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Escola e status racial em Cachoeira do Campo/MG no século XIX

Escuela y status racial en Cachoeira do Campo/MG en el siglo XIX

Resumos

De acordo com uma documentação que contabilizou a população de Minas Gerais, nos anos de 1830, havia um predomínio dos negros entre os alunos das escolas de instrução elementar. Neste artigo, procuramos investigar os significados dessa experiência para a população negra através da confrontação de documentos censitários do distrito de Cachoeira do Campo/MG, que se encontrava no termo de Ouro Preto, na região central da província. O procedimento de análise ocorreu a partir da separação dos domicílios em que havia o registro de crianças frequentando escolas, em 1831. Em seguida, identificamos esses domicílios na documentação de 1838 analisando a situação dos indivíduos escolarizados e de seu grupo familiar. O intervalo de sete anos entre os documentos possibilitou a avaliação dos impactos da experiência escolar, revelando, entre outras coisas, que negros escolarizados eram preferencialmente designados como pardos e estes podiam mudar de status racial, passando até mesmo a ser classificados como brancos.

História da educação; Negros; Minas Gerais; Século XIX.


Según algunos documentos que contabilizaron la población de Minas Gerais en los años 1830, los negros predominaban en las escuelas de educación básica. En este artículo, tratamos de investigar el significado de tal experiencia para la población negra a través de la comparación de documentos censitarios del distrito de Cachoeira do Campo/MG, que se encontraba alrededor de Ouro Preto, en la región central de la provincia. En seguida, identificamos estos domicilios en la documentación de 1838, en la que analizamos la situación de los individuos escolarizados y de su grupo familiar. El intervalo de siete años entre los documentos posibilitó la evaluación de los impactos de la experiencia escolar y reveló, entre otras cosas, que los negros escolarizados eran preferentemente designados como pardos y podían cambiar de status racial, pasando incluso a ser clasificados como blancos.

Historia de la educación; Negros; Minas Gerais; Siglo XIX.


In Minas Gerais there was a predominance of black people in elementary schools according to the population records of 1830s. In this article, we investigate the significance of these experiences confronting census documents from the district of Cachoeira do Campo/MG, located near Ouro Preto, in the central region of the province of Minas. Cachoeira do Campo has census documents resulting from two population countings that occurred in the years 1831 and 1838. The procedure consisted in separating households whose children, in 1831, attended school. Then, these households were identified in the documents of 1838 and the situation of the educated individuals and their family group was analyzed. The seven-year interval between the documents allowed the assessment of the impact of school experience, revealing, among other things, that educated blacks were preferably designated as pardos and they could change their racial status, and were even classified as white.

History of education; Blacks; Minas Gerais; Nineteenth Century


Uma definição dos contornos do problema através do distrito de Cachoeira do Campo/MG

A região que deu origem ao processo de ocupação do território de Minas Gerais, ou seja, aquela que se encontrava no centro da capitania, que teve o seu desenvolvimento impulsionado pela atividade mineradora, possuía escolas em que os negros eram a maioria absoluta dos alunos das aulas de instrução elementar. Isso foi constatado através da análise de uma documentação censitária, composta por listas nominativas de habitantes que, em 1831, contabilizou a população de vários distritos de Minas Gerais. Nesses documentos encontramos o registro das crianças que estavam na escola e também o pertencimento racial que lhes era atribuído pelos indivíduos responsáveis por coletar as informações relativas ao censo. Isso tornou possível a averiguação do pertencimento racial dessas crianças, revelando uma predominância dos negros nas escolas de instrução elementar. Esses chegavam a 70% daqueles que foram assinalados na condição de alunos nos distritos que compunham a região mineradora localizada no centro de Minas Gerais.

Neste artigo, pretendemos investigar os significados dessa experiência para a população negra. Para isso, iremos operar uma redução de escala que possibilitará uma aproximação com aspectos da experiência escolar desses indivíduos e seus respectivos grupos familiares. Em meio à documentação censitária, escolhemos o distrito de Cachoeira do Campo, que possui as listas mais completas relativas a esse material. Trata-se de um dos poucos distritos para o qual encontramos listas nominativas de dois anos distintos, 1831 e 1838, ambas com algum tipo de informação sobre a população escolarizada. Em Cachoeira do Campo, encontramos também um expressivo contingente de negros na população e nas escolas de instrução elementar. Trata-se, portanto, de um distrito que reúne os elementos indispensáveis para que possamos aprofundar o significado da experiência escolar da população negra em Minas Gerais, no século XIX.

Os primeiros registros relativos a Cachoeira do Campo indicam que esse povoado foi elevado à condição de paróquia no ano de 1724. Trata-se de um dos distritos que pertencia ao termo de Ouro Preto, mas que não teve a sua origem ligada diretamente à atividade econômica que dinamizou o desenvolvimento da região, ou seja, a extração mineral. É o que se pode constatar em um dos poucos trabalhos que narra a sua origem:

Ao contrário das povoações vizinhas, Cachoeira do Campo não deveu sua origem à mineração, mas sim à amenidade de seu clima, à regular fertilidade de seu solo, e ao encanto de suas belas paisagens.... disto resultou que muitos dos recém-chegados, abandonando logo as sedutoras miragens das explorações auríferas, dispersaram-se pelos lugares vizinhos, onde as belezas da natureza, a benignidade do clima, o viver tranquilo, longe das perturbações e o morticínios que então já infestavam as povoações auríferas, proporcionavam-lhes uma existência mais feliz, encontrando também farta compensação de seus rudes trabalhos agrícolas no cultivo dessa terra virgem, atento o elevadíssimo preço a que chegavam as vezes os gêneros alimentícios naqueles primitivos tempos, em que, não raro, sucedeu que o pobre mineiro, urgido pelas angustias da fome, teve de entregar oitavas de ouro por um punhado de mantimento - tal foi a origem de Cachoeira do Campo. (LEMOS, 1941 p. 77)

Cachoeira do Campo surgiu e se desenvolveu como um entreposto de abastecimento da região mineradora. Quando consideramos os dados do censo de 1831, constatamos que, pouco mais de 100 anos após o seu reconhecimento formal, o distrito contava com uma população de 1.476 indivíduos, que viviam em 229 domicílios, onde havia uma população de 310 escravos (21%).

O perfil racial da população registrava uma pequena parcela de brancos e um predomínio dos negros que eram designados a partir de termos como pretos, pardos, crioulos e cabras, como mostrado no Gráfico 1:

Gráfico 1
Perfil racial da população de Cachoeira do Campo (1831)

Os termos utilizados para designar a população negra comportam significados que designam condições específicas desse segmento. No entanto, essa diversidade de categorias não impede a reunião dos dados relativos aos negros. Isso revela que havia um predomínio absoluto dos membros desse grupo em meio à população, pois, quando agregamos os dados, temos 91% de negros e 9% de brancos.1 1 A lista registra, ainda, cinco indivíduos que foram classificados como índios. Estes não foram considerados porque não interferem nos dados gerais da configuração estatística da população.

Quando consideramos o perfil dos alunos das escolas de instrução elementar na lista nominativa de 1831, não encontramos a mesma diversidade de termos de classificação utilizados em relação à população negra. O perfil racial dos alunos foi registrado a partir de uma oposição entre brancos e pardos. Em Cachoeira do Campo havia 45 crianças nas escolas de primeiras letras; destas, 39 foram assinaladas como pardas (86,6%) e 6 como brancas (13,4%). Portanto, encontramos uma aproximação entre o perfil racial da população e o da escola elementar, já que nos dois casos encontramos uma maioria absoluta de negros.

Uma das diferenças entre os dados contidos nas listas nominativas de Cachoeira do Campo dos anos de 1831 e de 1838 é que a primeira registra os indivíduos que estavam na escola e a segunda, não; no entanto, esta apresenta os dados sobre as pessoas alfabetizadas.

A lista nominativa de 1838 indica que a população da cidade havia se ampliado, passando para 1.790 indivíduos, sendo que, destes, 327 foram assinalados como alfabetizados (18,2%). Quando consideramos o perfil racial desse grupo, encontramos a mesma polarização das escolas de instrução elementar que registrava apenas indivíduos brancos e pardos.

Gráfico 2
Perfil racial das pessoas alfabetizadas em Cachoeira do Campo (1838)

A polarização entre brancos e pardos se repete, mas, ao contrário dos dados das escolas elementares, encontramos um equilíbrio na distribuição desses dois grupos em meio à população de alfabetizados, ambos com 49%.

Esses dados nos levam a estabelecer algumas considerações sobre a situação relativa às categorias raciais representadas na documentação de Cachoeira do Campo.

Podemos dizer que, quando consideramos o perfil racial da escola elementar, em 1831, encontramos uma correspondência entre a presença dos diferentes grupos raciais nas escolas de instrução elementar e na população, ou seja, negros e brancos estavam presentes nas escolas em níveis muito próximos à representação que possuíam na população. Em 1831, havia 91% de negros na população e 86,6% nas escolas de instrução elementar.

Essa correspondência entre o perfil racial da população e o da escola não é verificada em relação aos alfabetizados, em 1838. É possível constatar uma super-representação dos brancos alfabetizados quando comparados à sua presença na população. Em 1838, havia 16,6% de brancos na população de Cachoeira do Campo e sua presença entre os alfabetizados era de 49%. Os negros representavam 83,2% da população e estavam sub-representados em meio aos alfabetizados, onde figuravam com 49%. Por outro lado, da mesma forma como havíamos assinalado em relação às escolas de instrução elementar, não encontramos a diversidade de termos de classificação que foi registrada para a população negra de Cachoeira do Campo. Em meio aos alfabetizados, não encontramos crioulos, pretos e cabras, apenas os chamados pardos.

  • Primeiro: quando consideramos o segmento escolarizado, o fato de não encontrarmos os diferentes termos de classificação utilizados em relação aos negros pode ser tomado como um indicativo de que o processo de escolarização estabilizava os padrões de classificação racial, estabelecendo o termo pardo como forma privilegiada de designar negros escolarizados?

  • Segundo: sabemos que as escolas de instrução elementar não eram instituições monopolizadas pelos brancos, ao contrário, nelas eles figuravam como flagrante minoria. Portanto, a super-representação dos brancos em meio aos leitores pode ser atribuída a uma mudança de status racial dos pardos para a condição de brancos a partir da inserção no grupo dos alfabetizados?

Essas duas perguntas que elaboramos a partir dos dados relativos aos indivíduos escolarizados de Cachoeira do Campo nos remetem a uma questão mais ampla que, no nosso entendimento, comporta um significado profundo para a história da educação. Essa questão pode ser formulada dentro dos seguintes termos: havia uma interferência da escolarização no padrão de classificação racial dos indivíduos, no século XIX?

Procedimentos metodológicos para análise da classificação racial nas listas nominativas

Para tentar avaliar o nível de participação da escola nos processos de classificação racial dos indivíduos, no século XIX, utilizaremos um padrão de análise que irá operar a partir de uma contraposição dos dados contidos nas listas de 1831 e 1838.2 2 As listas nominativas de habitantes são produtos de algumas tentativas de contagem da população de Minas Gerais. Esse processo teve início no século XVIII, seguindo até o ano de 1872, quando o Brasil ingressou na chamada era censitária, em que as contagens de população passaram a ser realizadas com regularidade. "O primeiro censo que abrangeu toda a capitania foi realizado em 1776, seguido por contagens gerais da população em 1808, 1831, 1833-1835, 1854-1855 e pelo censo brasileiro de 1872, publicado e bastante conhecido (BERGAD, 2004, p. 153)". Dessa forma, realizaremos comparações entre os domicílios com crianças nas escolas, procurando analisar no espaço de tempo que separa aos dois documentos, ou seja, de sete anos, as mudanças produzidas na trajetória social das famílias e dos indivíduos que foram assinalados como alunos das aulas de instrução elementar.

Para elucidar os procedimentos que mobilizamos nesta análise, reproduziremos o registro de um domicílio presente na documentação de 1831, que podemos também encontrar em 1838. Portanto, apresentaremos dois registros relativos ao mesmo domicílio. Em seguida, comentaremos detalhadamente as diferentes características desse material, confrontando as informações extraídas dos dois documentos:3 3 Esse registro que apresentamos reproduz um domicílio que se encontra nas duas listas nominativas de Cachoeira do Campo. Ele reproduz o formato que se encontra presente na documentação. Portanto não se trata de uma tabela, mas de uma reprodução do formato contido na documentação original.

Figura 1
Domicílio de Antonia Maria de Jesus

Para compreender o padrão de análise que implementamos, é necessário explicitar as formas de preenchimento das informações relativas ao domicílio, identificando particularidades, repetições, mudanças, enfim, o que foi mantido e o que foi alterado entre um registro e outro.

A primeira informação a ser destacada refere-se à pessoa que foi listada em primeiro lugar, que é sempre aquela que ocupava a chefia do domicílio. Os registros indicados anteriormente se referem ao domicílio que era chefiado por uma mulher que, em 1831, apareceu com o nome de D. Antonia e, em 1838, como Antônia Maria de Jesus, ou seja, neste último documento, ela foi apresentada com o nome completo. Na documentação de 1831, Antonia recebeu o "D." (Dona) como complemento do nome, o que era uma prerrogativa das mulheres brancas, pois, na lista nominativa de Cachoeira do Campo, somente elas receberam esse tipo de qualificação.

Quando comparamos os dois registros, percebe-se que há uma imprecisão na apresentação dos nomes de quase todos os membros do domicílio. No Brasil do século XIX, isso pode ser entendido como a manifestação da ausência de uma identidade civil que fosse traduzida pela relação das pessoas com seus próprios nomes. Essa situação tem paralelo com a aquela que foi investigada por Philippe Ariès (1978ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978., p. 29-30) em relação à Europa pré-industrial:

Um homem do século XVI ou XVII ficaria espantado com as exigências de identidade civil a que nós nos submetemos com naturalidade. Assim que nossas crianças começam a falar, ensinamos-lhes seu nome, o nome de seus pais e sua idade... Na Idade Média, o primeiro nome já fora considerado uma designação muito imprecisa, e foi necessário completá-lo por um sobrenome de família, muitas vezes um nome de lugar. Agora, tornou-se conveniente acrescentar uma nova precisão, de caráter numérico, a idade.

Nas listas nominativas, o registro da idade se manifesta com o mesmo padrão de indefinição do nome. Isso fica claro quando constatamos que a idade de D. Antonia permaneceu invariável nos dois documentos. As duas listas são de períodos distintos e estão separadas por sete anos, no entanto, em ambas ela figura com 44 anos de idade. Isso indica o pequeno significado social do controle das idades, ou, como ressalta Ariès (1978ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978., p. 29):

Ficamos muito orgulhosos quando Paulinho, ao ser perguntado sobre sua idade, responde corretamente que tem dois anos e meio. De fato, sentimos que é importante que Paulinho não erre: que seria dele se esquecesse sua idade? Na savana africana a idade é ainda uma noção bastante obscura, algo não tão importante a ponto de não poder ser esquecido. Mas em nossas civilizações técnicas, como poderíamos esquecer a data exata de nosso nascimento, se a cada viagem temos de escrevê-la na ficha de polícia do hotel, se a cada candidatura, a cada requerimento, a cada formulário a ser preenchido, e Deus sabe quantos há e quantos haverá no futuro, é sempre preciso recordá-la. Paulinho dará sua idade na escola e logo se tornará Paulo N, da turma X.

O valor social atribuído à idade e aos nomes foi sendo produzido por processos que se estabeleceram de forma distinta em relação aos diferentes grupos sociais. Isso pode ser constatado em relação à forma como se dava o registro dos escravos. Esse é o caso da escrava Emericiana, em que temos, em relação à idade, uma imprecisão ainda maior do que aquela que verificamos em relação a D. Antonia. Isso porque Emericiana foi registrada com 30 anos no primeiro documento e com 26 no segundo, ou seja, quatro anos a menos.

Essa distinção também se verifica em relação ao nome enquanto expressão da identidade dos escravos, que, além de comportar pequenas variações - como no caso de Emericiana que vira Mereciana no segundo registro -, geralmente não apresentava sobrenome. Nas listas nominativas de habitantes, a frequência com que aparece o sobrenome para os livres e a recorrência que não aparece para os escravos indica um padrão de resistência em atribuir a estes últimos a dimensão de uma individualidade, ou uma identidade. Segundo Ariès (1978ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.), o processo de construção do nome como expressão de uma identidade civil indica que o primeiro estava ligado ao mundo da "fantasia", enquanto o segundo se ligava ao mundo da "tradição" ao qual o indivíduo estava vinculado.4 4 Desta forma, era muito comum no passado brasileiro a tradução da "fantasia" a partir dos nomes de santos, assim como temos hoje um imaginário marcado por nomes com influência estrangeira, por exemplo, Alysson, Michel, Jonathan.

Os escravos não eram entendidos como indivíduos que faziam parte de uma tradição, dessa forma, era comum que fossem designados apenas com a "fantasia", ou o imaginário, do primeiro nome.5 5 Ao analisar um Regulamento para organização do censo geral do Império, de 1851, Lima (2003, p. 105) encontrou o seguinte encaminhamento em relação ao registro dos nomes: "Art. 11 - As listas deverão conter: 1º. Os nomes de todas as pessoas da família, menos dos escravos, dos quais bastará referir-se o número por sexo". Ou seja, nesta tentativa de realização de um censo nacional, os escravos não necessitavam sequer da "fantasia" do primeiro nome, deveriam ser registrados apenas por números que dariam lugar a composição de séries estatísticas. Na lista nominativa de Cachoeira do Campo, em 1838, havia 351 escravos e nenhum deles tinha sobrenome. Nos casos em que havia um complemento do nome, este estava geralmente relacionado à sua origem africana (Agostinho Angola, Ana Benguela, Francisco Congo, Maria Cabinda), ou a uma qualificação de natureza étnica/racial (Francisco Criolo).

Quando consideramos as relações de parentesco do domicílio que apresentamos anteriormente, constatamos que D. Antonia foi registrada como chefe nos dois documentos, isso porque em ambos seu nome foi listado em primeiro lugar. É provável que ela fosse a mãe de Marciana, já que, em 1831, esta apareceu logo em seguida a seu nome; além disso possui um padrão de idade compatível para esse grau de parentesco, já que apareceu com 19 anos no primeiro documento e com 25 anos no segundo. Mas, como não é assinalado no documento o parentesco, não é possível afirmar isso de forma categórica. Na verdade, o grupo familiar só pode ser percebido quando compreendemos a forma como as listas nominativas ordenavam os indivíduos dentro do domicílio.

A forma de preenchimento das listas não define a relação entre os membros do domicílio, mas o trabalho sistemático com esse material possibilita a compreensão de algumas relações entre eles. Esse é o caso da variação da estrutura do domicílio de D. Antonia, no qual foi incorporado Cipriano Pimenta. Em 1838, ele foi introduzido no domicílio aparecendo casado com Marciana pois, como era comum no registro dos casais, eram apresentados um após o outro, sempre com o homem em primeiro lugar, algo comum à mentalidade patriarcal do século XIX.

Cipriano foi introduzido no grupo através do casamento, mas a chefia do domicílio continuou a mesma, o que, por sua vez, evidencia uma relação de dependência do jovem casal com D. Antonia.

A incorporação de Cipriano Pimenta ao domicílio em questão tem algum significado do ponto de vista do jogo das hierarquias sociais. Isso fica evidente quando recuperamos sua situação na documentação de 1831, em que ele apareceu no domicílio chefiado por Joaquina Pimenta da Silva, viúva que, de acordo com sobrenome, idade, condição racial e estrutura da unidade de moradia, pode ser admitida como sua mãe:

Figura 2
Domicílio de Joaquina Pimenta da Silva (1831)

Não há dúvidas quanto ao fato de que o Cipriano que aparece nesse domicílio, em 1831, é o mesmo que aparece casado com Marciana, em 1838. Um indicativo claro disso é a repetição do nome, que não era comum na lista de Cachoeira do Campo. Na verdade, esse é o único indivíduo que apareceu com esse nome nas listas de 1831 e de 1838. O aparecimento do sobrenome nas duas listas é uma evidência forte. A idade também, já que revela uma regularidade entre as duas documentações: ele apareceu com 21 anos, em 1831, depois com 27, em 1838.

Portanto, há um conjunto de informações que se repetem, ou que estão dentro de um padrão de regularidade entre os dois documentos. Mas é importante chamar atenção para o fato de que Cipriano teve sua condição racial alterada. Em 1831 ele apareceu como pardo e, em 1838, como branco.

O processo de incorporação de Cipriano ao domicílio de D. Antonia significou uma mudança na sua condição racial. A estrutura do domicílio de D. Antonia, em 1838, e o da mãe de Cipriano, Joaquina Pimenta da Silva, em 1831, não indica que essa alteração se deu em função de uma mudança de status econômico. As duas unidades de moradia são semelhantes em sua estrutura: ambas eram chefiadas por mulheres e tinham na sua maioria pessoas livres. Por outro lado, não houve uma mudança significativa de status no ofício de Cipriano, que apareceu primeiro como um trabalhador alugado e depois como vaqueiro. Portanto, o padrão dos domicílios no que diz respeito à situação econômica parece ser muito semelhante.

A justificativa para a mudança na condição racial pode ser interpretada por uma atitude daqueles que fizeram o registro e o desejo que possuíam de nivelar as relações sociais. Assim, classificar os indivíduos no mesmo grupo manifestaria um desejo de estabilidade, já que a condição racial era um fator de distinção social. Ou seja, ao ser introduzido em um grupo familiar classificado como branco, havia a tendência de um deslocamento para o padrão racial do grupo. Esse processo de nivelamento da condição racial foi detectado por Tarcisio Botelho (2004BOTELHO, Tarcísio R. Estratégias matrimoniais entre a população livre de Minas Gerais: Catas Altas do Mato Dentro, 1815-1850. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAI, 14., 2004. Caxambu: Abep, 2004., p. 8), que chama a atenção para o fato de que,

[...] quando o pároco fazia o registro de casamento ou quando o juiz de paz construía sua lista de habitantes, eles poderiam tender a enxergar os cônjuges com a mesma raça/cor. Essa tendência seria muito mais uma expressão do desejo de harmonização social do que expressão da cor "real", fenotípica, dos cônjuges. A homogamia seria mais uma construção social realizada no momento da constituição do casal do que a expressão de uma "realidade" racial.

Portanto, no que diz respeito aos casamentos, isso não era um procedimento incomum em Minas Gerais. Contudo, acreditamos que o desejo de estabilidade entre indivíduos que tomavam parte de relações sociais como o casamento não pode ser o único elemento explicativo. O mais provável é que, nesses casos, entraria em operação um conjunto de elementos que comportavam algum tipo de valor social.

Como indicamos anteriormente, no caso de Cipriano, a justificativa não parece ser de ordem econômica, pois os dois domicílios onde ele apareceu estão longe de dar mostras ostensivas de riqueza. Assim, é preciso levar em conta elementos de outra ordem. Entre eles, destaca-se um possível lugar social ocupado pelo grupo familiar ao qual pertencia Cipriano: a família Pimenta, que é o sobrenome de pessoas que aparecem em vários domicílios de Cachoeira do Campo.

A recorrência com que o sobrenome Pimenta aparece na lista nominativa de Cachoeira do Campo indica que esse grupo representava uma rede familiar com forte presença no distrito. Na lista nominativa de 1831, temos um total de 229 domicílios e, em 13 deles, encontramos membros da família Pimenta. Em 1838, de um total de 298 domicílios, encontramos 18 com a presença de membros com esse sobrenome.

Não há nenhum outro sobrenome que apareça com tanta frequência nos domicílios de Cachoeira do Campo. Tudo indica que se tratava de uma família negra - boa parte dos indivíduos foram classificados como pardos6 6 Um pouco mais adiante teremos a oportunidade de definir melhor os diferentes termos utilizados em relação à população negra de Minas Gerais. - que se encontrava em processo de mudança de status social/racial. Isso porque outros membros da família Pimenta tiveram um deslocamento semelhante ao de Cipriano. Esse é o caso do domicílio chefiado por João Pimenta, que apresentamos a seguir, em 1831 e 1838:

Figura 3
Domicílio de João Pimenta em 1831 e 1838

No domicílio de João Pimenta, o deslocamento em relação à classificação racial ocorreu com todos os membros do grupo, que passaram da condição de pardos para a condição de brancos, o que, dentro do padrão de hierarquias do século XIX, era tido como um referencial superior da escala de classificação racial.

Portanto, como no caso de Cipriano, não é possível apontar um elemento objetivo que justifique a modificação da classificação racial do grupo familiar de João Pimenta. O registro da ocupação indica que ele era carreiro e posteriormente aparece como alguém que trabalhava com agricultura. Há um nível de imprecisão no registro desse tipo de ofício, agricultor era uma designação ampla que poderia abarcar a experiência de indivíduos ligados a atividades com nível econômico distinto. Poderia referir-se a um pequeno proprietário ou mesmo a grandes fazendeiros. João Pimenta parece estar no primeiro caso, pois seu domicílio contém apenas pessoas livres, ou seja, ele não possuía escravos. Caso tivesse se tornado um grande proprietário de terras, teria, provavelmente, vários trabalhadores cativos.

Aqui, o que parece justificar a mudança de status da família de João Pimenta são elementos como o pertencimento a uma rede familiar que se distribuía por todo o distrito, e também o fato de ter uma situação conjugal dentro dos padrões sociais admitidos como ideais, como indica a condição de legitimidade do casamento reconhecido no registro das duas listas nominativas. De outro lado, é preciso considerar a alfabetização do chefe do domicílio e de seu filho mais velho, o que demarcaria uma relação com os processos civilizatórios desenvolvidos a partir da escolarização.

A documentação de 1838 não registra as crianças que frequentavam a escola, dessa forma, não assinala se os filhos de João Pimenta que se encontravam em idade escolar7 7 Estamos considerando a idade escolar nos termos do que foi definido pela Lei n. 13, de 1835, que estabeleceu a gratuidade e a obrigatoriedade da instrução elementar para as crianças livres, do sexo masculino, de 8 a 14 anos (FARIA FILHO; GONÇALVES, 2004). estavam envolvidos com processos de educação formal. Mas, se considerarmos a condição de alfabetizado do pai e do filho mais velho, podemos dizer que se tratava de um grupo familiar que manifestava o "hábito" de escolarizar seus membros. É provável, portanto, que Sabino (12 anos), Joaquim (8 anos) e até mesmo Antônio (6 anos) estivessem na escola.

Há indícios de que a escola seria uma instituição com a qual esse grupo se relacionava com algum nível de proximidade, e isso pode ser tomado como um dos elementos responsáveis pela mudança de status racial entre o documento de 1831 e o de 1838. Aliás, situação que também se aplicaria ao caso de Cipriano, que também mudou seu status racial ao ser introduzido no domicílio de um grupo familiar branco, no qual ele apareceu como alfabetizado. Assim, como no caso da família de Joao Pimenta, a condição de alfabetizado deve ser considerada na mudança de classificação racial.

Os termos de classificação racial nas listas nominativas de Cachoeira do Campo

Quando consideramos todos os indivíduos que foram apresentados nas listas nominativas de Cachoeira do Campo, em 1831, encontramos uma diversidade de nomenclatura de classificação racial: branco, índio, pardo, crioulo, cabra, preto. Em meio a essa diversidade, os quatro últimos termos se referem a diferentes formas de classificação em relação à população negra. Esses termos revelam que havia uma hierarquia que definia lugares sociais para diferentes segmentos da população e essa definição passava por elementos como lugar de origem, posição social, miscigenação e relação com a escravidão.

Não temos elementos suficientes para estabelecer a ordem exata dessa hierarquia de classificação utilizada em relação à população negra (preto, pardo, crioulo, cabra). No entanto, é necessário destacar que as listas nominativas indicam que esses elementos compunham um código que era compartilhado e que havia uma ordem que estabelecia a sua utilização, ou seja, esses termos respondiam por uma escala que definia o lugar ocupado pelos indivíduos na sociedade mineira do século XIX.

Não possuímos elementos que permitam definir com precisão a hierarquia entre esses termos, mas não temos dúvida em relação aos dois extremos da escala de classificação: de um lado, está o que poderíamos definir como nível mais elevado, que é a condição de pardo - aplicada preferencialmente aos negros de condição livre -, de outro, temos o nível de classificação com menor prestígio, que é o termo preto, empregado preferencialmente para classificação dos africanos.

Quando recorremos às listas nominativas de outros distritos, constatamos que a designação de preto pode ser entendida como sinônimo de africano, isso se verifica pelo uso alternado desses dois termos.8 8 Na documentação relativa às listas nominativas de habitantes que se encontra no Arquivo Público Mineiro, encontramos estes documentos para cerca de 300 distritos de Minas Gerais, no século XIX. Há listas que utilizaram como critério de classificação a origem dos indivíduos, dessa forma, no quesito que registrava a qualidade, não temos nenhuma designação de cor ou raça, mas sim a de origem: africano. Geralmente, nas listas que utilizaram a designação de africano não encontramos a terminologia preto. Em outras, como Cachoeira do Campo, encontramos apenas o termo preto que tendia a ser empregado para o registro dos indivíduos provenientes da África.9 9 Durante esse período, em Minas Gerais, havia um número muito expressivo de africanos. Isso era resultado de uma intensificação do tráfico como uma resposta às pressões internacionais pelo seu fim, nos anos de 1820: "De acordo com estimativas recentes, em todo o período do tráfico negreiro para o Brasil, desde meados do século XVI até os anos 1850, chegaram ao país mais de 4,8 milhões de africanos escravizados; no primeiro quartel do século XIX (1801-1825), entraram 1.012.762 africanos; no segundo quartel (1826-50), 1.041.964 [...] a aritmética dos dados revela que mais de 42% das importações de africanos para o Brasil em três séculos de tráfico negreiro aconteceram apenas na primeira metade do século XIX. Revela observar que a maioria esmagadora das entradas de escravizados no último período, 1826-1850, mais o número residual da década de 1850 destinaram-se à região do atual Sudeste e ocorreu quando tratados internacionais e a legislação nacional haviam tornado ilegal o tráfico negreiro" (CHALHOUB, 2012, p. 35).

Na lista de Cachoeira do Campo, em 1831, temos 142 indivíduos que foram classificados como pretos - 9,6% da população total -; destes, 133 eram escravos e 9 eram libertos. Nenhum dos chamados pretos presentes nessa lista foi classificado como de condição livre, ou seja, nenhum deles nasceu, no Brasil, nessa condição. Os poucos que não eram escravos receberam a designação de libertos, indicando que haviam sido escravos antes de alcançarem a liberdade.

Uma das diferenças entre a lista nominativa de 1831 e a de 1838 é que a última contém o registro da nacionalidade dos indivíduos. Ou, antes, assinalava aqueles que nasceram na África, isso porque o quesito nacionalidade foi preenchido somente em relação a esses indivíduos. Em todos os demais, ele permaneceu sem informação, ou seja, a nacionalidade era um campo a ser preenchido para registrar o "outro", aquele que não havia nascido no Brasil, para os demais, a nacionalidade era autoevidente.10 10 As informações permaneciam sem preenchimento apenas nos casos em que manifestavam algo que era absolutamente evidente, como no caso da nacionalidade ou estado civil de crianças, em que não era preciso dizer se eram solteiras ou casadas.

Quando consideramos a nacionalidade, temos o registro em relação a 107 indivíduos, destes, apenas um não era africano - foi classificado como alemão -, todos os demais traziam indicações que os ligavam a diferentes grupos originários da África: Congo, Benguela, Rebolo, Angola, Casange, Monjolo, Cabinda, Mina. Pode-se dizer que, em 1838, os africanos compunham um grupo representativo em Cachoeira do Campo, constituíam 6% da população total, sendo, inclusive, necessário criar formas de nomeação que distinguissem esse grupo dos demais, o que justificaria o padrão de uso do termo preto.

Se em um dos extremos da escala de classificação do grupo representado pelos negros temos os pretos africanos, do outro temos os chamados pardos, que representavam o segmento com maior peso demográfico em Cachoeira do Campo, correspondiam a 53,4% da população, em 1831, e 54,6%, em 1838.11 11 Esses dados estão em concordância com a província de Minas Gerais, pois, nesse período, havia um grande número de indivíduos classificados nessa condição (PAIVA, 1996).

Para Hebe M. Mattos (1998MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: o significado da liberdade no sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.), a aplicação desse termo estava relacionada aos processos de mudança do significado da liberdade na região Sudeste. No centro dessa mudança estava o significado da cor, que foi um importante mecanismo de distinção social no século XVIII e, para efeito de status social, tinha o seu sentido definido através da condição de livre dos brancos e a escravidão dos negros. Na passagem para o século XIX, essa distinção perdeu força à medida que muitos indivíduos de cor passaram a usufruir da condição de seres livres.

O crescente processo de indiferenciação entre brancos pobres e negros e mestiços livres teria levado, por motivos opostos, à perda da cor de ambos. Não se trata necessariamente de branqueamento. Na maioria dos casos, trata-se simplesmente de silêncio. O sumiço da cor referencia-se, antes, a uma crescente absorção de negros e mestiços no mundo dos livres, que não é mais monopólio dos brancos, mesmo que o qualificativo "negro" continue sinônimo de escravo, mas também a uma desconstrução social do ideal de liberdade herdado do período colonial, ou seja, a desconstrução social de uma noção de liberdade construída com base na cor branca, associada à potência da propriedade escrava. (MATTOS, 1998, p. 98)

Ainda segundo Mattos (1998MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: o significado da liberdade no sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.), a liberdade como status social deixou de ser uma prerrogativa dos brancos e deixou de ter o seu significado ligado única e exclusivamente à cor da pele. Essa seria uma das justificativas para que a cor sumisse da documentação relativa ao século XIX, pois, como não se tratava mais de um critério que por si só definia o lugar social dos indivíduos, passou a ocorrer uma ausência de registros em meio aos documentos de várias instituições. Quando a cor era registrada, havia a tendência de classificar os negros de condição livre como pardos, o que indicaria que esse tipo de classificação designava também um lugar social.

O termo pardo, portanto, pode ser tomado como indicativo de um lugar social e não como um simples resultado da miscigenação. Dessa forma, pardo seria o nível mais elevado atingido por um indivíduo pertencente à população negra, havendo inclusive a possibilidade de deslocamento para sua classificação como branco. É o que indica Tarcísio Botelho (2004BOTELHO, Tarcísio R. Estratégias matrimoniais entre a população livre de Minas Gerais: Catas Altas do Mato Dentro, 1815-1850. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAI, 14., 2004. Caxambu: Abep, 2004., p. 8):

A declaração raça/cor nos documentos do passado brasileiro é bastante imprecisa. Ela expressa muito mais uma escala social do que uma origem racial, com a cor branca sendo o referencial superior da escala. Em outras palavras, a declaração da cor era muitas vezes influenciada pela posição social do indivíduo. Isso implica as inúmeras variações que às vezes encontramos quanto à cor de um mesmo indivíduo. Conforme o documento, uma pessoa encontra-se classificada como parda e, alguns anos depois, pode aparecer como branca.

Seguindo na mesma direção, Ivana Stolze Lima (2003LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. p. 32) reafirma a necessidade de levar em conta o significado histórico e social das formas de designação racial:

Nenhuma designação racial tem um sentido trans-histórico ou invariável [...] toda forma de denotar carrega um conjunto de objetivos, de interesses, de usos e finalidades, que obedece tanto a lógicas variáveis segundo o sujeito que profere o discurso - uma conversa informal e privada, as diversas instâncias da justiça, o censo populacional, o exercício da disciplina, etc. - como o próprio contexto histórico.

Essas considerações nos ajudam a pensar sobre os dados relativos aos indivíduos escolarizados de Cachoeira do Campo. Dessa forma, podemos avaliar até que ponto a polarização entre brancos e pardos que constatamos nas escolas de instrução elementar não era, na verdade, resultado de uma operação em que a relação com a instituição escolar - enquanto dispositivo civilizatório - incidia na classificação dos indivíduos.12 12 Há indícios muito claros em relação à posição de pardos e pretos como extremos do padrão de classificação dos negros, no século XIX. Isso está ligado ao significado social destes termos, indicando os pardos como aqueles que estavam relativamente estabelecidos em meio aos livres, enquanto que os pretos estavam ligados à África e à escravidão. Podemos definir com alguma segurança os dois polos de classificação dos negros, no século XIX, mas não podemos deixar de assinalar a dificuldade de compreender este processo de hierarquização quando consideramos as nomenclaturas crioulo e cabra, que também aparecem na lista de Cachoeira do Campo.

Para levar adiante a problematização que considera a escola como uma variável que incide na classificação racial dos indivíduos, analisaremos os impactos da escolarização a partir da confrontação dos domicílios dos indivíduos que frequentaram as aulas de primeiras letras nas listas nominativas de 1831 e 1838.

Os domicílios com indivíduos nas escolas de Cachoeira do Campo em 1831 e 1838

Em 1831, 47 indivíduos foram assinalados como alunos das aulas de instrução elementar em Cachoeira do Campo, distribuídos em 30 domicílios, pois em alguns deles encontramos mais de uma criança na escola. Não é tarefa fácil encontrar os domicílios das crianças que estavam na escola em 1831 na documentação de 1838. Sempre há dificuldade para confirmação dos dados por causa da variação dos nomes e da irregularidade do padrão de idade que, como já vimos, não eram expressões de uma identidade civil que acompanhava os indivíduos em diferentes registros documentais. Por outro lado, sempre havia a possibilidade de uma mudança na estrutura domiciliar que podia ser alterada pela saída, ou entrada, de novos membros. Portanto, é sempre necessário confrontar uma série de informações para identificar os domicílios nos dois documentos relativos a Cachoeira do Campo.

Operando com procedimentos dessa natureza, encontramos, em 1838, 22 domicílios dos 30 registrados com crianças nas escolas da lista de 1831. O primeiro aspecto a destacar em relação à confrontação dos dados desses domicílios é o nível de familiaridade de seus membros com o universo da leitura. Isso pode ser afirmado na medida em que constatamos que a maioria dos chefes dos domicílios foram apresentados como leitores: 13 desses indivíduos foram assinalados nessa condição, em 1838. Outros nove que ocupavam a condição de chefe não eram leitores, mas devemos considerar que destes apenas um era do sexo masculino e todos os demais eram mulheres, grupo que estava em menor escala ligado à escola e às práticas de leitura.13 13 Isso pode ser tomado como uma confirmação da exclusão das mulheres do universo da leitura, como indicava claramente a Lei n. 13 que, em 1835, estabeleceu a obrigatoriedade da instrução elementar para o sexo masculino e apenas sugeriu que deveria ser incentivada a criação de escolas para as mulheres. Por outro lado, também revela que essas mulheres que eram chefes de domicílio já apresentavam uma compreensão sobre a importância da alfabetização, pois, embora não frequentassem o universo letrado, investiam para que seus filhos do sexo masculino dominassem essa habilidade.

Os 22 domicílios que encontramos na lista nominativa de 1838 contêm 32 indivíduos que foram assinalados como alunos da escola de primeiras letras, em 1831. Destes, 27 foram registrados como alfabetizado e cinco não encontravam-se nessa condição. Esse dado indica que a maioria desses indivíduos permaneceu na escola até um nível suficiente para serem reconhecidos formalmente como leitores.

Quando consideramos o status racial dos indivíduos desse grupo, constatamos que, dentro de nossa amostra, a categoria branco pode ser considerada como uma definição portadora de um certo nível de estabilidade. Dos 22 domicílios com crianças nas escolas, em 1831, e que foram encontrados na documentação de 1838, três continham crianças brancas que permaneceram na mesma condição, ou seja, a designação de raça se repetiu nas duas listas. Podemos tomar isso como indício de que aqueles indivíduos que estavam no "topo" da escala de classificação racial, do século XIX, tendiam a se manter nesse lugar.

Em relação aos pardos, não podemos afirmar a mesma coisa, pois em alguns casos esta forma de designação se revelou como um ponto de passagem para outras, destacadamente nos caso de algumas crianças que foram deslocadas para a condição de brancas. Isso ocorreu em quatro domicílios e, na maioria dos casos, implicou na mudança da classificação de todos os membros do grupo familiar.14 14 Em uma amostragem pequena como esta, a representação percentual deve ter o seu significado relativizado, mas gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que as crianças que mudaram seu status racial representam 21% dos domicílios que apareceram como pardos, em 1831. O que nos leva a crer que, no contexto do século XIX, a relação com os processos de educação formal não tinha incidência apenas naqueles que frequentavam a escola, tratava-se de um mecanismo que dizia respeito a todo o grupo familiar. Como no caso do domicílio que apresentamos a seguir:

Em 1831, Domingos Leite da Cruz era o chefe de um domicílio onde aparecia como um indivíduo branco que comandava uma família em que todos os demais membros eram pardos. Em 1838, o registro da qualidade dos membros da família modificou-se e todos se deslocaram, aparecendo com a mesma qualidade atribuída ao chefe:

Figura 5
Domicílio de Domingos Leite da Cruz em 1838

A relação com o processo de escolarização pode ser considerada como um elemento do movimento de mudança na classificação racial do grupo. Podemos afirmar isso à medida que constatamos que todos os indivíduos livres foram assinalados como alfabetizados, inclusive as mulheres. No entanto, é preciso reconhecer que havia outros elementos que operaram nesse deslocamento. Entre eles, destaca-se a estabilidade do grupo familiar, composto por um casal acompanhado de seus filhos. Isso fica claro no documento quando verificamos o padrão tradicional de registro dos membros de uma família, em que temos em primeiro lugar os cônjuges e em seguida seus filhos, apresentados por ordem de idade.

Há indícios que apontam para uma mudança de status profissional dos membros do grupo, isso porque Domingos Leite da Cruz apareceu como pedreiro, em 1831, e depois como minerador. Podemos dizer que a atividade de mineração aparece de forma relativamente organizada à medida que constatamos que esse era o oficio de quatro membros do domicílio, que, possivelmente, atuavam de forma conjunta no exercício desta atividade.15 15 A ausência de estabilidade no uso das categorias raciais pode também ser percebida em relação ao escravo Francisco, que, no primeiro registro, apareceu como pardo, para logo em seguida, em 1838, aparecer como preto, tendo ainda o acréscimo de crioulo ao seu nome.

Situação semelhante encontramos na unidade chefiada pelo comerciante Manoel Guerra:

Figura 6
Domicílio de Manoel Rodrigues Guerra em 1831 e 1838

Nesse domicílio, temos elementos semelhantes aos que operaram no deslocamento anterior: casamento reconhecido como legítimo, homens alfabetizados e a consolidação de uma atividade profissional exercida de forma coletiva. A diferença mais significativa encontra-se na ampliação do número de membros do domicílio, e na duplicação da quantidade de escravos, que eram dois e passaram a ser quatro.

Houve ainda a inserção de dois indivíduos que provavelmente eram agregados, pois não possuíam o mesmo sobrenome dos membros do grupo, foram apresentados após uma criança da família e antes dos escravos. A condição de agregado torna-se ainda mais evidente quando consideramos que esses indivíduos foram classificados em outro grupo racial, ou seja, enquanto todos os membros da família foram classificados como brancos, eles foram classificados como pardos.

Nesse domicílio encontramos os procedimentos comuns de classificação social/racial utilizados em Minas Gerais, no século XIX. Dessa forma, os membros da família foram deslocados para um grupo racial distante dos escravos, ou seja, foram apresentados como brancos, enquanto os escravos foram assinalados como africanos/pretos e, aquele que nasceu no Brasil, como pardo.16 16 A lista nominativa de 1838 não fez uso do termo crioulo; isso pode ser justificado pelo uso da nacionalidade para registrar os escravos que haviam nascido na África. Dessa forma, não era necessária a utilização de um termo específico para marca a distância entre os que nasceram no Brasil e os africanos, pois isso estava contido na própria lista através do campo nacionalidade. Há uma distância entre a classificação racial dos indivíduos livres e dos escravos e também uma hierarquia entre os livres, pois enquanto os membros do grupo familiar foram apresentados como brancos, os agregados, que possuíam relações de dependência com o núcleo familiar, foram classificados como pardos, ou seja, designação que chegava a os igualar a um dos escravos do domicílio.

Portanto, o domicílio chefiado por Manoel Rodrigues Guerra apresentava as diferentes condições utilizadas para a mudança de status de pardo para branco. Nesse caso, temos um grupo que dá mostras evidentes de estabilidade familiar, inclusive com o registro de dois casamentos, e também de "elevação" do ponto de vista econômico. Em meio a essas variáveis, o registro da condição de alfabetizado dos homens do domicílio pode ser tomado como um elemento que atuava em conjunto com os demais na "elevação" do status social/racial do grupo.

Considerações finais

As conexões entre educação e escravidão são pouco consideradas pela historiografia brasileira. Em geral, considera-se a interdição dos escravos de frequentarem escolas como elemento primordial desta relação e como eixo central de estruturação das abordagens. Como consequência disso, temos um nível de problematização muito baixo da relação entre os processos educacionais e a instituição social que teve maior peso no desenvolvimento da sociedade brasileira até o século XIX.

A escravidão foi elemento preponderante na construção do significado de vários elementos ligados à sociedade brasileira. Dessa forma, é preciso considerar uma relação mais efetiva entre esta instituição e a educação. As formas de relação entre classificação racial e escolarização podem ser apontadas como uma possibilidade de articulação entre estas duas dimensões.

No entanto, é preciso considerar que construímos uma análise que utilizou a comparação dos documentos relativos a um distrito de Minas Gerais. Isso indica um limite para o alcance dos resultados que apresentamos. Porém, quando consideramos o conjunto das pesquisas que vêm aprofundando o estudo das relações raciais no século XIX, podemos projetar os resultados da análise no sentido de reafirmar o padrão de mudança das classificações raciais utilizadas em relação à população negra associado à escolarização como elemento constitutivo desse processo.

Isso pode ser afirmado tendo como referência os casos que apresentamos em que houve a mudança de status de indivíduos que a partir de alguns atributos sociais, entre eles a alfabetização, modificaram sua posição dentro da estrutura de classificação racial. Esse fenômeno ocorreu sempre com a mudança da condição de pardo para branco, nunca no sentido contrário.

No século XIX, o status racial dos indivíduos era algo variável e a mudança podia ocorrer em todas as direções. Mas, considerando os procedimentos de análise que mobilizamos, o mais comum era a definição dos negros escolarizados como pardos. Esse era o termo usual para designar os negros que estabeleceram relações com as escolas. Podemos encontrar ainda, pardos que passaram para condição de brancos quando identificamos a conjunção de escolaridade com outros fatores que agregavam valor social.

O século XIX foi um período marcado pelo discurso da escola como elemento fundamental no processo de civilização da população. Civilizar era um campo polissêmico que adquiria seu significado a partir dos sujeitos aos quais era dirigido. Um dos seus significados mais profundos foi produzido a partir da sua utilização como dispositivo de controle sobre a população negra livre, que deveria ser afastada das influências da cultura africana que circulava no país. Dessa forma, a eficácia da escolarização deveria se materializar na alteração do status racial que deveria operar uma mudança que significaria uma filiação à vida e ao mundo representado pelos brancos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    Jul 2014
  • Aceito
    Nov 2014
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