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Lendo O nascimento da tragédia 150 anos depois

Reading The Birth of Tragedy 150 years later

Resumo:

Trata-se de apresentar uma conjectura sobre a relação entre este livro e o restante da obra de Nietzsche e indicar as linhas em que se pode desenvolvê-la. Nesse sentido, projetando uma leitura continuísta da obra, considera-se que O nascimento da tragédia traz consigo “sementes”, indícios e mesmo blocos inteiros de formulações que apontam as principais direções de pesquisa que o filósofo trabalhará durante a vida inteira. Vale dizer: ab ovo, o pensamento nietzschiano consistiria na exploração de intuições, temas e ideias já presentes desde sua estreia junto ao público, continuamente retomados segundo perspectivas diferentes, de modo a renderem tudo o que podem através da sucessão de suas reelaborações conceituais e poéticas.

Palavras-chave:
O nascimento da tragédia; Nietzsche; continuidade; dionisismo

Abstract:

We intend to present a conjecture on the relation between this book and the rest of Nietzsche´s works and indicate the lines in which direction one may develop it. Thus, projecting a continuist reading of these works, we consider that The birth of tragedy brings in itself “seeds”, traces and even entire formulation blocks that indicate the main research ways to be followed by the philosopher along his whole life. That is: ab ovo, nietzschean thinking will consist of examination of intuitions, themes and ideas already present since his public debut, continuously resumed along different perspectives, so they could surrender all they can through this succession of their conceptual and poetic reworking.

Keywords:
The birth of tragedy; Nietzsche; continuity; dionysianism

Assim como ocorre em relação a Platão1 1 A esse respeito ver, por exemplo, a contraposição entre as alegações de Vlastos e Dixsaut; Mafra, 2012, pp. 17-85). , dentre os precedentes ilustres, o conjunto da obra de Nietzsche NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe. G. Colli und M. Montinari (Hg). Berlin: Walter de Gruyter, Neuausgabe 1999. 15 Bd.suscita abordagens bastante variadas, em cujos pontos extremos figuram, de um lado, as que defendem uma periodização estrita, apta a discernir fases no desenvolvimento interno do pensamento e, de outro, as que reivindicam uma continuidade de fundo, segundo a qual o percurso deste pensamento, muito acidentado, cumpre a retomada de intenções e propósitos fixados desde o início, ainda que reapropriados conforme programas de pesquisa distintos entre si. Numa formulação sumária, trata-se de saber se Nietzsche é o mesmo desde sempre ou se há diversos Nietzsches singulares de acordo com a época, as leituras e os climas espirituais, cada um respondendo pelas inflexões e deslocamentos que pontuam a enunciação do pensamento que porta tal assinatura.

Associada à linhagem continuísta, nossa hipótese será desenvolvida conforme o seguinte roteiro. Retomaremos, de saída, a concepção de filosofia exposta por Nietzsche na aula sobre Tales que aparece em seu curso sobre a filosofia na era trágica dos gregos para, em conexão com as indicações de Colli2 2 Cf. 2000, pp. 7-19; 1992, pp. 7-30; 2012, pp. 13-94. sobre a gestação do livro sobre a tragédia, firmar uma ideia geral acerca das expectativas nietzschianas sobre a cultura que apenas a filosofia pode atender. O elemento de articulação será obtido junto às reflexões de Colli sobre Dioniso nos domínios da sabedoria grega, em linha com a declaração de Azar, de acordo com quem “seguramente podemos atribuir a posição de um projeto de vida”3 3 2009, p. 2. a O nascimento da tragédia.

O caso em exame pode tomar corpo partindo do precedente encontrado em Machado4 4 1997, pp. 11-34. , que sustenta que as pretensões filosóficas centrais do primeiro livro só puderam ser cumpridas em Assim falava ZaratustraNIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2011.. Além disso, se se considera, conforme Giacoia5 5 2002, pp. 50-72. , que os escritos posteriores a 1883 cumprem a função de traduzir em conceitos os grandes temas oferecidos por Zaratustra, trocando em moeda filosófica corrente as formulações poéticas do pensamento que estão na “tragédia nietzschiana”; que alguns desses mesmos temas já aparecem em A gaia ciênciaNIETZSCHE, F. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2001. (aforismos 54, 125 e 341), livro congenial aos dois, Humano, demasiado humano e Aurora, pode-se defender a ligação pretendida, ao menos quanto aos chamados primeiro e terceiro e segundo e terceiro períodos da obra, restando argumentar pela passagem coerente da sauna para a piscina gelada.

Quanto a isso, por sua vez, cabe considerar que arte e ciência podem ser vistas como metamorfoses uma da outra, segundo Medrado6 6 2011, pp. 293-308. ; que, logo nos parágrafos iniciais do livro de estreia constam os termos “ciência” e “fisiologia”, sugerindo sua cidadania legítima mesmo em um ambiente acossado pela “necessidade metafísica”; que a referência a tais termos é secundada pela expressão “impulsos artísticos da natureza”, o nexo faltante entre o primeiro e o segundo períodos da produção nietzschiana pode ser arguido em sua plausibilidade.

Tudo somado, falta ainda examinar se a “grande política” se resolve em termos agonísticos ou conciliatórios, definindo o enquadramento e as consequências políticas da teoria da “vontade de poder” para a concepção de nossa agência moral, tematizada por Wienand, a ver se o ponto permite corroborar a leitura proposta ou se a infirma. Enfim, trata-se de uma hipótese continuísta, cujo fio condutor é o “dionisíaco”, tomado como coração de uma filosofia cujas partes, em luta por autonomia e mais potência, formam uma figura orgânica − talvez uma “cidade renascentista”, imagem admirada por Nietzsche desde a convivência com Burckhardt.

Explicitado o roteiro, voltemos ao começo, buscando estabelecer o elenco de problemas que julgamos aparecer em O nascimento da tragédia e cujos prolongamentos constituiriam o corpo da obra de Nietzsche. Uma observação: dizemos prolongamentos não em sentido linear, mas, aproximadamente, como todo o ecossistema de um recife, no qual o coral da base provê condições para a instalação de todas as formas de vida que se desenvolvem ali. A força plástica aglutinadora do coral equivaleria, portanto, à desse livro em relação ao restante da obra.

O primeiro e principal dentre os problemas aludidos, a nosso ver o leitmotiv do conjunto da obra, é a questão existencial, o drama da justificação da existência em face da incorporação da verdade, no caminho da afirmação da existência, talvez a versão nietzschiana da pergunta socrático-platônica sobre “Como devemos viver?” Registre-se, entre parênteses, uma ponderação a seu respeito: em termos nietzschianos, talvez a fórmula fosse “Como podemos viver?”, ou ainda “Como queremos viver?”, modalizando a investigação em outras chaves.

Ora, quanto a isso, pode-se mobilizar duas linhas de argumentação, respectivamente articuladas à filosofia em geral, à filosofia de Heráclito em especial e à sabedoria de Dioniso. Em conjunto, ensinariam a contradição íntima do real e a duração do todo através das metamorfoses provocadas pelo jogo entre essas contradições.

O ponto de partida consiste na constatação sobre “como procedeu a filosofia em todos os tempos”, como diz Nietzsche em A filosofia na era trágica dos gregosNIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos. Tradução de Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM, 2011. , tomando o procedimento de Tales como exemplo. A aposta na unidade do todo, brotada de uma intuição mística, propulsiona a postulação metafísica segundo a qual é cabível tentar, pela via da fantasia, o estabelecimento de analogias e semelhanças, que fornecerão o substrato para todo o trabalho posterior, operado pela racionalidade, em seu esforço pela demonstração da verdade. Ora, se este esquema é válido para todas as cabeças filosóficas, cabe tentar articulá-lo às iniciativas filosóficas do próprio Nietzsche, ao conjunto de sua própria filosofia.

O que ele intui, de saída? Justamente: a unidade na dissonância, o ultrapassamento do vivente pela vida ela mesma, insinuando a duração do existente à revelia das figuras contingentes de sua manifestação. A “visão filosófica total” que Colli percebe em O nascimento da tragédia remete, ainda segundo ele, à “dissonância no coração do mundo”, na qual Dioniso imerge despedaçado e da qual emerge embalado por uma “alegria primordial”. Tal intuição, dionisíaca e sapiencial, é secundada pela consideração heracliteana do mundo, sua primeira floração filosófica plena. É esta meditação, atenta ao devir de todas as coisas, que fornece o elemento para a tarefa nuclear de O nascimento da tragédia, inclusive permitindo o contraponto entre a amarga lição de Anaximandro e o contentamento sem meios tons presente na atmosfera do pensamento de Heráclito.

Reféns da militância wagneriana e da estrutura dualista tomada de empréstimo a Schopenhauer, essa filosofia e essa sabedoria recebem no livro um tratamento que será lamentado depois, porque plasmado numa metafísica “arbitrária, ociosa, fantástica”, que culmina na declaração de que “só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente”. Seja como for, descontando-se a dialética ascensional entre apolíneo e dionisíaco, o curso solar da música alemã, o Uno primordial e o esforço a favor do renascimento da tragédia pelas artes de Wagner − ingredientes afinal fortuitos para teses afinal datadas − o problema da dissonância essencial foi posto para a reflexão:

Esse aspirar ao infinito, o bater de asas do anelo, no máximo prazer ante a realidade claramente percebida, lembram que [...] nos cumpre reconhecer um fenômeno dionisíaco que torna a nos revelar sempre de novo o lúdico construir e desconstruir do mundo individual como eflúvio de um arquiprazer, de maneira parecida à comparação que é efetuada por Heráclito, o Obscuro, entre a força plasmadora do universo e uma criança que, brincando, assenta pedras aqui e ali e constrói montes de areia e volta a derrubá-los. (GT/NT, 24, KSA 1. 152-153).

Posteriormente, num esforço contínuo, veremos a articulação do devir sendo refinada por meio de aportes novos (exemplo extremo, a seção Como o “mundo verdadeiro” acabou por se tornar em fábula do Crepúsculo dos ídolosNIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2006. ), testemunhando a favor de nossa hipótese. São conquistas originais, ao menos quanto aos termos em que aparecem, mas que podem muito bem ser referidas aos nós cegos com que o problema tinha sido amarrado no primeiro livro, na intenção de desatá-los. Mais importante: de acordo com Machado, as pretensões do livro de estreia só puderam ser efetivamente cultivadas quando o filósofo criou para elas uma forma poética e narrativo-dramática de expressão. Fiando-nos em Colli e Machado, podemos então sustentar a permanência do páthos dionisíaco mediando o nexo entre O nascimento da tragédia e Assim falava ZaratustraNIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2011.. Se, a par disso, admitimos também a proposição de Giacoia acerca da continuidade entre o espírito que anima o Zaratustra e os livros seguintes -

Nietzsche decidiu-se, pois, a dar prosseguimento à sua missão de pensador, renunciando à ousadia estilística e formal de Assim falou Zaratustra. Em 1886, publicou Para além de bem e mal, livro que deveria explicitar conceitualmente as principais intuições filosóficas de Assim falou Zaratustra. [...] Para a genealogia da moral, publicado em 1887, foi concebido e executado pelo autor como uma espécie de esclarecimento e complemento de Além de bem e mal7 7 Giacoia, 2002, p. 10.

−, parece que temos em mãos alguns laços inequívocos ligando o centauro às obras do terceiro período.

Por outro lado, se a afirmação trágica da existência dependia inicialmente dos poderes especiais da arte, a incorporação do páthos trágico e do procedimento artístico no curso de formas de vida não necessariamente voltadas para a produção de obras de arte permite um tratamento muito mais livre do tema8 8 Ver a esse respeito Dias, 2011. . Emulando ou inventando os espíritos livres, é possível prescindir da tutela de uma arte metafisicamente indexada, investindo num “dizer sim” análogo ao que presidia a relação dos gregos da época trágica com seu mundo. Excelentes nadadores, eles sempre voltam à superfície, que agora é onde se movimenta sem medo do sofrimento o pensador. A filosofia trágica de seus últimos anos e escritos, senão filha, parece neta dessa avó retratada com tinta pesada em O nascimento da tragédia, retendo dela traços inconfundíveis, apenas suavizados pela produção intermediária.

De mais a mais, outros indícios favorecem a confirmação do laço entre o primeiro e o segundo períodos da produção nietzschiana. São eloquentes a esse respeito os aforismos 54, 125 e 341 de A gaia ciênciaNIETZSCHE, F. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2001. , oportunidades em que a intuição dionisíaco-heracliteana é tratada em termos experimentais, anunciando a supressão do em-si pela adesão integral à realidade das aparências, assinalando a enunciação frenética de morte de Deus pelo homem louco e propondo o experimento decisivo e noturno do eterno retorno e das chances de sua rejeição ou afirmação pelo vivente. Resultado da moagem científica dos temas existenciais de O nascimento da tragédia, tais formulações fornecem aportes significativos para a reapropriação do problema pelo cantar de Zaratustra.

O próximo problema a considerar é a relação entre a investigação da verdade e os gêneros culturais sob os quais a civilização esforçou-se por levá-la a efeito. Sua elaboração no âmbito de O nascimento da tragédia elege o otimismo da razão socrática como antagonista, reservando aos tragediógrafos a palma do torneio. Decerto esse desfecho é recusado adiante, em nome da “filosofia histórica, que não se pode mais conceber como distinta da ciência natural, o mais novo dos métodos filosóficos”, mas como devemos interpretar a oscilação? A ideia de razão vigente neste livro teria sido substituída sem deixar resto ou o caso é de acomodações, torções e remanejamentos a partir do mesmo material? A par disso: a naturalização da filosofia exercitada nos escritos intermediários teria instituído um novo marco teórico para o pensamento ou apenas infletido noções um tanto congestionadas a respeito da natureza disponíveis desde 1871?

Arte pessimista e profunda versus ciência otimista e rasa, eis o estrato da questão no livro sob exame, certamente ditado pelo compromisso com a “necessidade metafísica”. Mas, entendamo-nos: por que este compromisso, por que essa aliança? Ora: não obstante os descaminhos da filosofia da vontade de Schopenhauer, ali assimilados com entusiasmo e depois denunciados com virulência, o exemplo de probidade do mestre − alinhado ao elogio de Albert Lange e dos rigores do aprendizado filológico − segue valendo sem restrições. Assim: um mesmo impulso, entregar a vida ao pensamento e vice-versa, buscando pelos melhores meios assegurar validade ao que se alega conhecer, parece ter ditado as duas direções de pensamento à primeira vista em conflito. No caso de O nascimento da tragédia, a retidão e os deveres epistêmicos são esgrimidos em sede dogmática, nas iniciativas posteriores, em sede cética − duas faces de uma só moeda.

Nesta chave, a natureza figura como palco central, na tentativa de encenar a dança entre arte e ciência sob a direção de uma filosofia afirmativa. Nas palavras de Medrado,

Na ideia de que ‘o homem científico é a continuação do homem artístico’ (MA I/HH I, 222, KSA 2.165-6) está contida [...] a analogia genética entre arte e ciência. O fator comum entre arte e ciência segundo este aforismo é que ambas seriam meios pelos quais se aprende a ‘olhar a vida, em todas as formas, com interesse e prazer, e a elevar nosso sentimento ao ponto de enfim exclamarmos: “Seja como for, é boa a vida”9 9 2011, p. 305. .

Parece, então, que a vida com a verdade instrui a tarefa aberta de autossuperação, tanto individual como coletivamente concebida.

Mudaram as companhias, os programas de leitura, o tom e o estilo das enunciações, embora a disposição pareça seguir constante. Tudo bem, “pequenas verdades despretensiosas achadas com método rigoroso” tomam o lugar de “erros que nos ofuscam e alegram, oriundos de tempos e homens metafísicos e artísticos”, mas no ânimo do filósofo, o plano original parece seguir sem quebra de continuidade. Sim, os resultados de suas pesquisas mudam da água para o vinho, mas parece que isso não afeta o principal, pois se é por amor à verdade da existência que ele se inclinava a favor do arranjo metafísico, é ainda por amor à mesma verdade que ele admite os equívocos inerentes a esse arranjo, tomando agora a ciência como parceira. Esta mesma vontade de verdade vem a ser problematizada de forma implacável, mas sempre em nome de seu melhor entendimento, nunca em nome de sua revogação. Pretende-se a promoção da vida por meio do cultivo de uma boa consciência diante do monstro e do caos que são a história e a natureza − vale repetir, o cultivo de uma nova saúde, correlata a uma nova sensibilidade, alheia ao circuito infernal da culpa, do arrependimento e da salvação. A correção parece ser quanto à rota do pensamento e não quanto ao seu destino.

Importa lembrar também, mesmo que de forma sumária, que o livro escorraçado pelos filólogos reivindica, em sua primeira frase, um ganho científico, e que os “impulsos artísticos da natureza” abordados logo às primeiras páginas são remetidos à dualidade dos sexos e à fisiologia dos estados de sonho e embriaguez. Se não se escreve nos moldes da austeridade cognitiva do ofício do filólogo, talvez seja porque a concepção de natureza desde o início não coaduna com a estrita observância do cânone positivista da época. De todo modo, ao menos quanto às questões ventiladas, parece franqueada a passagem entre os escritos de juventude e a filosofia para espíritos livres.

Resta enfrentar o problema a respeito do que vale à pena cultivar, desdobrando nossa hipótese no âmbito dos territórios da moral e da política. Sublinhemos desde já que a inocência do devir preside o passo, e que seu esboço já está dado no contraste entre Anaximandro e Heráclito aludido acima. Convém referir também o paradoxo que vige na relação entre a criação de tábuas de valores, movimento de matriz a-histórica, e a consciência da historicidade, que acena para o devir soberano, embora nunca possa se abandonar a ele sem destruir as condições de vida da espécie. Trata-se, então, de tentar uma montagem em que a alegria com o devir promova, ainda que paradoxalmente, avaliações e valores afins a si. Dito de outro modo, trata-se de alimentar um fatalismo alegre, livre de moralina, com o qual se possa sensibilizar os viventes e a cultura em prol de um uso jocoso da seriedade, aliado de um uso sério do riso. Este é o quadro para o experimento da incorporação da verdade pelo vivente.

A questão, assim, é: o que promove a alegria pela gratuidade da existência, sem que esta dissolva as coordenadas impostas ao devir por qualquer sistema de valores? Decerto os princípios e finalidades que tais coordenadas nos permitem louvar e perseguir serão intrinsecamente fluidos, por mais que se lhes lavre na pedra, ou mesmo na memória e nos corpos dos viventes. Resta talvez uma relação lúdica com o mundo, senão uma relação política com ele, resguardado o dado básico de que forças se exercem sobre forças10 10 Ver a esse respeito Marton, 2010. . Como ficam então os qualia emergentes nessa relação, estímulo para nossos sins e nãos em meio à existência? Ora: reaprendendo a pensar sob o influxo da inocência, reaprendemos a amar, na existência, o vívido e o vital, em detrimento do morto e do mórbido. Instaura-se com isso um círculo virtuoso, em que vida e pensamento se nutrem mutuamente, sempre calculando onde cabe melhor a luta por duração e onde cabe melhor a luta por intensidade. Incidentalmente, pode-se aquilatar aqui o quanto o exercício filosófico precursor, do pensamento da morte, abre espaço para o exercício oposto, do pensamento da vida.

Por conseguinte, estamos a perguntar em que o pensamento da vontade de poder serve a uma filosofia que se pleiteia trágica. Em O nascimento da tragédia, ainda confinada aos ditames da vontade de viver, a pesquisa avança pouco. Porém, sua retomada sob nova rubrica conceitual parece pender para a seriedade: descreve-se a consumação da vontade naquilo que ela pode, no seu exercício avassalador, expansionista e incorporador de tudo o que estiver ao seu alcance. É assim a grande política, processo em escala colossal, em cujo seio a destruição criativa chega ao auge. Difícil se manter de pé aqui, difícil aceitar essa conflagração universal como fonte para qualquer discernimento entre alto e baixo, elevado e vil, desejável e deplorável.

Em todo caso, sabe-se que a diplomacia é o prosseguimento da guerra por outros meios. Se expansão e incorporação qualificam a vontade de poder, nada proíbe que se imponha sobre elas uma orientação civilizacional. Bastaria eliminar a estupidez na assunção dos deveres e a “metafísica de carrascos”11 11 Ver a respeito Giacoia, 2017. na modulação da liberdade, pois a natureza proteiforme do animal inteligente sempre permitiu sua educação. Donde nossa resposta, quem sabe inspirada por Nietzsche: uma educação pelo e para o trágico como consequência indireta da visão primitiva que aparece em O nascimento da tragédia e é retomada depois, corolário de uma sofisticação teórica sem precedentes, ainda que trilhada em vista do mesmo fim. Os extremos se tocam e o dionisíaco extático roça o cético contemplativo no interior de uma única visão, que desliza pela superfície das aparências e nisso se compraz. Fica esboçada, assim, em todo seu alcance, a dinâmica de uma filosofia trágica e afirmativa.

As contradições de existir são reais, vida e morte formam um par. Como afirmar semelhantes pensamentos sem neles se abismar, sem com eles se desesperar, sem por eles se ressentir? O percurso global de Nietzsche sinaliza a saída. A urgência do primeiro livro é traço juvenil, sua colheita não tem ainda doçura, em função da aflição em não deixar nada de fora. Ainda bem, pois assim a agenda foi fixada com brio de iniciante − imensa, completa, pronta para todas as retomadas seguintes. Há ali uma temeridade própria da saúde que não foi testada, os dons da doença e da convalescença não estão disponíveis, o pensamento resulta frenético, grandiloquente. Mas o ressentimento das dores do mundo é para inexperientes ou idealistas e dele nosso amigo se cura em iniciativas posteriores, cuja trilha musical vem mudada, mais leve, quase divina.

Resta retomar o cristianismo, espécie de adversário que, ausente em O nascimento da tragédia, surge como alvo crucial das reelaborações visitadas até agora. Parece, portanto, que algo mudou de fato no trajeto entre o professor da Basileia e o médico da civilização. Mas, vejamos o parágrafo 5 da Tentativa de autocrítica:

o essencial nisso é que ela [metafísica do artista] já denuncia um espírito que um dia, qualquer que seja o perigo, se porá contra a interpretação e a significação morais da existência. [...] Talvez onde se possa medir melhor a profundidade desse pendor antimoral seja no precavido e hostil silêncio com que no livro inteiro se trata o cristianismo − o cristianismo como a mais extravagante figuração do tema moral que a humanidade chegou até agora a escutar. (GT/NT, Tentativa de autocrítica 5, KSA 1. 16)

Mesmo que a campanha contra a moral só tenha sido lançada depois, mesmo que o significado dos ideais ascéticos só seja fixado alhures e ainda que a exposição sobre a Grécia em O nascimento da tragédia logre oferecer um modelo protogenealógico da chamada moral de senhores, o traço definidor de tudo isso já estava posto, o pendor antimoral da filosofia que ali começou, dedicado, em última análise, ao cultivo da autossuperação de si12 12 Ver a respeito Wienand, 2012. . Parece, enfim, que a própria transvaloração de todos os valores já podia ser deduzida em negativo desde lá. Como se sabe, Plutão e sua órbita foram previstos antes de poderem ser finalmente “descobertos”.

Muito se aprende com a imperfeição, é ela que nos lança ao próximo movimento − pelo menos é o que atestam as releituras de Nietzsche por ele mesmo. Se tudo o que tratamos neste exercício não passar de erro ou ilusão em relação ao corpus nietzschiano, ao menos devemos a O nascimento da tragédia a gratidão por nos solicitar sempre, tornando nossa apropriação desse corpus talvez mais colorida e menos imperfeita a cada nova tentativa.

Referências

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  • 1
    A esse respeito ver, por exemplo, a contraposição entre as alegações de Vlastos e Dixsaut; Mafra, 2012MAFRA, J. Refutação. Organização e tradução de Janaína Mafra. São Paulo: Paulus , 2012. , pp. 17-85).
  • 2
    Cf. 2000COLLI, G. Escritos sobre Nietzsche. Tradução de Maria Filomena Molder. Lisboa: Relógio D’Água, 2000. , pp. 7-19; 1992NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. Tradução de Jacó Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. , pp. 7-30; 2012COLLI, G. A sabedoria grega (I). Tradução de Renato Ambrósio. São Paulo: Paulus, 2012. , pp. 13-94.
  • 3
    2009AZAR, C. A imagem de Sócrates na obra de Nietzsche. In: Exagium, Ouro Preto, n.5, 2009, pp. 2-14., p. 2.
  • 4
    1997MACHADO, R. Zaratustra, tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997., pp. 11-34.
  • 5
    2002NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano I. São Paulo: Companhia das Letras , 2002. , pp. 50-72.
  • 6
    2011MEDRADO, A. Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano. In. Cadernos Nietzsche, n.29, São Paulo: UNIFESP, 2011, pp. 293-308. , pp. 293-308.
  • 7
    Giacoia, 2002GIACOIA, O. Para a genealogia da moral (adaptação). São Paulo: Scipione, 2002. , p. 10.
  • 8
    Ver a esse respeito Dias, 2011DIAS, R. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011..
  • 9
    2011MEDRADO, A. Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano. In. Cadernos Nietzsche, n.29, São Paulo: UNIFESP, 2011, pp. 293-308. , p. 305.
  • 10
    Ver a esse respeito Marton, 2010MARTON, S. Nietzsche, das forças cósmicas aos valores humanos. Belo Horizonte: UFMG, 2010. .
  • 11
    Ver a respeito Giacoia, 2017GIACOIA, O. Metafísica de carrascos. In: Estudos Nietzsche. Espírito Santo, vol. 9, n.2, 2017, pp. 77-101..
  • 12
    Ver a respeito Wienand, 2012WIENAND, I. Reconciliação no pensamento de Nietzsche? Tradução de André Luiz Mota Itaparica. In: Cadernos Nietzsche, São Paulo, n.31, 2012, pp. 107-125..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2023
  • Aceito
    22 Maio 2023
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