RESUMO:
A importância atribuída às inserções sociais na perspectiva de Doise sobre as representações sociais e na noção de habitus de Bourdieu é discutida e ilustrada através dum conjunto de estudos sobre as práticas familiares que mostram o efeito das posições sociais sobre as representações sociais e as práticas sociais. Os resultados revelam um consenso sobre o que são as tarefas familiares e quem deve as executar. Eles mostram que os homens e as mulheres concordam em considerar justa a distribuição desigual do trabalho familiar e desejável a diferenciação dos papéis familiares entre maridos e mulheres. O nível de escolaridade leva a variações na crença nas diferenças naturais entre os sexos, nas representações formadas sobre o trabalho familiar e no contributo efectivo dos cônjuges para as tarefas familiares, sem ameaçar, contudo, as posições assimétricas ocupadas pelos homens e pelas mulheres na sociedade.
Palavras chave:
Família; Relações de Género; Estrutura Social; Desigualdade Social
RÉSUMÉ:
L’importance accordée aux insertions sociales dans la perspective de Doise sur les représentations sociales et dans la notion d’habitus chez Boudieu est discutée et illustrée à travers un ensemble d’études sur les pratiques familiales montrant l’effet des positions sociales sur les représentations et pratiques sociales. Les résultats révèlent un consensus sur ce que sont les tâches ménagères et qui doit les accomplir. Ils indiquent que les hommes et les femmes s´accordent pour considérer juste la répartition inégale du travail familial et désirable la différenciation des rôles familiaux entre maris et femmes. Le niveau de scolarité entraîne des variations dans la croyance dans les différences naturelles entre les sexes, dans les représentations du travail familial et dans la contribution effective des conjoints aux tâches familiales, sans menacer toutefois les positions asymétriques occupées par les hommes et les femmes dans la société.
Mots-clés:
Famille; Rôles de Genre; Structure Sociale; Inégalité Sociale
RESUMEN:
La importancia atribuida a las inserciones sociales en la perspectiva de Doise sobre las representaciones sociales y en la noción de habitus de Bourdieu son discutidas e ilustradas a través de un conjunto de estudios sobre las prácticas familiares que muestran el efecto de las posiciones sociales sobre las representaciones sociales y las prácticas sociales. Los resultados revelan un consenso sobre lo que son las tareas familiares y quién debe ejecutarlas. Ellas muestran que los hombres y las mujeres concuerdan en considerar justa la distribución desigual del trabajo familiar y deseable la diferenciación de los papeles familiares entre maridos y mujeres. El nivel de escolaridad lleva a variaciones en la creencia en las diferencias naturales entre los sexos, en las representaciones formadas sobre el trabajo familiar y en la contribución efectiva de los cónyuges a las tareas familiares, sin amenazar, sin embargo, las posiciones asimétricas ocupadas por los hombres y las mujeres en la sociedad.
Palabras clave:
Familia; Papeles de Género; Estructura Social; Desigualdad Social
ABSTRACT:
The importance attributed to social insertions in Doise’s perspective of social representations and Bourdieu’s notion of habitus are discussed and illustrated by a set of studies on family practices showing the effect of social positions on social representations and social practices. Findings reveal a consensus about what the family tasks are and who is undertaking them. They show that men and women agree to find the unequal distribution of family work fair and the traditional differentiation of family roles between husband and wife desirable. The level of education triggers variations in the belief in sex differences, the representations on family work, and spouses’ actual contribution to family tasks, without threatening the asymmetrical positions of men and women in society.
KEYWORDS:
Family; Gender Roles; Social Structure; Social Inequality
Não há dúvida de que existem inúmeras opiniões acerca do que significam conceitos como justiça, poder ou felicidade e a forma como definimos esses conceitos tem um impacto sobre os nossos comportamentos. Desde a publicação, em 1961, da obra de Moscovici, La psychanalyse, son image et son public, a investigação sobre representações sociais procura perceber como é que as opiniões se formam, por que é que diferentes pessoas têm diferentes pontos de vista sobre objectos sociais - sobretudo quando são importantes e controversos -, ou quais são os factores que influenciam o discurso que produzimos quando falamos acerca desses objectos.
A teoria desenvolvida por Moscovici, enraizada na obra do sociólogo francês Durkheim, foi publicada num momento em que a psicologia social e a psicologia social cognitiva eram quase sinónimas: o modo como as representações influenciam selectivamente a percepção do ambiente, as suas propriedades, e os seus efeitos nos comportamentos e nas práticas eram o centro de toda a atenção (MARKUS; ZAJONC, 1985MARKUS, Hasel; ZAJONC, Robert B. The cognitive perspective in social psychology. In: LINDZEY, Gardner; ARONSON, Elliot. (Org.). The handbook of social psychology. Hillsdale, N. J.: Lawrence Erlbaum, 1985. v. 1, p. 137-230.). Pela importância que atribuía às trocas conversacionais que ocorrem nos grupos sociais para a formação dessas representações, a Teoria das Representações Sociais de Moscovici diferia, no entanto, marcadamente da maioria das teorias norte-americanas, baseadas em perspectivas mais individualizantes (FARR, 1995FARR, Robert M. Representações sociais: a teoria e sua história. In: JOVCHELOVITCH, S.; GUARESCHI, P. (Org.). Textos em representações sociais. Petrópolis, RJ: 1995. p. 31-59.). Para Moscovici (1981MOSCOVICI, Serge. On social representations. In: FORGAS, Joseph P. (Org.). Social cognition: perspectives on everyday understanding. London: Academic Press, 1981. p. 181-209., 1984MOSCOVICI, Serge. The phenomenon of social representations. In: FARR, Robert M.; MOSCOVICI, Serge (Org.). Social representations. Cambridge: Cambridge University Press , 1984. p. 3-69., por exemplo), com efeito, as “sociedades pensantes” criam representações sociais a partir das memórias colectivas, das ideologias, da ciência, dos mass media e das experiências pessoais que levam a uma visão partilhada do mundo social, a teorias leigas sobre o mundo que contribuem para interpretar e construir a realidade social e que, por conseguinte, têm um impacto sobre as relações sociais e as acções.
A teoria desencadeou inúmeras controvérsias. As críticas apontaram para a escolha dos “antepassados” (DEUTSCHER, 1984DEUTSCHER, Irwin. Choosing ancestors: some consequences of the selection from intellectual traditions. In: FARR, R. M.; MOSCOVICI, S. (Org.). Social representations. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. p. 71-100.), o significado de “social” (HARRE, 1985HARRE, Rom. Social representations (book review). British Journal of Psychology, v. 76, p. 138-140, 1985.), a necessidade de clarificação do conceito e a definição de abordagens metodológicas adequadas para o estudo das representações sociais (JAHODA, 1988JAHODA, Gustav. Critical notes and reflections on “social representations”. European Journal of Social Psychology , v. 18, p. 195-209, 1988.; a esse respeito, ver também a resposta de MOSCOVICI, 1988MOSCOVICI, Serge. Notes towards a description of social representations. European Journal of Social Psychology , v. 18, p. 211-250, 1988.). A perspectiva posicional das representações sociais da Escola de Genebra resulta da reflexão de Doise sobre a definição de representações sociais e sobre as técnicas de análise de dados utilizadas nos estudos conduzidos neste quadro teórico. Ela também resulta da observação de Doise de que existia alguma semelhança entre o trabalho de Moscovici (1976MOSCOVICI, Serge. La psychanalyse, son image et son public. Paris: PUF , 1961, 1976.) e o de Bourdieu (1979BOURDIEU, Pierre. La distinction. Paris: Editions de Minuit, 1979.). Essa observação levou Doise (1985DOISE, Willem. Les représentations sociales: définition d’un concept. Connexions, v. 45, p. 243-253, 1985.) a propor uma definição psicossociológica das representações sociais e uma abordagem que visa a analisar as causas, condições e consequências das variações representacionais (DOISE, 1992DOISE, Willem. L’ancrage dans les études sur les représentations sociales. Bulletin de Psychologie, v. 45, p. 189-195, 1992.; DOISE; CLÉMENCE; LORENZI-CIOLDI, 1992DOISE, Willem; CLÉMENCE, Alain; LORENZI-CIOLDI, Fabio. Représentations sociales et analyses de données. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 1992.). Focalizando-se no processo de ancoragem, e considerando diferentes níveis de ancoragem no estudo dos objectos sociais, a Escola de Genebra tem, desde então, salientado o efeito das ideologias, das posições dos grupos na estrutura social e das vivências individuais na formação e expressão das representações.
Procuraremos realçar os pontos de intersecção da perspectiva desenvolvida por Doise com o pensamento de Bourdieu, comentar os pressupostos, assunções e modelo da Escola de Genebra, antes de descrever um conjunto de estudos sobre as práticas familiares que evidenciam a importância atribuída às inserções sociais na perspectiva posicional de Doise e na noção de habitus de Bourdieu.
PRESSUPOSTOS, ASSUNÇÕES E MODELO DA PERSPECTIVA POSICIONAL
A perspectiva posicional caracteriza-se pela importância atribuída às inserções sociais dos indivíduos e aos contextos em que os objectos sociais são evocados.
INSERÇÕES SOCIAIS
Podemos encontrar as primeiras referências à perspectiva posicional da Escola de Genebra num artigo publicado na revista Connexions em 1985. Nesse texto, Doise realça algumas semelhanças entre as concepções de Moscovici (1976MOSCOVICI, Serge. La psychanalyse, son image et son public. Paris: PUF , 1961, 1976.) e de Bourdieu (1979BOURDIEU, Pierre. La distinction. Paris: Editions de Minuit, 1979.) acerca da noção de representação.
Segundo Bourdieu (1979BOURDIEU, Pierre. La distinction. Paris: Editions de Minuit, 1979.), os indivíduos têm pontos de vista diferentes sobre o espaço social, as suas práticas e as práticas dos outros, que dependem da sua própria posição nesse espaço. As estruturas sociais, por exemplo, as condições de vida materiais das classes sociais, produzem habitus, ou seja, diferentes sistemas de normas, de tendências ou de disposições, geradoras de práticas sensatas e de percepções que dão sentido a essas práticas.
O princípio da divisão em classes encontra-se inevitavelmente inscrito nas disposições do habitus: as práticas de uma classe são definidas pelo que têm de específico dessa classe e de distinto das práticas, dos estilos de vida, dos gostos, dos juízos das outras classes, afirmando-se a identidade social na diferença (BOURDIEU, 1979BOURDIEU, Pierre. La distinction. Paris: Editions de Minuit, 1979.). Como o habitus define a relação entre a posição ocupada no espaço social e as tomadas de posição sobre o mundo social, existe uma homologia estrutural entre posições sociais e tomadas de posições. Por exemplo, as posições dos dois grupos sexuais no espaço social são incorporadas nos habitus dos homens e das mulheres, e orientam os seus pontos de vista sobre como eles e elas devem se comportar e por quê.
Para Doise, a importância atribuída por Bourdieu (1979BOURDIEU, Pierre. La distinction. Paris: Editions de Minuit, 1979.) às inserções sociais para a orientação do pensamento e do comportamento evoca a conclusão de Moscovici (1976MOSCOVICI, Serge. La psychanalyse, son image et son public. Paris: PUF , 1961, 1976., p. 31), segundo a qual as opiniões devem ser analisadas “no campo psicossocial da pessoa e do grupo”. Nos termos de Doise (1990DOISE, Willem. Les représentations sociales. In: GHIGLIONE, R.; BONNET, C.; RICHARD, J. F. (Org.). Traité de psychologie cognitive. Paris: Dunod, 1990. p.113-174.), isso significa que as posições ocupadas pelos indivíduos na sociedade são associadas a representações específicas, que organizam o seu conhecimento e a sua avaliação do ambiente social. Por outras palavras, as relações entre os grupos sociais moldam as representações formadas pelos grupos, e as representações formadas pelos grupos moldam as relações entre os grupos. Na medida em que as relações sociais, as representações sociais e as práticas sociais tendem a se reforçar reciprocamente, elas contribuem para manter e legitimar a ordem social.
Foi na sequência dessa reflexão que Doise (1985DOISE, Willem. Les représentations sociales: définition d’un concept. Connexions, v. 45, p. 243-253, 1985., p. 246, tradução livre) propôs a sua definição das representações sociais como “princípios que geram tomadas de posição, de acordo com inserções específicas num conjunto de relações sociais, e que organizam os processos simbólicos que intervêm nestas relações”.1 1 No original: “principes générateurs de prises de position liées à des insertions spécifiques dans un ensemble de rapports sociaux et organisant les processus symboliques intervenant dans ces rapports
CONTEXTOS
Na perspectiva da Escola de Genebra, não se pode, contudo, estabelecer uma relação definitiva entre pertenças sociais e representações sociais, dado que as representações são sujeitas a variações produzidas pelas características das situações de evocação. Para Doise (1985DOISE, Willem. Les représentations sociales: définition d’un concept. Connexions, v. 45, p. 243-253, 1985.), com efeito, diversos processos intervêm quando os indivíduos tomam posição acerca de um objecto social relevante, tornando possível uma grande variedade nas expressões individuais de uma representação social. A esse respeito, podemos lembrar que Moscovici (1976MOSCOVICI, Serge. La psychanalyse, son image et son public. Paris: PUF , 1961, 1976., p. 287) também considerava importante analisar “o movimento das formas de reflexão”, ao observar que os indivíduos e os grupos usam uma pluralidade de modos de pensamento de acordo com os objectivos que perseguem.
Relativamente às inserções sociais, Doise (1989aDOISE, Willem. Attitudes et représentations sociales. In: JODELET, D. (Org.). Les representations sociales. Paris: PUF, 1989a. p. 220-238.) salienta que um indivíduo pertence - ou gostava de pertencer - a vários grupos. Apesar de alguns desses grupos servirem mais como pontos de ancoragem das suas opiniões do que outros, os grupos de referência podem diferir em função dos objectos evocados ou dos contextos. Com efeito, as situações de evocação tornam salientes diferentes relações sociais e o grupo com que as pessoas se identificam define o modo como estas se exprimem acerca de um objecto socialmente relevante.
Relativamente aos processos que intervêm quando os indivíduos tomam posição acerca de um objecto social relevante, Doise (1989bDOISE, Willem. Cognitions et représentations sociales. In: JODELET, D. (Org.). Les representations sociales. Paris: PUF , 1989b. p. 341-362.) considera que as situações sociais autorizam uma comunicação “controversial”, em que as pessoas defendem uma posição particular com o recurso a formas de argumentação que seriam consideradas inaceitáveis num debate científico: elas utilizam informações fragmentárias, tiram conclusões gerais a partir de observações particulares, fazem prevalecer o veredicto sobre o julgamento, baseiam argumentos de causalidade em associações de natureza avaliativa. Em suma, a comunicação é “ajustada” às necessidades da situação de interacção (DOISE, 1989bDOISE, Willem. Cognitions et représentations sociales. In: JODELET, D. (Org.). Les representations sociales. Paris: PUF , 1989b. p. 341-362.), o que produz subsequentemente variações nas representações formadas.
Para explicar as variações nas representações formadas, Doise (1990DOISE, Willem. Les représentations sociales. In: GHIGLIONE, R.; BONNET, C.; RICHARD, J. F. (Org.). Traité de psychologie cognitive. Paris: Dunod, 1990. p.113-174.), como Moscovici (1976MOSCOVICI, Serge. La psychanalyse, son image et son public. Paris: PUF , 1961, 1976.), considera que o pensamento é regido por dois sistemas cognitivos: um sistema operatório e um metassistema que controla as operações efectuadas pelo sistema operatório. Defende que o metassistema do pensamento social, ou de senso comum, é constituí do por regulações sociais (normas, crenças, expectativas) que são activadas pelas situações de comunicação e relacionadas com as inserções sociais dos indivíduos num conjunto de relações sociais.
Para Doise (1990DOISE, Willem. Les représentations sociales. In: GHIGLIONE, R.; BONNET, C.; RICHARD, J. F. (Org.). Traité de psychologie cognitive. Paris: Dunod, 1990. p.113-174.), cabe aos psicólogos sociais estudar que regulações sociais actualizam que funcionamentos cognitivos em que contextos específicos, dado que a especificidade da teoria das representações sociais, no estudo dos objectos sociais, consiste em mostrar a relação entre o metassistema e o sistema operatório.
O MODELO TRIFÁSICO
Para os autores inseridos na perspectiva posicional das representações sociais, para estudar que regulações sociais actualizam que funcionamentos cognitivos em que contextos específicos, é necessário reconstituir os princípios organizadores que subjazem aos discursos produzidos acerca de um objecto social específico, recorrendo a diversas técnicas de análise de dados. Essas técnicas deveriam permitir estudar as três assunções que os autores colocam sobre a natureza das representações sociais (CLÉMENCE; DOISE; LORENZI-CIOLDI, 1994CLÉMENCE, Alain; DOISE, Willem; LORENZI-CIOLDI, Fabio. Prises de position et principes organisateurs des représentations sociales. In: GUIMELLI, C. (Org.). Structures et transformations des représentations sociales. Neuchâtel: Delachaux et Niestlé, 1994. p. 119-152.; DOISE; CLÉMENCE, 1996DOISE, Willem; CLÉMENCE, Alain. La problématique des droits humains et la psychologie sociale. Connexions, v. 67, p. 9-27, 1996.; DOISE; CLÉMENCE; LORENZI-CIOLDI, 1992DOISE, Willem; CLÉMENCE, Alain; LORENZI-CIOLDI, Fabio. Représentations sociales et analyses de données. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 1992.):
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os membros de uma população determinada partilham opiniões comuns sobre certos objectos sociais, visto que as representações são formadas em sistemas de comunicação que necessitam de pontos de referência comuns. Portanto, uma primeira fase consiste em identificar os pontos de referência comuns aos indivíduos e aos grupos estudados, descrever a forma como esses elementos são organizados e, eventualmente, ponderar a sua importância e a sua valência emocional (estudo da objectivação);
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apesar de os membros de uma população determinada partilharem pontos de referência comuns, existe uma certa heterogeneidade nas suas crenças e atitudes acerca dos objectos sociais. Se o consenso nunca foi considerado por Moscovici (1976MOSCOVICI, Serge. La psychanalyse, son image et son public. Paris: PUF , 1961, 1976.) uma característica essencial nem do funcionamento nem do produto das representações sociais, a teoria implica que as variações interindividuais sejam organizadas de forma sistemática. Portanto, numa segunda fase, é necessário procurar as dimensões relativamente às quais os indivíduos tomam diferentes posições;
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as tomadas de posição são ancoradas em realidades colectivas. Sendo essas ancoragens variadas, é preciso analisá-las a diferentes níveis. Nos seus estudos, a Escola de Genebra examinou principalmente três tipos de ancoragem. Isso não significa, contudo, que existem três tipos de ancoragem, mas sim que os autores exploraram três maneiras diferentes de analisar o modo como o funcionamento cognitivo é afectado pelo metassistema das regulações sociais (DOISE, 1992DOISE, Willem; CLÉMENCE, Alain; LORENZI-CIOLDI, Fabio. Représentations sociales et analyses de données. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 1992.). Assim:
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ao nível psicológico, analisa-se a relação entre as variações nas tomadas de posição e a adesão a crenças ou valores gerais. Essas crenças ou valores, por exemplo, a crença num mundo justo ou o igualitarismo, são “gerais”, na medida em que modulam as tomadas de posição relativas a vários objectos sociais;
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ao nível psicossociológico, examina-se a relação entre as variações nas tomadas de posição e as variações no modo como os indivíduos percepcionam as relações entre grupos ou categorias sociais relevantes para o objecto;
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ao nível sociológico, analisa-se a relação entre as variações nas tomadas de posição e a pertença social dos indivíduos, partindo do princípio de que inserções sociais partilhadas originam interacções e experiências específicas que, por vezes, através de valores e crenças diferenciadas, modulam as tomadas de posição sobre os objectos sociais.
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A análise de uma representação social deveria, portanto, realçar o saber comum sobre o objecto, as dimensões sobre as quais existem variações nos pontos de referência comuns fornecidos pelo saber comum, e as diversas formas como essas variações são ancoradas nas realidades sociais. De facto, muitos estudos sobre representações sociais não exploram de forma sistemática essas três fases, limitando-se à observação de um ou outro aspecto das representações estudadas. Os trabalhos conduzidos pela Escola de Genebra sobre as representações dos direitos humanos procuraram, contudo, aplicar de modo sistemático a metodologia desenvolvida no quadro da perspectiva posicional (ver DOISE; CLÉMENCE, 1996DOISE, Willem; CLÉMENCE, Alain. La problématique des droits humains et la psychologie sociale. Connexions, v. 67, p. 9-27, 1996.; DOISE; SPINI; CLÉMENCE, 1999DOISE, Willem; SPINI, Dario; CLÉMENCE, Alain. Human rights studied as social representations in a cross-national context. European Journal of Social Psychology, v. 29, p. 1-29, 1999.; DOISE, 2001DOISE, Willem. Droits de l’homme et force des idées. Paris: PUF , 2001., por exemplo).
Num outro artigo também dedicado à perspectiva posicional (POESCHL; RIBEIRO, no prelo), ilustramos o modelo da Escola de Genebra com um conjunto de estudos sobre globalização. Com efeito, a teoria das representações sociais foi inicialmente concebida por Moscovici (1976MOSCOVICI, Serge. La psychanalyse, son image et son public. Paris: PUF , 1961, 1976.) para estudar como um novo conceito científico era transformado ao integrar-se nos sistemas de pensamento de diferentes grupos sociais, e uma grande parte da investigação conduzida nesse quadro teórico analisa como representações sociais são formadas para lidar com as questões complexas que se colocam com a aparição de um novo conceito no espaço social. Neste artigo, focaremos o efeito das posições sociais sobre as representações sociais e as práticas sociais. Mais precisamente, com base no estudo da relação entre práticas familiares e representações das diferenças entre homens e mulheres, procuraremos ilustrar a forma como as relações sociais, as representações sociais e as práticas sociais tendem a se reforçar e, assim, contribuem para manter e legitimar a ordem social.
A DOMINAÇÃO MASCULINA E AS PRÁTICAS FAMILIARES
Antes de descrever alguns dos estudos conduzidos no quadro teórico das representações sociais, apresentamos a análise de Bourdieu (1998BOURDIEU, Pierre. La domination masculine. Paris: Editions du Seuil, 1998.) sobre as relações entre os sexos e resumimos alguns aspectos da vasta investigação sobre as práticas familiares.
BOURDIEU E A DOMINAÇÃO MASCULINA
Num livro consagrado às relações entre os sexos, Bourdieu (1998BOURDIEU, Pierre. La domination masculine. Paris: Editions du Seuil, 1998.) analisa a permanência e/ou a mudança na dominação tradicional dos homens sobre as mulheres. O autor descreve a divisão entre os sexos como uma coisa tão normal e natural que poucas vezes é questionada: as estruturas sociais são incorporadas nos habitus dos homens e das mulheres, funcionando “como esquemas de percepção, de pensamento e de acção” (1998, p. 21) que legitimam a ordem social.
Para Bourdieu (1998BOURDIEU, Pierre. La domination masculine. Paris: Editions du Seuil, 1998.), a dominação masculina é uma constante através da história, mesmo se as formas que tomou mudaram (a esse respeito, ver também POESCHL, 2003POESCHL, Gabrielle. Inégalités sexuelles dans la mémoire collective et représentations des différences entre les sexes. Connexions, v. 80, p. 101-119, 2003.; POESCHL; MÚRIAS: COSTA, 2003POESCHL, Gabrielle; MÚRIAS, Cláudia; RIBEIRO, Raquel. As diferenças entre os sexos: mito ou realidade? Análise Psicológica , v. 2, p. 213-228, 2003.). Para ilustrar como essa dominação pode ser legitimada, o autor menciona a invenção pelos médicos de uma “natureza feminina”, antes da Revolução Industrial, que explica como o sexo (biológico) determina o corpo e a alma da mulher (cf. KNIBIEHLER, 2003KNIBIEHLER, Yvonne. Les médecins des Lumières et la “nature féminine”. In: MORINROTUREAU, Evelyne. (Org.). 1789-1799: Combats de femmes. Paris: Editions Autrement, 2003.p. 127-142.). Como Bourdieu (1998BOURDIEU, Pierre. La domination masculine. Paris: Editions du Seuil, 1998.) sublinha, as diferenças biológicas que caracterizam os corpos masculino e feminino não apenas justificaram (e ainda justificam) as diferenças que existem entre os sexos na estrutura social, mas foram socialmente interpretadas de modo a justificar a divisão sexual do trabalho e, por conseguinte, a legitimar as posições assimétricas dos homens e das mulheres na sociedade.
Segundo o autor (BOURDIEU, 1998BOURDIEU, Pierre. La domination masculine. Paris: Editions du Seuil, 1998.), mesmo tendo havido alguma progressão na situação social das mulheres, as relações assimétricas entre os sexos ainda são inscritas em duas categorias de habitus diferentes que levam a classificar os objectos, as disposições, expectativas e práticas em função de uma oposição entre o que é masculino e o que é feminino. Portanto, e de acordo com o princípio da homologia estrutural, as divisões sociais inscritas nos esquemas cognitivos continuam a organizar a percepção do mundo social e a justificar a posição social dos dominantes, assim como a posição social dos dominados.
Para Bourdieu (1998BOURDIEU, Pierre. La domination masculine. Paris: Editions du Seuil, 1998.), ao lado da igreja e da escola, a família assegura o trabalho de reprodução da ordem social através da experiência da divisão sexual do trabalho e a sua legitimação. Na família, as mulheres continuam a pensar o trabalho doméstico como uma actividade feminina, a considerar importante não dominar os maridos e mostrar a sua feminilidade (ser simpáticas, meigas, etc.). Reciprocamente, a necessidade de se diferenciar das mulheres induz os homens a manifestar os atributos socialmente definidos da virilidade (coragem, força, etc.) perante os outros e eles próprios.
Numa prolongação da divisão do trabalho entre maridos e mulheres na esfera privada, a divisão sexual do trabalho na esfera pública obedece a três princípios: as funções consideradas convenientes para as mulheres são ligadas ao cuidado, ensino e serviços; as mulheres devem ser mantidas nos escalões mais baixos da hierarquia profissional, dado que elas não podem dominar os homens; as profissões técnicas e o uso de máquinas são da competência dos homens. As mulheres não são conscientes desses princípios de divisão e isso explica que, à semelhança de outros grupos dominados, elas contribuem para a sua própria dominação.
Resumindo, para Bourdieu (1998BOURDIEU, Pierre. La domination masculine. Paris: Editions du Seuil, 1998.), os habitus são produzidos pela internalização das estruturas sociais e produzem percepções e práticas que justificam essas estruturas. O autor não desenvolve as diferenças interindividuais que podem existir no grupo dos homens ou no grupo das mulheres, apesar de, por vezes, as evocar.
De acordo com Bourdieu, a perspectiva posicional defende que as representações que orientam as práticas são desenvolvidas em grupos sociais que ocupam posições específicas na estrutura social e que, portanto, elas contribuem para a manutenção da ordem social. Contudo, essa perspectiva também se interessa pelas variações interindividuais nas representações formadas, partindo do princípio de que os indivíduos pertencem a vários grupos, comparam-se a diferentes grupos em diferentes situações sociais e têm experiências pessoais variadas.
A INVESTIGAÇÃO SOBRE A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR
Em conformidade com o fraco progresso observado para reduzir as posições assimétricas dos homens e das mulheres nas sociedades ocidentais modernas, os estudos conduzidos sobre a organização familiar mostram, de forma consistente, que as práticas familiares tradicionais não mudaram significativamente em consequência do ingresso em massa das mulheres no mercado de trabalho nos anos 1960: de acordo com a Organização Internacional do Trabalho, nas economias desenvolvidas, as mulheres passam uma média de 4 horas e 20 minutos por dia no trabalho familiar e os homens 2 horas e 16 minutos (INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION - ILO, 2016INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. Women at work. Trends 2016. Available at: <Available at: http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/---publ/documents/publication/wcms_457317.pdf
>, 2016. Access: March, 26, 2016.
http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/...
, p. 20; para uma revisão da literatura relevante, ver BIANCHI et al., 2012BIANCHI, Suzanne M. et al. Housework: who did, does or will do it, and how much does it matter? Social Forces , v. 91, p. 55-63, 2012.; COLTRANE, 2000COLTRANE, Scott. Research on household labor: modeling and measuring the social embeddedness of routine family work. Journal of Marriage and the Family , v. 62, p. 1208-1233, 2000.; THOMPSON; WALKER, 1989THOMPSON, Linda; WALKER, Alexis J. Gender in families: women and men in marriage, work, and parenthood. Journal of Marriage and the Family , v. 51, p. 845-871, 1989.; ver também EUROPEAN INSTITUTE FOR GENDER EQUALITY - EIGE, 2015EUROPEAN INSTITUTE FOR GENDER EQUALITY. Gender equality index 2015 report. Available at: <Available at: http://eige.europa.eu/rdc/eige-publications/gender-equality-index-2015-measuring-genderequality-european-union-2005-2012-report
>, 2015. Access: January 30, 2016.
http://eige.europa.eu/rdc/eige-publicati...
; ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT - OCDE, 2012ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. Closing the gender gap. OCDE.2012 Available at: <Available at: http://www.keepeek.com/Digital-Asset-Management/oecd/social-issuesmigration-health/close-the-gender-gap-now_9789264179370-en#page1
>. Access: March, 20, 2016.
http://www.keepeek.com/Digital-Asset-Man...
).
Alguns autores consideram que as mulheres consagram menos tempo às actividades domésticas na actualidade do que no passado, realçando que isso não se deve a uma maior participação dos maridos, mas sim a uma redução, pelas próprias mulheres, do tempo que dedicam a essas actividades (BIANCHI et al., 2000BIANCHI, Suzanne M. et al. Is anyone doing the housework? Social Forces, v. 79, p. 191-228, 2000.). Outros autores questionam esta diminuição do tempo de trabalho doméstico por parte das mulheres, defendendo que o tempo que era anteriormente despendido em coisas como lavar a roupa à mão ou fazer conservas é utilizado, hoje em dia, noutras tarefas ou na resposta a exigências maiores - lavar a roupa mais frequentemente, passar mais a ferro, confeccionar refeições mais sofisticadas, etc. (SHELTON; JOHN, 1996SHELTON, Beth A.; JOHN, Daphne. The division of household labor. Annual Review of Sociology, v. 22, p. 299-322, 1996.).
As mulheres não apenas assumem uma maior parte do trabalho doméstico, mas também executam quase inteiramente as tarefas “tipicamente femininas”, como a preparação das refeições ou o cuidado da roupa, tarefas que consomem mais tempo e precisam de ser realizadas com uma maior regularidade do que as tarefas “tipicamente masculinas”, como as reparações de objectos ou a manutenção do carro. As mulheres, comumente, dedicam também mais tempo do que os homens ao “trabalho emocional”, estando mais dispostas a exprimir preocupação ou a mostrar afecto aos outros, e encarregam-se geralmente do “trabalho relacional”, necessário para manter as relações na rede familiar (SMOCK; NOONAN, 2005SMOCK, Pamela J.; NOONAN, Mary C. Intersections: gender, work, and family research in the United States. In: BIANCHI, Suzanne M.; CASPER, Lynne M.; KING, Rosalind B. (Org.). Work, family, health and well-being. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum, 2005. p. 343-360.).
As mulheres assumem, ainda, a maior parte do trabalho parental, considerando-se - e sendo consideradas - como as principais responsáveis pelos filhos (BIANCHI et al., 2000BIANCHI, Suzanne M. et al. Is anyone doing the housework? Social Forces, v. 79, p. 191-228, 2000.). Apesar de serem cada vez mais as mulheres que exercem uma actividade profissional, mesmo quando são mães de crianças pequenas, as mulheres continuam a executar mais de metade das tarefas parentais e a estar mais em contacto com os filhos do que os pais (YEUNG et al., 2001YEUNG, Jean et al. Children’s time with fathers in intact families. Journal of Marriage and the Family , v. 63, p. 136-154, 2001).
Na actualidade, tem-se mais expectativas do que no passado de que os homens cuidem dos filhos e este facto reflecte-se num aumento do tempo que os pais dedicam às crianças (PLECK; MASCIADRELLI, 2004PLECK, Joseph H.; MASCIADRELLI, Brian P. Paternal involvement by U.S. residential fathers: levels, sources, and consequences. In: LAMB, Michael E. (Org.). The role of the father in child development. 4th. ed. New York: Wiley, 2004. p. 222-271.). Contudo, os pais envolvem-se sobretudo em actividades interactivas com os filhos, enquanto as mães continuam a encarregar-se das tarefas relacionadas com a limpeza e a alimentação (SMOCK; NOONAN, 2005SMOCK, Pamela J.; NOONAN, Mary C. Intersections: gender, work, and family research in the United States. In: BIANCHI, Suzanne M.; CASPER, Lynne M.; KING, Rosalind B. (Org.). Work, family, health and well-being. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum, 2005. p. 343-360.). Dado que os homens se mostram pouco desejosos de participar nas tarefas domésticas, a distribuição do trabalho familiar torna-se ainda mais desigual depois do nascimento dum primeiro filho (SINGLETON; MAHLER, 2004SINGLETON, Andrew; MAHER, JaneMaree. The “new man” is in the house: young men, social change, and housework. The Journal of Men’s Studies, v. 12, p. 227-240, 2004.).
Os autores que procuraram identificar as razões que poderiam explicar por que as práticas familiares tradicionais não mudam propuseram diferentes (mas não incompatíveis) explicações (COLTRANE, 2000COLTRANE, Scott. Research on household labor: modeling and measuring the social embeddedness of routine family work. Journal of Marriage and the Family , v. 62, p. 1208-1233, 2000.; MIKULA, 1998MIKULA, Gerold. Justice in the family: multiple perspectives in the division of labor: Introduction. Social Justice Research, v. 11, p. 211-213, 1998.; SHELTON; JOHN, 1996SHELTON, Beth A.; JOHN, Daphne. The division of household labor. Annual Review of Sociology, v. 22, p. 299-322, 1996.; SMOCK; NOONAN, 2005SMOCK, Pamela J.; NOONAN, Mary C. Intersections: gender, work, and family research in the United States. In: BIANCHI, Suzanne M.; CASPER, Lynne M.; KING, Rosalind B. (Org.). Work, family, health and well-being. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum, 2005. p. 343-360.; ver também POESCHL, 2010POESCHL, Gabrielle. Desigualdades na divisão do trabalho familiar, sentimento de justiça e processos de comparação social. Análise Psicológica, v. 1, p. 29-42, 2010.). Duas perspectivas pragmáticas levaram a resultados inconsistentes: a perspectiva “dos recursos relativos”, segundo a qual os homens proporcionam mais recursos à família e, tendo mais poder no casal, podem escolher não participar no trabalho familiar (GUPTA, 2006GUPTA, Sanjiv. Her money, her time: women’s earnings and their housework hours. Social Sciences Research, v. 35, p. 975-999, 2006.; EVERTSSON; NERMO, 2004EVERTSSON, Marie; NERMO, Magnus. Dependence within families and division of labor: comparing Sweden and the United States. Journal of Marriage and the Family , v. 66, p. 1272-1286, 2004.); a perspectiva “da disponibilidade de tempo”, segundo a qual os homens participam menos nas tarefas domésticas do que as mulheres porque passam mais tempo no emprego (PRESSER, 1994PRESSER, Harriet B. Employment schedules among dual-earner spouses and the division of household labor by gender. American Sociological Review, v. 59, p. 348-364, 1994.; KITTEROD; PETTERSEN, 2006KITTEROD, Ragni H.; PETTERSEN, Silje V. Making up for mothers’ employed working hours? Housework and childcare among Norwegian fathers. Work, Employment and Society, v. 20, p. 473-492, 2006.; ver também GOUGH; KILLEWALD, 2011GOUGH, Margaret; KILLEWALD, Alexandra. Unemployment in families. The case of housework. Journal of Marriage and Family, v. 73, p. 1085-1100, 2011. e AFONSO; POESCHL, 2006AFONSO, Rosa Marina; POESCHL, Gabrielle. Representaciones del impacto de la situación de desempleo en las prácticas familares. Revista de Psicología Social, v. 21, p. 241-258, 2006., no caso de desemprego).
Por outro lado, os autores que estudaram o efeito da “ideologia dos papéis de género”, segundo a qual a divisão desigual do trabalho doméstico é devida à internalização das crenças associadas aos papéis familiares, chegaram à conclusão de que os homens apenas participam mais no trabalho familiar quando os dois cônjuges são igualitaristas (GREENSTEIN, 1996GREENSTEIN, Theodore N. Husbands’ participation in domestic labor: Interactive effects of wives’ and husbands’ gender ideology. Journal of Marriage and the Family , v. 58, p. 585-595, 1996.), enquanto os autores, que enquadraram os seus estudos na perspectiva da “construção de género” (WEST; ZIMMERMAN, 1987WEST, Candace; ZIMMERMAN, Don H. Doing gender. Gender and Society, v. 1, p. 125-151, 1987.), sugeriram que a organização familiar tradicional constituiria, de facto, uma forma culturalmente apropriada para as pessoas exprimirem a sua essência feminina ou masculina. Eles mostraram que, nos casais não convencionais, em que as mulheres passam mais tempo no emprego ou têm rendimentos superiores aos dos maridos, os cônjuges interessam- se em desempenhar a quantidade de trabalho familiar consistente com o seu papel de género, de modo a compensar o seu desvio dos papéis tradicionais (GREENSTEIN, 2000GREENSTEIN, Theodore N. Economic dependence, gender, and the division of labor in the home: a replication and extension. Journal of Marriage and the Family , v. 62, p. 322-335, 2000.).
Na perspectiva das representações sociais, mostrámos que o melhor preditor da participação dos cônjuges nas tarefas domésticas era a sua percepção da forma como os outros casais da mesma geração dividiam as tarefas (POESCHL, 2000POESCHL, Gabrielle. Trabalho doméstico e poder familiar: práticas, normas, e ideais. Análise Social, v. 35, p. 695-719, 2000.). Assim, assumimos que a divisão do trabalho familiar entre maridos e mulheres é regulada por normas sociais que, em associação com um conjunto de crenças acerca dos traços de personalidade dos homens e das mulheres, ou dos papéis familiares tradicionais, formam representações que definem a forma correcta de os homens e as mulheres se comportarem (POESCHL; SILVA, 2001POESCHL, Gabrielle; SILVA, Aurora. Efeito das crenças nas diferenças entre sexos na percepção e no julgamento das práticas familiares. Psicologia, v. 15, p. 93-113, 2001.; POESCHL; SILVA; MÚRIAS, 2004POESCHL, Gabrielle; SILVA, Aurora; MÚRIAS, Cláudia. Papéis desejáveis e traços de personalidade apropriados: uma explicação motivacional. Psicologia e Educação, v. 3, p. 121-135, 2004.).
Essa perspectiva é consistente com a abordagem de Bourdieu (1998BOURDIEU, Pierre. La domination masculine. Paris: Editions du Seuil, 1998.), em que os habitus dos homens e das mulheres apresentam os sexos como dois mundos separados. Nesses mundos separados, e de acordo com Kranichfeld (1987KRANICHFELD, Marion L. Rethinking family power. Journal of Family Issues , v. 8, p. 42-56, 1987. ), o poder é considerado como dividido entre os sexos: as mulheres teriam o poder na esfera privada (um império dentro dum império) e os homens, na esfera pública. A motivação para preservar o seu poder na família poderia, portanto, explicar que as mulheres são motivadas para manter as práticas familiares tradicionais (POESCHL, 2007POESCHL, Gabrielle. What family organization tells us about fairness and power in marital relationships. Social and Personality Psychology Compass, v. 1, p. 557-571, 2007., 2010).
RELAÇÕES ENTRE OS SEXOS, REPRESENTAÇÕES DAS DIFERENÇAS ENTRE OS SEXOS E PRÁTICAS FAMILIARES
Para ilustrar a convergência entre as perspectivas de Doise e de Bourdieu, e como as relações sociais, as representações sociais e as práticas sociais se reforçam, descrevemos agora alguns dos estudos conduzidos em Portugal sobre as práticas familiares, que também salientam as diferentes fases do modelo proposto pela Escola de Genebra.
REPRESENTAÇÕES DAS TAREFAS FAMILIARES
Dado que mudanças podem ocorrer progressivamente na organização familiar, num primeiro estudo, começámos por identificar as tarefas que as pessoas consideram constituir, actualmente, o trabalho familiar e por examinar se essas tarefas eram distribuídas em grandes domínios de actividade que poderiam constituir zonas de competências dos maridos e das mulheres (POESCHL et al., 2001POESCHL, Gabrielle et al. Representações das tarefas familiares. Cadernos de Consulta Psicológica, v. 17/18, p. 161-170, 2001.-2). Com este objectivo, pedimos a 120 adultos, metade homens, metade mulheres, metade solteiros, metade casados, de responder a um questionário em que deviam indicar até 18 tarefas que lhes vêm à mente quando pensam no trabalho familiar e, de seguida, de indicar até 18 tarefas que lhes vêm à mente quando pensam ou no trabalho doméstico (primeira metade dos questionários) ou no trabalho parental (segunda metade dos questionários). Pedimos ainda aos respondentes de avaliar cada tarefa mencionada, numa escala de 7 pontos (1 = pouco; 7 = muito), em termos de: a) tempo gasto na sua realização; b) prazer que proporciona; c) importância que tem na organização familiar.
No conjunto, foram obtidas 2141 respostas, de entre as quais havia 237 tarefas diferentes, com uma frequência de evocação entre 1 e 129. Foram evocadas 190 tarefas diferentes para o trabalho familiar, 139 para o trabalho parental e 90 para o trabalho doméstico. O índice Rn de Ellegard revelou semelhança nas respostas dos homens e das mulheres e nas respostas dos respondentes solteiros e casados (mais de metade das tarefas eram idênticas).
As 54 tarefas evocadas por pelo menos 10% dos respondentes confirmam as tipologias propostas na literatura (HERLA, 1987HERLA, Geneviève. Partage des responsabilités familiales, attitudes et comportements effectifs. Les Cahiers de Psychologie Sociale, v. 35, p. 9-50, 1987.; TOUZARD, 1967TOUZARD, Hubert. Enquête psychosociologique sur les rôles conjugaux et la structure familiale. Paris: CNRS, 1967.): as 12 tarefas que pertencem predominantemente ao trabalho familiar referiam principalmente cuidar das propriedades da família, como o jardim, os animais domésticos e os carros; fazer as reparações, pagar as contas, assim como ir às compras. De um modo geral, elas correspondem às actividades tradicionalmente masculinas “de manutenção”. As 23 tarefas que pertencem predominantemente ao trabalho doméstico referiam preparar as refeições, cuidar da roupa, arrumar a casa, limpar o pó, por outras palavras, tarefas que são geralmente vistas como a cargo das mulheres.
Por último, as 19 tarefas que pertencem predominantemente ao trabalho parental estavam relacionadas com a educação dos filhos, actividades como conversar, partilhar os tempos livres, ajudar nas tarefas escolares, transportar os filhos, cuidar da sua saúde, demonstrar carinho, tarefas geralmente realizadas pelas mulheres, assim como trabalhar fora de casa para sustentar a família, que usualmente faz parte do papel tradicional masculino.
Reduzimos a totalidade das 237 tarefas diferentes mencionadas pelos respondentes, incluindo respostas específicas em respostas mais genéricas (limpar os quartos foi incluído em arrumar a casa; dobrar a roupa em cuidar da roupa, etc.) e obtivemos assim 41 tipos de tarefas: 7 tarefas de manutenção, 20 tarefas domésticas e 14 tarefas parentais. A avaliação dos três tipos de tarefas em termos de tempo gasto na sua realização, prazer que proporcionam e importância que têm na organização familiar é apresentada na Tabela 1.
Como se pode ver na Tabela 1, as tarefas parentais foram percepcionadas como sendo as que gastam mais tempo e as mais gratificantes, seguidas pela tarefas de manutenção e logo pelas tarefas domésticas (todas as diferenças significativas, p < .001). As tarefas parentais foram também consideradas mais importantes (p < .001) do que as tarefas de manutenção e domésticas.
As análises da variância aplicadas sobre as avaliações dos três tipos de tarefas para testar o efeito do sexo e do estado civil dos participantes não revelaram um efeito do estado civil. Mostraram, contudo, um efeito do sexo dos participantes no que respeita às três avaliações das tarefas domésticas. Como se pode ver no Gráfico 1, em comparação com os homens, as mulheres avaliaram essas tarefas não apenas como sendo mais importantes, F (1, 106) = 5.80; p = .018, e gastando mais tempo, F (1, 106) = 5.72, p = .018, o que é consistente com o seu envolvimento nesses tipos de tarefas, mas também consideraram que proporcionam mais prazer F (1, 106) = 4.27, p = .041.
TAREFAS DOMÉSTICAS. AVALIAÇÃO DA SUA IMPORTÂNCIA NA ORGANIZAÇÃO FAMILIAR, DO TEMPO QUE NECESSITAM E DO PRAZER QUE PROPORCIONAM, DE ACORDO COM HOMENS E MULHERES
No conjunto, esses resultados sugerem que os homens e as mulheres concordam que o trabalho familiar consiste em diferentes tipos de tarefas, em que os cônjuges participam provavelmente mais ou menos. Os jovens solteiros têm uma representação das tarefas familiares que não é diferente da representação dos adultos casados, o que significa que são socializados para as reproduzir. Curiosamente, as mulheres solteiras partilham com as mulheres casadas uma representação mais positiva das tarefas domésticas, o que permite predizer que elas são mais susceptíveis de as desempenhar do que os homens solteiros e casados. Em termos da teoria das representações sociais, podemos concluir que existem opiniões partilhadas sobre o que constitui o trabalho familiar.
DISTRIBUIÇÃO DAS TAREFAS ENTRE CÔNJUGES, SENTIMENTOS DE JUSTIÇA E SATISFAÇÃO E CRENÇA NA EXISTÊNCIA DE DIFERENÇAS NATURAIS ENTRE OS SEXOS
Prosseguimos com a análise das representações das práticas familiares num estudo mais abrangente (POESCHL et al., 2006POESCHL, Gabrielle et al. Representations of family practices, belief in sex differences and sexism. Sex Roles, v. 55, p. 111-121, 2006.; ver também POESCHL, 2008) em que, entre outros, examinámos como as pessoas pensam que os diferentes tipos de tarefas familiares são divididos entre homens e mulheres na actualidade, se eles consideram essa divisão justa e satisfatória, e se eles acreditam que a existência de diferenças entre os sexos justifica a divisão do trabalho familiar.
Nesse estudo, 221 respondentes completaram um questionário, que tinha três versões. Na versão que apresentamos aqui, pediu-se a 71 respondentes de ambos os sexos, solteiros, casados e divorciados, para indicarem, numa escala de 10 pontos (1 = 0-10%; 10 = 90-100%), a percentagem de participação dos maridos e das mulheres na execução de 30 tarefas, escolhidas de entre as tarefas domésticas, parentais e de manutenção mencionadas no estudo prévio (POESCHL et al., 2001POESCHL, Gabrielle et al. Representações das tarefas familiares. Cadernos de Consulta Psicológica, v. 17/18, p. 161-170, 2001.-2). Foram ainda convidados a indicar em que medida consideram a participação dos cônjuges justa (1 = totalmente justa; 7 = totalmente injusta) e satisfatória (1 = totalmente insatisfatória; 7 = totalmente satisfatória) e a exprimir a sua opinião (1 = discordo totalmente; 7 = concordo totalmente) com quatro proposições relativas a diferenças “naturais” entre os sexos (diferenças de competências, de actividades, de interesses e diferenças psicofisiológicas).
Os resultados indicaram que os inquiridos consideravam que os maridos trabalham globalmente menos em casa do que as mulheres (maridos: 4.89; mulheres: 6.38) e que, de modo geral, a participação dos cônjuges era mais elevada nas tarefas parentais do que nas tarefas de manutenção ou nas tarefas domésticas (tarefas parentais: 6.09; tarefas de manutenção: 5.45; tarefas domésticas: 5.37). Além disso, como se pode ver no Gráfico 2, a participação dos maridos era vista como mais elevada nas tarefas de manutenção do que nas tarefas parentais e mais elevada nas tarefas parentais do que nas tarefas domésticas. Pelo contrário, a participação das mulheres era vista como superior nas tarefas domésticas do que nas tarefas parentais e superior nas tarefas parentais do que nas tarefas de manutenção (ver POESCHL, 2008POESCHL, Gabrielle. Social norms and the feeling of justice about unequal family practices. Social Justice Research , v. 21, p. 69-85, 2008.). Assim, ao apoio da nossa interpretação dos resultados do estudo prévio, as pessoas consideravam que as mulheres participavam mais do que os maridos nas actividades domésticas e parentais, enquanto o contributo dos maridos era maior do que o das mulheres nas actividades de manutenção (todas as diferenças significativas, p < .001).
PARTICIPAÇÃO MÉDIA DOS MARIDOS E DAS MULHERES NOS TRÊS TIPOS DE TAREFAS NUM CONTEXTO DE COMPARAÇÃO ENTRE MARIDO E MULHER (1 = 0-10%; 10 = 90-100%)
(ver Gráfico 3). Quanto ao papel familiar comunal, a mesma interacção revelou que as mulheres consideravam o papel comunal como menos apropriado para os maridos do que o consideravam os homens (ver Gráfico 4).
No que respeita às tarefas de manutenção, os resultados revelaram ainda que, ao contrário dos respondentes solteiros, as mulheres casadas e divorciadas não diferenciavam o contributo dos maridos e das mulheres nessas tarefas. Com efeito, as mulheres divorciadas estimaram a participação feminina nas tarefas de manutenção mais elevada do que o fizeram os homens divorciados (mulheres: 5.33; homens: 3.67), t (15) = 2.35, p = .033, e as mulheres casadas avaliaram a participação dos maridos como mais fraca do que o fizeram os homens casados (mulheres: 5.02; homens: 6.76), t (22) = 2.24, p = .036.
Relativamente às tarefas domésticas, os homens casados diferenciaram- se dos outros homens ao estimar a participação dos maridos nas tarefas domésticas particularmente fraca (casados: 1.69; solteiros: 2.89; divorciados: 2.79), F (2, 33) = 5.04, p = .012, e a participação das mulheres particularmente forte (casados: 9.18; solteiros: 7.83; divorciados: 7.52), F (2, 31) = 5.20, p = .011. Nesse aspecto, os homens casados também diferiram das mulheres casadas, que declararam que a participação dos maridos era maior (3.55), t (22) = 2.33, p = .029, e a participação das mulheres, menor (6.77), t (22) = 2.52, p = .020.
Um maior consenso caracterizou a avaliação das tarefas parentais, a favor dum maior contributo das mulheres do que dos homens. Foi observada, contudo, uma única excepção: os homens divorciados não consideraram que existe uma diferença significativa na participação dos dois cônjuges nessas tarefas (homens: 5.15; mulheres: 6.08), t (7) = 1.36, ns.
Verifica-se, assim, que: a) os homens divorciados estão motivados para dar visibilidade ao contributo dos maridos nas tarefas parentais, não diferenciando o contributo dos cônjuges nestas tarefas; b) as mulheres casadas ou divorciadas são relutantes a reconhecer uma esfera especificamente masculina no trabalho familiar, avaliando de forma semelhante o contributo dos maridos e das mulheres nas tarefas de manutenção; c) os homens casados, de acordo com estudos realizados por outros autores (MÜLLER, 1998MÜLLER, Ursula. The micropolitics of gender differences in family life. In: FERREIRA, V.; TAVARES, T.; PORTUGAL, S. (Org.). Shifting bonds, shifting bounds. Oeiras: Celta, 1998. p. 329-344.), parecem motivados para mostrar a sua conformidade à norma social, segundo a qual, em casa, o trabalho doméstico não cabe ao homem.
Justiça e satisfação com a distribuição desigual do trabalho familiar
Quando compararam a participação dos maridos e das mulheres no trabalho familiar, os respondentes declararam a distribuição das tarefas relativamente justa (4.79). Não se encontrou uma diferença significativa entre homens e mulheres, mas os respondentes solteiros consideraram essa participação mais injusta do que os outros respondentes (solteiros: 4.04, casados: 5.16; divorciados: 5.44), F (2, 65) = 3.55, p = .034, ambas as diferenças significativas, p < .05.
Relativamente ao sentimento de satisfação, a média geral revelou também a satisfação com a forma como os cônjuges partilham as tarefas familiares (4.50). Não se encontrou uma diferença significativa em função do estado civil, mas os homens acharam as contribuições dos cônjuges mais satisfatórias do que as mulheres (homens: 5.03; mulheres: 3.96), F (1, 65) = 6.93, p = .011.
Assim, de acordo com as conclusões de outros autores (BAXTER; WESTERN, 1998BAXTER, Janeen; WESTERN, Mark. Satisfaction with housework: examining the paradox. Sociology, v. 32, p. 101-120, 1998.; MIKULA, 1998MIKULA, Gerold. Justice in the family: multiple perspectives in the division of labor: Introduction. Social Justice Research, v. 11, p. 211-213, 1998.; MÜLLER, 1998MÜLLER, Ursula. The micropolitics of gender differences in family life. In: FERREIRA, V.; TAVARES, T.; PORTUGAL, S. (Org.). Shifting bonds, shifting bounds. Oeiras: Celta, 1998. p. 329-344.; ROUX, 1999ROUX, Patricia. Couple et égalité: un ménage impossible. Lausanne: Réalités sociale, 1999.; ver também POESCHL, 2010POESCHL, Gabrielle. Desigualdades na divisão do trabalho familiar, sentimento de justiça e processos de comparação social. Análise Psicológica, v. 1, p. 29-42, 2010.), as mulheres consideram a distribuição desigual das tarefas familiares menos satisfatória, mas não menos justa do que os homens. Além disso, uma experiência de casamento leva as mulheres, assim como os homens, a considerar as desigualdades entre cônjuges mais justas.
Crença na existência de diferenças naturais entre os sexos
Quando indicaram se as diferenças na participação dos cônjuges no trabalho familiar poderiam ser justificadas pela crença que existem todos os tipos de diferenças entre os sexos, e de acordo com resultados obtidos em estudos prévios, como, por exemplo, Poeschl e Silva (2001POESCHL, Gabrielle et al. Representações das tarefas familiares. Cadernos de Consulta Psicológica, v. 17/18, p. 161-170, 2001.), observámos que os homens como as mulheres manifestaram uma forte crença na existência de tais diferenças (5.24 numa escala de sete pontos). Além disso, quando maridos e mulheres foram comparados, não houve diferenças no grau de crença consoante o estado civil, mas os homens declararam acreditar mais do que as mulheres na existência de diferenças entre os sexos (homens: 5.74; mulheres: 4.72), F (1, 65) = 16.28, p < .001. Parece assim razoável pensar que a crença na existência de diferenças “naturais” entre os sexos justifica eficazmente as práticas familiares tradicionais.
Se as mulheres não consideram menos que os homens que a divisão do trabalho familiar é justa, pode ser porque elas internalizaram a ideia de que os cônjuges devem desempenhar papéis familiares diferenciados e pensam que é a sua função de adoptar o papel feminino tradicional, como Bourdieu (1998BOURDIEU, Pierre. La domination masculine. Paris: Editions du Seuil, 1998.) também sugeriu. Contudo, se elas acham essa divisão menos satisfatória, poderá ser porque elas consideram o resultado dessa diferenciação mais favorável para os homens do que para as mulheres e julgam que as diferenças “naturais” entre homens e mulheres são menores do que os homens o julgam. As representações dos papéis familiares desejáveis foram, portanto, objecto duma análise posterior.
PAPÉIS FAMILIARES DESEJÁVEIS
Para testar a nossa interpretação da pertinência de papéis familiares diferenciados para maridos e mulheres, pedimos a 205 respondentes, solteiros, casados e divorciados, metade homens e metade mulheres, de se exprimir, entre outros, acerca de oito afirmações relativas às funções apropriadas para os homens e as mulheres na família (POESCHL; SILVA; MÚRIAS, 2004POESCHL, Gabrielle; SILVA, Aurora; MÚRIAS, Cláudia. Papéis desejáveis e traços de personalidade apropriados: uma explicação motivacional. Psicologia e Educação, v. 3, p. 121-135, 2004.).
A análise factorial em componentes principais aplicada sobre as respostas relativas à desejabilidade de os homens e as mulheres adoptarem os comportamentos propostos extraiu dois factores. O primeiro factor reuniu comportamentos tradicionalmente associados ao papel comunal feminino, tal como mostrar dedicação para com a família, dar às crianças todos os cuidados de que precisam, ou cuidar do lar e do bem-estar da família. O segundo factor agrupou comportamentos tradicionalmente associados ao papel agêntico masculino, como ser o chefe de família a quem as crianças obedecem, tomar as decisões importantes que dizem respeito aos membros da família ou trabalhar para sustentar a família.
Os resultados revelaram que o papel familiar agêntico era considerado mais apropriado para os maridos do que para as mulheres (maridos: 5.83; mulheres: 5.40) e o papel familiar comunal, mais apropriado para as mulheres do que para os maridos (maridos: 5.39; mulheres: 5.93). A comparação das respostas em função do sexo e do estado civil não revelou qualquer efeito de estado civil, mas a interacção entre o sexo dos respondentes e o sexo do cônjuge descrito indicou que os homens, mais do que as mulheres, consideravam o papel agêntico apropriado para os maridos, enquanto as mulheres, mais do que os homens, consideravam este papel apropriado para as mulheres (ver Gráfico 3). Quanto ao papel familiar comunal, a mesma interacção revelou que as mulheres consideravam o papel comunal como menos apropriado para os maridos do que o consideravam os homens (ver Gráfico 4).
DESEJABILIDADE DO PAPEL FAMILIAR AGÊNTICO PARA OS DOIS CÔNJUGES (1 = TOTALMENTE INDESEJÁVEL; 7 = TOTALMENTE DESEJÁVEL), DE ACORDO COM OS HOMENS E AS MULHERES
DESEJABILIDADE DO PAPEL FAMILIAR COMUNAL PARA OS DOIS CÔNJUGES (1 = TOTALMENTE INDESEJÁVEL; 7 = TOTALMENTE DESEJÁVEL), DE ACORDO COM OS HOMENS E AS MULHERES
No conjunto, esses resultados mostram que as mulheres concordam com uma diferenciação desejável dos papéis familiares entre cônjuges, e consideram, em particular, o papel comunal, tradicionalmente feminino, menos apropriado para os maridos. Assim, as mulheres parecem ter internalizado a diferenciação de papéis familiares entre cônjuges, e nem uma experiência de casamento nem o desempenho do papel feminino tradicional modifica o seu apoio à clara divisão dos papéis na família que justifica o contributo desigual dos cônjuges para o trabalho familiar.
Esse resultado apoia a perspectiva dos autores que defendem que as mulheres não têm a mesma motivação para estabelecer a igualdade na família do que para a instaurar no mundo profissional (LARSON; RICHARDS; PERRY-JENKINS, 1994LARSON, Reed W.; RICHARDS, Maryse H.; PERRY-JENKINS, Maureen. Divergent worlds: the daily emotional experience of mothers and fathers in the domestic and public spheres. Journal of Personality and Social Psychology, v. 67, p. 1034-1046, 1994.; FERREE, 1991FERREE, Myra M. The gender division of labor in two-earner marriages: dimensions of variability and change. Journal of Family Issues , v. 12, p. 158-180, 1991.) e isto, de acordo com Kranichfeld (1987KRANICHFELD, Marion L. Rethinking family power. Journal of Family Issues , v. 8, p. 42-56, 1987. ), poderia ser porque o desempenho do papel familiar tradicional dá às mulheres o sentimento de que elas têm o poder na esfera privada.
Podemos concluir, portanto, que as crenças associadas aos comportamentos normativos dos homens e das mulheres organizam as percepções das pessoas e orientam as suas práticas - ver também Poeschl (2007POESCHL, Gabrielle. What family organization tells us about fairness and power in marital relationships. Social and Personality Psychology Compass, v. 1, p. 557-571, 2007.) - ou, em conformidade com a perspectiva de Bourdieu, que as diferenças biológicas entre homens e mulheres são socialmente interpretadas para justificar a divisão sexual do trabalho e, por conseguinte, para legitimar as posições assimétricas dos homens e das mulheres na sociedade. Segundo a perspectiva posicional de Doise (1992DOISE, Willem; CLÉMENCE, Alain; LORENZI-CIOLDI, Fabio. Représentations sociales et analyses de données. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 1992.), deveria haver, no entanto, variações nas crenças individuais, ancoradas em diferentes realidades colectivas, que deveriam produzir variações nas práticas adoptadas.
EFEITO DAS CRENÇAS NAS DIFERENÇAS ENTRE OS SEXOS NAS PRÁTICAS FAMILIARES
Por causa da observação de que muitas mulheres não se sentem motivadas para partilhar igualitariamente o trabalho familiar, Allen e Hawkins (1999ALLEN, Sarah M.; HAWKINS, Alan J. Maternal gatekeeping: mothers’ beliefs and behaviors that inhibit greater father involvement in family work. Journal of Marriage and the Family, v. 61, p. 199-212, 1999.) propuseram que a resistência das mulheres à participação dos maridos no trabalho familiar está baseada num conjunto de crenças e de comportamentos que inibem o trabalho familiar colaborativo entre cônjuges, nomeadamente em três tipos de factores: a) a relutância das mulheres em abandonarem a responsabilidade do trabalho familiar, que as leva a controlar e escolher as tarefas que os maridos podem ou não podem realizar, invocando a falta de competência masculina; b) a importância para as mulheres de comprovar a sua feminilidade ao executar o trabalho familiar e a percepção de o envolvimento masculino ser uma ameaça à validação da identidade feminina; c) concepções tradicionais acerca da divisão dos papéis familiares que deveriam ser desempenhados pelos cônjuges, que reflectem tarefas e esferas de influência distintas na família (a esse respeito, ver também FAGAN; BARNETT, 2003FAGAN, Jay; BARNETT, Marina. The relationship between maternal gatekeeping, paternal competence, mothers’ attitudes about the father role, and father involvement. Journal of Family Issues, v. 24, p. 1020-1043, 2003.; POESCHL, 2007POESCHL, Gabrielle. What family organization tells us about fairness and power in marital relationships. Social and Personality Psychology Compass, v. 1, p. 557-571, 2007.).
Para ilustrar a importância das variações interindividuais nos grupos sociais salientadas pela perspectiva posicional, reanalisámos os dados recolhidos por Oliveira (2010OLIVEIRA, Natércia. Representações sociais de género e o seu impacto nas práticas familiares. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Porto, Porto, 2010.) através de um questionário, e examinámos o impacto sobre as práticas familiares das variações na crença na existência de diferenças “naturais” entre os sexos e na desejabilidade dos papéis familiares.
Respondentes
Os respondentes, neste estudo, foram uma subamostra de 148 adultos casados portugueses, 76 homens e 72 mulheres, com idade entre os 24 anos e os 71 anos (46 anos em média), todos com filhos e sendo casados entre um e 49 anos (22 anos em média). Havia 29 desempregados, 44 pessoas a exercer cargos de direcção ou funções intermediárias de chefia, e 75 pessoas a exercer funções operacionais, que passavam, em média, 35 horas por semana no emprego. Relativamente às habilitações literárias, 22 respondentes possuíam habilitações superiores, 34 ao nível do 12º ano, 35 do 9º ano e 56 ao nível do 4º ano de escolaridade. A maior parte dos respondentes (134) assumiram-se como católicos. Quanto à tendência política, 45 declararam-se de esquerda, 20 do centro, 28 de direita e os outros sem orientação política.
Os respondentes, que tinham sido recrutados pela investigadora, completaram o questionário individualmente ou em pequenos grupos, depois de terem aceitado participar no estudo.
Questionário
Duas versões do mesmo questionário foram utilizadas neste estudo: uma para os respondentes masculinos e outra para os respondentes femininos. Em primeiro lugar, os respondentes deviam avaliar, em percentagem, o seu grau de participação e o grau de participação do seu cônjuge em oito tarefas domésticas, oito tarefas parentais e oito tarefas de manutenção, escolhidas de entre as tarefas frequentemente mencionadas em estudos prévios. De seguida, os itens propostos pela primeira dimensão - padrões e responsabilidade - e pela segunda dimensão - confirmação da identidade maternal - da escala de maternal gatekeeping (ALLEN; HAWKINS, 1999ALLEN, Sarah M.; HAWKINS, Alan J. Maternal gatekeeping: mothers’ beliefs and behaviors that inhibit greater father involvement in family work. Journal of Marriage and the Family, v. 61, p. 199-212, 1999.) eram apresentados. As mulheres deviam indicar em que medida os itens se aplicam a elas (1 = nada a ver comigo; 5 = tudo a ver comigo), enquanto os homens deviam indicar em que medida os itens se aplicam às suas mulheres (1 = nada a ver com ela; 5 = tudo a ver com ela). Por último, os respondentes deviam exprimir a sua opinião (1 = discordo totalmente; 7 = concordo totalmente) acerca dos itens da terceira dimensão - diferenciação dos papéis familiares - da escala de maternal gatekeeping, acerca de quatro proposições referentes às diferenças “naturais” entre os sexos (POESCHL; SILVA, 2001POESCHL, Gabrielle et al. Representações das tarefas familiares. Cadernos de Consulta Psicológica, v. 17/18, p. 161-170, 2001.), e acerca de seis itens destinados a avaliar a justiça e a satisfação com a divisão das tarefas familiares (POESCHL et al., 2006POESCHL, Gabrielle et al. Representations of family practices, belief in sex differences and sexism. Sex Roles, v. 55, p. 111-121, 2006.).
Análise dos dados
Em primeiro lugar, procurámos diferentes posições acerca das crenças na existência de diferenças naturais entre os sexos e na desejabilidade de papéis familiares diferenciados. De seguida, examinámos se essas posições estavam relacionadas com: a) variáveis sociodemográficas particulares (sexo, idade, número de anos de casamento, número de filhos, profissão, número de horas passadas no emprego, escolaridade, religião, orientação política); b) variações na relutância das mulheres em abandonarem a responsabilidade das tarefas familiares e na importância de comprovar a sua feminilidade ao executar o trabalho familiar; c) diferenças na proporção de trabalho familiar efectivamente realizada pelos cônjuges; d) variações nos sentimentos de justiça e satisfação relativamente à divisão do trabalho familiar.
Resultados
Com o objectivo de identificar diferentes posições acerca das crenças na existência de diferenças naturais entre os sexos e na desejabilidade de papéis familiares diferenciados, aplicámos uma análise de classificação automática sobre as respostas ao terceiro factor da escala de maternal gatekeeping, papéis familiares diferenciados (alfa de Cronbach: .59), e à escala de crença na existência de diferenças naturais entre os sexos (alfa de Cronbach: .61).
Encontrámos três clusters, que correspondem a três posições distintas (ver Tabela 2).
Pode-se observar na tabela que o terceiro cluster agrupa os respondentes que acreditam que os homens e as mulheres são muito diferentes e deveriam desempenhar papéis muito diferenciados. O primeiro cluster reúne respondentes que não se posicionam claramente sobre a existência de diferenças entre os sexos, mas rejeitam a diferenciação de papéis familiares, enquanto os respondentes que fazem parte do segundo italic>cluster não se diferenciam dos respondentes do primeiro cluster relativamente às diferenças entre os sexos, mas aceitam numa maior medida a ideia de uma diferenciação de papéis familiares.
Características sociodemográficas
A análise das características sociodemográficas dos respondentes partilhando as três posições não revelou diferenças significativas em função do sexo de pertença, χ2 (2) = 4.48, ns, nem em função das outras variáveis em teste, à excepção da escolaridade, χ2 (6) = 19.06, p = .004. Assim, os 56 respondentes com baixa escolaridade (até o 6º ano) eram mais numerosos do que esperado no terceiro cluster (n = 32) e menos numerosos no primeiro cluster (n = 10). Pelo contrário, os 23 respondentes com formação superior eram mais numerosos do que esperado no primeiro cluster (n = 12) e quase ausentes do terceiro cluster (n = 4). Podemos, portanto, inferir que o nível de escolaridade influencia as crenças subjacentes à divisão das funções na família.
Responsabilidade e feminilidade
As respostas dos respondentes pertencendo aos três clusters sobre os dois primeiros factores da escala de maternal gatekeeping, ou seja, padrões e responsabilidade (alfa de Cronbach: .79) e confirmação da identidade maternal (alfa de Cronbach: .73) foram comparadas.
Como se pode constatar na Tabela 3, as variações nas representações associadas aos dois sexos estiveram ligadas a variações no grau de controlo das mulheres sobre o trabalho familiar e na importância que este trabalho reveste para a validação da sua feminilidade.
Como se pode ver na Tabela 3, nas famílias dos respondentes incluídos no terceiro cluster (elevado nível de percepção de dissemelhanças entre os sexos), as mulheres eram mais susceptíveis de controlar o trabalho familiar (frequentemente refazendo algumas tarefas domésticas feitas pelos maridos ou preferindo fazê-las elas próprias), F (2, 145) = 22.73, p < .001), do que nas famílias dos outros respondentes, enquanto, nas famílias dos respondentes incluídos no primeiro cluster (baixo nível de percepção de dissemelhanças entre os sexos), as mulheres eram menos desejosas de mostrar a sua feminilidade através da execução do trabalho familiar, F (2, 145) = 12.14, p < .001), do que nas famílias dos outros respondentes. Segundo os respondentes incluídos no segundo cluster, as mulheres não sentiam tanta necessidade de controlar o trabalho familiar, mas eram de certo modo inclinadas a mostrar a sua feminilidade através da execução do trabalho familiar, tal como proposto pela perspectiva da “construção de género” (WEST; ZIMMERMAN, 1987WEST, Candace; ZIMMERMAN, Don H. Doing gender. Gender and Society, v. 1, p. 125-151, 1987.).
Grau de participação nas tarefas familiares consoante os três clusters
Examinámos a participação efectiva dos cônjuges nos dois tipos de tarefas familiares de acordo com os respondentes dos três clusters. A percentagem de participação é registada na Tabela 4.
Como previsto, nas famílias dos respondentes incluídos no primeiro cluster, os maridos participavam mais nas tarefas domésticas, F (2, 145) = 5.61, p = .004, e contribuíam mais para as tarefas parentais, F (2, 145) = 3.71, p = .027, do que os maridos nas famílias dos respondentes do terceiro cluster. Além disso, nas famílias dos respondentes reunidos no primeiro cluster, as mulheres participavam menos nas tarefas domésticas, F (2, 145) = 9.84, p < .001, do que as mulheres nas famílias dos respondentes dos dois outros clusters e contribuíam menos para as tarefas parentais, F (2, 145) = 4.39, p = .014, do que as mulheres nas famílias dos respondentes do terceiro cluster.
Podemos constatar, no entanto, que a participação dos maridos nas tarefas domésticas era fraca em todos os casos e era inferior a 50% nas tarefas parentais. Os maridos contribuíam mais do que as mulheres apenas para as tarefas de manutenção masculinas, e não havia diferenças no grau de participação nessas tarefas em função dos três clusters, todos os Fs < 1.
Sentimentos de justiça e satisfação com a divisão do trabalho familiar
A análise realizada para saber se existiam variações nos sentimentos de justiça e satisfação com a divisão do trabalho familiar adoptada pelos respondentes não revelou diferenças significativas em função dos três clusters, all Fs < 1. Os dados registados na Tabela 5 indicam ainda que todos os tipos de divisão do trabalho familiar foram considerados justos e satisfatórios pelos cônjuges que os adoptaram.
Em conformidade com a perspectiva posicional das representações sociais, esses resultados indicam que variações interindividuais nas crenças na existência de diferenças naturais entre os sexos e na desejabilidade de papéis familiares diferenciados estão associados a diferenças nas posições acerca do trabalho familiar e nas práticas familiares efectivas. Contudo, eles também mostram que pouco progresso para a divisão igualitária do trabalho familiar entre maridos e mulheres foi alcançado, dado que as mulheres continuam a assegurar a maior parte do trabalho doméstico e parental. Uma internalização das estruturas sociais parece com efeito produzir, como Bourdieu defende, percepções e práticas que justificam essas estruturas mesmo se a escolaridade produz algumas mudanças nas representações formadas e, consequentemente, na divisão desigual do trabalho familiar.
OBSERVAÇÕES CONCLUSIVAS
De acordo com o modelo trifásico da perspectiva posicional, os estudos mostram que há pontos de referência comuns nas representações das práticas familiares. Com efeito, as pessoas concordam sobre a composição do trabalho familiar e a divisão tradicional das tarefas entre homens e mulheres: as mulheres devem assumir as tarefas domésticas e parentais e os maridos, as tarefas de manutenção. Os jovens solteiros partilham a representação das pessoas casadas, o que sugere que eles são susceptíveis de reproduzir as práticas familiares tradicionais, e as ligeiras diferenças observadas entre homens casados e mulheres casadas apontam para uma inclinação a se conformar às práticas tradicionais: comparados com as mulheres, os homens casados consideram que a participação dos maridos nas tarefas domésticas é mais reduzida; e, comparadas com os homens, as mulheres casadas consideram que elas contribuem mais para todos os componentes do trabalho familiar.
Em conformidade com Bourdieu, os cônjuges encontram um sentido nas práticas familiares tradicionais, apesar de reconhecerem a desigualdade na divisão das tarefas familiares entre maridos e mulheres: as mulheres consideram, mais do que os homens, que as tarefas domésticas proporcionam prazer e, uma vez casadas, concordam com os homens sobre a relativa justiça da distribuição do trabalho familiar. Elas concordam também com os homens sobre a desejabilidade da divisão tradicional dos papéis familiares, que justifica a distribuição desigual do trabalho familiar, e consideram mesmo, mais do que os homens, que o papel comunal feminino é pouco apropriado para os maridos. Por outro lado, os homens são mais susceptíveis do que as mulheres de justificar o papel das mulheres na família com base na existência de diferenças naturais entre os sexos.
Assim, os resultados sobre a representação das práticas familiares apoiam a perspectiva de Doise, segundo a qual inserções sociais comuns introduzem variações em algumas dimensões de uma representação social globalmente partilhada. Dado que as interacções ocorrem tanto entre homens como entre mulheres, e dadas as suas respectivas experiências da vida familiar, as mulheres apoiam o papel comunal das mulheres e os homens justificam as desigualdades na organização familiar invocando diferenças “naturais” entre os sexos. Ambos os pontos de vista legitimam e orientam as práticas dos grupos, reflectem as suas posições na sociedade e contribuem para a sua manutenção.
De forma semelhante, os resultados podem ser interpretados nos termos do quadro conceptual de Bourdieu, segundo o qual as pessoas têm pontos de vista diferentes sobre espaço social, que dependem da sua própria posição neste espaço. As estruturas sociais parecem, com efeito, ser incorporadas nos habitus dos homens e das mulheres, e funcionar como esquemas de percepção, pensamento e acção. A classificação das disposições e práticas opondo o que é masculino e o que é feminino orienta os comportamentos na família, justifica a divisão das tarefas familiares e justifica a ordem social.
Por último, uma análise das variações no nível de adesão às crenças na existência de diferenças entre os sexos e na desejabilidade de papéis familiares diferenciados revela o efeito dessas crenças sobre as opiniões dos homens e das mulheres relativamente às práticas familiares e sobre o seu contributo efectivo para o trabalho familiar. Com efeito, um grau de crença mais baixo na desejabilidade de papéis familiares diferenciados está associado com um menor controlo das mulheres sobre o trabalho familiar, uma menor identificação com o trabalho familiar e uma menor participação efectiva nas tarefas domésticas.
Esses resultados ilustram porque, segundo a perspectiva da Escola de Genebra, é importante analisar não apenas as representações formadas pelos grupos, mas também as variações interindividuais que provêm das diferentes crenças e experiências dos seus membros. Para além do impacte que as crenças na existência de diferenças entre os sexos e na desejabilidade de papéis familiares diferenciados podem ter sobre a organização familiar, essa análise sugere que o nível de escolaridade das pessoas tem um impacte sobre a sua adesão a estas crenças. Contudo, o progresso no sentido da igualdade associado ao questionamento dessas crenças parece demasiado fraco para invalidar a opinião de Bourdieu: este não reflecte uma mudança nas posições assimétricas dos homens e das mulheres na sociedade e não constitui uma ameaça à manutenção e justificação da ordem social.
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No original: “principes générateurs de prises de position liées à des insertions spécifiques dans un ensemble de rapports sociaux et organisant les processus symboliques intervenant dans ces rapports
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2018
Histórico
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Recebido
25 Out 2016 -
Aceito
17 Abr 2017