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Corpo e linguagem: repercussões em um caso de disfagia

RESUMO

Preenchido por tecidos e órgãos, o corpo é referenciado pela biologia e pela medicina a partir de sua arquitetura anatômica e biomecânica. Sabe-se, contudo, que há diferentes modos de compreender o corpo humano. Partindo do pressuposto de que se trata do corpo do ser que fala, a teoria e clínica psicanalítica nos mostra que o corpo é enlaçado pelo sujeito, atravessado pela linguagem e afetado pela palavra. No campo dos distúrbios de deglutição, mesmo que se aponte para as repercussões da ruptura no prazer alimentar e da privação de emoções gustativas, discussões teórico-clínicas que impliquem a relação entre corpo e linguagem são ainda incipientes. Esse trabalho objetivou discutir as consequências clínicas para o cuidado do sujeito disfágico de se levar em consideração a relação entre corpo e linguagem. A exposição do caso clínico revelou que marcas do acometimento neurológico colocaram em relevo a vulnerabilidade imposta pelo confronto radical com os efeitos da perda da condição corporal anterior, colocando o sujeito frente a um mal-estar que avançou na medida em que a perda do corpo implicou na perda de sua posição na linguagem e no enlace social que envolve o ato de comer. Diante desse cenário, foi fundamental para a eficácia do cuidado a abertura para o diálogo e para a escuta como ações clínicas norteadoras da aplicação de tecnologias dirigidas ao funcionamento orgânico. Esse passo só foi possível porque houve o reconhecimento de que o corpo humano ultrapassa a concepção de biomáquina já que é corpo falante.

Descritores:
Corpo; Linguagem; Disfagia; Apraxia; Terapia Fonoaudiológica

ABSTRACT

The human body is made of tissues and organs, and the body is mentioned by biology and medicine based on its anatomical and biomechanical architecture. However, there are different ways of understanding the human body. Based on the assumption that the body is the consistency of the speaker´s body-being, the psychoanalytic theory us that the body is crossed by language and affected by the word. In the field of swallowing disorders, even if it points to the repercussions of the rupture in eating pleasure and the deprivation of gustatory emotions, theoretical-clinical discussions that imply the relationship between body and language are still incipient. This work aimed to discuss the clinical consequences for the care of the dysphagic patient of taking into account the relationship between body and language. The presentation of the clinical case revealed that marks of neurological involvement highlighted the vulnerability imposed by the radical confrontation with the effects of the loss of the previous body condition, placing the subject in front of a malaise that advanced as the loss of the body implied in the loss of their position in language and in the social connection that involves the act of eating. Owing to this scenario, it was essential for evaluating the effectiveness of care to open up a dialogue and pay attention to clinical actions which guide the application of technologies aimed at organic functioning. This step was only possible because there was a recognition that the human body goes beyond the concept of a machine since it is identified with a speaking body.

Keywords:
Body; Language; Dysphagia; Apraxia; Speech Therapy

INTRODUÇÃO

Preenchido por tecidos e órgãos, o corpo humano é referenciado pela biologia e pela medicina a partir de sua arquitetura anatômica e biomecânica(11 Quinet A. Corpo e linguagem. Estudos da Língua. 2017;15(1):77-88. http://dx.doi.org/10.22481/estudosdalinguagem.v15i1.2418.
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). Esse ponto de vista, que privilegia a res extensa, ou melhor, a matéria orgânica, se apresenta no cenário clínico pelo olhar atento ao corpo-máquina, sobre o qual devem incidir “[...] terapêuticas químicas e/ou biológicas [...]” que garantam a “[...] manutenção do funcionamento deste ou daquele aparelho do organismo humano em condições precisas [...]”(22 Lacan J. O lugar da psicanálise na medicina. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. 2001;32:8-14. (obra original publicada em 1966).:12).

A centralidade de ações clínicas dirigidas ao corpo-organismo pode ser encontrada nas mais diferentes disciplinas e práticas em saúde, tendo como lócus privilegiado o espaço hospitalar. Nesse ambiente, a Fonoaudiologia é chamada a responder pelo cuidado de sujeitos disfágicos a partir da concepção de corpo doente referenciado enquanto biomáquina(11 Quinet A. Corpo e linguagem. Estudos da Língua. 2017;15(1):77-88. http://dx.doi.org/10.22481/estudosdalinguagem.v15i1.2418.
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).

De fato, com seu peso e medida, o corpo humano ocupa o espaço como matéria no mundo sensível. No entanto, enquanto substância viva, esse corpo interage com outros corpos compondo um corpo social. É sob esse viés que o corpo comparece como palco da beleza, da estética e da arte de seu tempo, sendo um corpo histórico, isto é, afetado por condições materiais e culturais sempre heterogêneas. Assim, embora se possa partir de sua composição orgânica, não se pode negar que o corpo está enlaçado ao sujeito, é atravessado pela linguagem e afetado pela palavra, como nos mostra a Psicanálise(33 Lazzarini ER, Viana TC. O corpo em Psicanálise. Psicol, Teor Pesqui. 2006;22(2):241-50. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-37722006000200014.
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,44 Catrini M, Lier-DeVitto MF. Apraxia de fala e atraso de linguagem: a complexidade do diagnóstico e tratamento em quadros sintomáticos de crianças. CoDAS. 2019;31(5):e20180121. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20192018121. PMid:31691745.
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).

No campo da Fonoaudiologia, especialmente quando dedicada aos distúrbios de deglutição, discussões teórico-clínicas que impliquem a relação entre corpo e linguagem são ainda incipientes. É por isso que chama atenção indicações encontradas na literatura especializada acerca da ruptura na manutenção do prazer alimentar, suas repercussões na qualidade de vida de sujeitos disfágicos, bem como sua inclusão como um dos critérios a serem analisados em protocolos de avaliação clínica da disfagia(55 da Silva RG. A eficácia da reabilitação em disfagia orofaríngea. Pró-Fono Revista de Atualização Científica. 2007;19(1):123-30. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-56872007000100014. PMid:17461355.
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-56872007...
).

O prazer alimentar está conectado às diversas funções sociais que estabelecem ou dão contorno ao ato de comer. Rodeado de afetos e memórias, o comer está vinculado à comensalidade (mensa), quer dizer, ao conviver à mesa, ao partilhar a alimentação. Isso significa que envolve a presença do outro, a companhia (companion), com quem compartilhamos não só alimento, mas a vinculação de permanecer no território vivo das refeições como espaço de confiança e de partilha(66 Carneiro H. Comida e sociedade. Uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Editora Campus; 2003.). Desse modo, o ato de alimentar-se/ser alimentado coloca em relevo a sociabilidade alimentar, tendo a comida como suporte concreto para o encontro com o outro.

Frente a isso, o que dizer de sujeitos disfágicos ao vivenciarem, dentre muitas afetações, a privação de emoções gustativas, o não acesso ao cheiro, à textura e ao sabor dos alimentos? Sob a condição disfágica, as refeições se tornam ato solitário, ou ausente, e comprometem a relação comensal e de convivência. Aí o (des)prazer alimentar pode instaurar uma marca na história do sujeito, em muitos casos, pela necessidade de adaptações de consistências ou até mesmo de vias alternativas de alimentação. Note-se que o prazer alimentar se coloca como ponto relevante entre as condições de saúde-doença, comparecendo nas relações com a vida e com a morte. Nesse ponto, a reflexão que se coloca para um clínico é se as marcas deixadas pela disfagia no corpo impõem um destino ao sujeito.

Para autores ligados à Clínica de Linguagem1 1 Grupo de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) “Aquisição, Patologias e Clínica de linguagem”. , o diálogo com a Psicanálise “[...] ilumina um fazer clínico afetado pelo fato de que se a anatomia impõe certo corte e limitação, o destino do sujeito é sempre muito diverso [...]”(77 Catrini M, Lier-DeVitto MF. Reflexões sobre o corpo falante e seus destinos na clínica de linguagem. In: Lasch M, Leite NVA, organizadores. Anatomia, destino, liberdade. Campinas, SP: Mercado de Letras; 2019. p. 492.:426). Partindo dessa proposição e do fato de que o ato de alimentar-se envolve aspectos socioculturais e subjetivos, o presente trabalho tem como objetivo refletir sobre quais seriam as consequências clínicas para o cuidado do sujeito disfágico de se levar em consideração o corpo do ponto de vista do seu enlaçamento pela linguagem.

Para levar adiante essa discussão, a escolha metodológica realizada foi o relato de caso, escrito com estilo narrativo. A escolha reflete a aproximação com os constructos teóricos propostos no âmbito do diálogo empreendido entre a Clínica de Linguagem e a Psicanálise, campo em que o relato de caso é apontado como espaço revelador do encontro com a singularidade do acontecimento clínico e que, por isso, pode ilustrar e sustentar uma elaboração teórica(88 Nasio J-D. Que é um caso? In: Nasio J-D., organizador. Os grandes casos de psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 2001. p. 9-22.).

APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Professor Edgard Santos sob o número CAAE 18260919.2.0000.0049, sendo realizado apenas após a concordância expressa do participante recrutado e da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.

Trata-se do relato do processo terapêutico de Pedro, nome fictício de um homem de 51 anos, regulado da Unidade de Pronto Atendimento (UPA), já em uso de sonda nasoenteral (SNE), para um Hospital Universitário da cidade de Salvador-BA. Na internação, recebeu o diagnóstico médico de Acidente Vascular Cerebral Isquêmico em região nucleocapsular bilateral e foi submetido à avaliação fonoaudiológica para parecer quanto à biomecânica da deglutição.

Dois dias após sua chegada na Enfermaria de Neurologia do hospital mencionado acima, Pedro foi admitido pelo serviço de Fonoaudiologia. No primeiro encontro à beira do leito, chamavam atenção a sialorréia moderada, contida com uma pequena toalha que permanecia na mão de Pedro, e as expressivas tentativas de comunicação por meio de gestos, expressões orofaciais e vocalizações mínimas.

Ao lado do paciente, o irmão pôde dizer sobre o nível de escolaridade - ensino fundamental incompleto, a história prévia de independência funcional, a profissão de cozinheiro e a participação ativa de Pedro em atividades de dança e música. Enquanto o irmão trazia relatos sobre sua vida antes do adoecimento, Pedro, quase interrompendo-o, apresentava meneios afirmativos de cabeça e vocalizações que denotavam concordância com o que estava sendo dito sobre ele. Ao mesmo tempo, era notável a insistência de gestos indicativos que apontavam em direção a SNE, como se indagando sobre aquele dispositivo desconhecido que ultrapassara a barreira do seu corpo.

Realizado o acolhimento inicial, Pedro e seu irmão foram esclarecidos quanto a função da via alternativa de alimentação e as contribuições da atuação fonoaudiológica no que concerne às dificuldades na deglutição e comunicação. O processo diagnóstico fonoaudiológico foi iniciado pela avaliação do sistema sensório motor-oral, na qual foram observados: manutenção da boca aberta em repouso, redução na tonicidade, mobilidade e coordenação de lábios, língua e bochechas, ensaios de movimentos para execução das praxias orais – com visível esforço corporal em direção ao modelo, nas tentativas de realizar os gestos solicitados. Em movimentos como protrusão da língua, por exemplo, Pedro anteriorizava a região cervical e buscava realizar o movimento com a ajuda das mãos, como que para compensar o gesto que não pôde ser engendrado. O fenômeno apráxico dominava a cena.

Num próximo passo, foi realizada a avaliação funcional da deglutição com mínimo volume da consistência semilíquida, ofertado e em auto oferta na colher e no copo, com os seguintes achados: captação oral ineficiente, tentativas de ajustes com apoio digital em orbicular dos lábios e região supra-hióidea, tempo de trânsito oral aumentado, deglutições incompletas, por vezes com episódios de tosse – indicando sinais clínicos de penetração/aspiração laringotraqueal. Como resultado, a necessidade de permanência da alimentação/hidratação/medicamento por via alternativa foi reiterada.

Ao receber essa devolutiva, Pedro apresentou um olhar atento, que demonstrava compreensão do seu quadro, mas que, ao mesmo tempo, parecia resistir ao fato de não se alimentar por via oral. Diante dos achados da avaliação, o planejamento terapêutico foi traçado com o objetivo de potencializar a biomecânica da deglutição, tendo como fundamentos o envolvimento do córtex na modulação da deglutição orofaríngea e os princípios que regem a aprendizagem motora dirigida às praxias orais(99 Humbert IA, German RZ. New directions for understanding neural control in swallowing: the potential and promise of motor learning. Dysphagia. 2013;28(1):1-10. http://dx.doi.org/10.1007/s00455-012-9432-y. PMid:23192633.
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).

Foram realizadas sessões de terapia fonoaudiológica com uso de estímulos táteis (colher de metal, espátula, gaze), térmico (gelado) e gustativos (azedos), estímulos visuais (imitação do modelo do terapeuta, uso do espelho, figuras dos alimentos trabalhados) e auditivos (comandos verbais), cujo propósito era aumentar a organização e controle oral a partir da estimulação de múltiplas vias sensório-motoras. Exercícios isotônicos e isométricos foram realizados visando aumentar amplitude de movimento e fortalecimento de órgãos fonoarticulatórios. A aplicação de bandagem elástica em região de orbicular da boca, masseter e supra-hióideos e eletroestimulação neuromuscular em região supra-hióidea e laríngea foram realizados em associação ao treino de deglutição. Em resumo, as técnicas aplicadas foram selecionadas com o intuito de favorecer o exercício das praxias orais, o vedamento labial, controle e ejeção oral, contração de parede posterior de faringe, maior excursão e sustentação hiolaríngea, e aumento na frequência da deglutição salivar. Além disso, mediar a comunicação entre paciente, família e equipe multiprofissional permeava a conduta estabelecida.

Inicialmente, as sessões de terapia exigiam a participação de duas terapeutas para facilitar a organização dos estímulos utilizados. Durante o processo terapêutico, realizado de 30 a 40min, duas vezes ao dia, seu corpo denunciava sinais de cansaço, obtendo-se de duas a três deglutições por sessão, número ainda insuficiente para reintrodução da alimentação por via oral de forma segura e eficaz. Dessa forma, permanecia a gravidade do quadro de disfagia orofaríngea e de apraxia orofacial. Diante desse cenário, a equipe multiprofissional (Fonoaudiologia, Nutrição e Médico) optou pela realização da Gastrostomia, visando uma via alternativa que oferecesse segurança e eficácia na administração dos medicamentos, no aporte nutricional e de hidratação.

A decisão foi compartilhada com Pedro e sua família (dois irmãos e o filho). Os restritos avanços obtidos com a terapia foram explicados a partir da forte influência das perturbações orgânicas que dificultavam a reintrodução da via oral a curto prazo. Como caminho, foi apontada a permanência do atendimento fonoaudiológico no sentido de alcançar algum prazer alimentar, ainda que com volume mínimo de alimento. Pedro concordou com o encaminhamento adotado e, com a possibilidade comunicativa que lhe restava, era enfático ao dizer sobre o lugar privilegiado que a comida ocupava em sua história, reiterando o desejo de sentir o cheiro, sabor e textura dos alimentos.

Privado de exercer a comensalidade que, de acordo com o relato inicial de seu irmão, sempre foi palco para importantes representações afetivas, ou melhor, o elemento central no enredo familiar (frequentemente marcado por relatos que envolviam alimentos e refeições), o campo do prazer alimentar se destacava na cena terapêutica. Note-se que uma mudança no cuidado ofertado se fez notória. À medida que se colocava um limite orgânico na recuperação almejada, a escuta da terapeuta dirigiu-se às demandas e na história de Pedro.

Os atendimentos eram realizados no leito, porém como Pedro ocupava um quarto compartilhado, no decorrer das intervenções ele parecia sempre muito atento aos demais pacientes e aos profissionais que circulavam naquele ambiente. Isso acabava por dispersá-lo durante a terapia. Foi, então, que na 30ª sessão sugeriu-se a mudança de local do atendimento para uma varanda adjacente ao quarto. Pedro aprovou a proposta e todos os dias, quando chegava o momento da terapia, ele rapidamente pegava a cadeira, ia até a varanda e se posicionava para mais um encontro. Tal possibilidade também ocorreu mediante a melhora no funcionamento do aparelho locomotor global e conforme evolução com a fisioterapia mantendo independência funcional para a locomoção.

A partir de então, era necessário apenas uma terapeuta para condução do caso. O novo espaço possibilitou a marcação do setting terapêutico, uma nova demarcação de posição no jogo transferencial, maior campo de privacidade e o estreitamento na relação de confiança. A dinâmica transferencial possibilitou a escuta na produção do cuidado, no qual estivesse em jogo a história, as vivências, os desejos de Pedro. As ações dirigidas ao funcionamento orgânico foram submetidas a uma seleção, mantendo-se a intervenção dirigida às praxias orais relacionadas à deglutição. Nessa linha, avanços, ainda que pequenos, na produção das praxias e na função da deglutição também abriram espaço para que a escuta da terapeuta pudesse dispensar maior atenção ao funcionamento linguístico presente na forma como Pedro podia falar. Frente a condição de um organismo prejudicado, restavam dúvidas quanto à existência do quadro de afasia associado a um quadro motor de fala (apraxia de fala/disartria).

Com o uso de pranchas de comunicação suplementar e alternativa (CSA) – alfanumérica, atividades de vida diária e alimentos – já disponíveis no serviço, e de recursos musicais propiciados por ações de um projeto de extensão que promovia sessões musicais aos pacientes internados, pôde-se observar a integridade no contorno da prosódia, a possibilidade de identificação de letras e de formação de palavras, ainda que com substituições grafêmicas. Nos diálogos empreendidos, o apoio nos gestos indicativos e representativos para produção do discurso eram evidentes, bem como a interpretação da fala que lhe era dirigida parecia garantida. Estava claro que as sequelas do evento neurológico limitavam o aparecimento da oralidade, mas não o modo como o corpo era tomado pela linguagem e pela permanência de uma posição subjetiva que buscava sustentar-se enquanto falante. Podemos afirmar que ali o corpo falava.

Desde o início do atendimento fonoaudiológico, Pedro demonstrava receptividade às medidas terapêuticas compartilhadas. No entanto, era evidente que apesar de suas necessidades nutricionais serem atingidas pela via alternativa de alimentação, esses dispositivos sempre foram veículos de impasses subjetivos, sendo recorrentes os relatos da equipe de enfermagem de que ele tinha bebido água da torneira e do chuveiro, cenas também testemunhadas por acompanhantes de outros pacientes internados no mesmo quarto. Com o uso da prancha de CSA já integrada ao processo terapêutico, a escuta para as vocalizações e gestos, engendrados em concomitância ao apontar figuras e letras, permitiam que Pedro trouxesse questões como: “Quando poderei comer novamente? Eu tenho muito tempo sem comer. Queria mesmo poder beber água!”. Essas falas envolviam as sessões de atendimento fonoaudiológico e convocavam a refletir sobre as narrativas que estavam em jogo nesses enunciados: histórias sobre ser cozinheiro, preparar os alimentos, vender comida em um pequeno comércio no seu bairro e comer junto com os irmãos.

Diante do exposto acima, foi acordado com a nutricionista da enfermaria sobre o uso do picolé de maracujá como recurso na terapia fonoaudiológica, substituindo os estímulos com suco em pó espessado, o que contribuiu para os ganhos subsequentes: produção das praxias, execução da captação oral, vedamento labial, redução no escape extra-oral, maior prontidão para deglutir. Apesar disso, o uso do picolé precisou ser revisto, uma vez que, pela dupla consistência (sólido e líquido), Pedro apresentava episódios de tosse durante a deglutição, caracterizando sinais clínicos sugestivos de penetração/aspiração laringotraqueal.

O picolé foi substituído pelo pirulito porque além de favorecer a manutenção dos ganhos na fase oral da deglutição, possibilitou aumento no número de deglutições, maior excursão hiolaríngea, ausculta cervical limpa, sem sinais clínicos de penetração/aspiração laringotraqueal. Tal estratégia foi alternada com terapia direta na consistência semilíquida e pastosa homogênea (vitamina de frutas, coquetel de frutas, sopa), contribuindo no planejamento e organização dos movimentos práxicos, bem como na retomada da funcionalidade da deglutição. Frente a essa nova condição, foi possível a reintrodução da alimentação por via oral nas consistências semilíquida (mel) e pastosa homogênea, com auto oferta.

A sustentação do trabalho clínico dialógico, permeado pelo uso da CSA e o cruzamento de modalidades da linguagem (oralidade, escrita, gestos), permitiu que as mínimas vocalizações se transformassem em fala oralizada e ele, ao produzir sua primeira palavra, não (sic), se emocionou ao ouvir a própria voz. Adiante, mais palavras puderam ser escutadas: espere; eu sou cozinheiro; comer e fazer; moqueca de peixe; caruru; vatapá. A produção oral ganhou forma e existência, houve o aumento da loudness e, com o sorriso no rosto, Pedro passou a chamar a equipe de enfermagem e os acompanhantes dos outros pacientes para presenciar o inédito da fala e ser reconhecido como aquele que fala, o ser falante.

Diante dos avanços alcançados nesse período de terapia fonoaudiológica, a melhora no quadro clínico geral e o suporte socioafetivo, Pedro recebeu alta hospitalar após 36 dias de internação. A alta foi alcançada com alimentação mista: via oral nas consistências semilíquida (mel) e pastosa homogênea, além do suporte da Gastrostomia. Ao todo, foram realizadas 39 sessões de fonoterapia e o paciente foi contrarreferenciado para um serviço público ambulatorial da cidade, visando seguimento do plano terapêutico com fonoaudiólogo, fisioterapeuta e neurologista.

DISCUSSÃO

No relato do caso apresentado acima, diferentes níveis tecnológicos foram acionados no cuidado ofertado. Observa-se que, frente ao diagnóstico de disfagia orofaríngea, apraxia de fala e apraxia orofacial, as tecnologias leves-duras, representadas pelos saberes estruturados e especializados que fundamentam processos diagnósticos e terapêuticos(1010 Merhy EE, Feuerwerker LCM. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea. In: Mandarino ACS, Gomberg E, organizadores. Leituras de novas tecnologias e saúde. São Cristóvão: Editora UFS; 2009. p. 285.), tenderam para o lado da delimitação do saber dirigido ao funcionamento orgânico.

Em consonância com essa direção de tratamento, as primeiras intervenções tiveram como interlocutor o irmão de Pedro, convocado a falar sobre ele, e por ele, para informar sobre a história pregressa à doença. Pedro apresentava importantes dificuldades de fala e acabou enquadrado num conjunto de casos cujas alterações de linguagem e/ou prejuízos na oralidade trazem à tona situações de vulnerabilidade comunicativa no cenário hospitalar, ou melhor, falhas no processo de comunicação entre o paciente e os profissionais de saúde, levando a desautorização ou privação do indivíduo em participar ativamente de sua recuperação, desde a admissão até a alta hospitalar(1111 The Joint Commission. Advancing effective communication, cultural competence and patient and family centered care: a roadmap for hospitals. Oakbrook Terrace: The Joint Commission; 2010.).

A exposição do caso clínico de Pedro revelou que marcas do acometimento neurológico colocaram em relevo a vulnerabilidade imposta pelo confronto radical com os efeitos da perda de sua condição corporal anterior, colocando-o frente a um mal-estar que avançou na medida em que a perda do corpo implicou na perda de sua posição na linguagem e no enlace social que envolve o ato de comer.

Não era sem razão que ele insistia em falar e que seus reiterados apelos por comer e beber denotavam que a produção do cuidado exigia mais do que a aplicação de ferramentas tecnológicas dirigidas ao funcionamento orgânico. Era premente a necessidade de oferta de uma escuta que pudesse ser estruturante, ou melhor, que fizesse valer como fala os gestos indicativos, as expressões orofaciais e o apontar para figuras e letras em pranchas de comunicação suplementar e/ou alternativa.

Pode-se afirmar que esse foi o ponto de virada do cuidado ofertado. Isso porque, a ampliação da escuta terapêutica possibilitou tomar “a fome e a vontade de comer” não somente como relacionadas à quantidade de nutrientes providos ao corpo-orgânico, mas como a fome de reviver as sensações proporcionadas pelos alimentos e de fazer presença nos territórios de partilha da comida.

Permeado pelo exercício do diálogo e da escuta do prazer alimentar, tão marcante na história de Pedro, a caixa de ferramentas técnicas acessada pela equipe de profissionais fonoaudiólogos/as passou então a transitar no tensionamento entre a dureza do saber organicista e os efeitos do encontro clínico singular. Uma manifestação explícita disso foi a constituição de um setting terapêutico específico para o atendimento fonoaudiológico, o que garantiu a privacidade e a consolidação de um vínculo de confiança propulsor da evolução clínica observada.

No compasso das intervenções que consideraram a presença do corpo falante, a incidência sobre a estrutura orgânica prejudicada não ocorreu de maneira desconectada do tecido dialógico. Podemos dizer que o ato clínico de abrir espaço para o diálogo revelou-se a partir do momento em que não mais se ignorou a demanda do paciente de poder falar e falar com o outro – dito de outro modo, quando se colocou em ação a montagem de uma textualidade, oferecendo suporte para que Pedro pudesse sustentar sua condição de falante.

O ato clínico também envolveu considerar que a incidência do simbólico sobre a matéria orgânica permite o surgimento do gesto, da praxia, ou melhor, o movimento no campo das significações, da linguagem(77 Catrini M, Lier-DeVitto MF. Reflexões sobre o corpo falante e seus destinos na clínica de linguagem. In: Lasch M, Leite NVA, organizadores. Anatomia, destino, liberdade. Campinas, SP: Mercado de Letras; 2019. p. 492.). Embora haja precariedade da estrutura orgânica para produção oral, o corpo fala, produz texto capaz de ser interpretado. Não é sem razão que autores apontam para a possibilidade do gesto ser alcançado a partir da construção de cenas enunciativas(1212 Fedosse E. Acompanhamento fonoaudiológico de um sujeito afásico não- fluente: foco na continuidade sensório-motora. Distúrb Comun. 2007;19(3):403-14.).

Partindo-se da relação entre o ato de comer e a comensalidade, as referências olfativas e gustativas presentes nos atendimentos com Pedro reatualizavam as práticas alimentares vivenciadas no cenário familiar. O espaço comensal – com quem se come, a partilha da comida na mesa, convoca o fortalecimento dos vínculos afetivos porque está a serviço do valor simbólico carregado pelo alimento, envolto na troca de informações e sensações pertencentes a esta dinâmica(66 Carneiro H. Comida e sociedade. Uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Editora Campus; 2003.). Assim, ainda que exercícios somados ao treino da deglutição objetivem promover uma deglutição orofaríngea de forma segura, eficiente, gradual e prazerosa(55 da Silva RG. A eficácia da reabilitação em disfagia orofaríngea. Pró-Fono Revista de Atualização Científica. 2007;19(1):123-30. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-56872007000100014. PMid:17461355.
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), abrir espaço para que o sujeito possa ser escutado coloca no horizonte o fato de que o corpo é afetado pela palavra do outro(33 Lazzarini ER, Viana TC. O corpo em Psicanálise. Psicol, Teor Pesqui. 2006;22(2):241-50. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-37722006000200014.
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). Dois casos clínicos relatados na literatura testemunham isso.

O caso de Dona Laura, 82 anos, vítima de Acidente Vascular Encefálico Isquêmico com quadro de disfagia orofaríngea e alterações na expressão da linguagem oral e escrita, e disartria testemunha a construção terapêutica de um plano que considerou a execução de exercícios miofuncionais e o trabalho discursivo como direção para fazer circular uma posição subjetiva, modificar o plano orgânico e produzir novas narrativas em torno do adoecimento(1313 Magalhães LA, Souza LAP. Estudo de caso de disfagia: uma reabilitação bio-psíquica. Distúrb Comun. 2008;20(2):249-56.). O mesmo se fez notar no estudo de caso de um paciente, 33 anos, vítima de traumatismo cranioencefálico grave, que considerou a escuta terapêutica como dispositivo para mudanças nos distúrbios de deglutição com possibilidades na reintrodução da alimentação por via oral(1414 Steinberg C. Efeitos da escuta terapêutico no tratamento Fonoaudiológico de pacientes disfágicos: Estudo de caso clínico [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2007.).

No caso de Pedro, o jogo que implicou fala e escuta possibilitou a construção de um caminho na perspectiva do cuidado como prática que incide na experiência do adoecimento físico/psíquico, na forma singular de adoecer que faz surgir novas formas de expressão ao lidar com as rupturas do corpo e com o novo modo de seguir na vida(1515 Ayres JRCM. O Cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc. 2004;13(13):16-29. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902004000300003.
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902004...
). Podemos dizer que foi a articulação do arcabouço técnico de base fisiológica à aposta na implicação subjetiva, no reconhecimento de um corpo falante e da importância das práticas da comensalidade o que possibilitou a reintrodução da alimentação por via oral nas consistências semilíquida (mel) e pastosa homogênea, com auto oferta.

A indicação da gastrostomia, a manutenção da terapia, o embaraço na reintrodução da alimentação por via oral, o fato de Pedro beber água escondido da torneira, os afetos entrelaçados à comida, tudo isso foi costurado na complexidade do seu adoecimento apostando também nas tecnologias leves, relacionais(1010 Merhy EE, Feuerwerker LCM. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea. In: Mandarino ACS, Gomberg E, organizadores. Leituras de novas tecnologias e saúde. São Cristóvão: Editora UFS; 2009. p. 285.), permeáveis à dimensão do encontro na cena clínica e ao reconhecimento de que o corpo do ser que fala é corpo enlaçado pela linguagem(11 Quinet A. Corpo e linguagem. Estudos da Língua. 2017;15(1):77-88. http://dx.doi.org/10.22481/estudosdalinguagem.v15i1.2418.
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).

COMENTÁRIOS FINAIS

A exposição do relato do caso de Pedro mostrou que assumir o corpo do ponto de vista do seu enlaçamento pela linguagem trouxe como consequência para o cuidado do sujeito disfágico a mudança na direção de tratamento inicialmente proposta. A incidência sobre o funcionamento corporal foi costurada pela via do prazer alimentar e da comensalidade, a partir da abertura da escuta e do diálogo que envolveu ações clínicas comprometidas com a inclusão do sujeito e as vicissitudes de seu processo de adoecimento. Isso só foi possível a partir do reconhecimento de que a incidência da linguagem sobre a matéria orgânica promove o deslocamento da posição de não-fala para um texto “corporal” capaz de ser interpretado(44 Catrini M, Lier-DeVitto MF. Apraxia de fala e atraso de linguagem: a complexidade do diagnóstico e tratamento em quadros sintomáticos de crianças. CoDAS. 2019;31(5):e20180121. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20192018121. PMid:31691745.
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/2019...
). Mais do que isso, demonstra que mesmo quando o corpo é atingido, o sujeito pode encontrar recursos para responder às restrições colocadas pelos prejuízos impostos ao substrato orgânico.

  • 1
    Grupo de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) “Aquisição, Patologias e Clínica de linguagem”.
  • Trabalho realizado no Hospital Universitário Professor Edgard Santos – HUPES, Salvador (BA), Brasil.
  • Fonte de financiamento: nada a declarar.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2020
  • Aceito
    15 Jun 2020
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