível teria de nascer de uma tarefa tão avessa à juventude! Construído a partir de vivências pessoais prematuras, ainda muito verdes, que estavam no limite do comunicável, colocado no terreno da arte − pois o problema da ciência não pode ser conhecido no terreno da ciência −, um livro talvez para artistas com pendor analítico e retrospectivo (ou seja, para um tipo excepcional de artistas, pelos quais é preciso procurar e que talvez nem se queira procurar...), cheio de inovações psicológicas e de segredos de artista, com uma metafísica de artista como pano de fundo, uma obra juvenil plena de coragem juvenil e desalento juvenil, independente, teimosa-confiante mesmo quando parece se curvar a uma autoridade ou à veneração de si mesma. (GT/NT, Ensaio de autocrítica 2, KSA 1.13)

Aqui já uma série de desafios se apresentam à leitura. Não se tratava então de uma epistemologia clássica das ciências, já que elas não poderiam ser pensadas no interior de seus próprios fundamentos, mas de colocar a ciência, diz ele, no terreno da arte, em confronto direto. Sob qualquer ângulo, ontem e hoje, é o inusitado da proposta que, mesmo em 1886, é relembrada com o mesmo ímpeto da juventude; retornarei ao tema, mas antes pensemos sobre outra frase singular, no final do trecho acima. A que autoridade o Nascimento parecia se curvar? À autoridade de Richard Wagner, certamente. Mas como uma obra pode venerar a si mesma curvada ante a obra de outrem? Reler o Ensaio ao longo dos últimos 30 anos não significa, acreditem, conseguir tocar-lhe o fundo, esgotá-lo em todas as suas perspectivas; há sempre um não-dito, algo em suspenso, mal-entendidos que 150 depois ainda soam estranhos e enigmáticos, como a emblemática frase “ver a ciência pela ótica do artista, mas a arte pela ótica da vida” (GT/NT, Ensaio de autocrítica 2, KSA 1.14). O autodeclarado “homem cismador e amigo de enigmas” (GT/NT, Ensaio de autocrítica 1, KSA 1.11) sabia bem o quanto esse livro renderia de polêmicas e de interrogações. A ciência à qual ele se refere é a filologia, e a arte, a música; suas duas paixões juvenis, que ele gostaria de ver fundidas não apenas nele mesmo, mas como parte de um movimento de revigoramento cultural nacionalista que, se um dia foi levado a cabo, o foi de modo diverso e talvez contrário ao que penso ser sua vontade juvenil.

O nó aperta ainda mais quando Nietzsche relembra o “sucesso” do livro, sim, ele usa esta palavra para um livro cujos leitores iniciais se contam nos dedos: “considerando o sucesso que teve (em especial com o grande artista ao qual se dirigia como num diálogo, Richard Wagner), um livro provado, quero dizer, que satisfez ‘aos melhores de seu tempo’” (GT/NT, Ensaio de autocrítica 2, KSA 1.12-3). Me acompanhem: o livro fez sucesso apenas com Wagner e com “os melhores do seu tempo”; relembremos sobre quem ele está falando: os melhores eram seus amigos, seu círculo íntimo, Erwin Rohde, o próprio Wagner, sua esposa Cosima, enfim, aqueles que saíram em defesa d’O nascimento da tragédia por quaisquer que fossem os motivos; esses eram os melhores daquele tempo para Nietzsche, os que acreditavam nele.

Homem de poucos amigos ao longo da vida, logo depois do lançamento, quando ainda estava na casa dos vinte anos, já via alguns se afastarem, como Ritschl, filólogo que o respeitava profundamente, mas que silenciou; seu livro de estreia arregimentou inimigos e ainda afastou colegas para quem as teses eram radicais demais. Preciso lembrar que não estamos analisando aqui a letra do texto do livro propriamente, mas o que seu autor escreveu sobre ele, por isso, apesar de lermos no Ensaio de autocrítica que o livro, por ter encontrado leitores afins, pelo menos entre amigos, “deveria ser tratado com alguma deferência e reserva”, também nos deparamos com uma condenação, pois, diz Nietzsche, “não desejo esconder como ele me parece desagradável agora” (GT/NT, Ensaio de autocrítica 2, KSA 1.14). Esta clara alternância entre orgulho e rejeição, como um pêndulo, permaneceria mal equilibrado até o fim de sua vida. Mas, afinal, o que ele preserva e o que ele rejeita do livro em sua releitura tardia?

Não tinha me dado conta, até hoje, de que O nascimento da tragédia tem uma estrutura que só voltaria a se repetir, salvo engano, em O anticristo, no último ano de sua produção. Não sendo um tratado extenso, tampouco se confunde com os livros aforismáticos da fase intermediária, nem com o formato único da Genealogia da moral, com suas três dissertações, nem passa perto do experimento estilístico de Assim falou ZaratustraNIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Tradução e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., nem do híbrido Crepúsculo dos ídolos; já com O anticristo guarda uma curiosa semelhança, com seus capítulos numerados e sem títulos. Seria essa uma pista? Como muitas vezes acontece, pode ser uma pista falsa, mas insisto nela um pouco mais. Nietzsche queria inserir o Nascimento na tradição pesada e assinalada da filosofia alemã pela via filológica. Um pequeno tratado, pretensioso, trazendo nada menos que uma nova interpretação ampla da Grécia clássica, parecia um bom modo de se integrar, mas o resultado foi ao revés, ou seja, O nascimento da tragédia acabou por cindir a história da filosofia; há uma forma de fazer filosofia antes e outra forma depois de Nietzsche, creio que sobre isso restam poucas dúvidas passados 150 anos; a filosofia contemporânea deve a Nietzsche a implosão de uma linha de continuidade que permaneceu intacta ao longo de séculos. Quando Nietzsche o relê, o problema metodológico parece claro:

Hoje ele me parece um livro impossível − acho-o mal escrito, pesado, penoso, exagerado e confuso nas imagens, sentimental, aqui e ali adocicado e quase efeminado, desigual no ritmo, sem a vontade de asseio lógico, muito compenetrado e, portanto, desprezador de provas, até mesmo desconfiado da pertinência de provar, um livro para iniciados, como “música” para aqueles que, batizados na música, acham-se ligados por experiências de arte conjuntas e raras desde o início das coisas, como sinal de reconhecimento para parentes próximos in artibus [nas artes] − um livro soberbo e entusiasmado, que de antemão se fecha para o profanum vulgus [a massa profana] dos “cultivados” ainda mais que para o “povo”, mas que, como sua influência provou e continua a provar, deve saber muito bem como achar seus companheiros de entusiasmo e atraí-los para novos caminhos ocultos e locais de dança (GT/NT, Ensaio de autocrítica 3, KSA 1.14).

Diante de uma passagem como esta, sempre me custa entender a leitura que tenta nos fazer crer em um descarte d’O nascimento da tragédia, como se ele tivesse sido superado por outra perspectiva estética, menos arrebatada que aquela da juventude. Leiamos de novo: qual é a “impossibilidade” do livro? Penso que Nietzsche se refere justamente à pretensão mencionada anteriormente, a ideia de se inserir na tradição a partir de um tema clássico como a tragédia, mas em 1886 ele afirma que o livro é “pesado”, “penoso”, sobretudo “sem a vontade de asseio lógico”; mas quem, mesmo no calor da hora, teria sido capaz de ver n’O nascimento da tragédia uma busca por “asseio lógico”? O livro não foi mal recebido justamente por ser ilógico do ponto de vista da filologia clássica? O “fracasso” do livro não é justamente este e, paradoxalmente, seu trunfo? Notemos um detalhe: Nietzsche fala do livro sempre na terceira pessoa, criando um distanciamento crítico, mas sem nos deixar esquecer que em 1872, quando publicado, o livro já estava “desconfiado da pertinência de provar”.

E quando ele vai mais longe e afirma que o livro foi escrito para os “batizados na música”, ou ainda para aqueles que, como ele, “acham-se ligados por experiências de arte conjuntas”? Como ler isso relativizando a paixão de Nietzsche pela arte e pela música dezesseis anos depois ou ainda hoje? Não bastasse, conclui que o livro influenciou e ainda influenciava em 1886; mas quem era influenciado? Sua resposta: “companheiros de entusiasmo”, tais que o livro - não ele mesmo? - ainda gostaria de seduzir, “atraí-los para novos caminhos ocultos e locais de dança”.

Não quero parecer eu mesmo um arrebatado pelo livro - como se pudesse... -, por isso mal disfarço aqui, nesta releitura, ainda sou capaz de me surpreender, como nesta passagem abaixo, onde eu leio o anúncio de toda filosofia posterior de Nietzsche, com seus paradoxos e tensões internas, e mais, aqui vejo uma resposta clara à minha pergunta anterior, sobre o lugar do livro quando de sua entrada em cena na vida cultural e filosófica alemã:

Aqui falava, de todo modo - o que se admitia com curiosidade e aversão ao mesmo tempo -, uma voz estranha, o discípulo de um “deus desconhecido”, que se escondeu provisoriamente sob o capuz do erudito (Gelehrte), sob a gravidade e insipidez dialética do alemão, até mesmo sob as más maneiras do wagneriano; aqui estava um espírito com necessidades estranhas e ainda sem nome, uma memória exuberante de questões, experiências, segredos, às quais se juntava, como mais uma interrogação, o nome de Dionísio; aqui falava - assim se dizia, com desconfiança - uma espécie de alma quase mística e de mênade, que com dificuldade e caprichosamente, quase que indecisa se pretendia comunicar ou ocultar, como que balbuciava numa língua estranha (GT/NT, Ensaio de autocrítica 3, KSA 1.14).

A frase central que sustenta minha hipótese não poderia ser mais clara, a “voz estranha” do “discípulo de um ‘deus desconhecido’”, diz Nietzsche, “se escondeu provisoriamente sob o capuz do erudito”, tentou se inserir na assinalada tradição alemã com uma máscara que cairia meses depois de o livro sair. Alguém poderia objetar que o Dioniso tardio já não tem a mesma gana do deus desconhecido e bárbaro que possuía Nietzsche, afinal sem as “más maneiras do wagneriano”, que restaria? Nietzsche insiste em 1886:

É pena que eu não tenha ousado dizer como poeta o que tinha então a dizer: talvez tivesse conseguido! Ou como filólogo, pelo menos - pois ainda hoje resta para os filólogos, nesse âmbito, quase tudo a descobrir e desenterrar! Sobretudo o problema de que aqui um problema - e de que os gregos, enquanto não tivermos resposta para a questão “o que é dionisíaco?”, permanecerão incompreendidos e inconcebíveis como antes... (GT/NT, Ensaio de autocrítica 3, KSA 1.15).

Gostaria de insistir na ideia de que Nietzsche é muito claro nesse prefácio tardio, por isso é preciso ler e reler, traduzir e retraduzir, pois seu texto sempre guarda surpresas veladas. Se o conceito de dionisíaco é a chave para a compreensão dos gregos, ele afirma que no livro “há uma resposta [para esta questão] - nele fala ‘alguém que sabe’, o iniciado e apóstolo do seu deus” (GT/NT, Ensaio de autocrítica 4, KSA 1.15). Na nova tradução que estou utilizando, encontramos uma nota de Paulo César de Souza, onde nos lembra que o termo Jünger designa apóstolo no mesmo sentido que utilizamos em relação aos discípulos de Jesus no Novo Testamento; em 1886, Nietzsche reafirma sua filiação juvenil a Dioniso de modo exacerbado. Alguém poderia objetar que o Ensaio de autocrítica pretendia salvaguardar o livro de estreia, ou, como eu mesmo defendi na minha pesquisa de mestrado, que havia um “desejo de unidade” nos prefácios, ou seja, uma vontade de integrar o livro de 1872 ao conjunto da obra, como gostávamos de dizer. Ou que Nietzsche gostaria de tornar O nascimento da tragédia um livro dele mesmo. Leiamos então um trecho do aforismo 295 de Para além do bem e do malNIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., publicado no mesmo ano de 1886:

Como sucede a todo aquele que desde criança esteve sempre a caminho e fora de casa, também a mim me sobressaltaram espíritos raros e bem pouco inofensivos, sobretudo e quase sempre esse do qual venho falando, ninguém menos que o deus Dionísio, esse grande ambíguo e deus-tentador, a quem certa vez, como sabem, em todo sigilo e reverência ofereci meu primogênito - tendo sido o último a lhe ofertar um sacrifício, ao que parece: pois não encontrei ninguém que compreendesse então o que eu fazia. Nesse meio tempo aprendi mais, e até mais, sobre a filosofia desse deus, de boca em boca, como disse - eu, o derradeiro iniciado e último discípulo do deus Dionísio” (JGB/BM 295, KSA 5.237-8, grifos meus).

Dois anos depois, no Ecce HomoNIETZSCHE, F. Ecce Homo. Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995., encontramos a seguinte passagem: “Sou um discípulo [novamente Jünger] do filósofo Dionísio, preferiria antes ser um sátiro a ser um santo” (EH/EH, Prólogo, KSA 6.258). A meu ver, o Ensaio de autocrítica, de fato, tem uma intenção integradora, mas não apenas isso; ele também resguarda esse elemento que atravessa a obra sempre com o mesmo tom e significado, a filiação a Dionísio não é um exercício de retórica. Em uma passagem do Ensaio talvez haja uma pista para nossa leitura, justamente através da figura do sátiro, que seria utilizada depois no Ecce Homo, como vimos acima: “a partir de que vivência própria (Selbsterlebniss), de que impulso os gregos tiveram que imaginar o entusiasta dionisíaco e homem primitivo como sátiro?” (GT/NT, Ensaio de autocrítica 4, KSA 1.16) Aqui preciso fazer uma remissão ao texto original, não por preciosismo, mas porque se trata de uma questão fundamental. O termo que Nietzsche utiliza em referência aos gregos é Selbsterlebniss. Esta palavra talvez seja uma das primeiras que aprendemos quando lemos Foucault escrevendo sobre Nietzsche. Erlebnis é uma experiência pessoal, diferente da experiência coletiva (Erfahrung), daí a opção mais próxima que o tradutor escolhe para dar conta dessa especificidade: vivência, que guarda em seu radical a palavra vida. Voltemos ao texto. Causa estranheza que ele utilize um termo que, normalmente, seria utilizado para descrever uma experiência pessoal e não coletiva, embora ele se refira “aos gregos”. Podemos apenas arriscar um caminho de leitura.

Ao utilizar o termo vivência, de certo modo Nietzsche se coloca em uma cena hipotética, isto é, junto dos gregos. Isso faz parte do que se convencionou chamar de interpretação alegórica, onde muito do próprio Nietzsche é atribuído aos gregos num processo não menos raro quanto complexo de se entender. Tanto é assim que no Ecce Homo ele diz cabalmente, “preferia antes ser um sátiro a ser um santo”. Quantas vezes li essa passagem sem me dar ao trabalho de pesquisar, afinal, o que é um sátiro, este semideus com o qual Nietzsche se identifica em momentos-chave de sua obra juvenil e madura? Assim o define Pierre Grimal em seu Dicionário de mitologia grega e romanaGRIMAL, P. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.:

Os sátiros, também chamados “silenos”, são gênios da natureza que foram incorporados no cortejo de Dioniso. Eram representados de diferentes maneiras: umas vezes, a parte inferior do corpo era a de um cavalo, e a superior, a partir da cintura, a de um homem; outras vezes, a sua parte animal era a de um bode. Num e noutro caso, eram dotados de uma grande cauda, abundante, semelhante à de um cavalo, e de um membro viril sempre ereto e de proporções sobre-humanas. Eram imaginados a dançar no campo, bebendo com Dioniso, perseguindo as Ménades e as Ninfas, vítimas mais ou menos relutantes da sua lubricidade [luxúria].1 1 Grimal, 1993, p. 413.

Apesar do uso da mitologia, das sugestões eróticas explícitas, da permanência desses elementos alegóricos em textos da terceira fase da obra, O nascimento da tragédia é descrito no Ensaio de autocrítica como uma obra inaugural, que deveria ser vista como parte do seu projeto filosófico que só se completaria nas obras de maturidade; isso aparece claramente na passagem em que Nietzsche afirma que, no livro de estreia

se anuncia, quiçá pela primeira vez, um pessimismo “além do bem e do mal”, aqui encontra palavras e fórmulas a “perversidade da atitude” contra a qual Schopenhauer não se cansou de disparar antecipadamente suas mais furiosas maldições e raios - uma filosofia que ousa situar a moral no mundo do fenômeno, depreciá-la, colocando-a não só entre os “fenômenos” [...] mas entre as “ilusões”, como aparência, delírio, erro, interpretação, arranjo, arte [...]. Como denominá-la? Como filólogo e homem das palavras eu a batizei, não sem alguma liberdade - pois quem saberia o nome correto do Anticristo? - com o nome de um deus grego: eu a chamei dionisíaca (GT/NT, Ensaio de autocrítica 5, KSA 1.17-19).

O impulso metafísico-estético que movimentava sua reflexão inicial, e que tinha em Dioniso uma imagem fundamental, como tentei mostrar, funde-se com o programa de transvaloração dos valores, do qual o Anticristo era parte fundamental. Dioniso- Anticristo, esta ponte toma forma no Ensaio de autocrítica, mas sempre nos perguntaremos: ela está realmente anunciada em O nascimento da tragédia?

Não gostaria de encerrar antes de apontar uma questão que considero central. Meu esforço aqui tem a ver com uma leitura d’O nascimento da tragédia que aponta para sua dimensão autônoma, isto é, compreendo o livro como um tratado de estética que podemos consultar em situações diversas, com seus subsídios críticos que não raro lançam luzes sobre materiais externos ao ambiente histórico-cultural onde o livro nasceu; dediquei grande parte das minhas pesquisas estético-musicais a esta perspectiva aberta pelo primeiro livro de Nietzsche. O que me parece é que nosso autor reafirma em 1886 justamente a autonomia do seu livro, e faz literalmente a autocrítica anunciada no título:

está claro que tarefa eu já ousava acometer com este livro?... Como agora lamento que ainda não tivesse então a coragem (ou a imodéstia?) de me permitir uma linguagem própria para concepções e ousadias tão minhas - que penosamente buscasse exprimir com fórmulas schopenhauerianas e kantianas valorações novas e estranhas, que tanto contrastavam com o espírito e o gosto de Kant e Schopenhauer! (GT/NT, Ensaio de autocrítica 6, KSA 1.19).

O mea-culpa não se refere justamente àquela intenção mal velada que pretendia inserir o livro na esteira da tradição filosófica alemã? Não é surpreendente ler isso hoje e continuar falando em uma tripartição da obra de Nietzsche deixando de reconhecer fusões que ele mesmo reconhece como decisivas no conjunto de seus escritos? Muitas vezes penso que algumas hipóteses de leitura importantes sobre Nietzsche têm, na verdade, uma outra intenção, a saber, a de tentar enquadrá-lo no tipo do filósofo tradicional, emprestando-lhe a “seriedade” e o “rigor” da tradição alemã, mesmo contra um texto como o Ensaio de autocrítica. Não vejo somente uma clara posição tardia em relação aos filósofos que imediatamente lhe antecederam, mas também uma prestação de contas sobre o ponto mais sensível do livro, sua adesão irrestrita ao wagnerismo:

Nesse meio-tempo aprendi a pensar de forma desesperançada e inexorável sobre essa “alma alemã”, e igualmente sobre a atual música alemã, que é romantismo de cima a baixo e a menos grega de todas as possíveis formas de arte; além disso, uma arruinadora de nervos de primeira ordem, duplamente perigosa num povo que ama a bebida e venera como uma virtude a falta de clareza, em sua dupla qualidade de narcótico inebriante e ofuscante. - Mas, fora as esperanças precipitadas e as errôneas aplicações às coisas atuais, com que estraguei então meu primeiro livro, a grande interrogação dionisíaca ali colocada, também em relação à música, persiste e permanece: como deveria ser uma música que não mais fosse de origem romântica, como a alemã, mas - dionisíaca?... (GT/NT, Ensaio de autocrítica 6, KSA 1.20).

A interrogação final é importante e nos provoca a tentar responder uma questão que parece atravessar sua vida e obra e nos alcançar com atualidade: como poderia existir uma música dionisíaca na modernidade tardia? Seria aquela música “mediterranizada”, “queimada” e “africanizada” que ele mesmo invoca em O caso Wagner, tentando responder enviesadamente ao seu livro de estreia? É uma questão que seguirei perseguindo, mesmo desconfiado da sua insolúvel conclusão. Se nos detivermos no texto autocrítico de 1886, algumas pistas podem ser úteis nesse sentido. Nietzsche não faz uma apologia do livro, antes ironiza seu romantismo juvenil, falando de si na terceira pessoa “− Mas, meu caro senhor, o que é romantismo neste mundo, se o seu livro não for romantismo? Esse ódio profundo ao ‘tempo de agora’, à ‘realidade’ e às ‘ideias modernas’ pode ser levado mais longe do que já é em sua metafísica de artista?” (GT/NT, Ensaio de autocrítica 7, KSA 1.21) Trocando em miúdos: o que poderia substituir a metafísica de artista como antídoto à modernidade e suas promessas?; como escapar desse tempo de agora, o Jetztzeit do qual somos a ponta extrema e mais decadente? Não é casual que a filosofia do século XX tenha dialogado com a obra de Nietzsche e continue a fazê-lo através de autores tão diversos quando Giorgio Agamben e Achille Mbembe. Suas questões ainda são as nossas, potencializadas e levadas ao limite da sanidade.

Termino por aqui, mas não sem antes lembrá-los da referência final do Ensaio de autocrítica, uma compilação aparentemente feita às pressas com trechos da seção Do homem superior, de Assim falou Zaratustra, pois quem há de negar o lance surpreendente que desfecha o nosso texto, justo no momento em que Nietzsche chama Zaratustra de “monstro dionisíaco”:

Vocês deveriam primeiramente aprender a arte do consolo neste mundo - deveriam aprender a rir, meus jovens amigos, se estão determinados a permanecer pessimistas; talvez então, sendo homens que riem, um dia mandem toda a consolação metafísica para o inferno - com a metafísica na frente! Ou, usando a linguagem desse monstro dionisíaco chamado Zaratustra:

Erguei vossos corações bem alto, meus irmãos! Mais alto! E não esqueçais as pernas! Erguei também vossas pernas, ó bons dançarinos, e melhor ainda: ficai de cabeça para baixo!

Esta coroa do homem que ri, esta coroa de rosas: eu mesmo a pus em mim, eu mesmo declarei santa a minha risada. Nenhum outro encontrei, hoje, forte o bastante para isso.

Zaratustra, o dançarino, Zaratustra, o leve, que acena com as asas, pronto para o voo, fazendo sinal a todas as aves, pronto e disposto, venturosamente ligeiro: -

Zaratustra, o adivinho risonho, nada impaciente, nada intransigente, alguém que ama saltos e pulos para o lado; eu próprio me pus esta coroa!

Esta coroa do homem que ri, esta coroa de rosas: a vós, irmãos, arremesso esta coroa! Declarei santo o riso; ó homens superiores, aprendei a - rir! (ZA/ZA, Do homem superior, KSA 4.356-368)

Referências

  • GRIMAL, P. Dicionário de mitologia grega e romana Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.
  • NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe G. Colli und M. Montinari (Hg). Berlin: Walter de Gruyter, Neuausgabe 1999. 15 Bd.
  • NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
  • NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra Tradução e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  • NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
  • NIETZSCHE, F. Ecce Homo Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  • 1
    Grimal, 1993GRIMAL, P. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993., p. 413.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2023
  • Aceito
    15 Jun 2023
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