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Nietzsche: a transvaloração do sentido do sofrimento em O nascimento da tragédia

Nietzsche: the transvaluation of de meaning of sufferin in The birth of tragedy

Resumo:

Neste artigo pretendemos sustentar a tese de que Nietzsche, desde sua primeira obra O nascimento da tragédia, até os seus últimos textos, como Crepúsculo dos ídolos, particularmente em O que eu devo aos antigos, propõe uma radical transvaloração do sentido do sofrimento humano. Ele adota uma perspectiva totalmente diferente das concepções metafísicas e religiosas ocidentais, que consideraram o sofrimento como uma objeção à vida, oriundo de culpas, de falhas, de “pecados”, que devem ser expiados através de inúmeros constrangimentos, até a inexorável morte. A transvaloração nietzschiana, com sua singular perspectiva trágica, inaugurada em O nascimento da tragédia e sustentada ao longo de toda sua obra, muito longe de considerar o sofrimento com uma objeção ou imperfeição da existência, o valoriza e até o exalta como outra modalidade do devir vital, consubstancial e inerente a toda afirmação, a todo prazer, a toda possibilidade de alegria.

Palavras-chave:
Nietzsche; transvaloração; sofrimento; trágico; alegria

Abstract:

In this article we aim to support the thesis that Nietzsche, from his first work The Birth of Tragedy, to his last texts, such as Twilight of the Idols, in What I owe to the ancients, proposes a radical transvaluation of the meaning of suffering human. He adopts a completely different perspective from Western metaphysical and religious conceptions, which considered suffering as an objection to life, arising from faults, failures, “sins”, which must be expiated through countless constraints, until inexorable death. The nietzschean transvaluation, with its unique tragic perspective, inaugurated in The Birth of Tragedy and sustained throughout his entire work, far from considering suffering as an objection or imperfection of existence, values ​​it and even exalts it as another modality of becoming. vital, consubstantial and inherent in every affirmation, every pleasure, every possibility of joy.

Keywords:
Nietzsche; transvaluation; suffering; tragic; joy

À memória do queridomestree amigo Roberto Machado

Uma! / Ó homem! Presta atenção! / Duas! / Que diz a meia-noite profunda? / Três! / “Eu dormia, eu dormia −, / Quatro! / De um sonho profundo acordei: − / Cinco! / O mundo é profundo, / Seis! / Mais profundo do que pensava o dia. / Sete! / Profunda é sua dor −, / Oito! / O prazer − mais profundo ainda que o pesar: / Nove! / A dor diz: Passa! / Dez! / Mas todo prazer quer eternidade −, / Onze! / − quer profunda, profunda eternidade! / Doze! (Za/ZA, III, O outro canto da dança, 3, KSA 4.285)1 1 A citações de Nietzsche são de Paulo César de Souza, feitas para a Companhia das Letras, conforme as referências. .

A minha proposta, nesta reflexão, é tecer algumas considerações sobre a tese nietzschiana trágico-dionisíaca que valoriza todo sofrimento como um dos aspectos essenciais, cruciais para o desenvolvimento da existência humana, inclusive chega a ser considerada como condição sine qua non para toda criação. Desde O nascimento da tragédiaNIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2020., com a exaltação da visão trágico-dionisíaca, a dor adquire um significado relevante e imprescindível. O pensador alemão mostra como a textura da existência é perpassada por uma essencial modalidade dicotômica, um aspecto bifronte em que todas as peripécias do viver são necessárias, são aspectos imprescindíveis do jogo das forças, que expressam a oscilante dinâmica da vontade de potência.

Nesse fluir cambiante das forças do vir-a-ser, nada pode ser considerado alheio, oposto ou restritivo à humana condição. O prazer e o desprazer, a dor e a alegria se constituem, não como pares contraditórios, ontologicamente divergentes, senão como tonalidades, nuances da própria oscilação e confronto das forças, dos quanta de força desse devir.

Nesse sentido, o filósofo d’O nascimento da tragédia adota a conhecida perspectiva do “médico filósofo”2 2 A imagem de “médico filósofo” alude a uma estratégia hermenêutica essencial do pensamento de Nietzsche que, longe de avaliar a “verdade” ou “falsidade”, a coerência ou incoerência das teses filosóficas, as discute sob o crivo dos critérios de “saúde” ou “doença”, de “força” ou “fraqueza”, de “aumento ou diminuição de potência” que essas teses manifestam. Nesse sentido, resulta paradigmática a definição desse singular médico, em A gaia ciência, prefácio, 2, onde afirma: “Eu ainda espero que um médico filósofo, no sentido excepcional do término - alguém que detecte o problema da saúde geral de um povo, de uma época, de uma raça, da humanidade...”. . Já desde o início de sua obra avalia todos os aspectos da cultura, todas as filosofias, todas as realizações do homem como manifestações de vida ascendente ou de vida declinante, de baixa potência ou de aumento de potência, de dor ou de alegria, de doença ou saúde.

Nessa proposta hermenêutica, o prazer e o desprazer são considerados sintomas corporais, não expressões de “bem” ou “mal”, isto é, são interpretados basicamente como processos fisiológicos de alta intensidade ou de baixa intensidade, de intensificação ou aviltamento da vida3 3 Nietzsche pretende, desde o início do seu trajeto filosófico, desenvolver uma medicina filosófica que interprete todas as manifestações da cultura em termos de saúde ou doença, como vimos no prólogo de A gaia ciência. Nessa linha interpretativa, destaco a importância do livro de Pierre Montebello: Vie et maladie chez Nietzsche (2001), que me auxiliou e contribuiu para elaborar muitas das reflexões deste trabalho. O teórico francês analisa a relevância da doença, na gênese de todo pensamento, e particularmente no desenvolvimento do próprio pensamento de Nietzsche: “A experiência vivida e a experiência no próprio corpo sofredor de Nietzsche colocarão em primeiro plano (...) a figura do médico filósofo.” Assim, o pensador alemão propõe: “apoiar-se no corpo, particularmente a partir da experiência da doença”, que mostra “a direção de potência do corpo e as formações de valores que ele cristaliza” (Cf. Montebello, 2001, pp. 9-10). . Por isso, o pensamento trágico nietzschiano, com todas as mudanças acontecidas ao longo de sua obra, e com a introdução de novos conceitos, sempre manteve a tese central que afirma o valor irrenunciável do sofrimento, correlativo à tragicidade do existir humano, que longe de ser um obstáculo a ser driblado, uma mácula a ser exorcizada, é a contraface de todo viver. Dessa forma, afirmação e negação, destruição e reconstrução, vida e morte manifestam tonalidades existenciais. Trata-se do jogo de forças que, respondendo à permanente recreação de todas as existências finitas, motiva-nos a pronunciar um irrestrito “sim à vida”, uma aceitação incondicional à caducidade da natureza.

Outras maneiras muito diferentes de interpretar a existência humana foram sendo forjadas no decurso do pensamento ocidental. Aludirei, muito sucintamente, a algumas posturas metafísicas e religiosas que condenaram o sofrimento, e macularam as diversas vicissitudes da nossa existência finita, que nos colocam permanentemente cara a cara não somente com a dor, senão que nos confronta com os fracassos, com a solidão e, no final, com a inelutável e irreversível morte. A finitude e mortalidade de todos os seres são consideradas, por muitas dessas posturas, como a evidência mais contundente de que a vida na terra deve ser corrigida, melhorada, expurgada de defeitos, falhas, pecados.

Para tanto, a imaginação humana foi muito fecunda, desde o início de nossa história. Para corrigir um mundo que nos coloca, dia a dia, em contato com perdas e inevitáveis dores, imaginou-se a existência de outros âmbitos mais confortáveis, mais aprazíveis, isentos de qualquer negatividade. Metafísicas e religiões construíram belas utopias, inventaram outros mundos: celestiais, transcendentes, perfeitos, onde não existiria qualquer aspecto negativo. O homem fabulou intensamente a possibilidade de uma fuga a outros universos. Forjou, com fértil criatividade, âmbitos ideais, mundos inteligíveis. Essa tendência é muito remota e se perde nos primórdios de nossa cultura. Nesta exposição me limitarei a abordar sinteticamente apenas três correntes significativas do filosofar metafísico e da religião, que foram marcantes no pensamento ocidental, e ainda hoje têm grande importância e vigência. Aludirei ao pitagorismo, matriz de muitas visões escatológicas, à concepção judaico-cristã, que apresenta uma perspectiva paradigmática e eloquente sobre a dor e o castigo, no conhecido mito bíblico do Gênesis, à perspectiva do sofrimento e à tese do “corpo inimigo”, sustentada por Platão no diálogo Fédon.

Da tradição pitagórica, contamos com limitadas documentações e apoios textuais que se perdem no distante século VI a.C., contando apenas com relatos e referências posteriores. Pitágoras é considerado o mentor inicial dessa corrente filosófica, que sustenta, entre outras teses, a permanente transmigração das almas, que transitavam de corpo em corpo, em um processo permanente de penúrias e sofrimentos, no qual a terra era considerada um lugar penal, de trânsito à purificação: o locus onde deveríamos pagar uma culpa arcaica e indeterminada. Contamos, entre as limitadas informações sobre os pitagóricos, com os Versos de Ouro de Lysis, pensador muito posterior ao mestre, do século IV a.C., que exaltava a necessidade de afastar-se de todo desejo corporal. Nessa perspectiva, toda afecção levaria sempre à dor, como tudo aquilo que é oriundo do corpo. Por isso, sugere adotar uma vida de rigoroso ascetismo, concluindo: “quando abandonares o corpo mortal, te elevarás ao éter, e deixando de ser mortal, adotarás tu mesmo a forma de um deus imortal.”4 4 Lysis apud Carton, 1995, pp. 28-29.

No conhecido mito bíblico do Gênese, o sofrimento surge após Adão e Eva comerem do fruto da árvore da sabedoria, desobedecendo às ordens divinas e perdendo, assim, a sua pureza e inocência iniciais. Depois do pecado original, eles foram castigados, não somente com a expulsão do paraíso, com a perda da vida eterna, com a correlativa morte e o retorno ao “pó”. Eles ainda foram punidos com o estigma do sofrimento, para realizar os aspectos essenciais da vida, como o nascimento e o trabalho. Nascer e trabalhar estarão maculados e castigados pela dor: “Com dores parirás e ganharás o pão com o suor de tua fronte.”5 5 Cf. Gênese 3:9-4:6.

Finalmente, após esta breve alusão a duas posturas que condenaram o corpo e o sofrimento e sustentaram que a missão da vida humana consistiria em “retornar” ao outro mundo, Platão, no diálogo Fédon ou Da alma, desenvolve uma tese essencial através da figura de Sócrates, que considera o corpo como um genuíno “inimigo” ou “cárcere” da humanidade. Por isso, o homem deve dedicar-se exclusivamente ao cuidado da alma, e tentar afastar-se completamente dessa condição precária e terrenal, para preparar-se para retornar, após longas provações e tormentos de “purificação”, ao mundo verdadeiro e essencial.

Além dessa conhecida visão escatológica e dualista platônica, creio que merece um comentário um pouco mais minucioso a tese apresentada no começo do diálogo. Trata-se do momento em que Sócrates, prévio à execução da sua condenação à morte, através da ingesta de cicuta, é liberado das amarras que lhe apertavam fortemente braços e pernas. Ele destaca que, apenas alguns momentos atrás, quando estava amarrado, sentia sofrimento, e agora, já liberado, sente prazer. Então, reflete sobre a natureza fungível e intercambiável da dor e do prazer. Ele denuncia que passamos constantemente de um estado ao outro: “como se fossem dois seres ligados a uma única cabeça”. Ele acredita que, perante esse grande paradoxo, essa alternância permanente entre estados corporais contraditórios, poderia realizar-se uma fábula em que “a divindade querendo impor paz à guerra que existia [entre o sofrimento e o prazer], como não pode consegui-lo, juntou no mesmo ponto suas cabeças; e por esta razão em aquele que se apresenta um deles, lhe segue a continuação o outro.”6 6 Platon, 1966, p. 622.

Platão, acompanhando o pensamento de Sócrates, sustenta que o sofrimento e o prazer, a dor e a alegria, como tudo aquilo que é oriundo do corpo e da terra, não merece confiança, valor, credibilidade alguma. Em resumo, vemos como a questão do sofrimento se torna, não somente em Platão, mas em todos os que acreditam em um mundo melhor e afirmam a pretensa “malignidade” do sofrimento (como nas palavras do Gênese), uma aspiração a uma existência, onde não existiria dor nem prazer, nem falta nem exaltação. Assim, metafísica e religião, desde os seus primórdios, almejam um mundo imutável, em que possamos viver em completa ataraxia, em apatia, em uma tranquilidade inerte, isentos de qualquer paixão, de qualquer preocupação.

O nascimento da tragédia: “minha primeira transvaloração de todos os valores”

NietzscheNIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Tradução de Giorgio Colli & Mazzino Montinari. Berlin/New York: Gruyter & Co., 1967-1977. afirma, inclusive nos seus últimos textos de 1888, que O nascimento da tragédia foi sua “primeira transvaloração de todos os valores”7 7 “E com isso [com sua visão do fenômeno trágico no seu último ano produtivo: 1888] toco novamente no ponto, do qual uma vez parti - ‘o Nascimento da tragédia’ foi minha primeira tresvaloração de todos os valores (...).” (GD/CI, O que devo aos antigos 5, KSA 6.160) . No seu primeiro livro já apresenta uma concepção totalmente diversa das propostas escatológicas, das ofertas de “melhores mundos”, onde não haveria dores nem limitações de nenhuma natureza, em que o homem habitaria um mundo de pura positividade, no qual a dor não existiria, não haveria qualquer limite, não haveria nenhum lugar para a negatividade.

Perante as teses da metafísica e da religião, Nietzsche valoriza uma existência em que o sofrimento é aspecto essencial, correlato de toda afirmação. Diferentemente da metáfora ou fábula forjada por Platão, em Fédon, essa criatura bifronte, que seria o homem, tem duas dobras, duas facetas - como as duas faces de Jano -, mas que são inextricavelmente solidárias, mas não contraditórias. Toda dor, toda carência tem o prazer, a plenitude, a realização “nas costas”. A textura da vida é perpassada por essa dinâmica. O desenvolvimento da vontade de potência nos coloca, segundo após segundo, perante o aumento ou a diminuição de forças. Quando nossas forças aumentam, há um sentimento de realização e prazer; quando essas mesmas forças diminuem, há um sentimento de fraqueza, de sofrimento. Nos processos corporais, dor e prazer são manifestação da relação entre quanta de potência em conflito. Os afetos se desenvolvem nessa permanente beligerância; assim, a dor é expressão de forças corporais em declínio ou dominadas, contudo, o sofrimento também é imprescindível para que outras forças em ascensão impulsionem a criação, a realização, o prazer em processos corporais ascendentes.

Em O nascimento da tragédia, Nietzsche esboça uma nova compreensão não somente da cultura ocidental como um todo, pois vai mais longe e apresenta uma visão original da atitude dos helenos quando se defrontaram com situações extremadas, com as peripécias mais duras, com o terrível, com os horrores da existência. Ele destaca a superabundância de forças e de vida desse povo, que conseguiu afirmar o viver de forma irrestrita. Então, considera necessário indagar sobre quais foram as condições vitais nas quais surgiu a visão trágica. Como “médico filósofo” tenta interpretar quais as circunstâncias orgânicas, os estados de saúde pelos quais surgiu a visão dionisíaca, justamente numa raça que vivia no ápice, no esplendor, num momento exuberante, de grandes criações, em todos os âmbitos, na ciência, nas artes, na filosofia. Pergunta, em Tentativa de autocrítica (prefácio ou posfácio a O nascimento da tragédia), como foi forjada essa concepção pessimista-trágica, justamente numa sociedade: “A espécie de homens que melhor vingou até agora, a mais bela, mais invejada, a que mais seduz para a vida, os gregos? - Como? Justamente eles necessitavam da tragédia?” (GT/NT, Ensaio de autocrítica, 1, p. 9. KSA 1.11).

Nietzsche continua tentando elucidar como esses gregos da antiguidade - que padeceram os horrores de longas e devastadoras guerras, das doenças, da destruição e da morte - não se tornaram reativos, ressentidos, senão que afirmaram com mais intensidade as suas forças, celebrando todas as peripécias vitais.

O médico filósofo sustenta a hipótese de que os helenos, que lidaram com essas violências e padecimentos, não se tornaram reativos, niilistas, decepcionados. Ao contrário, eles não produziram uma ótica declinante da vida, mas uma visão que Nietzsche caracteriza como pessimismo da força. O pessimismo, para ele, não é considerado um “signo de declínio, de ruína de fracasso, de instintos cansados e debilitados”, mas uma corajosa atitude de “força”: “Uma propensão intelectual para o que é duro, terrível, mau, problemático na existência, nascida do bem-estar, da saúde exuberante, da plenitude da existência.” (GT/NT, Ensaio de autocrítica, 1, p. 10 KSA 1.11).

Essa visão trágica celebra o imanente, afirma a terra com todas suas limitações, lidando justamente com o sofrimento devido à própria superabundância de energia. Esse pessimismo da força difere de outra atitude pessimista que Nietzsche “diagnostica” como sendo da fraqueza, tal como a que foi desenvolvida pelos indianos, pelos europeus modernos, pelo filósofo Schopenhauer. O pessimismo da fraqueza tem como corolário sintomas depressivos: desistir da vida, tornando-se vingativo, cético, reativo.

Nietzsche afirma que a concepção trágica helênica, ou pessimismo da fortitude, longe de exprimir declínio, privação, decadência é sintoma de excesso, de riqueza, de saúde transbordante. Frente à tragicidade da existência, ao terrível, maligno, aniquilador da vida terrestre, os helenos desenvolveram “neuroses da saúde”, “arrebatamentos endêmicos”, “visões e alucinações que se comunicavam a comunidades inteiras”. A concepção pessimista-trágica dos gregos é entendida como o ápice desse povo, como a florescência dessa cultura. Até mesmo pode se sustentar que o pessimismo e a tragédia poderiam ser resultado do maior dos excessos: da loucura. Somente uma espécie de loucura, trágica ou dionisíaca, acolheria todas as dores da vida, ao mesmo tempo, exprimindo alegria, esbanjando abundância de forças, aceitando e celebrando o aspecto bifronte do viver.8 8 Cf. GT/NT, Ensaio de autocrítica, principalmente os capítulos 1 a 4, KSA 1.25 e 1.38.

No âmago da tese nietzschiana que afirma a saúde do povo grego, a sua sanidade trágica, seu pessimismo da fortitude, sua capacidade para enfrentar vitoriosamente toda doença, todo sofrimento, encontra sua explicação plausível na conjunção de suas tendências apolíneo-dionisíacas, que permite simbolizar o sofrimento, o fracasso de todo empreendimento humano, que culmina com a supressão de toda configuração apolínea, com a destruição de toda individualidade.

Vejamos a argumentação que Nietzsche desenvolve para mostrar como a tragédia helênica, através de uma perspectiva artística, concretizou o pessimismo da força, que levou os gregos a lidar alegremente com as situações mais medonhas da existência. Pois, em nosso caráter de indivíduos, somos configurações apolíneas temporárias: seres com nome e sobrenome, que no final da nossa jornada acabaremos extintos, suprimidos, mortos. Isso é simbolizado, na dinâmica da cena trágica, por figuras eminentes, como Édipo, Antígona, Medeia, Creonte, etc. Mas, mesmo com a supressão de toda individualidade - simbolizada pela derrocada e aniquilamento dessas figuras nobres -, a vida continua invicta e perene, para além de toda destruição pessoal. Por esse motivo, a máscara de Dioniso preside a cena trágica, mesmo que ele não seja um personagem individualizado, um agonista da trama cênica, apenas ele é a referência para todos os heróis, para todos os agonistas apolíneos destruídos.

Toda queda de um personagem individual faz a alusão à queda do próprio Dioniso que, segundo antigos relatos míticos, foi destruído, esquartejado9 9 Ver abordagem nietzschiana sobre a presença de Dioniso, na tradição mítica e na própria cena trágica, nos capítulos: 8 a 10 de O nascimento da tragédia. Cf. também a análise de sua trajetória: vida, destruição e ressurreição de Dioniso, no trabalho de Mario da Gama Kury (Kury, 1999, pp. 110-112). . Não obstante, conforme as crenças “misteriosóficas dos epoptas”, os seguidores de Dioniso, ele sempre retorna, simbolizando a dinâmica de criação e destruição e permanente recriação das forças terrestres. Cada herói destruído volta ao seio indiferenciado da natureza, agora simbolizado, no drama trágico, pelo retorno ao coro, pela sua volta a esse lugar maternal e acolhedor. A desaparição do indivíduo, nessa perspectiva religiosa, artística e filosófica não é apenas destruição pura e simples, mas o retorno jubiloso à unidade originária, que está no âmago de todo ciclo vital. Nietzsche sintetiza a visão trágica pessimista que consagra todos os aspectos da existência, no livro X de O nascimento da tragédia. Ele afirma que essa visão consiste em

uma visão do mundo profunda e pessimista consideração do mundo e, ao mesmo tempo, a doutrina de Mistérios da tragédia: o conhecimento fundamental da unidade de tudo o que existe, a consideração da individuação como causa primeira de todo o mal, e da arte como radiante esperança de que o sortilégio da individuação pode ser quebrado, como pressentimento de uma unidade restaurada. (GT/NT, 10, KSA 1.73).10 10 Para o esclarecimento da interpretação nietzschiana da filosofia trágico-dionisíaca, em que a conjunção de tendências apolíneas e dionisíacas permite celebrar e lidar com alegria, mesmo com o sofrimento, a finitude e todas as todas as peripécias da vida humana, foi muito importante a leitura do livro Roberto Machado, Nietzsche e a verdade. Destaco particularmente suas reflexões do capítulo: A arte trágica e a apologia da aparência (Machado, 2017, pp. 23-41). Aproveito a oportunidade para homenageá-lo - já que desde maio de 2021, Roberto não está mais entre nós -, destacando seu profundo conhecimento teórico de Nietzsche e de outros autores, e valorizo, principalmente, a alegria com que proferia suas aulas, com que orientava as nossas teses e com que nos impulsava a pensar, com a paixão de sua inteligência.

A imutabilidade do passado, o eterno retorno e a eternidade da alegria

Nietzsche, embora tenha se distanciado paulatinamente das ideias românticas, wagnerianas e schopenhauerianas que estavam presentes, em sua primeira compreensão da tragédia e do dionisíaco, no seu livro inaugural de 1872, sempre se denominou “filósofo trágico”. Ele nunca abandonou as teses centrais desse texto de juventude, em que os helenos eram incensados como maestros da arte de viver e do sofrer, como pessimistas da força e da alegria. Nesse processo, o pensador alemão acabará por se distanciar totalmente das ideias wagnerianas e schopenhauerianas da sua juventude. Há um longo percurso que o leva à realização d’Assim falou ZaratustraNIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., livro que considera sua obra magna, no qual acredita ter conseguido dar uma forma artística, pessoal, às suas teses dos anos 1860 e início da década de 1870.

Nietzsche mantém sua compreensão trágica da vida, agora sob outras nuances, outras arestas, adotando uma linguagem singular que joga com as parábolas bíblicas, brinca com numerosas imagens e metáforas, elaborando um estilo elevado, inigualável, uma espécie de recreação peculiar da arte helênica do ditirambo.11 11 Para a compreensão do estilo ditirâmbico nietzschiano, empregado em Assim falou Zaratustra, destaco a consistente interpretação, que acompanho neste trabalho, de Luis de Santiago Guervós, em A linguagem do ditirambo: três cantos de Assim falava Zaratustra: Canto da noite, Canto do baile, Canto do túmulo. (Cf. particularmente, 2017, pp. 149-154). Em Zaratustra, Nietzsche apresentará, de forma imagética, essencialmente artística, conceitos essenciais de sua filosofia, como fidelidade à terra, morte de Deus, eterno retorno, niilismo. Considero que, mesmo com esse novo instrumental conceitual, a visão trágica inicial - despojada agora de wagnerianismos e schopenhauerianismos - mantém suas ideias nucleares. Não é o objetivo desta exposição refletir sobre os numerosos meandros dessa nova roupagem conceitual e artística; apenas quero aludir à questão do sofrimento, que nesta obra adquire novas nuances. Principalmente, no sinuoso caminho de Zaratustra, em que novamente é colocado em questão o sentido da existência como um todo.12 12 A questão do sofrimento, em Assim falou Zaratustra, também adquire um papel central em toda a trajetória do personagem central. Quero destacar a importância da análise do Canto da noite, de Guervós, que acompanho nesta interpretação, quando afirma que, nesse canto de solidão, a dor alcança um sentido muito profundo, expressa um sofrimento radical: "[...] 'assim sofre um Deus, um Dioniso'. A própria interpretação de Nietzsche nos permite ver o 'Canto da noite' como o lamento de Dioniso-Zagreu que sofre, como o herói trágico”. (2017, p. 156). E isso exige lidar com a dor, com as limitações, com as carências. Cabe, então, perguntar: como aparece o sofrimento no percurso zaratustriano? Creio que, após grandes peripécias, desde a sua saída da caverna, até seus discursos para os homens da praça do mercado e outros importantes acontecimentos, em A hora mais silenciosa e em Da visão e do enigma, o sofrimento adota outros desdobramentos, como assumir o inexorável do tempo, com a impossibilidade de que a vontade possa querer tudo aquilo que já foi, tudo aquilo que se consolidou no nosso passado. Por isso, parece impossível querer “para trás”, poder aceitar tudo o que já foi em nossa existência. Quando olhamos “para trás”, nesse trajeto, relembramos das frustrações, das derrotas, em suma, do sofrimento.

Como resposta a essas limitações, a essa inexorabilidade do tempo, que não volta, surge a tese do eterno retorno. Tese relevante, de extrema complexidade, mas que nesta reflexão apenas será mencionada para centrarmos na elucidação da questão do sofrimento. Para tanto, agora vou aludir ao capítulo Da visão e do enigma, onde aparece com fortes e eloquentes imagens a possibilidade de querer tudo aquilo que já foi, de aceitar tragicamente todas as contingências do viver. Nietzsche mostra de forma dramática a situação do Zaratustra, quando é asfixiado por uma serpente que está presa na sua garganta. Essa serpente simboliza o niilismo, a rejeição radical do sentido da existência que domina o homem quando percebe que tudo irá retornar da mesma forma, sem que ele possa alterar nada do seu passado, sem poder mexer nem um átimo na sua existência pretérita13 13 Abordei a problemática do eterno retorno no meu livro Nietzsche e a liberdade (2008). Neste momento, apenas aludo brevemente a algumas questões desse relevante e complexo conceito, para continuar minhas análises específicas sobre o sofrimento na teoria nietzschiana. De todas as formas, quero exaltar a relevância da interpretação de Eugen Fink, que acompanho nas suas principais reflexões, presentes em A filosofia de Nietzsche, particularmente no capítulo III. A anunciação, sobretudo, nos itens 4, 5 e 6 sobre o eterno retorno. Cf. 1983, pp. 89-127. .

Nessa instância tão crucial, o grande desafio é morder e cuspir para muito longe a serpente do niilismo, o qual leva o homem a vivenciar o eterno retorno dos fatos como um castigo, como uma condenação, como um sofrimento insuportável. Supreendentemente, quando Zaratustra concretiza a façanha de morder a cabeça e lançar para muito longe essa serpente venenosa, consegue rir de forma extraordinária. Esse riso, que parece ser de outro mundo, próprio de um ser excepcional e totalmente afirmativo, consiste na possibilidade de dizer sim à eterna repetição dos fatos: sem mudar nada, sem tentar corrigir nada na nossa existência. É um sim trágico e incondicional. Atuamos como se nossa vontade pudesse aceitar a repetição de tudo, principalmente a nossa condição imanente e finita, com todos os nossos sofrimentos. Isso inclui afirmar todo fracasso, toda frustração, até a própria dissolução, a própria morte.

Na afirmação do eterno retorno nos tornamos solidários de todas as formas finitas, de toda a imanência; sob a ótica do eterno retorno, a dor não é sintoma de infelicidade ou precariedade da existência, mas uma elegíaca experiência fundamental da caducidade. Por isso, a alegria é mais profunda que a dor, sob a ótica do eterno retorno. O comentador Eugen Fink nos auxilia, em A filosofia de Nietzsche, a esclarecer o valor do sofrimento e da alegria, analisados pela ótica do eterno retornar das formas finitas:

à profundidade do sofrimento opõe Nietzsche a profundidade maior da alegria: o sofrimento vê apenas a fuga do tempo, o desaparecer de todo ser no tempo; a alegria vê mais profundamente, não acentua um único elemento antitético do tempo que corre, ela reconhece o eterno retorno do semelhante [...] na vida essencial do tempo.14 14 Fink, 1983, p. 117.

Crepúsculo dos ídolos: o mistério das dionisíacas - um sim sagrado

Até os seus últimos escritos, denominados bilhetes da “loucura”, de 1889, Nietzsche sustenta uma visão trágica - mesmo com as numerosas mudanças que realizou no seu fértil e sinuoso trajeto filosófico -, na qual o sofrimento é ressignificado, valorizado à luz de uma visão pessimista. Como já apontamos longamente ao longo desta reflexão, não se trata de uma concepção reativa ou ressentida, mas da continuidade de uma perspectiva em que todos os aspectos vitais são essenciais no desenrolar das forças da vontade de potência. A saúde, a ampliação de forças exige também a convivência com tudo aquilo que nos limita, que nos frustra, que nos dói; dor padecida no sentido mais carnal do termo15 15 A questão da “carne”, da nossa essencial facticidade, da nossa animalidade e existência biológica é analisada, de forma muito apropriada, por Barbara Stiegler que sustenta que a filosofia dionisíaco-trágica de Nietzsche, contra toda visão idealista, a partir do conceito de Dioniso, como regente de tudo aquilo que é vital, leva a uma “crítica da carne”: “Contra toda afirmação incondicional do corpo e da vida, e contra toda afirmação sem condição em geral, ‘o conceito de Dyonisos’ coloca contrariamente as bases de uma crítica dos corpos viventes - ou isso que nós propomos denominar como ‘uma crítica da carne’” (Stiegler, 2005, p. 16). . Nietzsche, médico filósofo, ausculta os estados que subjazem a toda produção intelectual e particularmente aos estados vitais que estão na base de todas as filosofias.

Ao aplicar esse critério a seu próprio pensar, ele lida sempre com aquilo que lhe é próprio: suas doenças, suas limitações, suas frustrações e postergações. Pesem todos os numerosos percalços desfavoráveis que padeceu, Nietzsche se considerou essencialmente sadio, pois mesmo com seus incessantes padecimentos corporais, suas limitações na visão, suas frequentes dores de cabeça e outras sequelas, sempre se considerou essencialmente saudável, passível de adquirir o que denomina de “grande saúde”. Sua atitude afirmativa não o levou a obscurecer a existência, a reclamar do seu corpo, senão que buscou sempre novas formas de superar os seus padecimentos. A grande saúde consiste justamente nessa capacidade de oscilar, de padecer, de sofrer, mas buscando sempre novos recursos, novas saídas para todo decréscimo de sua condição vital16 16 A noção de grande saúde é um conceito relevante da filosofia madura de Nietzsche; o pensador, pesem todas as vicissitudes e doenças que padeceu, sustenta que ele sempre foi um homem “essencialmente saudável”, que os padecimentos o levaram sempre a um patamar de maior potência, mesmo vivendo estados momentâneos de dor e de diminuição de forças, sempre alcançou o que denomina “a grande saúde - uma tal que não apenas se tem, mas constantemente se adquire e é preciso adquirir, pois sempre de novo se abandona e é preciso abandoná-la.”. Abordei esta questão relevante da grande saúde no meu livro: Nietzsche e a alegria do trágico, particularmente no capítulo 6: Eterno retorno e grande saúde: a alegria do trágico” (Barrenechea, 2014, pp. 111-135). .

Em 1888, em Crepúsculo dos ídolosNIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos ou Como se filosofa com o martelo. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., um dos seus últimos livros, ele retoma suas teses iniciais e revisita os seus conceitos, forjados na sua juventude, baseados na filosofia trágica ou dionisíaca, na qual o essencial é dizer sim à vida, em todas suas vicissitudes. No capítulo O que eu devo aos antigos, particularmente nos itens 4 e 5, relembra e celebra sua sabedoria trágica, na qual o sofrimento é entendido como algo sagrado, como algo que, longe de levar à renúncia ou ao esgotamento vital, inspira celebração, criação. Relembra, nesse livro, o mistério helênico das dionisíacas, que nas dores do parto, em todos os processos orgânicos que antecedem o nascimento, que envolvem a sexualidade, valorizada nos mistérios gregos arcaicos, manifestam uma importante evidência. Em toda criação há dor. Em toda realização - artística, filosófica, e de todo tipo - há esforço, suor, desgarramento. Como o desgarramento das dionisíacas, antes de parir, durante o parir, no parir17 17 Maria Cristina Franco Ferraz realiza um importante esclarecimento sobre a noção de parto, na perspectiva nietzschiana. O autor equipara toda criação, artística ou filosófica a um parto, a uma gestação que acarreta inúmeros sofrimentos para poder “dar à luz”: “A gravidez é geralmente utilizada pelo filósofo como paradigma de toda criação artística.” (Ferraz, 1994, p. 80). . Lembremos da maldição bíblica que condena as dores do parto na terrível frase: “Com dores parirás”. Essa visão reativa teve longa vigência e influenciou o pensamento ocidental, em concepções que desvalorizaram não somente o parto, mas condenaram o corpo, a terra, a finitude em geral. Ao contrário, na visão trágica e dionisíaca: toda criação adota a forma do parto. Por isso, não pode ser considerado um acidente, uma contingência, um desvio, uma interferência, senão que se trata do caráter essencial de todo criar.

Encontramos aqui uma genuína redenção de todo realizar humano, uma ressignificação essencial do sentido do sofrimento, que o autor valoriza ao longo de toda sua obra. O suor, a dor, o fracassar, o reiniciar uma e outra vez são basilares para toda criação, para toda humana realização. Concluímos, então, com uma passagem do Crepúsculo dos ídolosNIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos ou Como se filosofa com o martelo. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., que destaca a dor como algo sagrado, como símbolo de toda fertilidade, de toda possibilidade de gestar, de produzir vida, mesmo na dor, graças à dor que faz parte do prazer de todo criar:

Na doutrina dos mistérios a dor é santificada: as “dores da mulher no parto” santificam a dor em geral - todo o vir-a-ser e crescer, tudo o que garante o futuro implica dor... Para que haja o eterno prazer da criação, para que a vontade de vida afirme eternamente a si própria, tem de haver também eternamente a “dor da mulher que pare”... (GD/CI, O que devo aos antigos, p. 89 KSA 6.159).

Referências

  • BARRENECHEA, M. A. de. Nietzsche e a liberdade Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008.
  • BARRENECHEA, M. A. de. Nietzsche e a alegria do trágico Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014.
  • CARTON, P. Vida perfeita: comentários aos Versos de Ouro de Lysis. São Paulo: Martin Claret, 1995.
  • FERRAZ, M. C. F. Nietzsche: o bufão dos deuses Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
  • FINK, E. A filosofia de Nietzsche Tradução Joaquin L. D. Peixoto. Lisboa: Presença, 1983.
  • GUERVOS, L. S. A linguagem do ditirambo: três cantos d´Assim falava Zaratustra. In: NASSER, E; RUBIRA, L. (org.). Nietzsche no século XXI Porto Alegre: Zouk, 2017.
  • KURY, M. G. Dicionário de mitologia grega e romana Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
  • MACHADO, R. Nietzsche e a verdade São Paulo: Paz & Terra, 2017.
  • MONTEBELLO, P. Vie et maladie chez Nietzsche Paris: Ellipses, 2001.
  • NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke Tradução de Giorgio Colli & Mazzino Montinari. Berlin/New York: Gruyter & Co., 1967-1977.
  • NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
  • NIETZSCHE, F. Gaia ciência Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
  • NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
  • NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos ou Como se filosofa com o martelo Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
  • PLATON -. Fédon. In: Obras Completas Tradução M. Araujo et al. Madrid: Aguilar, 1966.
  • SANTAS ESCRITURAS. New York: Internacional Bible Studens, 1985.
  • STIEGLER, B. Nietzsche et la critique de la chair: Dyonisos, Ariane, Lhe Crist. Paris: PUF, 2005.
  • 1
    A citações de Nietzsche são de Paulo César de Souza, feitas para a Companhia das Letras, conforme as referências.
  • 2
    A imagem de “médico filósofo” alude a uma estratégia hermenêutica essencial do pensamento de Nietzsche que, longe de avaliar a “verdade” ou “falsidade”, a coerência ou incoerência das teses filosóficas, as discute sob o crivo dos critérios de “saúde” ou “doença”, de “força” ou “fraqueza”, de “aumento ou diminuição de potência” que essas teses manifestam. Nesse sentido, resulta paradigmática a definição desse singular médico, em A gaia ciênciaNIETZSCHE, F. Gaia ciência. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., prefácio, 2, onde afirma: “Eu ainda espero que um médico filósofo, no sentido excepcional do término - alguém que detecte o problema da saúde geral de um povo, de uma época, de uma raça, da humanidade...”.
  • 3
    Nietzsche pretende, desde o início do seu trajeto filosófico, desenvolver uma medicina filosófica que interprete todas as manifestações da cultura em termos de saúde ou doença, como vimos no prólogo de A gaia ciênciaNIETZSCHE, F. Gaia ciência. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.. Nessa linha interpretativa, destaco a importância do livro de Pierre Montebello: Vie et maladie chez Nietzsche (2001), que me auxiliou e contribuiu para elaborar muitas das reflexões deste trabalho. O teórico francês analisa a relevância da doença, na gênese de todo pensamento, e particularmente no desenvolvimento do próprio pensamento de Nietzsche: “A experiência vivida e a experiência no próprio corpo sofredor de Nietzsche colocarão em primeiro plano (...) a figura do médico filósofo.” Assim, o pensador alemão propõe: “apoiar-se no corpo, particularmente a partir da experiência da doença”, que mostra “a direção de potência do corpo e as formações de valores que ele cristaliza” (Cf. Montebello, 2001MONTEBELLO, P. Vie et maladie chez Nietzsche. Paris: Ellipses, 2001., pp. 9-10).
  • 4
    Lysis apud Carton, 1995CARTON, P. Vida perfeita: comentários aos Versos de Ouro de Lysis. São Paulo: Martin Claret, 1995., pp. 28-29.
  • 5
    Cf. Gênese 3:9-4:6.
  • 6
    Platon, 1966PLATON -. Fédon. In: Obras Completas. Tradução M. Araujo et al. Madrid: Aguilar, 1966., p. 622.
  • 7
    “E com isso [com sua visão do fenômeno trágico no seu último ano produtivo: 1888] toco novamente no ponto, do qual uma vez parti - ‘o Nascimento da tragédia’ foi minha primeira tresvaloração de todos os valores (...).” (GD/CI, O que devo aos antigos 5, KSA 6.160)
  • 8
    Cf. GT/NT, Ensaio de autocrítica, principalmente os capítulos 1 a 4, KSA 1.25 e 1.38.
  • 9
    Ver abordagem nietzschiana sobre a presença de Dioniso, na tradição mítica e na própria cena trágica, nos capítulos: 8 a 10 de O nascimento da tragédia. Cf. também a análise de sua trajetória: vida, destruição e ressurreição de Dioniso, no trabalho de Mario da Gama Kury (Kury, 1999KURY, M. G. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Zahar, 1999., pp. 110-112).
  • 10
    Para o esclarecimento da interpretação nietzschiana da filosofia trágico-dionisíaca, em que a conjunção de tendências apolíneas e dionisíacas permite celebrar e lidar com alegria, mesmo com o sofrimento, a finitude e todas as todas as peripécias da vida humana, foi muito importante a leitura do livro Roberto Machado, Nietzsche e a verdade. Destaco particularmente suas reflexões do capítulo: A arte trágica e a apologia da aparência (Machado, 2017MACHADO, R. Nietzsche e a verdade. São Paulo: Paz & Terra, 2017., pp. 23-41). Aproveito a oportunidade para homenageá-lo - já que desde maio de 2021, Roberto não está mais entre nós -, destacando seu profundo conhecimento teórico de Nietzsche e de outros autores, e valorizo, principalmente, a alegria com que proferia suas aulas, com que orientava as nossas teses e com que nos impulsava a pensar, com a paixão de sua inteligência.
  • 11
    Para a compreensão do estilo ditirâmbico nietzschiano, empregado em Assim falou ZaratustraNIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., destaco a consistente interpretação, que acompanho neste trabalho, de Luis de Santiago Guervós, em A linguagem do ditirambo: três cantos de Assim falava Zaratustra: Canto da noite, Canto do baile, Canto do túmuloGUERVOS, L. S. A linguagem do ditirambo: três cantos d´Assim falava Zaratustra. In: NASSER, E; RUBIRA, L. (org.). Nietzsche no século XXI. Porto Alegre: Zouk, 2017.. (Cf. particularmente, 2017, pp. 149-154).
  • 12
    A questão do sofrimento, em Assim falou ZaratustraNIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., também adquire um papel central em toda a trajetória do personagem central. Quero destacar a importância da análise do Canto da noite, de Guervós, que acompanho nesta interpretação, quando afirma que, nesse canto de solidão, a dor alcança um sentido muito profundo, expressa um sofrimento radical: "[...] 'assim sofre um Deus, um Dioniso'. A própria interpretação de Nietzsche nos permite ver o 'Canto da noite' como o lamento de Dioniso-Zagreu que sofre, como o herói trágico”. (2017, p. 156).
  • 13
    Abordei a problemática do eterno retorno no meu livro Nietzsche e a liberdade (2008BARRENECHEA, M. A. de. Nietzsche e a liberdade. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008.). Neste momento, apenas aludo brevemente a algumas questões desse relevante e complexo conceito, para continuar minhas análises específicas sobre o sofrimento na teoria nietzschiana. De todas as formas, quero exaltar a relevância da interpretação de Eugen Fink, que acompanho nas suas principais reflexões, presentes em A filosofia de Nietzsche, particularmente no capítulo III. A anunciação, sobretudo, nos itens 4, 5 e 6 sobre o eterno retorno. Cf. 1983, pp. 89-127.
  • 14
    Fink, 1983FINK, E. A filosofia de Nietzsche. Tradução Joaquin L. D. Peixoto. Lisboa: Presença, 1983., p. 117.
  • 15
    A questão da “carne”, da nossa essencial facticidade, da nossa animalidade e existência biológica é analisada, de forma muito apropriada, por Barbara Stiegler que sustenta que a filosofia dionisíaco-trágica de Nietzsche, contra toda visão idealista, a partir do conceito de Dioniso, como regente de tudo aquilo que é vital, leva a uma “crítica da carne”: “Contra toda afirmação incondicional do corpo e da vida, e contra toda afirmação sem condição em geral, ‘o conceito de Dyonisos’ coloca contrariamente as bases de uma crítica dos corpos viventes - ou isso que nós propomos denominar como ‘uma crítica da carne’” (Stiegler, 2005STIEGLER, B. Nietzsche et la critique de la chair: Dyonisos, Ariane, Lhe Crist. Paris: PUF, 2005. , p. 16).
  • 16
    A noção de grande saúde é um conceito relevante da filosofia madura de Nietzsche; o pensador, pesem todas as vicissitudes e doenças que padeceu, sustenta que ele sempre foi um homem “essencialmente saudável”, que os padecimentos o levaram sempre a um patamar de maior potência, mesmo vivendo estados momentâneos de dor e de diminuição de forças, sempre alcançou o que denomina “a grande saúde - uma tal que não apenas se tem, mas constantemente se adquire e é preciso adquirir, pois sempre de novo se abandona e é preciso abandoná-la.”. Abordei esta questão relevante da grande saúde no meu livro: Nietzsche e a alegria do trágico, particularmente no capítulo 6: Eterno retorno e grande saúde: a alegria do trágico” (Barrenechea, 2014BARRENECHEA, M. A. de. Nietzsche e a alegria do trágico. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014., pp. 111-135).
  • 17
    Maria Cristina Franco Ferraz realiza um importante esclarecimento sobre a noção de parto, na perspectiva nietzschiana. O autor equipara toda criação, artística ou filosófica a um parto, a uma gestação que acarreta inúmeros sofrimentos para poder “dar à luz”: “A gravidez é geralmente utilizada pelo filósofo como paradigma de toda criação artística.” (Ferraz, 1994FERRAZ, M. C. F. Nietzsche: o bufão dos deuses. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994., p. 80).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2023
  • Aceito
    06 Jun 2023
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