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Desempenho sociocognitivo nos Transtornos do Espectro do Autismo e interferência do ambiente terapêutico

Resumos

Objetivo:

Analisar o desempenho sociocognitivo de crianças e adolescentes com Transtornos do Espectro do Autismo em dois ambientes de terapia de linguagem, que se diferenciam quanto à estruturação do aspecto físico.

Métodos:

Participaram dez crianças e adolescentes com a faixa etária entre 4 e 13 anos, de ambos os gêneros, com diagnósticos estabelecidos entre os Transtornos do Espectro do Autismo. Para a coleta de dados, foram realizadas oito filmagens durante sessões de terapia de linguagem individual com duração de 30 minutos, sendo quatro em sala com organização ambiental convencional (sala comum) e quatro em sala com ambientação específica (sala NIC), intercaladamente, durante um mês. Para a análise das situações filmadas, foi utilizado o Protocolo de Desempenho Sociocognitivo e os dados obtidos foram submetidos à análise estatística.

Resultados:

Verificou-se que não houve significância estatística no desempenho sociocognitivo dos dez sujeitos na sala comum e na sala NIC, embora tenham sido observadas diferenças específicas em alguns casos.

Conclusão:

A criação de ambientes físicos preestabelecidos ou materiais específicos não são e não devem ser considerados imprescindíveis para a terapia de linguagem. Ressalta-se, no entanto, que a ausência de um grande volume de dados estatisticamente significativos não indica que os resultados não sejam expressivos, reiterando a necessidade de novas pesquisas na área.

Transtorno Autístico; Cognição; Relações Interpessoais; Linguagem; Estudos de Intervenção


Purpose:

To analyze the sociocognitive performance of children and adolescents with autism spectrum disorders in two environments of language therapy, which differ as to the physical structure.

Methods:

Ten children and adolescents with ages between 4 and 13 years, of both genders, diagnosed with autism spectrum disorders took part in the study. For data collection, eight filming sessions were performed during individual language therapy lasting 30 minutes, being four in a room with conventional environmental organization (common room) and four in a room with specific ambiance [children's interaction core (CIC) room], interspersed during a month. For the analysis of filmed situations, the Sociocognitive Performance Protocol was used and obtained data were subjected to statistical analysis.

Results:

No statistical significance was found in sociocognitive performance of 10 subjects in the common and CIC rooms, although specific differences were observed in some cases.

Conclusion:

The creation of preestablished physical environments or specific materials is not and should not be considered essential for language therapy. It is noteworthy, however, that the absence of a large volume of statistically significant data does not indicate that the results are not expressive, reiterating the need for further research in the area.

Autistic Disorder; Cognition; Interpersonal Relations; Language; Intervention Studies


INTRODUÇÃO

Os aspectos sociocognitivos de crianças e adolescentes com Transtornos do Espectro do Autismo (TEA) são descritos pela literatura como fundamentais para o desenvolvimento de linguagem(11. Adams C, Lockton E, Freed J, Gaile J, Earl G, McBean K, et al. The social communication intervention project: a randomized controlled trial of the effectiveness of speech and language therapy for school-age children who have pragmatic and social communication problems with or without autism spectrum disorder. J Lang Commun Disord. 2012;47(3):233-44.

2. Cardoso C, Rocha JFL, Moreira CS, Pinto AL. Desempenho sócio-cognitivo e diferentes situações comunicativas em grupos de crianças com diagnósticos distintos. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(2):140-4.

3. Defense DA, Fernandes FDM. Perfil funcional de comunicação e desempenho sócio-cognitivo de adolescentes autistas institucionalizados. Rev CEFAC. 2011;13(6):977-85.

4. Jones LA, Campbell M. Clinical characteristics associated with language regression for children with autism spectrum disorders. J Autism Dev Disord. 2010;40(1):54-62.

5. Sousa-Morato PF, Fernandes FDM. Adaptação sócio-comunicativa no espectro autístico: dados obtidos com pais e terapeutas. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2009;14(2):225-33.
-66. Volden J, Coolican J, Garon N, White J, Bryson S. Brief report: pragmatic language in autism spectrum disorder: relationships to measures of ability and disability. J Autism Dev Disord. 2009;39(2):388-93.) e para a atuação fonoaudiológica(22. Cardoso C, Rocha JFL, Moreira CS, Pinto AL. Desempenho sócio-cognitivo e diferentes situações comunicativas em grupos de crianças com diagnósticos distintos. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(2):140-4.,33. Defense DA, Fernandes FDM. Perfil funcional de comunicação e desempenho sócio-cognitivo de adolescentes autistas institucionalizados. Rev CEFAC. 2011;13(6):977-85.,55. Sousa-Morato PF, Fernandes FDM. Adaptação sócio-comunicativa no espectro autístico: dados obtidos com pais e terapeutas. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2009;14(2):225-33.).

No processo de desenvolvimento infantil, há uma estreita relação entre as áreas cognitiva, afetiva, social e comunicativa, que constituem a base para a emergência dos símbolos(22. Cardoso C, Rocha JFL, Moreira CS, Pinto AL. Desempenho sócio-cognitivo e diferentes situações comunicativas em grupos de crianças com diagnósticos distintos. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(2):140-4.). Os déficits sociais e afetivos nos TEA combinam-se com prejuízos cognitivos que levam a um desenvolvimento pobre no jogo, resultando que a criança não tenha um ciclo emocional e cultural adequados para um desenvolvimento típico(33. Defense DA, Fernandes FDM. Perfil funcional de comunicação e desempenho sócio-cognitivo de adolescentes autistas institucionalizados. Rev CEFAC. 2011;13(6):977-85.). Para a clínica fonoaudiológica, o conhecimento das variações existentes nas relações entre as áreas se faz de extrema importância no processo de intervenção, possibilitando, assim, que as peculiaridades dos atrasos no desenvolvimento de linguagem possam ser analisadas sob diferentes perspectivas(22. Cardoso C, Rocha JFL, Moreira CS, Pinto AL. Desempenho sócio-cognitivo e diferentes situações comunicativas em grupos de crianças com diagnósticos distintos. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(2):140-4.).

Outro aspecto que deve ser considerado em intervenções fonoaudiológicas refere-se às variáveis relacionadas ao contexto ambiental de terapia de linguagem(77. Misquiatti ARN. A estruturação de ambientes de terapia fonoaudiológica. In: Brito MC, Misquiatti ARN, organizadores. Transtornos do espectro do autismo e fonoaudiologia: atualização multiprofissional em saúde e educação. Curitiba: CRV; 2013. p. 127-39.

8. Misquiatti ARN, Fernandes FDM. Terapia de linguagem no espectro autístico: a interferência do ambiente terapêutico. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2011;16(2):204-9.

9. Misquiatti ARN, Brito MC. Terapia de linguagem de irmãos com transtornos invasivos do desenvolvimento: estudo longitudinal. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2010;15(1):134-9.
-1010. Perissinoto J. Linguagem da criança com autismo. In: Perissinoto J, organizador. Conhecimentos essenciais para atender bem as crianças com autismo. São José dos Campos: Pulso; 2003. p. 39-44.). Diversos pesquisadores baseados em uma perspectiva pragmática da linguagem apontaram a importância do contexto para a comunicação(77. Misquiatti ARN. A estruturação de ambientes de terapia fonoaudiológica. In: Brito MC, Misquiatti ARN, organizadores. Transtornos do espectro do autismo e fonoaudiologia: atualização multiprofissional em saúde e educação. Curitiba: CRV; 2013. p. 127-39.,88. Misquiatti ARN, Fernandes FDM. Terapia de linguagem no espectro autístico: a interferência do ambiente terapêutico. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2011;16(2):204-9.).

O contexto em que a comunicação ocorre é complexo e abrange aspectos multidimensionais, sendo, portanto, de grande relevância sua análise na investigação de características relacionadas à comunicação(1111. Moreira CR, Fernandes FDM. Avaliação da comunicação no espectro autístico: interferência da familiaridade no desempenho de linguagem. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2010;15(3):430-5.), como o desempenho sociocognitivo. Para indivíduos com TEA, o desenvolvimento pode ser favorecido em contextos que sejam compreensivos e facilitadores de sua evolução e que possam moldar-se às suas limitações(1010. Perissinoto J. Linguagem da criança com autismo. In: Perissinoto J, organizador. Conhecimentos essenciais para atender bem as crianças com autismo. São José dos Campos: Pulso; 2003. p. 39-44.), podendo modificar-se significativamente de um contexto para o outro(1212. Kanne SM, Abbacchi AM, Constantino JN. Multi-informant ratings of psychiatric symptom severity in children with autism spectrum disorders: the importance of environmental context. J Autism Dev Disord. 2009;39(6):856-64.).

Além disso, a literatura aponta a importância que o contexto ambiental exerce em aspectos como comportamento, atenção e linguagem expressiva em sujeitos com TEA(1313. Cale SI, Carr EG, Blakeley-Smith A, Owen-DeSchryver JS. Context-based assessment and intervention for problem behavior in children with autismo spectrum disorder. Behav Modif. 2009;33(6):707-42.

14. Bara BG, Bucciarelli M, Colle L. Communicative abilities in autism: evidence for attentional deficits. Brain Lang. 2001;77(2):216-40.
-1515. Meadan H, Halle JW, Watkins RV, Chadsey JC. Examining communication repairs of 2 young children with autismo spectrum disorder: the influence of the environment. Am J Speech Lang Pathol. 2006;15(1):57-71.).

Nesse sentido, coloca-se a necessidade de investigações científicas sobre linguagem e aspectos cognitivos nos TEA, que considerem os diferentes elementos do contexto que possam interferir no desempenho de crianças com TEA(77. Misquiatti ARN. A estruturação de ambientes de terapia fonoaudiológica. In: Brito MC, Misquiatti ARN, organizadores. Transtornos do espectro do autismo e fonoaudiologia: atualização multiprofissional em saúde e educação. Curitiba: CRV; 2013. p. 127-39.,88. Misquiatti ARN, Fernandes FDM. Terapia de linguagem no espectro autístico: a interferência do ambiente terapêutico. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2011;16(2):204-9.). Assim, o objetivo deste estudo foi analisar o desempenho sociocognitivo de crianças e adolescentes com TEA em dois ambientes de terapia de linguagem, que se diferenciam quanto à estruturação do aspecto físico.

A hipótese motivadora para a realização do presente estudo foi resultado de fundamentações teóricas associadas à prática clínica de que crianças com TEA apresentarão melhor desempenho comunicativo em ambiente estruturado, funcional e familiar à criança, do que numa sala convencional de terapia fonoaudiológica.

MÉTODOS

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" – UNESP, Campus de Marília, sob o protocolo n° 968/2003. Todos os responsáveis pelos sujeitos participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, de acordo com a resolução do Conselho Nacional de Saúde CNS 196/96.

Sujeitos

Foram sujeitos desta pesquisa dez crianças e adolescentes pertencentes à faixa etária de 4 a 13 anos (média: 7,9 anos), sendo seis do gênero masculino e quatro do gênero feminino. Todos apresentam diagnósticos incluídos nos TEA, sendo que estes foram realizados por psiquiatra, segundo os critérios específicos(1616. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais - DSM-IV-TR. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2002.,1717. Organização Mundial da Saúde. Classificação de transtornos mentais de comportamento da CID-10: critérios diagnósticos para pesquisa. 10ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 1993.). Os sujeitos estavam em processo terapêutico fonoaudiológico, por um período de um a seis anos, e não foram considerados excludentes critérios como: idade, gênero, escolaridade, uso de comunicação verbal ou não verbal e Q.I.

O Quadro 1 apresenta os dados referentes a idade, sexo e tempo de terapia fonoaudiológica de cada sujeito.

Quadro 1
Identificação da amostra de sujeitos com Transtornos do Espectro do Autismo

Os dados foram coletados no final do ano letivo das terapeutas quartanistas; desta forma, as crianças estavam em atendimento com a mesma terapeuta por um período de aproximadamente nove meses.

Procedimentos

A coleta de dados foi realizada nas dependências do Centro de Estudos da Educação e da Saúde (C.E.E.S) da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, Campus de Marília.

Trata-se de um estudo transversal, no qual as filmagens ocorreram em duas diferentes salas, que se diferenciaram quanto à estruturação do aspecto físico, aqui denominadas sala comum e sala Núcleo de Interação da Criança (NIC). A sala comum apresentava organização ambiental que é, de modo geral, convencionalmente utilizada em terapia fonoaudiológica, com 9 m2de medida composta de mesa, cadeiras, armário, colchonete, e brinquedos que estavam disponíveis em um armário para uso de cada sujeito. Já a sala NIC apresentava aproximadamente 30 m2 e era composta por móveis adaptados para crianças pequenas e seus respectivos ambientes como: cozinha (pia, fogão, forno de micro-ondas, geladeira e mesa); sala de estar (poltrona e mesa) e quarto (guarda-roupa, penteadeira, cama, berço e bonecas) e outros brinquedos, buscando representar a réplica de uma casa.

Em ambas as salas, havia, ainda, miniaturas de utensílios domésticos, meios de transporte, animais, telefone, frutas de plástico, carrinho de bebê e de supermercado, ferro de passar roupa, roupinhas de boneca, boneca, bola, brinquedos de salão de beleza (pente, escova, secador, espelho e maquiagem) revistas, papel e lápis.

Na sala comum, os brinquedos estavam disponíveis dentro do armário para uso da criança. No início de casa sessão, a terapeuta abria o armário para que a criança pudesse escolher quais brinquedos gostaria de pegar. A criança estava livre para solicitar ou abrir o armário para pegar outros brinquedos no decorrer da sessão de terapia de linguagem.

Na sala NIC, os brinquedos estavam expostos de acordo com a sua funcionalidade e estavam ao alcance das crianças. Nas duas situações, as terapeutas foram orientadas a estabelecer uma situação de jogo livre, propiciando a interação, de acordo com os interesses manifestados pela criança.

Todos os sujeitos haviam sido atendidos previamente, em suas sessões rotineiras, em ambas as salas. Sendo assim, tais ambientes já eram conhecidos por eles.

Para a coleta, foram utilizados equipamentos de filmagem para registro das sessões de terapia de linguagem.

Foram realizadas filmagens de oito sessões de terapia de linguagem individual para cada sujeito com TEA, por um período de um mês, sendo que quatro sessões foram realizadas na sala comum e quatro na sala NIC intercaladamente. Inicialmente, as filmagens ocorreram na sala NIC para todos os participantes, mantendo a ordem sala NIC-sala comum para a coleta de dados. Assim, foram realizadas 80 sessões de filmagens, 40 sessões com duração de 30 minutos em cada sala, totalizando 2.400 minutos ou 40 horas de observação.

Para a análise do desempenho sociocognitivo das crianças com TEA durante as situações filmadas, foi utilizado o Protocolo de Desempenho Sociocognitivo(1818. Molini DR, Fernandes FDM. Teste específico para análise sócio-cognitiva de crianças autistas: um estudo preliminar. Temas Desenvolv. 2001;9(54):5-13.). Na análise por meio do Protocolo de Desempenho Sociocognitivo, os dados coletados foram registrados com números, de acordo com o melhor desempenho de cada criança em cada uma das áreas analisadas no protocolo, sendo que sete áreas foram analisadas:
  1. intenção comunicativa gestual;

  2. intenção comunicativa vocal;

  3. uso do objeto mediador;

  4. imitação gestual;

  5. imitação vocal;

  6. jogo combinatório e

  7. jogo simbólico.

Cada área apresenta um score mínimo e máximo para pontuação de acordo com o desempenho da criança. As áreas de intenção comunicativa gestual, intenção comunicativa verbal, jogo combinatório e jogo simbólico apresentam scores que variam de um a seis, ou seja, quanto maior a nota, melhor o desempenho naquela área. Nas áreas de imitação gestual, imitação vocal e uso de objeto mediador, os scoresvariam de um a quatro, sendo que a maior nota corresponde ao melhor desempenho. Todos os dados foram analisados e transcritos e, posteriormente, foi realizada a verificação do índice de concordância interobservadores. Os dois juízes participantes eram fonoaudiólogos, com formação e experiência na área de psiquiatria infantil e experiência equivalente no uso do instrumento de análise. Assim, foram sorteadas oito situações de filmagem para a análise de cada juiz, sendo quatro realizadas na sala NIC e quatro na sala comum. Para o cálculo de concordância entre juízes e a pesquisadora primeira autora deste estudo nos aspectos sociocognitivos, foi utilizada a seguinte formula matemática: (100-|n1 - n2|/n máximo)x100. A concordância entre os juízes e pesquisadora foi de 99,97%.

Para a análise dos resultados, considerou-se o melhor desempenho de cada sujeito em cada uma das salas estudadas. A partir desses dados, foi realizada análise estatística para a comparação dos resultados referentes ao desempenho sociocognitivo em cada uma das salas estudadas, utilizando o teste t de Student. Adotou-se o nível de significância de 5% (p<0,05) para aplicação do teste estatístico.

RESULTADOS

A Tabela 1 demonstra o score dos melhores desempenhos nas áreas de intenção comunicativa gestual (IGV), intenção comunicativa vocal (ICV), uso do objeto mediador (UOM), imitação gestual (IG), imitação vocal (IV), jogo combinatório (JC) e jogo simbólico (JS), durante as oito sessões, na sala comum e NIC, respectivamente.

Tabela 1
Melhor desempenho apresentado por cada sujeito com Transtorno do Espectro do Autismo quanto ao desempenho sociocognitivo na sala comum e na sala Núcleo de Interação da Criança

A Tabela 2 mostra a súmula dos scores do desempenho sociocognitivo dos sujeitos com TEA na sala comum e na sala NIC, por meio das médias e do desvio padrão dos scores obtidos a partir do Protocolo de Desempenho Sociocognitivo. Além disso, a Tabela 2apresenta os resultados relativos à análise comparativa do desempenho sociocognitivo dos dez sujeitos na sala comum e na sala NIC.

Tabela 2
Média, desvio padrão e significância das diferenças no desempenho sociocognitivo dos dez sujeitos em ambas as salas

Verificou-se por meio do teste t de Student para dados pareados que não houve diferença significante no desempenho sociocognitivo dos dez sujeitos quando comparadas as salas comum e sala NIC (Tabela 2).

Além disso, cabe mencionar que não foram observadas diferenças significativas no que se refere às variáveis tempo de terapia e idade dos sujeitos participantes.

DISCUSSÃO

Embora os resultados tenham mostrado que a diferença observada no desempenho sociocognitivo de sujeitos com TEA quando comparadas duas salas com diferentes formas de organização física do ambiente não foi estatisticamente significante, vale apontar que foram considerados apenas os melhores desempenhos sociocognitivos de cada sujeito participante. Esses achados concordam com os dados observados por outros autores que também destacaram que indivíduos com TEA podem apresentar desempenho sociocognitivo semelhante em diferentes situações comunicativas estudadas(22. Cardoso C, Rocha JFL, Moreira CS, Pinto AL. Desempenho sócio-cognitivo e diferentes situações comunicativas em grupos de crianças com diagnósticos distintos. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(2):140-4.).

Na área de intenção comunicativa gestual, a maior parte dos sujeitos apresentou desempenho semelhante em ambas as salas, evidenciando que esse aspecto não apresentou variação em decorrência do contexto ambiental. Um estudo(1818. Molini DR, Fernandes FDM. Teste específico para análise sócio-cognitiva de crianças autistas: um estudo preliminar. Temas Desenvolv. 2001;9(54):5-13.), realizado em situação espontânea e dirigida, também não observou diferença nessa área, provavelmente porque a criança não precisaria fazer uso de gestos para conseguir o brinquedo, uma vez que havia diversos brinquedos a seu alcance.

Foi observado ainda que 70% dos sujeitos apresentaram desempenho semelhante em intenção comunicativa vocal na sala comum e NIC, demonstrando que o contexto não interferiu nesse aspecto. No entanto, um estudo(1818. Molini DR, Fernandes FDM. Teste específico para análise sócio-cognitiva de crianças autistas: um estudo preliminar. Temas Desenvolv. 2001;9(54):5-13.) afirma que, quando a criança tem linguagem verbal, ela provavelmente vai utilizá-la em algum momento durante os 30 minutos de filmagem, indicando que esse aspecto poderá ocorrer independentemente do contexto ambiental.

Não ocorreu uso do objeto mediador com 30% dos sujeitos, sendo que foi observado o pior desempenho em 40% dos sujeitos na sala comum e NIC e o melhor desempenho em 20% na sala NIC. Apenas 4% dos sujeitos apresentaram melhor desempenho na sala comum. Esses dados confirmam os achados de um estudo(1919. Cardoso C, Fernandes FDM. Relação entre os aspectos sócio-cognitivos e perfil funcional da comunicação em um grupo de adolescentes do espectro autístico. Pró-Fono R Atual Cient. 2006;18(1):89-98.) que destaca o pior desempenho desse aspecto em situações comunicativas espontâneas.

Em relação ao jogo combinatório, a maioria dos sujeitos (70%) apresentou desempenho semelhante nas duas salas estudadas. Esses dados podem ser comparados aos achados de um estudo(1818. Molini DR, Fernandes FDM. Teste específico para análise sócio-cognitiva de crianças autistas: um estudo preliminar. Temas Desenvolv. 2001;9(54):5-13.) que afirma que a situação espontânea favorece o aparecimento do jogo combinatório.

Dos dez sujeitos estudados, 60% apresentaram desempenho semelhante em jogo simbólico em ambas as salas, e os demais (40%) apresentaram melhor desempenho na sala NIC. Um estudo(1818. Molini DR, Fernandes FDM. Teste específico para análise sócio-cognitiva de crianças autistas: um estudo preliminar. Temas Desenvolv. 2001;9(54):5-13.) indica que os sujeitos com TEA apresentam melhor desempenho para jogo simbólico na situação de teste do que na situação espontânea. No presente estudo, a sala NIC parece favorecer o aparecimento do jogo simbólico, visto que os materiais estavam expostos de acordo com sua funcionalidade e ao alcance das crianças.

Cabe mencionar que um maior número de sujeitos apresentou melhor desempenho na sala NIC em relação à imitação vocal (60% dos sujeitos) e metade deles (50% dos sujeitos) para a área de imitação gestual, sendo que apenas 20% dos sujeitos obtiveram melhor desempenho na sala comum e 30% apresentaram semelhante desempenho nas duas salas, conforme exposto na Tabela 1. Esses dados confirmam a afirmação(2020. Fernandes FDM. Sugestões de procedimentos terapêuticos de linguagem em distúrbios do espectro autístico. In: Limongi SC. Fonoaudiologia - informação para formação: procedimentos terapêuticos em linguagem. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2003. p. 54-65.) de que contextos físicos, como mesas e cadeiras, tendem a proporcionar menos possibilidades de expressão gestual do que ambientes amplos como a sala NIC.

Conforme outros autores(1010. Perissinoto J. Linguagem da criança com autismo. In: Perissinoto J, organizador. Conhecimentos essenciais para atender bem as crianças com autismo. São José dos Campos: Pulso; 2003. p. 39-44.,2121. Rescorla L, Goossens M. Symbolic play development in toddlers with expressive specific language impairment (SLI-E). J Speech Lang Hear Res. 1992;35(6):1290-302.), contextos distintos em situações de terapia de linguagem individual para indivíduos com TEA implicam diferenças de desempenho, mas tais mudanças relacionam-se também ao tempo e à interferência de diferentes interlocutores e não apenas ao contexto. Independentemente do ambiente físico e da proposta terapêutica adotada, o destaque no processo ficará a cargo do terapeuta da linguagem, como um interlocutor ideal e mediador do processo terapêutico(77. Misquiatti ARN. A estruturação de ambientes de terapia fonoaudiológica. In: Brito MC, Misquiatti ARN, organizadores. Transtornos do espectro do autismo e fonoaudiologia: atualização multiprofissional em saúde e educação. Curitiba: CRV; 2013. p. 127-39.).

Ao analisar tendências individuais, notaram-se algumas particularidades, concordando com outros autores(22. Cardoso C, Rocha JFL, Moreira CS, Pinto AL. Desempenho sócio-cognitivo e diferentes situações comunicativas em grupos de crianças com diagnósticos distintos. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(2):140-4.,33. Defense DA, Fernandes FDM. Perfil funcional de comunicação e desempenho sócio-cognitivo de adolescentes autistas institucionalizados. Rev CEFAC. 2011;13(6):977-85.,55. Sousa-Morato PF, Fernandes FDM. Adaptação sócio-comunicativa no espectro autístico: dados obtidos com pais e terapeutas. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2009;14(2):225-33.) que observaram heterogeneidade no desempenho sociocognitivo de indivíduos com TEA. Destaca-se a importância de explorar diferenças individuais, uma vez que estão associadas ao diagnóstico e ao prognóstico do desenvolvimento da linguagem e da interação de crianças com TEA, além de auxiliarem na elaboração de estratégias de intervenção mais direcionadas às necessidades de cada caso(2222. Brito MC, Carrara K. Alunos com distúrbios do espectro autístico em interação com professores na educação inclusiva: descrição de habilidades pragmáticas. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2010;15(3):421-9.).

O desempenho sociocognitivo pode ser utilizado como instrumento auxiliar no processo terapêutico, facilitando a identificação de variáveis que possam interferir no desempenho comunicativo(22. Cardoso C, Rocha JFL, Moreira CS, Pinto AL. Desempenho sócio-cognitivo e diferentes situações comunicativas em grupos de crianças com diagnósticos distintos. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(2):140-4.). Assim, o estudo de aspectos sociocognitivos de indivíduos com TEA podem oferecer subsídios para a elaboração e a utilização de novas técnicas e procedimentos que favoreçam o processo comunicativo de forma eficaz(22. Cardoso C, Rocha JFL, Moreira CS, Pinto AL. Desempenho sócio-cognitivo e diferentes situações comunicativas em grupos de crianças com diagnósticos distintos. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(2):140-4.,33. Defense DA, Fernandes FDM. Perfil funcional de comunicação e desempenho sócio-cognitivo de adolescentes autistas institucionalizados. Rev CEFAC. 2011;13(6):977-85.).

Os dados aqui descritos sugerem a necessidade de novas investigações como estudos longitudinais acerca da interferência do contexto físico, para melhor esclarecimento de possíveis interferências quanto ao desempenho sociocognitivo de sujeitos com TEA em diferentes ambientes de terapia de linguagem.

CONCLUSÃO

A análise de relações entre o desempenho sociocognitivo de crianças e adolescentes com TEA e a estruturação do contexto físico em situações de terapia de linguagem permitiu verificar que a diferença observada em sala com estruturação convencionalmente utilizada na atuação fonoaudiológica e salas com ambientação específica não foi estatisticamente significante.

Dessa forma, a criação de ambientes físicos pré-estabelecidos ou materiais específicos não são e não devem ser considerados imprescindíveis para a terapia de linguagem. Ressalta-se, no entanto, que a ausência de um grande volume de dados estatisticamente significativos não indica que os resultados não sejam expressivos, reiterando a necessidade de novas pesquisas na área.

  • *
    ARNM participou da concepção e delineamento do estudo, coleta de dados, análise e interpretação dos dados e revisão do artigo; MCB participou da coleta de dados, redação e revisão do artigo; AGO e TRS participaram da redação do artigo; FDMF participou do delineamento do estudo e aprovação da versão final.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2014

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2013
  • Aceito
    17 Jul 2014
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