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Redenção na aparência e consolo metafísico: as duas ordens de justificação da existência em O nascimento da tragédia

Redemption in appearance and metaphysical consolation: the two orders of justification of existence in The birth of tragedy

Resumo:

Neste artigo, pretendo apontar e analisar uma ambiguidade na noção de “justificação” presente na primeira obra de Nietzsche: O nascimento da tragédia. Essa ambiguidade diz respeito ao elemento psicológico e metafísico que permite que o mundo apareça como justificado mediante o processo de transfiguração, o ato de redenção e o estado de consolo metafísico, os quais se dão, seja pela descarga dos sofrimentos do Uno-primordial em aparências e imagens sublimatórias (o que ocorre pelo efeito do impulso apolíneo), seja pelo retorno ao seio materno da natureza através do rompimento do princípio de individuação (o que ocorre pelo efeito do dionisíaco). Através de uma análise de diferentes passagens em que os termos “justificação”, “redenção” e “consolo metafísico” aparecem no texto, pretendo mostrar que, num confronto com o pessimismo de Schopenhauer, Nietzsche elabora duas concepções distintas de justificação estética da existência, vinculadas a uma interpretação teleológica da natureza que admite um telos específico para cada um dos seus impulsos fundamentais.

Palavras-chave:
justificação; redenção; consolo metafísico; aparência; Uno-primordial

Abstract:

In this paper I will point out and analyze an ambiguity in the notion of “justification” in Nietzsche's first book: The Birth of Tragedy. This ambiguity concerns the psychological and metaphysical element that allows the world to appear as justified through the process of transfiguration, the act of redemption, and the state of metaphysical solace, which come about either by the discharge of the sufferings of the “Primordial-One” into sublimating appearances and images (which occurs by the effect of the Apollonian Drive), or by the return to the maternal heart of nature through the tearing-apart of the principle of individuation (which occurs by the effect of the Dionysian). An analysis of different passages in which the terms “justification”, “redemption” and “metaphysical solace” appear in the text will allow us to see that, in confrontation with Schopenhauer's pessimism, Nietzsche elaborates two distinct conceptions of aesthetic justification of existence, linked to a teleological interpretation of nature that admits a specific telos for each of its fundamental drives.

Keywords:
justification; redemption; metaphysical solace; appearance; primordial-one

I

O tema de fundo sobre o qual se projeta o problema formulado e discutido neste artigo diz respeito à relação entre, por um lado, os conceitos de apolíneo e dionisíaco no jovem NietzscheNIETZSCHE, F. W. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. 15 Bände. Berlin: Walter de Gruyter, 1999. e, por outro, uma noção muito mais indeterminada do ponto de vista conceitual: a noção de inconsciente.1 1 Tomo a liberdade de remeter o leitor ao estudo que desenvolvi em minha tese de doutorado em torno do inconsciente no jovem Nietzsche (Mattioli, 2016). A isso se somam algumas inquietações com relação à ideia de “justificação” em sua obra de juventude, à luz da tradição do pessimismo - em especial de Schopenhauer2 2 Para uma análise da relação entre o problema da “justificação” e o pessimismo de matriz schopenhaueriana, assim como de sua recepção por Nietzsche, cf. Dahlkvist, 2007 e Paula, 2013. -, ideia que parece conter uma interessante ambiguidade no tocante ao tipo de estado psicológico e de situação existencial em que o mundo e a existência nos aparecem como justificados (cf. GT/NT 24, KSA 1.152).

Gostaria de iniciar, portanto, com uma discussão breve e sintética acerca do contexto temático relativo à noção de inconsciente. O inconsciente aparece explicitamente em poucas passagens de O nascimento da tragédiaNIETZSCHE, F. W. The Birth of Tragedy and Other Writings. Edited by Raymond Geuss and Ronald Speirs; translated by Ronald Speirs. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. e dos textos preparatórios, ora 1) vinculado ao campo semântico dos termos “vontade”, “instinto” e “impulso”, assim como à modalidade de experiência estética (sobretudo musical) em que esses elementos psicológicos e metafísicos são visados e vivenciados3 3 Cf. GT/NT 8, KSA 1.61; GT/NT 21, KSA 1.135, 137; GT/NT 22, KSA 1.140, 141; GMD/DM 1, KSA 1.516; DW/VD 3, KSA 1.571; DW/VD 4, KSA1.572. ; ora 2) vinculado à sabedoria paradoxalmente instintiva do socratismo, representada pelo “demônio de Sócrates”4 4 Cf. GT/NT 13, KSA 1.90; ST/ST, KSA 1.542; NF/FP 1869, 1[43], KSA 7.21; NF/FP 1869, 3[73], KSA 7.79. ; ora 3) vinculado à concepção antropológica, inspirada em Schopenhauer, de uma necessidade metafísica natural do ser humano (como uma espécie de “metafísica inconsciente”)5 5 Cf. GT/NT 16, KSA 1.108; GT/NT 23, KSA 1.148. ; ora 4) vinculado, ainda, à imagem arquetípica do sátiro, encarnada nos atores e coreutas do ditirambo dramático e da tragédia, como representante de um passado pré-civilizacional e arcaico da história do ser humano, como uma protoforma humana ainda plenamente inserida na natureza, e cujos traços permanecem inscritos numa camada profunda do nosso psiquismo, como uma forma de atavismo constitutivo6 6 Cf. GT/NT 8, KSA 1.61-63; DW/VD 4, KSA 1.575. ; atavismo não só no sentido de que esses traços permanecem presentes, inscritos no nosso inconsciente, mas sobretudo no sentido de que eles são resgatados e reavivados naquilo que NietzscheNIETZSCHE, F. W. Werke. Kritische Gesamtausgabe (KGW). Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin. New York: Walter de Gruyter, 1995. entende ser a experiência trágica. Esses seriam alguns dos sentidos em que o inconsciente aparece neste momento do pensamento de Nietzsche, sem que haja, contudo, um esforço consistente e sistemático por parte dele em definir mais detalhadamente essa noção.

Parte considerável da literatura que se debruçou sobre a noção de inconsciente em O nascimento da tragédia esteve refém de uma armadilha conceitual ligada à recepção nietzscheana da metafísica da vontade de Schopenhauer.7 7 Cf. por exemplo Schmidt, 2012, p. 138; Gasser, 1997, p. 612; Gödde, 2002, pp. 164-165; Safranski, 2008, pp. 58-59. Nietzsche faz um uso um tanto quanto livre de conceitos schopenhauerianos e tende a associar ora o dionisíaco, ora o Uno-primordial, ao que é em Schopenhauer a vontade; e, correspondentemente, tende a associar o apolíneo à esfera da representação, em que reinam as formas cognitivas do princípio de individuação. A partir desse uso intencionalmente pouco rigoroso do vocabulário schopenhaueriano por parte de Nietzsche, fixou-se na literatura uma tendência a identificar o dionisíaco ao inconsciente, tal como ele aparece como característica fundamental da vontade metafísica de Schopenhauer8 8 Sobre o inconsciente em Schopenhauer, cf. por exemplo Zentner, 1995; Gödde, 2009; Kossler, 2004; Mattioli, 2013, Fonseca, 2012. , e o apolíneo à esfera da consciência, já que representação e consciência são, para Schopenhauer, termos praticamente intercambiáveis.9 9 Cf. Schopenhauer, 2015, p. 60. As referências à obra de Schopenhauer acompanham a paginação da edição de Paul Deussen, que aparece na lateral da tradução brasileira utilizada aqui, de Jair Barboza. Mas creio que, em Nietzsche, não pode haver uma tal sobreposição dessas noções, sobretudo (mas não apenas por isso) pelo fato de que tanto o apolíneo quanto o dionisíaco são compreendidos por ele como forças naturais e psíquicas que não se encontram sob o jugo e sob as formas da consciência. Em sua índole essencialmente instintiva e pulsional, tanto o dionisíaco quanto o apolíneo devem ser vistos como forças inconscientes que irrompem da própria natureza, sem a mediação do ser humano (GT/NT 2, KSA 1.20), e buscam suas respectivas vias de satisfação mais elevada nas formas da vida humana: originalmente, na embriaguez e no sonho; e, subsequentemente, nas experiências estéticas que reproduzem esses estados fisiológicos e que se produzem pelas vias simbólicas das artes figurativas e da poesia épica, por um lado, e, por outro, da poesia lírica, dramática e, especialmente, da arte não figurativa por excelência: a música, que é o subsolo psicológico e metafísico da lírica, do ditirambo e da tragédia.

Sabemos que Nietzsche pensa o apolíneo como o impulso produtor da arte figurativa, na qual reina a beleza cintilante das cores, das formas, das proporções e dos limites; cuja experiência faz imergir o indivíduo num estado contemplativo em que ele se eleva sobre os tormentos da vida fática e vê uma realidade transfigurada pela magia do “deus solar”, tendo ele mesmo se convertido em “puro olho solar” (GT/NT 1, KSA 1.27-28). As descrições que Nietzsche nos oferece do estado apolíneo, ao longo de todo o livro, ressoam inconfundivelmente os termos através dos quais Schopenhauer nos apresenta, em sua teoria sobre o belo, o estado estético do contemplador. Contudo, apesar de Nietzsche designar o apolíneo como a “divinização do principium individuationis” (GT/NT 4, KSA 1.39)10 10 Tradução de Paulo César de Souza. A partir de agora indicado como PCS. , o estado estético, tal como compreendido por Schopenhauer, não reflete as coisas segundo esse princípio, mas revela as formas arquetípicas e universais dos seres, as ideias, que se encontram para além da individuação. Ou seja, já de saída, a referência a Schopenhauer é dupla e ambígua: por um lado, o apolíneo aparece como princípio de individuação (que, em Schopenhauer, é inseparável do seu princípio correlato: o princípio de razão suficiente); por outro lado, a descrição do estado contemplativo da beleza apolínea remete-nos não aos momentos em que Schopenhauer nos fala do mundo como representação submetido ao princípio de razão e de individuação (inerente ao modo de cognição do sujeito encarnado no mundo), mas sim aos momentos em que nos fala da apreensão das ideias pelo puro sujeito do conhecimento, ao qual se abrem aquelas formas eternas e arquetípicas de todos os entes, alheias ao tempo, ao espaço e aos princípios de razão e de individuação; uma apreensão que pode se dar tanto pela arte, quanto pela contemplação do belo e do sublime na natureza. A experiência estética representa, para Schopenhauer, um momento excepcional de elevação do indivíduo para além das vicissitudes do mundo empírico, para além dos tormentos de sua vontade individual, da tempestade das paixões, do ímpeto dos desejos; é quando ele se converte em puro sujeito do conhecimento isento de vontade e ascende à contemplação pura de uma figura natural ou de uma obra de arte - quando elas passam então a refletir a imagem eterna da ideia ou da forma substancial que representam. O sujeito contemplativo encontra assim a paz no regaço do belo. Nesse instante, diz-nos Schopenhauer numa célebre passagem, “festejamos o Sabbath dos trabalhos forçados do querer, a roda de Íxion cessa de girar”; e mais à frente: “existimos tão somente como olho cósmico, que olha a partir de todo ser que conhece.”11 11 Schopenhauer, 2015, p. 269.

Nietzsche se apropria dessas descrições schopenhauerianas para refletir sobre o efeito estético do apolíneo, que ele caracteriza, invariavelmente, como efeito da bela aparência (schöner Schein), que se projeta externamente a partir do “mundo interior da fantasia” e dos estados oníricos, do sonho (GT/NT 1, KSA 1.27). Pelo efeito dessa magia do apolíneo, o indivíduo recebe a dádiva “daquela liberdade em face das emoções mais selvagens, aquela sapiente tranquilidade do deus plasmador”, cujo olho é “solar”, “em conformidade com sua origem” (GT/NT, KSA 1.27-28).12 12 Tradução de Jacó Guinsburg. A partir de agora indicado como JG. Esse “olho solar” do Apolo nietzscheano ressoa o “olho cósmico” de Schopenhauer, e a “sapiente tranquilidade” e libertação das emoções e desejos no estado apolíneo ressoa a paz do contemplador schopenhaueriano, a festejar o Sabbath do querer que o atormenta.

Quanto a este aspecto, digamos, “terapêutico” da experiência estética, Nietzsche adota os termos schopenhauerianos de forma conservadora. Quanto ao seu aspecto cognitivo e transcendental, por sua vez, a ambiguidade mencionada acima, relativa ao uso transformativo do vocabulário schopenhaueriano, resulta da transformação operada por Nietzsche na teoria transcendental da individuação presente no Mundo como vontade e representação13 13 Sobre a “transformação ontológica da epistemologia transcendental de Schopenhauer” operada por Nietzsche, cf. Langbehn, 2005, p. 147. . Voltarei a esse ponto na sequência.

Nietzsche concebe então aquele estado produzido pelo impulso apolíneo, de uma libertação dos tormentos pelo efeito da bela aparência, como a meta, a finalidade, o telos próprio deste impulso.14 14 Nietzsche usa reiteradamente os termos Ziel e Absicht para se referir à meta, ao telos que é inerente a cada impulso (também à unidade entre o apolíneo e o dionisíaco, e igualmente ao impulso socrático); o mesmo vale para as formas estéticas e culturais nas quais esses impulsos se expressam: a meta ou finalidade das artes, portanto (cf. GT/NT 1, KSA 1.25; GT/NT 3, KSA 1.37; GT/NT 4, KSA 1.39, 42; GT/NT 12, KSA 1.83; GT/NT 13, KSA 1.90; GT/NT 15, KSA 1.98, 99; GT/NT 16, KSA 1.103, 108; GT/NT 21, KSA 1.139, 140, GT/NT 22, KSA 1.144; GT/NT 24, KSA 1.150, 151; GT/NT 25, KSA 1.155). Nesse contexto, a imagem de Apolo representa a força inconsciente da natureza que opera, segundo um princípio teleológico, de modo a produzir as condições para o surgimento daquele estado estético. Nos póstumos do período, Nietzsche define o impulso apolíneo como uma atividade formativa inconsciente, uma “força inconsciente produtora de formas” (NF/FP 1871, 16 [13], KSA 7.397), para concluir então que se trata da mesma força que produz a imagem idealizada na visão do artista e que produz, como sua condição material, o próprio aparato fisiológico visual pelo qual essa idealização estética é possível.

Ao leitor que acompanha o fio argumentativo que conduz do primeiro ao quinto parágrafos de O nascimento da tragédia, essas reflexões se mostram como parte de uma concepção global sobre o caráter, o sentido e o valor da existência, que Nietzsche formula igualmente sob inspiração do pensamento de Schopenhauer; mais precisamente, de sua soteriologia ou doutrina da redenção.15 15 Para uma análise detalhada do tema da soteriologia em Schopenhauer, cf. Malter, 1991. Em Mattioli, 2021, ofereci uma leitura do tema da redenção em Schopenhauer que guarda paralelos importantes com a estrutura do argumento que apresento neste artigo. O paralelo mais importante diz respeito às duas ordens de finalidade que reconheço em Schopenhauer, vinculadas ao que entendo serem a ordem da salvação e a ordem da natureza. A ordem da salvação corresponde ao horizonte de uma “teleologia ético-soteriológica”, enquanto a ordem da natureza corresponde a uma “teleologia funcional”. E aqui adentramos o plano conceitual mais específico no interior do qual a noção de justificação ganha seu significado. Trata-se, com efeito, da noção por meio da qual Nietzsche procurará determinar a tarefa propriamente metafísica da arte: justificar a existência como fenômeno estético. Entre os gregos, o solo existencial que confere sentido a essa tarefa é sua vivência profunda dos horrores e terrores da existência. Com seu olhar audacioso, próprio a um povo tão singularmente apto ao mais pesado sofrimento, eles penetraram a escuridão da noite medonha que envolve o caráter mais íntimo da vida e da natureza em geral, coberta de sangue, sofrimento e morte. A sabedoria que se produz desse olhar não pode ser outra que a sabedoria do pessimismo, formulada à luz de Schopenhauer e vocalizada pela figura mítica de Sileno, que ensina aos gregos que a vida não é digna de ser vivida, e que o melhor para o ser humano seria simplesmente não ser, nada ser (GT/NT 3, KSA 1.35). Mais uma vez, portanto, encontramos os ecos do pensamento de Schopenhauer e compreendemos o sentido soteriológico que Nietzsche, inspirado no mestre, busca atribuir à arte. A arte é o meio que os gregos encontraram para redimir esta existência, ao colocar diante dela o espelho transfigurador da beleza. Sob o efeito mágico do brilho apolíneo, os pavores da existência são encobertos pelo véu da bela aparência.

Mas como isso é possível? O que confere à arte das belas formas essa capacidade extraordinária de transformar alquimicamente uma existência pavorosa numa existência prazerosa? Para responder a essa pergunta, precisamos nos aprofundar um pouco mais nas reflexões, indicadas no início, acerca do telos do impulso apolíneo como força da natureza.

II

A metafísica de artista do jovem Nietzsche atribui aos impulsos inconscientes da natureza uma forma própria de intencionalidade, pela qual eles se encontram direcionados à realização de certos estados. O seio materno originário desses impulsos é aquela instância metafísica que Nietzsche chama de Uno-primordial (GT/NT 1, KSA 1.30; GT/NT 4, KSA 1.38-39), e para cuja designação ele lança mão também, vez ou outra, do conceito schopenhaueriano de vontade (GT/NT 3, KSA 1.37; GT/NT 16, KSA 1.108; GT/NT 17, KSA 1.109). Desse conceito schopenhaueriano, ele extrai a ideia de uma disposição universal da existência ao autodilaceramento, resultado da “autodiscórdia” essencial de seu núcleo mais íntimo. Daí sua caracterização do Uno-primordial como o “eternamente sofredor”, “pleno de contradição” (GT/NT 4, KSA 1.38, tradução de JG), que busca a redenção do sofrimento pelo prazer na aparência. Neste ponto, uma citação do parágrafo 4 servirá para elucidar a tese principal:

quanto mais percebo aqueles onipotentes impulsos artísticos na natureza, e neles um ardente anseio de aparência, de redenção pela aparência, tanto mais me sinto levado à suposição metafísica de que o verdadeiramente existente e Uno-primordial, sendo o eternamente sofredor e contraditório, necessita ao mesmo tempo da visão extasiante, da aparência prazerosa para sua constante redenção. (GT/NT 4, KSA 1.38, tradução de PCS)

À luz desse importante trecho do parágrafo 4, que é provavelmente o melhor resumo da principal tese da metafísica de artista do jovem Nietzsche, podemos entender o entrelaçamento fundamental entre teleologia, soteriologia e justificação da existência16 16 Uma excelente discussão da relação entre esses temas se encontra no primoroso estudo de Claus Langbehn (2005, em especial capítulos 3 e 4), no qual se inspiram partes importantes da presente argumentação. . O que justifica a existência, o que permite que ela adquira um sentido metafísico, é o fato de que, apesar de todo o sofrimento que lhe é ontologicamente inseparável, a arte que se produz ao fim de um longo processo natural, com a criação do gênio apolíneo, realiza uma finalidade, um telos que é inerente ao seu fundamento originário: a sublime redenção do sofrimento metafísico do Uno-primordial através da projeção estética da bela aparência no mundo da individuação.

Essa concepção da relação entre o Uno-primordial e o mundo da individuação explica também o já mencionado deslocamento que Nietzsche realiza no sentido do princípio de individuação schopenhaueriano: se, em Schopenhauer, a individuação é o produto das formas cognitivas de um sujeito individualizado e encarnado no intelecto animal, de tal modo que o mundo como representação existiria apenas “para nós”; em Nietzsche, pelo contrário, o princípio de individuação constitui a forma geral segundo a qual o próprio Uno-primordial, o único “sujeito verdadeiramente existente” (GT/NT 5, KSA 1.47, tradução de JG), projeta para si o mundo como espelho de seu anseio. Assim, Nietzsche transfere para um plano ontologicamente mais originário as formas da individuação, transformando o idealismo subjetivo de Schopenhauer numa espécie de idealismo objetivo, no qual o mundo deixa de ser uma representação “para nós”, e passa a ser uma representação para aquele sujeito originário ou intelecto primordial, que constitui o núcleo da própria natureza.17 17 A crítica ao idealismo subjetivo de Schopenhauer já havia sido elaborada nos apontamentos de Leipzig intitulados Sobre Schopenhauer, compostos em 1867-68 (cf. sobre isso Mattioli, 2016, cap. 1). A partir dessa crítica, uma nova teoria da individuação é desenvolvida por Nietzsche nas notas preparatórias para sua primeira obra. Não é inoportuno lembrar da influência decisiva exercida, nesse contexto, pela leitura da obra de Eduard von Hartmann: A filosofia do inconsciente (1869). Num importante fragmento desse período, Nietzsche escreve: “eu não ouso deduzir o espaço, o tempo e a causalidade da patética consciência humana: eles devem ser atribuídos à vontade. São os pressupostos para toda a simbologia dos fenômenos: e o próprio homem é um tal símbolo […]. E esse simbolismo não existe necessariamente para o homem individual.” (NF/FP 1870, 5[81], KSA 7.114-15; os grifos são nossos) O que Nietzsche designa, nessa passagem, pelo termo schopenhaueriano “vontade” é designado, em outros fragmentos, pelo termo “intelecto originário”: “a individuação não é de modo algum obra do conhecimento consciente, mas sim daquele intelecto originário. Isso não foi reconhecido pelos idealistas kantianos e schopenhauerianos.” (NF/FP 1870, 5[79], KSA 7.111) A esse movimento se liga uma reconceitualização substantiva da noção schopenhaueriana de vontade, que traz consequências importantes para os desdobramentos éticos e existenciais da metafísica de artista. Se a vontade schopenhaueriana é cega e inteiramente alheia aos predicados da representação, de modo que a individuação seria um produto do que Nietzsche, no fragmento 5[59] de 1870, chama de “conhecimento consciente” (correspondendo ao que em Schopenhauer é o intelecto animal como fenômeno da vontade), aquilo que Nietzsche, por sua vez, designa como vontade, intelecto originário ou ainda Uno-primordial é caracterizado nos termos de uma teoria transcendental na qual a individuação é o produto da sua própria atividade estético-cognitiva inconsciente.18 18 Para uma discussão mais detida desse ponto, cf. Mattioli, 2016, p. 169 e seguintes. Daí estarmos justificados a pensar o elemento apolíneo como cooriginário ao elemento dionisíaco, fundido a ele num amálgama pulsional inscrito no coração do Uno-primordial.

As consequências dessa reconceitualização para o posicionamento ético da metafísica de artista se deixam entrever ao compararmos a fundamentação metafísica do pessimismo de Schopenhauer (e seu coroamento ético-ascético) com a teleologia da arte que encontramos em Nietzsche. Vejamos.

A doutrina da redenção de Schopenhauer admitia apenas um desfecho moral para a existência como um todo: a autonegação da vontade mediante o conhecimento do caráter fundamentalmente absurdo, pecaminoso e detestável do mundo e da vida.19 19 O livro 4 dos dois tomos de O mundo como vontade e representação, assim como grande parte dos escritos de Schopenhauer dedicados à ética, têm como objetivo extrair as consequências, para o campo da moral, dos princípios de sua metafísica da vontade, de modo a fundamentar metafisicamente seu pessimismo. Dois dos textos mais relevantes para a compreensão da tese de que a finalidade da redenção só é alcançável mediante a negação da vontade, a partir do conhecimento do caráter pecaminoso e detestável da existência como um todo, são os capítulos 48 e 49 dos Complementos a O mundo como vontade e representação. Esse caráter do mundo não é contingente, mas metafisicamente necessário, uma vez que a vontade que constitui sua essência é uma vontade cega, sem direção e sem finalidade. Em seu impulso cego por autoafirmação, a vontade crava os dentes na própria carne e produz um mundo repleto de tormentos incontornáveis, egoísmo, crueldade e maldade, que repugna profundamente nosso sentimento moral. O indivíduo que alcança esse conhecimento e, por meio dele, suprime a vontade mesma, santifica-se e encontra a redenção no regaço do nada. Em termos práticos, essa santidade se expressa numa forma de vida ascética, na qual nada mais mobiliza a vontade mortificada do indivíduo. Ele reconheceu a unidade metafísica por trás de toda a pluralidade do mundo fenomênico, reconheceu a ubiquidade do sofrimento como consequência necessária da existência do mundo (enquanto afirmação da vontade de vida) e retirou-se deste mundo para uma forma de existência superior e isenta dos sofrimentos inerentes à afirmação da vontade. Essa redenção corresponde a uma supressão do sofrimento pela autossupressão da própria vontade.

Nas interpretações que Nietzsche elabora das tragédias gregas, encontramos interessantes ecos dessa forma de redenção pela santidade, particularmente em sua leitura da figura trágica de Édipo (GT/NT 9, KSA 1.65-66, 68) e no modo como ele compreende um determinado momento psicológico do efeito trágico (GT/NT 7, KSA 1.56-57; GT/NT 21, KSA 1.133). Mas a soteriologia estética formulada nos primeiros parágrafos de O nascimento da tragédia, sob a égide da arte apolínea, é não apenas indiferente ao sentido moral da soteriologia schopenhaueriana, mas fundamentalmente oposta a ele. A possibilidade de libertação do sofrimento mediante a bela aparência está ligada a uma afirmação altiva da existência e do mundo enquanto obras de arte cósmicas. É o telos inscrito no coração do Uno-primordial que dá a direção do seu anseio de redimir-se na aparência pela criação do mundo, e isso na medida em que se reconhece que é somente por meio da criação do mundo da individuação e de suas belas formas que ele descarrega seu pathos de sofrimento originário, ao projetar uma cadeia infinita de imagens e intuições visuais, ao longo da qual a carga patológica de sua dor primordial vai se dissolvendo cada vez mais.20 20 Discuto mais detidamente este tema em Mattioli, 2020. Num fragmento do período, Nietzsche escreve o seguinte: “No artista, a vontade alcança o deleite da intuição. É somente aqui que a dor originária é plenamente superada pelo prazer da intuição.” (NF/FP 1870, 7[175], KSA 7.209)

Compreenderemos melhor essa afirmação se recorrermos a duas expressões utilizadas, na sequência do parágrafo 4, para caracterizar o efeito da arte apolínea através dos exemplos do sonho e da pintura de Rafael intitulada Transfiguração. Com base na tese de que o Uno-primordial, enquanto artista originário da natureza, produz o mundo da representação e da individuação para redimir-se de seu sofrimento através da bela aparência deste mundo, Nietzsche nos fala do sonho como aparência da aparência e, nesse sentido, como lugar de uma satisfação ainda mais elevada do desejo primordial de aparência (GT/NT 4, KSA 1.39). Assim como o sonho, a arte apolínea é aparência da aparência; ou, se quisermos ser ainda mais precisos, diremos que é aparência da aparência da aparência, já que é a projeção exterior de imagens oníricas que se produzem no artista.21 21 Cf. a seguinte passagem de A visão dionisíaca do mundo: “Enquanto o sonho é o jogo do homem individual com a efetividade, a arte do artista plástico (em sentido amplo) é o jogo com o sonho” (DW/DV 1, KSA 1.554). O fragmento 1[175], já citado acima, nos diz o seguinte acerca disso: “No artista, a força originária (Urkraft) se manifesta através das imagens, é ela que ali cria. Na criação do mundo, estes são os momentos visados: agora há uma imagem da imagem da imagem? (?) A vontade necessita do artista, nele se repete o processo originário.” (NF/FP 1871, 1[175], KSA 7.209). Thomas Böning (1988, p. 260) sublinha igualmente a ideia de que a arte apolínea produz uma “aparência da aparência da aparência (Schein des Scheins des Scheins)”.

Na sequência do texto, ao descrever mais precisamente esse efeito da arte apolínea pelo exemplo da obra de Rafael, ele retoma a mesma ideia com a expressão: “despotenciação da aparência na aparência”. A expressão causa algum estranhamento e, não por acaso, parece ter criado certa confusão entre alguns tradutores.22 22 Na tradução brasileira mais recente de O nascimento da tragédia, Paulo César de Souza traduz o termo por “redução”, acompanhando, ao que tudo indica, a tradução para o inglês de Ronald Speirs, que o verte por “reduction”. O termo alemão é Depotenziren, e ele é extraído de Schopenhauer e Wagner.23 23 Cf. o texto de Schopenhauer intitulado Ensaio sobre a visão de espíritos e assuntos relacionados, presente na coletânea de ensaios Parerga e Paralipomena, em particular os trechos em que ele discute os fenômenos do sonambulismo magnético e da clarividência (PP I, p. 269, 272, 289, 292, em especial p. 305). Em Wagner, o termo aparece no ensaio Beethoven, em trechos nos quais o compositor retoma as reflexões de Schopenhauer sobre o estado de sonambulismo magnético e os fenômenos de clarividência, para aplicá-las à sua interpretação da concepção musical e da experiência estética da música (cf. Wagner, 2010, p. 28 e p. 78). Ambos usam a palavra para se referir ao enfraquecimento de um determinado sentido, em particular, do sentido de apreensão visual da realidade empírica concreta e exterior, o que abre as portas da consciência para a entrada de intuições e imagens produzidas no inconsciente do próprio indivíduo sob um tipo de efeito hipnótico. Nietzsche, por sua vez, mobiliza o termo para enfatizar a sublimação gradativa das imagens, que, a cada nível, se tornam mais idealizadas esteticamente, mais simbólicas, mais envoltas pelo brilho da aparência onírica (que finca suas raízes no inconsciente). É neste nível superior de idealidade estética que o olho contemplativo paira no mais puro deleite de uma visão isenta de dor, pois o pathos dos sofrimentos da vontade, representados, na parte inferior da pintura de Rafael, pelo garoto possuído, pelo desespero daqueles que o carregam e pelo terror dos discípulos - esse pathos de sofrimento está inteiramente descarregado e sublimado.24 24 Para uma discussão detida acerca da interpretação nietzscheana desta obra de Rafael, cf. Van Tongeren, 2014, pp. 254-263.

Não me parece incorreto caracterizar o prazer estético descrito por Nietzsche nessa exemplificação esclarecedora do efeito apolíneo como um prazer de tipo negativo. Trata-se do prazer produzido pela diluição da carga de afeto patológico inerente à essência mais íntima da natureza, que constitui igualmente o fundo mais íntimo do nosso próprio ser. O prazer, aqui, equivale à ausência de sofrimento, num sentido muito próximo ao prazer estético que encontramos em Schopenhauer.25 25 Neste ponto, discordo da leitura de Márcio Benchimol Barros, em seu excelente livro Ser humano, cultura e sociedade no jovem Nietzsche, quando insiste na tese de que o prazer apolíneo, em Nietzsche, nada tem a ver com o estado de silenciamento da vontade alcançado pela contemplação estética tal como a entende Schopenhauer (Barros, 2021, pp. 118-19). Se atentarmos às ocorrências do termo “vontade” em O nascimento da tragédia, veremos que ele é usado por Nietzsche, em momentos importantes, para apresentar justamente sua concordância com a tese schopenhaueriana de que o estado estético (particularmente o apolíneo) é um estado destituído de vontade e, por isso, isento de dor (cf. GT/NT 5, KSA 1.43, 47; GT/NT 6, KSA 1.50-51; GT/NT 22, KSA 1.140). Sobre isso, cf. ainda o fragmento 7[174] de 1870 (KSA 7.207), no qual Nietzsche argumenta que, no gênio, a autossuperação da vontade é possível como contemplação pura e isenta de dor. Nesse mesmo sentido, ver também os comentários de Erwin Rohde em sua resenha não publicada a O nascimento da tragédia (ROHDE, 2005, p. 36). E é nesse horizonte de experiência que Nietzsche identifica a redenção apolínea, pois apenas sob efeito da transfiguração e da divinização do princípio de individuação pode-se realizar “o alvo eternamente visado pelo Uno-primordial, sua redenção mediante a aparência” (GT/NT 4, KSA 1.39, tradução de JG).

Ora, se essa redenção só alcança sua plena realização no artista, então o sentido da vida consiste em produzir o artista, para que, através dele, “o único sujeito verdadeiramente existente celebre sua redenção na aparência.” (GT/NT 5, KSA 1.47, tradução de JG) Com essa última afirmação, Nietzsche conduz o leitor àquela que se tornou a fórmula mais famosa de sua metafísica de artista: “somente como fenômeno estético a existência e o mundo se acham eternamente justificados.” (GT/NT 5, KSA 1.47, tradução de PCS)

Quando apresenta pela primeira vez essa fórmula central, Nietzsche concebe a justificação como atribuição de um sentido estético-metafísico à existência, que a torna digna de ser desejada, apesar dos sofrimentos que lhe são inerentes. E isso na medida em que, através dela, o Uno-primordial se liberta e se redime de sua própria dor originária. Essa redenção, como vimos, é coextensiva ao efeito da arte apolínea, de modo que a justificação da existência que é aqui contemplada se dá sob a égide de Apolo, e apenas dele26 26 Cf. GT/NT 4, KSA 1.39: “Apolo [...] se nos apresenta como o endeusamento do principium individuationis, no qual se realiza, e apenas nele, o alvo eternamente visado pelo Uno-primordial, sua redenção através da aparência” (tradução de JG ligeiramente modificada). - como divinização idealizada do mundo da individuação.

Mas isso nos coloca um problema. Pois, se é verdade que, com a redenção na aparência, a finalidade do impulso apolíneo se encontra realizada, o processo de desenvolvimento da arte grega como um todo, por sua vez, ainda não alcançou sua meta final. A vitória da beleza apolínea sobre os terrores que manifestam as forças dionisíacas não põe termo à luta entre os dois impulsos e não consuma o desígnio final dessa história de combate. Sabemos que, para Nietzsche, o ponto alto dessa história é a arte trágica, que representa a conciliação entre aqueles dois impulsos e a consumação de uma meta que Nietzsche entende ser o seu objetivo comum (GT/NT 4, KSA 1.42). Há, portanto, uma segunda ordem de finalidade, uma outra teleologia, à qual corresponde um modo de justificação e de redenção da existência muito distinto.

Mas antes de passar à análise propriamente dita desse segundo ponto, gostaria de fazer um breve mapeamento das ocorrências do termo “justificação” e de seus correlatos em O nascimento da tragédia. Isso nos permitirá acompanhar panoramicamente a mudança de sentido pela qual o termo passa.

III

O termo “justificação” e seus correlatos aparecem, basicamente, em 8 momentos do texto. O primeiro deles é no Ensaio de autocrítica (GT/NT, Ensaio de autocrítica 5, KSA 1.17-18), mas eu deixarei esta ocorrência de lado aqui, pois ela funde, a partir de um olhar retrospectivo do Nietzsche maduro, o que eu entendo serem dois sentidos distintos presentes no texto de 1872 (ou em suas outras duas edições subsequentes, nesta história editorial um tanto quanto labiríntica que é a história das edições e O nascimento da tragédia). Interessa-me, antes de mais nada, identificar as ocorrências nesse texto, para tentar tornar clara a diferença entre aqueles dois sentidos principais. No texto publicado anteriormente à edição de 1886, portanto, a primeira ocorrência do termo “justificação” se encontra no parágrafo 3, onde Nietzsche nos diz que o impulso apolíneo, criador da arte da bela aparência, deu origem ao mundo olímpico, este mundo “que a vontade helênica sustinha como um espelho transfigurador diante de si.” (GT/NT 3, KSA 1.36, tradução de PCS) Assim, as figuras resplandecentes dos deuses olímpicos permitiam que o grego enxergasse a vida como justificada, na medida em que eles mesmos viviam esta vida em todo seu esplendor. Nas palavras de Nietzsche: “os deuses justificam a vida humana, vivendo-a eles próprios” (GT/NT 3, KSA 1.36, tradução de PCS).

A segunda ocorrência se encontra no parágrafo 5, na famosa fórmula, já citada, que nos diz que a existência e o mundo se justificam como fenômeno estético, na medida em que, neles, o Uno-primordial encontra sua redenção mediante a aparência.27 27 Eis o trecho em sua integralidade: “na medida em que o sujeito é artista, já se encontra liberto de sua vontade individual e se tornou um médium, através do qual o único sujeito verdadeiramente existente celebra sua redenção na aparência. Pois isto deve se tornar claro para nós principalmente, para nossa humilhação e exaltação: que toda a comédia da arte não é absolutamente representada para nós, para nossa melhoria e educação, digamos, e que tampouco somos os efetivos criadores desse mundo da arte; mas que podemos supor que somos, para o verdadeiro criador, apenas imagens e projeções artísticas, e nossa mais alta dignidade está em nosso significado como obras de arte - pois somente como fenômeno estético a existência e o mundo se acham eternamente justificados -; enquanto nossa consciência sobre esse nosso significado mal difere da que possuem guerreiros pintados numa tela sobre a batalha nela representada.” (GT/NT 5, KSA 1.47, tradução de PCS ligeiramente modificada)

A terceira e a quarta ocorrências trazem dois outros sentidos ao termo, nos quais eu não me deterei em detalhes. A terceira está no parágrafo 9, onde ele aparece em referência à visão de mundo de Ésquilo, em particular na tragédia de Prometeu (GT/NT 9, KSA 1.69), em que Nietzsche reconhece a ideia de uma “justiça transcendental” - como ele a chamará no parágrafo 14 (GT/NT 14, KSA 1.94-95) - não muito diferente daquilo que Schopenhauer, no parágrafo 63 do primeiro tomo do Mundo como vontade e representação, denomina “justiça eterna”28 28 Schopenhauer, 2015, pp. 414-415 . Trata-se da justificação do mal humano como expiação de um tipo de culpa originária. Não abordarei o sentido deste uso peculiar, pois ele demandaria uma análise à parte, num confronto mais detido com Schopenhauer e com outras fontes de Nietzsche.

Já no parágrafo 15, em sua quarta ocorrência, a noção de justificação aparece ligada ao empenho socrático de converter a existência em objeto de conhecimento e, assim, justificá-la como meio para a busca da verdade (GT/NT 15, KSA 1.99). Essa torção no uso do conceito responde à tentativa nietzscheana de compreender o fenômeno do socratismo como uma das três ilusões que a vontade estende diante dos indivíduos para prendê-los à existência.29 29 Cf. GT/NT 18, KSA 1.115-116. Discuto em mais detalhes essa caracterização do socratismo em MATTIOLI, 2016, pp. 201-220. Nesse caso em particular, trata-se da ilusão de que a essência do mundo pode ser conhecida e o próprio mundo pode ser corrigido pela razão, de modo que a vida se justificaria como caminho de busca da verdade e da virtude. Como dito, porém, não me deterei tampouco neste sentido em particular, pois interessam-me as ocorrências em que a justificação é concebida no horizonte da arte - único no qual, aos olhos de Nietzsche, ela pode ser bem sucedida.

O próximo aparecimento do termo é no parágrafo 22, e ele reassume agora o seu sentido original, vinculado ao efeito da arte apolínea, por meio da qual o mundo da individuação se encontra justificado como condição de possibilidade da redenção na aparência (GT/NT 22, KSA 1.140). É importante ressaltar que, aqui, esse sentido de justificação é contraposto ao efeito próprio da tragédia, que é produzir no espectador não um prazer contemplativo com as belas figuras heroicas da cena, mas um prazer de tipo totalmente diferente, que surge paradoxalmente com a aniquilação do herói sob o peso de forças de uma ordem superior, incomensurável e incompreensível.30 30 Eis o trecho em sua integralidade: “Enquanto ele [o verdadeiro espectador da tragédia musical visado por Nietzsche, WM] tem consciência de uma intensificação suprema dos seus impulsos dirigidos para a visibilidade e a transfiguração, sente, de forma igualmente clara, que essa longa série de efeitos artísticos apolíneos não gera aquela feliz permanência na contemplação isenta de vontade que nele produzem com suas obras o escultor e o poeta épico, os artistas propriamente apolíneos - ou seja, a justificação do mundo da individuatio alcançada naquela contemplação, que é o cume e a suma da arte apolínea. Ele contempla o mundo transfigurado do palco, mas o nega. Vê à sua frente o herói trágico, em épica nitidez e beleza, mas se alegra com a sua aniquilação. Compreende intimamente a ação, mas se refugia no incompreensível. Sente que os atos do herói são justificados, mas fica ainda mais exultante quando esses atos aniquilam seu ator. Estremece ante os sofrimentos que atingirão o herói, mas pressente neles um prazer mais alto, muito mais forte. Contempla mais e de modo mais profundo do que antes, mas desejaria ser cego. Onde encontraremos a origem dessa prodigiosa autodissensão, dessa quebra da ponta apolínea, senão na magia dionisíaca, que, aparentemente instigando ao máximo as emoções apolíneas, ainda é capaz de submeter a seu serviço tal excesso de força apolínea? O mito trágico só pode ser entendido como uma representação da sabedoria dionisíaca por meios artísticos apolíneos; ele leva o mundo fenomênico ao limite em que este nega a si mesmo e busca novamente refugiar-se no seio da única e verdadeira realidade” (GT/NT 22, KSA 1.140-141, tradução de PCS). Como veremos logo à frente, esse prazer de tipo superior é o efeito estético próprio do dionisíaco.

Quando nos deslocamos então para o parágrafo 24, encontramos, para nossa surpresa, uma segunda ocorrência da formulação que, anteriormente, no parágrafo 5, dizia-nos que a existência e o mundo se justificam como fenômeno estético, mas agora com um sentido bastante diferente, visto que ligado não à experiência da contemplação da aparência, mas sim à experiência extática da música e do mito trágico, como geradores daquele prazer de outra ordem, que surge não da contemplação das belas formas, mas de sua dissolução na erupção do dionisíaco.31 31 Eis o trecho em sua integralidade: “Como pode o feio e desarmonioso, o conteúdo do mito trágico, suscitar um prazer estético? Neste ponto será preciso, num salto arrojado, passarmos a uma metafísica da arte, repetindo minha afirmação anterior de que apenas como fenômeno estético a existência e o mundo aparecem justificados; nesse sentido, justamente o mito trágico deve nos convencer de que o feio e desarmonioso é um jogo artístico que a vontade joga consigo mesma na eterna plenitude do seu prazer. Mas esse fenômeno primordial da arte dionisíaca, difícil de compreender, torna-se inteligível e é imediatamente compreendido, por via direta, no maravilhoso significado da dissonância musical - pois apenas a música, colocada ao lado do mundo, pode nos dar uma noção do que se deve entender por justificação do mundo como fenômeno estético.” (GT/NT 24, KSA 1.152, tradução de PCS) E é com esse mesmo sentido que o termo comparece, em sua última aparição, no parágrafo final do livro, o parágrafo 25. Ali nos é dito que a música e o mito trágico justificam, em seu jogo extasiante de prazer e dor, e num domínio artístico que se acha muito além do apolíneo, até mesmo a existência do “pior dos mundos”.32 32 Mais uma vez, eis o trecho em sua integralidade: “Música e mito trágico são, de maneira igual, expressão da capacidade dionisíaca de um povo e inseparáveis um do outro. Os dois vêm de um domínio artístico que se acha além do apolíneo: os dois transfiguram uma região em que a dissonância e a imagem terrível do mundo se dissolvem em acordes de prazer; os dois brincam com o aguilhão do desprazer, confiando em suas poderosas artes mágicas; os dois justificam com esse jogo até mesmo a existência do ‘pior dos mundos’.” (GT/NT 25, KSA 1.154, tradução de PCS ligeiramente modificada)

Meu objetivo com esse breve mapeamento foi trazer à luz a ambiguidade com a qual a noção de justificação é mobilizada por Nietzsche em O nascimento da tragédia: ora referindo-se ao sentido que a existência adquire sob efeito da arte apolínea, como meio de redenção dos sofrimentos do Uno-primordial pela descarga de seu pathos doloroso em aparências prazerosas; ora referindo-se ao sentido que a existência adquire como jogo artístico de criação e destruição, prazer e dor originários de uma vida em si mesma eterna e indestrutível, que se derrama em torrentes furiosas pelas veias do mundo. Ao efeito que a arte dionisíaca tem - de nos reconduzir a esse âmago vital e fazer o indivíduo submergir no fundo sem fundo da existência do todo - Nietzsche dá o nome de “consolo metafísico” (GT/NT 7, KSA 1.56; GT/NT 8, KSA 1.59; GT/NT 17, KSA 1.109-110, 114-115; GT/NT 18, KSA 1.115, 119), e é sobre essa experiência e sua forma própria de redenção que eu me debruçarei brevemente a seguir.

IV

Nietzsche fala pela primeira vez de um tal “consolo metafísico” num importante trecho do parágrafo 7, no qual ele busca dar conta do sentido do coro trágico e do efeito que ele exerce sobre o espectador. Segundo o filósofo, o efeito imediato da tragédia dionisíaca é a suspensão de todo tipo de mediação instaurada pelo ethos e pelas estruturas do estado e da sociedade civil, com suas barreiras e delimitações, de modo que, com a quebra dessas barreiras, tem lugar um poderoso “sentimento de unidade que reconduz ao coração da natureza” (GT/NT 7, KSA 1.56, tradução de JG).33 33 Uma das fontes históricas mais importantes para a caracterização nietzscheana do dionisíaco, o estudioso da antiguidade Johann Jakob Bachofen, escreve em seu livro Versuch über die Gräbersymbolik der Alten (Ensaio sobre a simbologia tumular dos antigos, 1859): “A vida política e estatal traz consigo uma distinção de posições, limites e uma total supressão da liberdade. Em contraste com isso, a religião dionisíaca contém uma recondução da existência ao âmbito da mera materialidade e da existência meramente corporal, que, segundo sua natureza, é livre e é a mesma para todas as partes da grande sociedade humana. Se a perspectiva política e civil impõe, em toda parte, limites e fronteiras, divide os povos e os indivíduos, e desenvolve o princípio da individualidade até o mais completo egoísmo, por outro lado, Dioniso reconduz tudo à unificação, à paz e à philia da vida originária. Nos seus mistérios tomam parte tanto escravos como homens livres, e diante do deus do prazer corpóreo vêm a baixo todos os limites e fronteiras que a vida política, com o tempo, ergue cada vez mais alto. A consciência da descendência comum, a partir do mesmo material, conquista a vitória contra as distinções positivas [...] Em todos esses sentidos, Dioniso revela seu significado como Lyaeus” [isto é, como o “deus libertador / redentor”, W.M]. (Bachofen, 1859, p. 238s. apud. Schmidt, 2014, p. 120-21) Um paralelo importante com essa descrição de Bachofen se encontra na seguinte passagem da seção 21 de O nascimento da tragédia: “a cada expansão significativa das excitações dionisíacas se nota que a libertação dionisíaca das amarras do indivíduo se faz sentir, antes de tudo, numa diminuição dos instintos políticos que chega à indiferença e até mesmo à hostilidade; por outro lado, sabe-se que Apolo, o fundador de Estados, é também o gênio do principium individuationis, e que o Estado e o senso da pátria não podem existir sem a afirmação da personalidade individual.” (GT/NT 21, KSA 1.133, tradução de PCS ligeiramente modificada) O consolo metafísico proporcionado por essa experiência corresponde ao sentimento íntimo de que, “no fundo das coisas, apesar de toda a mudança dos fenômenos, a vida é indestrutivelmente forte e prazerosa” (GT/NT 7, KSA 1.56, tradução de PCS). Para Nietzsche, é aqui que reside o sentido mais profundo da experiência da tragédia: a compreensão intuitiva e vivencial de que, por trás de toda a destruição e para além de todas as vicissitudes do mundo fenomenal, uma vida eterna regozija-se num movimento pulsante de criação e aniquilação.

Também neste ponto é justo reconhecer a influência e o tom schopenhauerianos da explicação dada por Nietzsche para o efeito dionisíaco produzido pela experiência do coro trágico. No parágrafo 54 do primeiro tomo do Mundo como vontade e representação, dedicado especialmente ao tema da morte, Schopenhauer apresenta sua importante tese de que a morte pertence apenas ao fenômeno temporal da vontade de vida e é parte do ciclo vital que se perfaz entre geração, nascimento e perecimento dos indivíduos. O ciclo, enquanto tal, é a permanente exteriorização da vontade, e, na medida em que a vontade, como coisa em si, é eterna e indestrutível, está garantida a vida pulsante da natureza na repetição desse ciclo. “Onde existe vontade, existirá vida, mundo. Portanto, à vontade de vida a vida é certa”34 34 Schopenhauer, 2015, p. 324). . Disso o homem se apercebe com uma consciência íntima, ainda que, a princípio, pouco clara - como um sentimento profundo que lhe declara que ele é a própria natureza e, enquanto tal, eterno e indestrutível. Frente a essa consciência, é indiferente como os indivíduos, fenômenos da vontade, “parecidos a sonhos fugidios, nascem e perecem no tempo.”35 35 Schopenhauer, 2015, p. 331. Preenchidos por esse sentimento íntimo da plenitude infinita daquela “vida imortal da natureza”36 36 Schopenhauer, 2015, p. 325. , diz-nos Schopenhauer, os gregos (assim como outros povos) decoravam seus túmulos com figurações de cenas em que a vida encontra plena expressão, na volúpia dos atos sexuais, bacanais, núpcias, caçadas, danças e competições. Trata-se de “representações do ímpeto violento da vida”, nas quais não faltava aquela figura tão importante para a visão de Nietzsche sobre o papel do coro: a figura do sátiro37 37 Schopenhauer, 2015, p. 325. Uma das conclusões de Schopenhauer, nesse contexto, é a de que o homem que ascendeu a esse conhecimento pode, “com justeza, consolar a si mesmo em face de sua morte e da de seus amigos, quando olha retrospectivamente a vida imortal da natureza, pois sabe que esta é ele mesmo.”38 38 Schopenhauer, 2015, p. 326 Essa visão de mundo impede o envenenamento da vida pelo pensamento da morte e confere ao homem um ânimo vital que é o mesmo que “conserva cada ser vivente e o capacita a continuar vivendo”.39 39 Schopenhauer, 2015, p. 333. Sobre esse tema, cf. ainda Bittencourt, 2013.

Nietzsche retoma essa explicação schopenhaueriana daquele modo de conhecimento metafísico consolatório e o traduz nos termos de sua concepção estética acerca do efeito da tragédia. Aquela compreensão intuitiva e vivencial, que apreende “a vida eterna desse âmago da existência, em meio à contínua dissolução das aparências” (GT/NT 8, KSA 1.59, tradução de PCS), abre-se ao espectador diante da visão do coro e, fundamentalmente, por intermédio da experiência acústica da música coral. De acordo com seu argumento, o coro encarna esteticamente a turba extasiada dos entusiastas dionisíacos, que percorriam os campos e as cidades, em celebrações religiosas, dançando e entoando ditirambos ao deus. A figura arquetípica representada pelos coreutas é a do sátiro, imagem mítica do acompanhante de Dioniso, que nos remete a uma natureza ainda intocada pelo ethos civilizacional: “imagem primeva do homem, expressão de suas mais elevadas e intensas emoções, […] símbolo da onipotência sexual da natureza”, “reflexo da natureza em seus impulsos mais fortes” (GT/NT 8, KSA 1.58, 63, traduções de PCS e JG). No estado de encantamento produzido pelo coro, num processo que Nietzsche chama reiteradamente de “metamorfose” (Verwandlung), os indivíduos se veem transformados nesses “gênios da natureza restaurados” e são transportados para um plano ideal no qual é apagado todo seu passado social. É nesse sentido que Nietzsche interpreta, à luz de Schiller, uma das mais importantes funções do coro na montagem, por assim dizer, “logística” do teatro trágico: o coro funciona como uma barreira que protege o terreno ideal do espetáculo trágico da intromissão indevida dos elementos da realidade concreta, social e cívica (GT/NT 7, KSA 1.54-55; GT/NT 8, KSA 1.58). Imersos inteiramente nesse plano ideal e sob o efeito do encantamento produzido pela música, os espectadores, hipnotizados, reencontravam a si mesmos no coro, compartilhando de seus estados psicológicos extáticos e de suas visões mágicas.

É através desse compartilhamento e da comunicação do pathos dionisíaco entre todos os presentes que se dá a reunificação mística com o artista primordial dos mundos. O indivíduo se abre e submerge em camadas cada vez mais profundas de um inconsciente que o põe em contato direto com as forças primordiais da natureza. Transcendendo, primeiramente, sua consciência ordinária, ele submerge no seu inconsciente individual e joga com suas imagens; transcendendo, em seguida, o inconsciente individual, ele submerge no inconsciente coletivo e se identifica aos seus próximos numa fusão orgiástica; transcendendo, ainda, o inconsciente coletivo da comunidade humana, ele submerge num inconsciente vital, identificando-se com a vida pulsante de todas as criaturas viventes; e transcendendo, por fim, o inconsciente vital, ele submerge no inconsciente metafísico, identificando-se com o próprio Uno-primordial, eternamente criador da natureza em sua totalidade.40 40 Inconsciente individual (1), inconsciente coletivo (2), inconsciente vital (3) e inconsciente metafísico (4) são, assim, na leitura que proponho da “teoria” do inconsciente no jovem Nietzsche, os quatro “níveis” ou “camadas” do inconsciente presentes em suas formulações em torno da relação entre ser humano, natureza e vontade ou Uno-primordial (sobre isso, cf. Mattioli, 2020, p. 437). Aqui, todas as fronteiras foram dissolvidas, e o indivíduo se perdeu inteiramente no êxtase da experiência mística.

É por isso que a aniquilação do herói no espetáculo trágico produz um tipo particular e superior de prazer: o herói é apenas uma figura fenomênica, individualizada no espaço e no tempo, que age e luta contra as forças incomensuráveis da natureza, para ser finalmente tragado por elas.41 41 O drama trágico, “como objetivação de um estado dionisíaco, não representa a redenção apolínea na aparência, e sim, ao contrário, o despedaçamento do indivíduo e sua unificação com o ser primordial.” (GT/NT 8, KSA 1.62, tradução de PCS ligeiramente modificada) Ao vivenciar o aniquilamento do herói, o espectador é intuitivamente redirecionado ao coro, o fundo musical da representação cênica, reconhecendo nele a vida eterna da vontade, que não é sequer tocada pelos sofrimentos e pela aniquilação do herói. Nas palavras de Nietzsche: “

A alegria metafísica com o trágico é uma tradução da sabedoria dionisíaca instintiva e inconsciente para a linguagem das imagens: o herói, a suprema manifestação da vontade, é negado para nosso prazer, já que é apenas fenômeno, e a eterna vida da vontade não é afetada por sua aniquilação. “Acreditamos na vida eterna”, exclama a tragédia; enquanto a música é a ideia imediata dessa vida. (GT/NT 16, KSA 1.108, tradução de PCS)42 42 A exclamação “Acreditamos na vida eterna!” ressoa a exclamação de Schopenhauer no capítulo 17 dos complementos ao Mundo, sobre a necessidade metafísica do ser humano: “eu acredito em uma metafísica” (Schopenhauer, 2015, p. 194). O tema reaparece em O nascimento da tragédia, quando Nietzsche fala do nosso impulso metafísico como uma “metafísica inconsciente”, uma “convicção íntima e inconsciente acerca da relatividade do tempo e do significado verdadeiro, isto é, metafísico da vida.” (GT/NT 23, KSA 1.143, tradução de JG)

Na sequência dessa passagem, Nietzsche formula, de forma clara, a diferença radical entre a finalidade da tragédia e a finalidade das artes figurativas. Nestas últimas, o efeito da bela aparência triunfa sobre o sofrimento inerente à vida; a magia de Apolo dissolve a dor ao enredar o indivíduo na pura contemplação da beleza dos fenômenos - tanto mais, quanto mais aparentes, despotencializados na aparência, mais ilusórios e mais sublimados forem esses fenômenos. A arte dionisíaca tem um efeito praticamente oposto: ela fala, do âmago mais profundo do ser, a verdade sobre o sofrimento, mas o mostra sob a luz de uma vida pulsante em cujas emanações o sofrimento é inseparável do prazer originário do existir. Ouvimos a voz da natureza nos dizer: “Sejam como eu! A mãe primordial que eternamente cria sob o incessante fluxo dos fenômenos, que eternamente impele à existência, que eternamente se satisfaz com essa mudança dos fenômenos!” (GT/NT 16, KSA 1.108, tradução de PCS)

Se eu havia caracterizado, anteriormente, o prazer estético da arte apolínea como um tipo de prazer “negativo”, devemos caracterizar agora o prazer dionisíaco como um prazer plenamente positivo.43 43 Acompanho aqui, parcialmente, a leitura de Roberto Machado (2006, p. 211). Com isso, quero dizer que o prazer do dionisíaco não é um prazer produzido pela ausência de dor, mas um tipo de prazer superior e originário - Urlust, na pena de Nietzsche (GT/NT 17, KSA 1.109; GT/NT 24, KSA 1.152-53) - do qual a dor é parte constitutiva. É um prazer substancialmente mais complexo e ambivalente (no limite, fundamentalmente contraditório), à luz do qual a existência, com todos os seus terrores e agonias, aparece como justificada, na medida em que é um “jogo artístico” que a vontade joga consigo mesma em sua plenitude e superabundância.

A remissão que Nietzsche faz a Heráclito, neste momento de sua argumentação, já no penúltimo parágrafo do livro, é bastante elucidativa. Ele exemplifica o dionisíaco, com seu jogo de criação e destruição, através da metáfora usada pelo pensador efésio para se referir à “força formadora do mundo”: a imagem da criança que, brincando, constrói e destrói seus montes de areia, em plena inocência e pelo simples prazer lúdico de construir e destruir (GT/NT 24, KSA 1.153). Essa referência a Heráclito lança uma nova luz para a compreensão da ideia de justificação dionisíaca, em oposição à justificação apolínea. Na esfera do apolíneo, como vimos, a existência aparece como plenamente justificada apenas no auge da bela aparência produzida pelo gênio artístico humano, que é o telos de todo o processo natural e histórico impulsionado por essa força formadora. Trata-se de uma justificação que se dá num plano, por assim dizer, diacrônico, em que há uma distância temporal metafisicamente marcada: entre o ato originário de criação do mundo pelo Uno-primordial e sua justificação final pela criação artística do gênio humano.44 44 Remeto aqui o leitor, mais uma vez, ao excelente estudo Claus Langbehn (2005). Numa análise introdutória e contextual do problema da justificação e da teodiceia entre os séculos XVIII e XIX, em especial a partir da filosofia da história de Kant, Langbehn (2005, p. 19) apresenta o conceito de justificação como aquilo que permite funcionalizar a negatividade da história (sobretudo da história humana) de modo a torná-la condição necessária para o progresso em direção à realização de sua meta, de seu telos. Assim, a estrutura diacrônica da teleologia, nessa vertente da filosofia da história, é o que permite que o futuro justifique o passado e o presente, na medida em que projeta sobre eles a esperança de realização da meta mais elevada de todo o desenvolvimento humano. Como vimos, em O nascimento da tragédia isso se dá pela visão do gênio como o momento em que as forças da natureza (o Uno-primordial) produzem seu supremo ato de transfiguração artística. Trata-se, podemos dizer, de um modelo muito particular de teodiceia. Georges Goedert (1991) sugere que a teodiceia presente em Nietzsche é uma “teodiceia dionisíaca”. Wander de Paula (2021, pp. 79-80), por sua vez, contesta essa caracterização com o argumento de que, para Nietzsche, “não caberia uma concepção de teodiceia nos gregos, porque seus deuses não são, de acordo com essa visão, os responsáveis pela criação do mundo e, por conseguinte, por sua condição.” Concordo que os deuses gregos, tal como representados na maioria das figuras míticas (apolíneas) que constituem seu panteão, não são, para Nietzsche, os responsáveis pela criação do mundo. Contudo, há na metafísica de artista do próprio Nietzsche uma figura conceitual que assume o lugar de um deus demiúrgico, “gênio do mundo”, “artista dionisíaco dos mundos” (GT/NT 1, KSA 1.30, tradução de JG): trata-se do Uno-primordial, que é caracterizado, retrospectivamente, como “um deus-artista inteiramente irresponsável e amoral, que ao construir e destruir, no bem e no mal, quer atinar com seu poder soberano e seu prazer, que, criando mundos, livra-se da aflição da plenitude e superabundância, do sofrimento pelas contradições que nele se amontoam. O mundo como a redenção de Deus a todo instante alcançada, como visão eternamente cambiante, eternamente nova do ser mais sofredor, mais discordante e contraditório, que apenas na aparência sabe se redimir” (GT/NT, Ensaio de autocrítica 5, KSA 1.17, tradução de PCS). Assim, o theos da “teodiceia” nietzscheana é este deus sofredor e Uno-primordial que, em alguns momentos, é metaforicamente referido pelos epítetos de Dioniso e de Zeus (“o mundo é o jogo de Zeus”, PHG/FT 6, KSA 1.828). Na esfera do dionisíaco, pelo contrário, a existência se encontra de antemão e eternamente justificada como jogo que o próprio “gênio do mundo” (GT/NT 5, KSA 1.45) joga consigo mesmo, incorporando e admitindo plenamente em si todas as contradições inerentes a esse jogo, em vez de descarregá-las e encobri-las gradualmente sob o véu da ilusão. É como se, em rigor, não houvesse propriamente um telos do impulso dionisíaco45 45 Essa concepção não-teleológica do dionisíaco como “jogo” heraclítico da criança está associada à tematização dos grandes conceitos de Heráclito desenvolvida por Nietzsche, sobretudo, nas suas preleções sobre Os filósofos pré-platônicos: além do “jogo”, há ainda o “devir”, a “luta dos opostos”, o “fogo”, o “logos” e a “justiça” (dike). Nesse texto, Nietzsche escreve: “Aqui, a recusa de toda consideração teleológica do mundo alcança seu ponto alto: a criança joga o brinquedo fora: mas, tão logo ela jogue, ela procede com eterna conformidade a fins e ordenação. - Necessidade e jogo: guerra e justiça.” (VPP/FPP, KGW II/4.280) Isso, porém, não deve nos conduzir à tese forte de que o impulso dionisíaco não tem, efetivamente, qualquer telos próprio (isso iria de encontro às formulações no texto de Nietzsche que afirmam que cada um dos impulsos tem uma origem e uma finalidade próprias). Em seu conflito incessante com o apolíneo, cuja finalidade é a produção de formas e a configuração cada vez mais elevada dos produtos naturais e humanos, o dionisíaco representa o impulso direcionado à destruição dessas formas e ao ultrapassamento de todos os limites, como um anseio primordial de reunificação de tudo no todo, pela dissolução de todas as individualidades na unidade originária da natureza. É preciso apenas ter em vista que sua dinâmica teleológica é estruturalmente distinta daquela do impulso apolíneo e, por isso, merece uma categorização especial. , se compreendemos a teleologia como uma ordem necessariamente diacrônica. E isso porque o movimento da força dionisíaca criadora se justifica em si mesmo, sincronicamente, de modo que, tal como na cosmodiceia de Heráclito que nos é apresentada por Nietzsche na Filosofia na época trágica dos gregos, esse movimento da existência incorpora a justiça de forma inteiramente imanente. Podemos, contudo, manter ainda a caracterização teleológica do dionisíaco (mantendo assim os termos do próprio Nietzsche), se compreendermos que o telos dionisíaco se realiza a cada instante, em cada ato de criação e destruição, pelo qual o impulso mais originário do Uno-primordial promove seu reencontro jubiloso consigo mesmo.

Aqui valeria sublinhar que o dionisíaco, ainda que detenha, em certo sentido, um grau importante de prioridade ontológica frente ao apolíneo, não pode se exteriorizar sem este; cada movimento criativo da torrente pulsante da natureza exige pontos de parada nos quais a força se detém para dar forma a um produto particular. É somente por meio desta dualidade constitutiva - entre um ímpeto que emana torrencialmente e um impulso conformador que freia esse ímpeto em determinados pontos - que a natureza é produtora: natura naturans eternamente geradora de uma natura naturata. O dionisíaco, porém, tem de tragar novamente esses produtos e arrastá-los pela torrente no ciclo de criação e destruição, com o que se realiza o fato cósmico exemplificado por Nietzsche na metáfora da criança de Heráclito. Essa dualidade entre os dois impulsos e sua constante luta geradora representam a versão estético-metafísica nietzscheana da tese heraclítica da unidade ontológica dos opostos e da justiça reinante na guerra entre esses opostos: “esses dois impulsos artísticos são obrigados a desdobrar suas forças em rigorosa proporção recíproca, segundo a lei da eterna justiça.” (GT/NT 25, KSA 1.155, tradução de JG)46 46 No texto inacabado sobre a filosofia na era trágica dos gregos, lemos: “Tudo se dá de acordo com esse conflito, e é precisamente esse conflito que revela a justiça eterna. Trata-se de uma concepção fantástica, gerada a partir da mais pura nascente do helenismo, que concebe o conflito como o contínuo reinado de uma justiça unitária, severa e ligada a leis eternas. Apenas um grego estava apto a fazer dessa concepção o fundamento de uma cosmodiceia; trata-se da boa Éris de Hesíodo transfigurada em princípio cosmológico” (PHG/FT, KSA 1.825, tradução de Fernando de Moraes Barros, São Paulo: Hedra, 2011, modificada; para uma discussão sobre a leitura nietzscheana de Heráclito à luz do problema aqui contemplado, cf. por exemplo Marton, 2001b e Melo Neto, 2020). É possível dizer que o recurso a Heráclito, associado à concepção do “consolo metafísico” proporcionado pela visão trágica da existência, antecipam, neste momento do pensamento de Nietzsche, um das ideias centrais que serão elaboradas na obra de maturidade em torno da visão do “eterno retorno” (agradeço à profa. Scarlett Marton por ter levantado este ponto). No entanto, a análise da relação entre as duas ideias deve levar em consideração algumas diferenças importantes. A mais importante delas talvez seja o fato de que o eterno retorno da obra de maturidade pretende apresentar uma justificação da existência num plano de pura imanência que é distinto da imanência do jogo heraclítico aludida por Nietzsche no parágrafo 24 de O nascimento da tragédia. E isso porque, na primeira obra, a imanência está presente na tese de que o jogo artístico do gênio do mundo não depende da realização futura de uma meta que, justamente por estar localizada num futuro “ideal”, seria externa (transcendente) ao seu próprio momento presente. Mas isso não anula a transcendência do gênio do mundo enquanto tal, isto é, seu caráter metafisicamente originário com relação ao mundo ele mesmo, razão pela qual o Uno-primordial é tão frequentemente ligado ao conceito schopenhaueriano de “Vontade” e, alternativamente, ao conceito kantiano de “coisa em si”. Nesse sentido, a metafísica de artista do jovem Nietzsche tem como ponto de partida uma concepção metafísica bastante tradicional, pois supõe uma cisão entre o mundo empírico das aparências fenomênicas e o mundo metafísico da unidade originária, atemporal e incondicionada. É por isso que, no Ensaio de autocrítica, ele recusa a ideia de “consolo metafísico”, tal como elaborada ali, em prol da ideia de uma “arte do consolo neste mundo” (GT/NT, Ensaio de autocrítica 7, KSA 1.22). É a esta arte do consolo neste mundo que a visão madura do eterno retorno pretende fazer jus. Assim como o “consolo metafísico” da visão trágica de juventude, o eterno retorno busca resgatar, pelas vias do dionisíaco, o ponto de vista da eternidade, ao lançar, sobre cada evento do mundo e da vida, a luz do incomensurável e infinito círculo cósmico. Aquele que for capaz de contemplar a existência das alturas desta visão e com o pathos dionisíaco de uma afirmação incondicional, terá diante de si uma existência eternamente justificada (sobre o eterno retorno, cf. por exemplo Marton, 2001 e Calomeni, 2005). Mas essa visão, diferentemente da concepção de juventude, não depende da admissão de uma esfera metafisicamente originária e anterior à existência do próprio mundo, como sua condição ontológica.

Assim, o telos do impulso dionisíaco, que constitui o substrato metafísico da tragédia, pertence a uma ordem teleológica sincrônica; sua justificação do mundo como fenômeno estético independe, desse ponto de vista, da obra de arte produzida pelo gênio ao final de uma longa história de desenvolvimentos culturais, aquela obra na qual se representa simbolicamente o reencontro nostálgico do Uno-primordial consigo mesmo. Ainda que Nietzsche fale da tragédia, em muitos momentos, como a meta, a finalidade e o objetivo final da arte grega e dos dois impulsos que nela se manifestam, esse vocabulário teleológico, ao que tudo indica, deve ser entendido num sentido diferente daquele segundo o qual ele é usado para descrever o processo de formação da arte apolínea. Talvez possamos dizer que a tragédia é o objetivo final dos dois impulsos, não porque nela a existência encontre finalmente sua justificação, mas porque, nela, a justificação da existência, inerente desde sempre ao próprio movimento da existência ela mesma, encontra sua melhor expressão artística.

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  • ZENTNER, M. Die Flucht ins Vergessen. Die Anfänge der Psychoanalyse Freuds bei Schopenhauer. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1995.
  • 1
    Tomo a liberdade de remeter o leitor ao estudo que desenvolvi em minha tese de doutorado em torno do inconsciente no jovem Nietzsche (Mattioli, 2016MATTIOLI, W. O inconsciente no jovem Nietzsche: da intencionalidade das formas naturais à vida da linguagem. Tese (Doutorado em Filosofia) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016.).
  • 2
    Para uma análise da relação entre o problema da “justificação” e o pessimismo de matriz schopenhaueriana, assim como de sua recepção por Nietzsche, cf. Dahlkvist, 2007DAHKVIST, T. Nietzsche and the Philosophy of Pessimism. A Study of Nietzsche’s Relation to the Pessimistic Tradition: Schopenhauer, Hartmann, Leopardi. Uppsala Studies in History of Ideas 35, 2007. e Paula, 2013PAULA, W. Nietzsche e a transfiguração do pessimismo schopenhaueriano. A concepção de filosofia trágica. Tese (Doutorado em Filosofia), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013..
  • 3
    Cf. GT/NT 8, KSA 1.61; GT/NT 21, KSA 1.135, 137; GT/NT 22, KSA 1.140, 141; GMD/DM 1, KSA 1.516; DW/VD 3, KSA 1.571; DW/VD 4, KSA1.572.
  • 4
    Cf. GT/NT 13, KSA 1.90; ST/ST, KSA 1.542; NF/FP 1869, 1[43], KSA 7.21; NF/FP 1869, 3[73], KSA 7.79.
  • 5
    Cf. GT/NT 16, KSA 1.108; GT/NT 23, KSA 1.148.
  • 6
    Cf. GT/NT 8, KSA 1.61-63; DW/VD 4, KSA 1.575.
  • 7
    Cf. por exemplo Schmidt, 2012SCHMIDT, J. Kommentar zu Nietzsches die Geburt der Tragödie. Berlin / Boston: de Gruyter, 2012., p. 138; Gasser, 1997GASSER, R. Nietzsche und Freud. Berlin / New York: Walter de Gruyter, 1997., p. 612; Gödde, 2002GÖDDE, G. Nietzsches Perspektivierung des Unbewussten. In: Nietzsche-Studien, v. 31, pp. 154-194, 2002., pp. 164-165; Safranski, 2008SAFRANSKI, R. Nietzsche. Biographie seines Denkens. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 2008., pp. 58-59.
  • 8
    Sobre o inconsciente em Schopenhauer, cf. por exemplo Zentner, 1995ZENTNER, M. Die Flucht ins Vergessen. Die Anfänge der Psychoanalyse Freuds bei Schopenhauer. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1995. ; Gödde, 2009GÖDDE, G. Traditionslinien des „Unbewußten“. Schopenhauer - Nietzsche - Freud. Gießen: Psychosozial-Verlag, 2009.; Kossler, 2004KOSSLER, M. O Inconsciente em Schopenhauer. In: SILVA, J. C. S. P. (org.) Schopenhauer e o idealismo alemão. Salvador: Quarteto, 2004.; Mattioli, 2013MATTIOLI, W. Inconsciente, intencionalidade e natureza: a dialética morganática entre naturalismo e transcendentalismo na metafísica da vontade de Schopenhauer. In: Revista Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer, vol. 4, n. 1, pp. 66-97, 2013., Fonseca, 2012FONSECA, E. R. Psiquismo e vida: sobre a noção de Trieb nas obras de Freud, Schopenhauer e Nietzsche. Curitiba. Ed. da UFPR, 2012..
  • 9
    Cf. Schopenhauer, 2015SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação (WWV/MVR). Tomos I e II. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Editora Unesp, 2005 / 2015., p. 60. As referências à obra de Schopenhauer acompanham a paginação da edição de Paul DeussenSCHOPENHAUER, A. Sämtliche Werke. Hrsg. v. Paul Deussen. München: Piper Verlag, 1911-1926., que aparece na lateral da tradução brasileira utilizada aqui, de Jair Barboza.
  • 10
    Tradução de Paulo César de SouzaNIETZSCHE, F. W. O nascimento da tragédia ou Os gregos e o pessimismo. Tradução e notas Paulo César de Souza; posfácio André Luís Mota Itaparica. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.. A partir de agora indicado como PCS.
  • 11
    Schopenhauer, 2015, p. 269.
  • 12
    Tradução de Jacó GuinsburgNIETZSCHE, F. W. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradução, notas e posfácio Jacó Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.. A partir de agora indicado como JG.
  • 13
    Sobre a “transformação ontológica da epistemologia transcendental de Schopenhauer” operada por Nietzsche, cf. Langbehn, 2005LANGBEHN, C. Metaphysik der Erfahrung. Zur Grundlegung einer Philosophie der Rechtfertigung beim frühen Nietzsche. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2005., p. 147.
  • 14
    Nietzsche usa reiteradamente os termos Ziel e Absicht para se referir à meta, ao telos que é inerente a cada impulso (também à unidade entre o apolíneo e o dionisíaco, e igualmente ao impulso socrático); o mesmo vale para as formas estéticas e culturais nas quais esses impulsos se expressam: a meta ou finalidade das artes, portanto (cf. GT/NT 1, KSA 1.25; GT/NT 3, KSA 1.37; GT/NT 4, KSA 1.39, 42; GT/NT 12, KSA 1.83; GT/NT 13, KSA 1.90; GT/NT 15, KSA 1.98, 99; GT/NT 16, KSA 1.103, 108; GT/NT 21, KSA 1.139, 140, GT/NT 22, KSA 1.144; GT/NT 24, KSA 1.150, 151; GT/NT 25, KSA 1.155).
  • 15
    Para uma análise detalhada do tema da soteriologia em Schopenhauer, cf. Malter, 1991MALTER, R. Arthur Schopenhauer. Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens. Stuttgart/Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog, 1991.. Em Mattioli, 2021, ofereci uma leitura do tema da redenção em Schopenhauer que guarda paralelos importantes com a estrutura do argumento que apresento neste artigo. O paralelo mais importante diz respeito às duas ordens de finalidade que reconheço em Schopenhauer, vinculadas ao que entendo serem a ordem da salvação e a ordem da natureza. A ordem da salvação corresponde ao horizonte de uma “teleologia ético-soteriológica”, enquanto a ordem da natureza corresponde a uma “teleologia funcional”.
  • 16
    Uma excelente discussão da relação entre esses temas se encontra no primoroso estudo de Claus Langbehn (2005LANGBEHN, C. Metaphysik der Erfahrung. Zur Grundlegung einer Philosophie der Rechtfertigung beim frühen Nietzsche. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2005., em especial capítulos 3 e 4), no qual se inspiram partes importantes da presente argumentação.
  • 17
    A crítica ao idealismo subjetivo de Schopenhauer já havia sido elaborada nos apontamentos de Leipzig intitulados Sobre Schopenhauer, compostos em 1867-68 (cf. sobre isso Mattioli, 2016MATTIOLI, W. O inconsciente no jovem Nietzsche: da intencionalidade das formas naturais à vida da linguagem. Tese (Doutorado em Filosofia) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016., cap. 1). A partir dessa crítica, uma nova teoria da individuação é desenvolvida por Nietzsche nas notas preparatórias para sua primeira obra. Não é inoportuno lembrar da influência decisiva exercida, nesse contexto, pela leitura da obra de Eduard von Hartmann: A filosofia do inconsciente (1869). Num importante fragmento desse período, Nietzsche escreve: “eu não ouso deduzir o espaço, o tempo e a causalidade da patética consciência humana: eles devem ser atribuídos à vontade. São os pressupostos para toda a simbologia dos fenômenos: e o próprio homem é um tal símbolo […]. E esse simbolismo não existe necessariamente para o homem individual.” (NF/FP 1870, 5[81], KSA 7.114-15; os grifos são nossos) O que Nietzsche designa, nessa passagem, pelo termo schopenhaueriano “vontade” é designado, em outros fragmentos, pelo termo “intelecto originário”: “a individuação não é de modo algum obra do conhecimento consciente, mas sim daquele intelecto originário. Isso não foi reconhecido pelos idealistas kantianos e schopenhauerianos.” (NF/FP 1870, 5[79], KSA 7.111)
  • 18
    Para uma discussão mais detida desse ponto, cf. Mattioli, 2016MATTIOLI, W. O inconsciente no jovem Nietzsche: da intencionalidade das formas naturais à vida da linguagem. Tese (Doutorado em Filosofia) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016., p. 169 e seguintes.
  • 19
    O livro 4 dos dois tomos de O mundo como vontade e representação, assim como grande parte dos escritos de Schopenhauer dedicados à ética, têm como objetivo extrair as consequências, para o campo da moral, dos princípios de sua metafísica da vontade, de modo a fundamentar metafisicamente seu pessimismo. Dois dos textos mais relevantes para a compreensão da tese de que a finalidade da redenção só é alcançável mediante a negação da vontade, a partir do conhecimento do caráter pecaminoso e detestável da existência como um todo, são os capítulos 48 e 49 dos Complementos a O mundo como vontade e representação.
  • 20
    Discuto mais detidamente este tema em Mattioli, 2020MATTIOLI, W. Sonho, sublimação e transfiguração: em torno da relação entre inconsciente e arte no Nascimento da tragédia de Nietzsche. In: Philósophos, v. 25, n. 2, pp. 429-473, 2020..
  • 21
    Cf. a seguinte passagem de A visão dionisíaca do mundo: “Enquanto o sonho é o jogo do homem individual com a efetividade, a arte do artista plástico (em sentido amplo) é o jogo com o sonho” (DW/DV 1, KSA 1.554). O fragmento 1[175], já citado acima, nos diz o seguinte acerca disso: “No artista, a força originária (Urkraft) se manifesta através das imagens, é ela que ali cria. Na criação do mundo, estes são os momentos visados: agora há uma imagem da imagem da imagem? (?) A vontade necessita do artista, nele se repete o processo originário.” (NF/FP 1871, 1[175], KSA 7.209). Thomas Böning (1988BÖNING, T. Metaphysik, Kunst und Sprache beim frühen Nietzsche. Berlin/Boston: Walter de Gruyter, 1988., p. 260) sublinha igualmente a ideia de que a arte apolínea produz uma “aparência da aparência da aparência (Schein des Scheins des Scheins)”.
  • 22
    Na tradução brasileira mais recente de O nascimento da tragédia, Paulo César de SouzaNIETZSCHE, F. W. O nascimento da tragédia ou Os gregos e o pessimismo. Tradução e notas Paulo César de Souza; posfácio André Luís Mota Itaparica. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. traduz o termo por “redução”, acompanhando, ao que tudo indica, a tradução para o inglês de Ronald Speirs, que o verte por “reduction”.
  • 23
    Cf. o texto de Schopenhauer intitulado Ensaio sobre a visão de espíritos e assuntos relacionados, presente na coletânea de ensaios Parerga e Paralipomena, em particular os trechos em que ele discute os fenômenos do sonambulismo magnético e da clarividência (PP I, p. 269, 272, 289, 292, em especial p. 305). Em Wagner, o termo aparece no ensaio Beethoven, em trechos nos quais o compositor retoma as reflexões de Schopenhauer sobre o estado de sonambulismo magnético e os fenômenos de clarividência, para aplicá-las à sua interpretação da concepção musical e da experiência estética da música (cf. Wagner, 2010WAGNER, R. Beethoven. Tradução Anna Hartmann Cavalcanti. Rio de Janeiro: Zahar, 2010., p. 28 e p. 78).
  • 24
    Para uma discussão detida acerca da interpretação nietzscheana desta obra de Rafael, cf. Van Tongeren, 2014TONGEREN, P. v. A arte da transfiguração. In: GARCIA, A. L. M.; ANGIONI, L. (org.) Labirintos da Filosofia: Festschrift aos 60 anos de Oswaldo Giacoia Jr. Campinas: Editora PHI, 2014, pp. 253-277., pp. 254-263.
  • 25
    Neste ponto, discordo da leitura de Márcio Benchimol Barros, em seu excelente livro Ser humano, cultura e sociedade no jovem Nietzsche, quando insiste na tese de que o prazer apolíneo, em Nietzsche, nada tem a ver com o estado de silenciamento da vontade alcançado pela contemplação estética tal como a entende Schopenhauer (Barros, 2021BARROS, M. B. Ser humano, cultura e sociedade no jovem Nietzsche. Campinas: Editora Phi, 2021., pp. 118-19). Se atentarmos às ocorrências do termo “vontade” em O nascimento da tragédia, veremos que ele é usado por Nietzsche, em momentos importantes, para apresentar justamente sua concordância com a tese schopenhaueriana de que o estado estético (particularmente o apolíneo) é um estado destituído de vontade e, por isso, isento de dor (cf. GT/NT 5, KSA 1.43, 47; GT/NT 6, KSA 1.50-51; GT/NT 22, KSA 1.140). Sobre isso, cf. ainda o fragmento 7[174] de 1870 (KSA 7.207), no qual Nietzsche argumenta que, no gênio, a autossuperação da vontade é possível como contemplação pura e isenta de dor. Nesse mesmo sentido, ver também os comentários de Erwin Rohde em sua resenha não publicada a O nascimento da tragédia (ROHDE, 2005ROHDE, E. Resenha (recusada) para a Literarische Zentralblatt. In: MACHADO, R. (org.) Nietzsche e a polêmica sobre O nascimento da tragédia. Tradução do alemão e notas Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005., p. 36).
  • 26
    Cf. GT/NT 4, KSA 1.39: “Apolo [...] se nos apresenta como o endeusamento do principium individuationis, no qual se realiza, e apenas nele, o alvo eternamente visado pelo Uno-primordial, sua redenção através da aparência” (tradução de JG ligeiramente modificada).
  • 27
    Eis o trecho em sua integralidade: “na medida em que o sujeito é artista, já se encontra liberto de sua vontade individual e se tornou um médium, através do qual o único sujeito verdadeiramente existente celebra sua redenção na aparência. Pois isto deve se tornar claro para nós principalmente, para nossa humilhação e exaltação: que toda a comédia da arte não é absolutamente representada para nós, para nossa melhoria e educação, digamos, e que tampouco somos os efetivos criadores desse mundo da arte; mas que podemos supor que somos, para o verdadeiro criador, apenas imagens e projeções artísticas, e nossa mais alta dignidade está em nosso significado como obras de arte - pois somente como fenômeno estético a existência e o mundo se acham eternamente justificados -; enquanto nossa consciência sobre esse nosso significado mal difere da que possuem guerreiros pintados numa tela sobre a batalha nela representada.” (GT/NT 5, KSA 1.47, tradução de PCS ligeiramente modificada)
  • 28
    Schopenhauer, 2015, pp. 414-415
  • 29
    Cf. GT/NT 18, KSA 1.115-116. Discuto em mais detalhes essa caracterização do socratismo em MATTIOLI, 2016MATTIOLI, W. O inconsciente no jovem Nietzsche: da intencionalidade das formas naturais à vida da linguagem. Tese (Doutorado em Filosofia) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016., pp. 201-220.
  • 30
    Eis o trecho em sua integralidade: “Enquanto ele [o verdadeiro espectador da tragédia musical visado por Nietzsche, WM] tem consciência de uma intensificação suprema dos seus impulsos dirigidos para a visibilidade e a transfiguração, sente, de forma igualmente clara, que essa longa série de efeitos artísticos apolíneos não gera aquela feliz permanência na contemplação isenta de vontade que nele produzem com suas obras o escultor e o poeta épico, os artistas propriamente apolíneos - ou seja, a justificação do mundo da individuatio alcançada naquela contemplação, que é o cume e a suma da arte apolínea. Ele contempla o mundo transfigurado do palco, mas o nega. Vê à sua frente o herói trágico, em épica nitidez e beleza, mas se alegra com a sua aniquilação. Compreende intimamente a ação, mas se refugia no incompreensível. Sente que os atos do herói são justificados, mas fica ainda mais exultante quando esses atos aniquilam seu ator. Estremece ante os sofrimentos que atingirão o herói, mas pressente neles um prazer mais alto, muito mais forte. Contempla mais e de modo mais profundo do que antes, mas desejaria ser cego. Onde encontraremos a origem dessa prodigiosa autodissensão, dessa quebra da ponta apolínea, senão na magia dionisíaca, que, aparentemente instigando ao máximo as emoções apolíneas, ainda é capaz de submeter a seu serviço tal excesso de força apolínea? O mito trágico só pode ser entendido como uma representação da sabedoria dionisíaca por meios artísticos apolíneos; ele leva o mundo fenomênico ao limite em que este nega a si mesmo e busca novamente refugiar-se no seio da única e verdadeira realidade” (GT/NT 22, KSA 1.140-141, tradução de PCS).
  • 31
    Eis o trecho em sua integralidade: “Como pode o feio e desarmonioso, o conteúdo do mito trágico, suscitar um prazer estético? Neste ponto será preciso, num salto arrojado, passarmos a uma metafísica da arte, repetindo minha afirmação anterior de que apenas como fenômeno estético a existência e o mundo aparecem justificados; nesse sentido, justamente o mito trágico deve nos convencer de que o feio e desarmonioso é um jogo artístico que a vontade joga consigo mesma na eterna plenitude do seu prazer. Mas esse fenômeno primordial da arte dionisíaca, difícil de compreender, torna-se inteligível e é imediatamente compreendido, por via direta, no maravilhoso significado da dissonância musical - pois apenas a música, colocada ao lado do mundo, pode nos dar uma noção do que se deve entender por justificação do mundo como fenômeno estético.” (GT/NT 24, KSA 1.152, tradução de PCS)
  • 32
    Mais uma vez, eis o trecho em sua integralidade: “Música e mito trágico são, de maneira igual, expressão da capacidade dionisíaca de um povo e inseparáveis um do outro. Os dois vêm de um domínio artístico que se acha além do apolíneo: os dois transfiguram uma região em que a dissonância e a imagem terrível do mundo se dissolvem em acordes de prazer; os dois brincam com o aguilhão do desprazer, confiando em suas poderosas artes mágicas; os dois justificam com esse jogo até mesmo a existência do ‘pior dos mundos’.” (GT/NT 25, KSA 1.154, tradução de PCS ligeiramente modificada)
  • 33
    Uma das fontes históricas mais importantes para a caracterização nietzscheana do dionisíaco, o estudioso da antiguidade Johann Jakob Bachofen, escreve em seu livro Versuch über die Gräbersymbolik der Alten (Ensaio sobre a simbologia tumular dos antigos, 1859): “A vida política e estatal traz consigo uma distinção de posições, limites e uma total supressão da liberdade. Em contraste com isso, a religião dionisíaca contém uma recondução da existência ao âmbito da mera materialidade e da existência meramente corporal, que, segundo sua natureza, é livre e é a mesma para todas as partes da grande sociedade humana. Se a perspectiva política e civil impõe, em toda parte, limites e fronteiras, divide os povos e os indivíduos, e desenvolve o princípio da individualidade até o mais completo egoísmo, por outro lado, Dioniso reconduz tudo à unificação, à paz e à philia da vida originária. Nos seus mistérios tomam parte tanto escravos como homens livres, e diante do deus do prazer corpóreo vêm a baixo todos os limites e fronteiras que a vida política, com o tempo, ergue cada vez mais alto. A consciência da descendência comum, a partir do mesmo material, conquista a vitória contra as distinções positivas [...] Em todos esses sentidos, Dioniso revela seu significado como Lyaeus” [isto é, como o “deus libertador / redentor”, W.M]. (Bachofen, 1859, p. 238s. apud. Schmidt, 2014SCHMIDT, J. Kommentar zu Nietzsches die Geburt der Tragödie. Berlin / Boston: de Gruyter, 2012., p. 120-21) Um paralelo importante com essa descrição de Bachofen se encontra na seguinte passagem da seção 21 de O nascimento da tragédia: “a cada expansão significativa das excitações dionisíacas se nota que a libertação dionisíaca das amarras do indivíduo se faz sentir, antes de tudo, numa diminuição dos instintos políticos que chega à indiferença e até mesmo à hostilidade; por outro lado, sabe-se que Apolo, o fundador de Estados, é também o gênio do principium individuationis, e que o Estado e o senso da pátria não podem existir sem a afirmação da personalidade individual.” (GT/NT 21, KSA 1.133, tradução de PCS ligeiramente modificada)
  • 34
    Schopenhauer, 2015, p. 324).
  • 35
    Schopenhauer, 2015, p. 331.
  • 36
    Schopenhauer, 2015, p. 325.
  • 37
    Schopenhauer, 2015, p. 325.
  • 38
    Schopenhauer, 2015, p. 326
  • 39
    Schopenhauer, 2015, p. 333. Sobre esse tema, cf. ainda Bittencourt, 2013BITTENCOURT, R. Schopenhauer, Nietzsche, a eternidade da vida da Vontade e a incólume força criadora do espírito dionisíaco. In: Revista Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer, v. 4, n. 1, pp. 3-32, 2013..
  • 40
    Inconsciente individual (1), inconsciente coletivo (2), inconsciente vital (3) e inconsciente metafísico (4) são, assim, na leitura que proponho da “teoria” do inconsciente no jovem Nietzsche, os quatro “níveis” ou “camadas” do inconsciente presentes em suas formulações em torno da relação entre ser humano, natureza e vontade ou Uno-primordial (sobre isso, cf. Mattioli, 2020MATTIOLI, W. Schopenhauer and the Two Orders of Purposiveness in the World. In: Voluntas Revista Internacional de Filosofia, v. 12, Ed. Especial: Schopenhauer e o pensamento universal, pp. 1-16, 2021., p. 437).
  • 41
    O drama trágico, “como objetivação de um estado dionisíaco, não representa a redenção apolínea na aparência, e sim, ao contrário, o despedaçamento do indivíduo e sua unificação com o ser primordial.” (GT/NT 8, KSA 1.62, tradução de PCS ligeiramente modificada)
  • 42
    A exclamação “Acreditamos na vida eterna!” ressoa a exclamação de Schopenhauer no capítulo 17 dos complementos ao Mundo, sobre a necessidade metafísica do ser humano: “eu acredito em uma metafísica” (Schopenhauer, 2015, p. 194). O tema reaparece em O nascimento da tragédia, quando Nietzsche fala do nosso impulso metafísico como uma “metafísica inconsciente”, uma “convicção íntima e inconsciente acerca da relatividade do tempo e do significado verdadeiro, isto é, metafísico da vida.” (GT/NT 23, KSA 1.143, tradução de JG)
  • 43
    Acompanho aqui, parcialmente, a leitura de Roberto Machado (2006MACHADO, R. O nascimento do trágico. De Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Zahar, 2006., p. 211).
  • 44
    Remeto aqui o leitor, mais uma vez, ao excelente estudo Claus Langbehn (2005LANGBEHN, C. Metaphysik der Erfahrung. Zur Grundlegung einer Philosophie der Rechtfertigung beim frühen Nietzsche. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2005.). Numa análise introdutória e contextual do problema da justificação e da teodiceia entre os séculos XVIII e XIX, em especial a partir da filosofia da história de Kant, Langbehn (2005LANGBEHN, C. Metaphysik der Erfahrung. Zur Grundlegung einer Philosophie der Rechtfertigung beim frühen Nietzsche. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2005., p. 19) apresenta o conceito de justificação como aquilo que permite funcionalizar a negatividade da história (sobretudo da história humana) de modo a torná-la condição necessária para o progresso em direção à realização de sua meta, de seu telos. Assim, a estrutura diacrônica da teleologia, nessa vertente da filosofia da história, é o que permite que o futuro justifique o passado e o presente, na medida em que projeta sobre eles a esperança de realização da meta mais elevada de todo o desenvolvimento humano. Como vimos, em O nascimento da tragédia isso se dá pela visão do gênio como o momento em que as forças da natureza (o Uno-primordial) produzem seu supremo ato de transfiguração artística. Trata-se, podemos dizer, de um modelo muito particular de teodiceia. Georges Goedert (1991GOEDERT, G. Nietzsches dionysische Theodizee. Höhepunkt seiner Abwendung von Schopenhauer. In: SCHIRMACHER, W. (Hrsg.) Schopenhauer, Nietzsche und die Kunst. Wien: Passagen-Verlag, 1991, pp. 45-54.) sugere que a teodiceia presente em Nietzsche é uma “teodiceia dionisíaca”. Wander de Paula (2021PAULA, W. Para além de ‘afirmação’ vs. ‘negação’: a transfiguração da existência no jovem Nietzsche. In: Dissertatio, v. 54, pp. 71-99, 2021., pp. 79-80), por sua vez, contesta essa caracterização com o argumento de que, para Nietzsche, “não caberia uma concepção de teodiceia nos gregos, porque seus deuses não são, de acordo com essa visão, os responsáveis pela criação do mundo e, por conseguinte, por sua condição.” Concordo que os deuses gregos, tal como representados na maioria das figuras míticas (apolíneas) que constituem seu panteão, não são, para Nietzsche, os responsáveis pela criação do mundo. Contudo, há na metafísica de artista do próprio Nietzsche uma figura conceitual que assume o lugar de um deus demiúrgico, “gênio do mundo”, “artista dionisíaco dos mundos” (GT/NT 1, KSA 1.30, tradução de JG): trata-se do Uno-primordial, que é caracterizado, retrospectivamente, como “um deus-artista inteiramente irresponsável e amoral, que ao construir e destruir, no bem e no mal, quer atinar com seu poder soberano e seu prazer, que, criando mundos, livra-se da aflição da plenitude e superabundância, do sofrimento pelas contradições que nele se amontoam. O mundo como a redenção de Deus a todo instante alcançada, como visão eternamente cambiante, eternamente nova do ser mais sofredor, mais discordante e contraditório, que apenas na aparência sabe se redimir” (GT/NT, Ensaio de autocrítica 5, KSA 1.17, tradução de PCS). Assim, o theos da “teodiceia” nietzscheana é este deus sofredor e Uno-primordial que, em alguns momentos, é metaforicamente referido pelos epítetos de Dioniso e de Zeus (“o mundo é o jogo de Zeus”, PHG/FT 6, KSA 1.828).
  • 45
    Essa concepção não-teleológica do dionisíaco como “jogo” heraclítico da criança está associada à tematização dos grandes conceitos de Heráclito desenvolvida por Nietzsche, sobretudo, nas suas preleções sobre Os filósofos pré-platônicos: além do “jogo”, há ainda o “devir”, a “luta dos opostos”, o “fogo”, o “logos” e a “justiça” (dike). Nesse texto, Nietzsche escreve: “Aqui, a recusa de toda consideração teleológica do mundo alcança seu ponto alto: a criança joga o brinquedo fora: mas, tão logo ela jogue, ela procede com eterna conformidade a fins e ordenação. - Necessidade e jogo: guerra e justiça.” (VPP/FPP, KGW II/4.280) Isso, porém, não deve nos conduzir à tese forte de que o impulso dionisíaco não tem, efetivamente, qualquer telos próprio (isso iria de encontro às formulações no texto de Nietzsche que afirmam que cada um dos impulsos tem uma origem e uma finalidade próprias). Em seu conflito incessante com o apolíneo, cuja finalidade é a produção de formas e a configuração cada vez mais elevada dos produtos naturais e humanos, o dionisíaco representa o impulso direcionado à destruição dessas formas e ao ultrapassamento de todos os limites, como um anseio primordial de reunificação de tudo no todo, pela dissolução de todas as individualidades na unidade originária da natureza. É preciso apenas ter em vista que sua dinâmica teleológica é estruturalmente distinta daquela do impulso apolíneo e, por isso, merece uma categorização especial.
  • 46
    No texto inacabado sobre a filosofia na era trágicaNIETZSCHE, F. W. A filosofia na era trágica dos gregos. Tradução Fernando R. de Moraes Barros. São Paulo: Hedra, 2008. dos gregos, lemos: “Tudo se dá de acordo com esse conflito, e é precisamente esse conflito que revela a justiça eterna. Trata-se de uma concepção fantástica, gerada a partir da mais pura nascente do helenismo, que concebe o conflito como o contínuo reinado de uma justiça unitária, severa e ligada a leis eternas. Apenas um grego estava apto a fazer dessa concepção o fundamento de uma cosmodiceia; trata-se da boa Éris de Hesíodo transfigurada em princípio cosmológico” (PHG/FT, KSA 1.825, tradução de Fernando de Moraes Barros, São Paulo: Hedra, 2011, modificada; para uma discussão sobre a leitura nietzscheana de Heráclito à luz do problema aqui contemplado, cf. por exemplo Marton, 2001bMARTON, S. Nietzsche e Hegel, leitores de Heráclito. In: MARTON, S. Extravagâncias. Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial e Editora UNIJUÍ, 2001b, pp. 119-142. e Melo Neto, 2020MELO NETO, J. E. T. Nietzsche à luz dos antigos: a Cosmologia. São Paulo: Editora Unifesp, 2020.). É possível dizer que o recurso a Heráclito, associado à concepção do “consolo metafísico” proporcionado pela visão trágica da existência, antecipam, neste momento do pensamento de Nietzsche, um das ideias centrais que serão elaboradas na obra de maturidade em torno da visão do “eterno retorno” (agradeço à profa. Scarlett Marton por ter levantado este ponto). No entanto, a análise da relação entre as duas ideias deve levar em consideração algumas diferenças importantes. A mais importante delas talvez seja o fato de que o eterno retorno da obra de maturidade pretende apresentar uma justificação da existência num plano de pura imanência que é distinto da imanência do jogo heraclítico aludida por Nietzsche no parágrafo 24 de O nascimento da tragédia. E isso porque, na primeira obra, a imanência está presente na tese de que o jogo artístico do gênio do mundo não depende da realização futura de uma meta que, justamente por estar localizada num futuro “ideal”, seria externa (transcendente) ao seu próprio momento presente. Mas isso não anula a transcendência do gênio do mundo enquanto tal, isto é, seu caráter metafisicamente originário com relação ao mundo ele mesmo, razão pela qual o Uno-primordial é tão frequentemente ligado ao conceito schopenhaueriano de “Vontade” e, alternativamente, ao conceito kantiano de “coisa em si”. Nesse sentido, a metafísica de artista do jovem Nietzsche tem como ponto de partida uma concepção metafísica bastante tradicional, pois supõe uma cisão entre o mundo empírico das aparências fenomênicas e o mundo metafísico da unidade originária, atemporal e incondicionada. É por isso que, no Ensaio de autocrítica, ele recusa a ideia de “consolo metafísico”, tal como elaborada ali, em prol da ideia de uma “arte do consolo neste mundo” (GT/NT, Ensaio de autocrítica 7, KSA 1.22). É a esta arte do consolo neste mundo que a visão madura do eterno retorno pretende fazer jus. Assim como o “consolo metafísico” da visão trágica de juventude, o eterno retorno busca resgatar, pelas vias do dionisíaco, o ponto de vista da eternidade, ao lançar, sobre cada evento do mundo e da vida, a luz do incomensurável e infinito círculo cósmico. Aquele que for capaz de contemplar a existência das alturas desta visão e com o pathos dionisíaco de uma afirmação incondicional, terá diante de si uma existência eternamente justificada (sobre o eterno retorno, cf. por exemplo Marton, 2001MARTON, S. O eterno retorno do mesmo: tese cosmológica ou imperativo ético? In: MARTON, S. Extravagâncias. Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial e Editora UNIJUÍ, 2001a, pp. 85-118. e Calomeni, 2005CALOMENI, T. A redenção da temporalidade: a trágica intuição do eterno retorno em Nietzsche. In: Cadernos Nietzsche, v. 18, pp. 93-110, 2005.). Mas essa visão, diferentemente da concepção de juventude, não depende da admissão de uma esfera metafisicamente originária e anterior à existência do próprio mundo, como sua condição ontológica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2023
  • Aceito
    24 Jun 2023
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