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Cecília Meireles e o temário da escola nova

Cecília Meireles and the progressivism themes

Resumos

A poetisa Cecília Meireles foi signatária do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, histórico documento de 1932 redigido por Fernando de Azevedo e assinado por vinte e seis intelectuais, no qual se encontram as principais formulações do movimento educacional renovador denominado Escola Nova. O presente trabalho analisa a literatura já produzida sobre Meireles e textos da autora publicados entre 1930 e 1933 na coluna "Comentário" da "Página de Educação", seção dirigida por ela no jornal Diário de Notícias da cidade do Rio de Janeiro. O objetivo do trabalho é mostrar que a poetisa expressava ideias e posicionamentos da Escola Nova no início da década de 1930, dentre os quais figuram a relação entre família e escola e o uso das artes como recursos educativos. Tendo por base a teoria da análise retórica, e considerando a peculiaridade do veículo de comunicação utilizado por Meireles, o trabalho abre perspectivas para a investigação das estratégias argumentativas que compõem o discurso pedagógico da autora.

Cecília Meireles; escola nova; discurso pedagógico; retórica


The poet Cecília Meireles subscribed the Manifesto of the Pioneers of New Education, a historic document expressing the main principles of the Brazilian educational movement New School written in 1932 by Fernando de Azevedo and signed by 26 well known intellectuals. This article analyses the literature about Meireles and some of her texts published between 1930 and 1933 in the column "Comentário" of "Página de Educação", a section she directed in Diário de Notícias, a newspaper of Rio de Janeiro. The purpose of this study is to show that the poet expressed ideas of New School such as the relations school and family, and the meaning of arts for educational purposes in the early 1930s. Considering the peculiarity of the media used by Meireles, this analysis based on the rhetoric theory, suggests a new perspective for the research about the argumentative strategies of her pedagogical discourse.

Cecília Meireles; new school; pedagogical discourse; rhetoric


OUTROS TEMAS

Cecília Meireles e o temário da escola nova

Cecília Meireles and the progressivism themes

Marcus Vinicius da CunhaI; Aline Vieira de SouzaII

IFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto/Universidade de São Paulo, mvcunha@yahoo.com

IIProfessora na educação nas redes municipais de Sertãozinho (SP) e Ribeirão Preto (SP) e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto, aline_sz@yahoo.com.br

RESUMO

A poetisa Cecília Meireles foi signatária do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, histórico documento de 1932 redigido por Fernando de Azevedo e assinado por vinte e seis intelectuais, no qual se encontram as principais formulações do movimento educacional renovador denominado Escola Nova. O presente trabalho analisa a literatura já produzida sobre Meireles e textos da autora publicados entre 1930 e 1933 na coluna "Comentário" da "Página de Educação", seção dirigida por ela no jornal Diário de Notícias da cidade do Rio de Janeiro. O objetivo do trabalho é mostrar que a poetisa expressava ideias e posicionamentos da Escola Nova no início da década de 1930, dentre os quais figuram a relação entre família e escola e o uso das artes como recursos educativos. Tendo por base a teoria da análise retórica, e considerando a peculiaridade do veículo de comunicação utilizado por Meireles, o trabalho abre perspectivas para a investigação das estratégias argumentativas que compõem o discurso pedagógico da autora.

Palavras-chave: Cecília Meireles, escola nova, discurso pedagógico, retórica

ABSTRACT

The poet Cecília Meireles subscribed the Manifesto of the Pioneers of New Education, a historic document expressing the main principles of the Brazilian educational movement New School written in 1932 by Fernando de Azevedo and signed by 26 well known intellectuals. This article analyses the literature about Meireles and some of her texts published between 1930 and 1933 in the column "Comentário" of "Página de Educação", a section she directed in Diário de Notícias, a newspaper of Rio de Janeiro. The purpose of this study is to show that the poet expressed ideas of New School such as the relations school and family, and the meaning of arts for educational purposes in the early 1930s. Considering the peculiarity of the media used by Meireles, this analysis based on the rhetoric theory, suggests a new perspective for the research about the argumentative strategies of her pedagogical discourse.

Keywords: Cecília Meireles, new school, pedagogical discourse, rhetoric

O nome de Cecília Meireles, conhecida poetisa brasileira, constou entre os signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, histórico documento redigido por Fernando de Azevedo e assinado por 26 intelectuais e publicado em 1932. Segundo a historiografia da educação brasileira, o Manifesto expressou as principais ideias do movimento de renovação educacional genericamente denominado Escola Nova, tendo contribuído para demarcar os posicionamentos dos educadores liberais em confronto com os pensadores católicos1 1 Sobre o Manifesto e o conflito entre católicos e liberais, ver Cury (1984), Cunha (1995; 2008), Pagni (2000) e Xavier (2004). . Em 19 de março de 1932, o Manifesto, originalmente denominado "A reconstrução educacional no Brasil - ao povo e ao governo", foi publicado com o título "Manifesto da nova educação ao governo e ao povo", na "Página de Educação", seção dirigida por Meireles no jornal Diário de Notícias da cidade do Rio de Janeiro.

Tendo em vista esse fato, desenvolveu-se uma pesquisa para esclarecer as relações da poetisa com o movimento escolanovista, mais precisamente com as concepções educacionais renovadoras difundidas no Brasil no início da década de 1930 e, em especial, no Manifesto dos Pioneiros. Além de estudos acadêmicos que analisam as relações entre Cecília Meireles e a Escola Nova, foram utilizadas as fontes primárias compiladas por Leodegário Amarante de Azevedo Filho, na coletânea de Cecília Meireles, Crônicas de educação, composta por cinco volumes, sendo que a presente investigação se ateve aos quatro primeiros (Meireles, 2001), focalizando as matérias publicadas, entre 1930 e 1933, na "Página de Educação". Dos 368 escritos examinados, selecionaram-se 40 textos cujo conteúdo mostrou-se diretamente relacionado ao objetivo do trabalho.

Resultante dessa pesquisa, este estudo visa mostrar que o discurso de Cecília Meireles expressa concepções integrantes do núcleo temático da Escola Nova. Não se pode ignorar que o escolanovismo, tanto no Brasil quanto em outros países, apresentou grande dispersão de temas e abordagens, mas, ainda assim, é possível identificar algumas formulações comuns às suas várias correntes de pensamento, as quais podem ser assim sumariadas:

• formação da personalidade integral do educando, tendo em vista não apenas o desenvolvimento de atributos individuais, mas especialmente a reordenação da sociedade, o que caracteriza uma educação socializadora/civilizadora;

• aproveitamento das experiências cotidianas dos alunos sem desprezar os conteúdos das matérias escolares, o que se materializa por meio da renovação dos métodos de ensino;

• redirecionamento da mentalidade dos professores, envolvendo novas concepções morais e sintonia com os avanços da modernidade, em que se incluem as contribuições das ciências à educação e a universalização do acesso à escola2 2 A variedade de tendências filosóficas e pedagógicas do escolanovismo pode ser avaliada por meio do trabalho de Cambi (1999, p. 514-555). Lourenço Filho (1974), por sua vez, explicita as linhas-mestras do temário da Escola Nova. No decorrer deste artigo, serão fornecidas indicações bibliográficas específicas sobre outros assuntos componentes do aludido temário. .

Na primeira seção deste artigo, é feito um breve apanhado da biografia de Cecília Meireles, no intuito de destacar a proximidade da autora com o movimento educacional renovador no Brasil. Na segunda, procura-se expor a familiaridade da poetisa com o temário escolanovista, em consonância com as formulações acima sumariadas. A terceira e a quarta seções apresentam a visão da autora sobre dois componentes específicos do referido temário, a saber: as relações da escola com a família, mediante uma nova concepção da infância; e o uso das artes como recursos educativos.

A exposição de dados oriundos da literatura já produzida sobre a poetisa, aliada à explanação de textos da própria autora, tem a intenção de contribuir para aprimorar a investigação do movimento escolanovista no Brasil, colocando em destaque a relevância da pesquisa com fontes primárias. Conforme será analisado na última seção deste texto, um exame mais acurado dessas fontes poderá indicar caminhos para estudos dedicados a compreender as estratégias argumentativas constituintes do discurso pedagógico de Meireles, tendo em vista a peculiaridade do veículo de comunicação por ela empregado, um jornal diário.

POETISA EDUCADORA

Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasceu em 1901, na cidade do Rio de Janeiro; em 1917, concluiu o Curso Normal e começou a lecionar no ensino primário da mesma cidade. Iniciou sua carreira de escritora em 1919, com o livro Espectros, publicando mais de duas dezenas de livros de poemas, dos quais se destacam: Nunca mais... e Poema dos poemas, de 1923; Baladas para El-Rei, de 1925; Viagem, de 1939; Vaga música, de 1942; Mar absoluto e outros poemas, de 1945; Retrato natural, de 1949; Romanceiro da Inconfidência, de 1953; Canções, de 1956; Metal rosicler, de 1960; Solombra, de 1963; e Ou isto ou aquilo, de 1954.

Segundo Luciana Corrêa (2001, p.17), o caminho profissional de Cecília Meireles, nos anos 1920, "esteve ligado não só ao exercício do magistério, entendido aqui como sua prática, mas também a uma atuação crítica em relação ao sistema público de ensino dominante". Essa atitude a levou a abandonar precocemente a carreira de professora, retornando à profissão apenas em 1927, quanto teve início a reforma do ensino do Distrito Federal, realizada na gestão de Fernando de Azevedo na Diretoria Geral da Instrução Pública do Distrito Federal.

Em 1929, Cecília Meireles foi derrotada em um concurso para a cadeira de Literatura da Escola Normal do Distrito Federal, à qual concorria com a tese O espírito vitorioso, que se tratava, de acordo com Valéria Lamego (1996, p.55), de "um trabalho francamente liberal, no qual discorria sobre a liberdade individual na sociedade". Segundo Yolanda Lôbo (1996, p.532-533), Cecília participou da fase final do concurso, a prova de aula, após superar seis inscritos, contando já com dois pontos à frente do segundo colocado.

Em sua tese, a poetisa discorreu sobre a concepção pedagógica moderna, enquanto o outro concorrente optou pela visão clássica erudita. Cecília defendeu que a nova escola recuperaria no ser humano qualidades como coragem e independência, criando, sobretudo, "um conhecimento sobre o indivíduo" (Lamego, 1996, p.55). A tese não foi classificada, "pois a banca (da qual participaram, entre outros, Alceu Amoroso Lima, Coelho Neto e João Ribeiro) favoreceu o grupo dos, reconhecidamente, católicos", do qual Cecília não participava (Oliveira, 2001, p.322). A jovem aspirante a professora tropeçou na "pedra da intransigência", diz Lôbo (1996, p.532), ficando assim classificada em segundo lugar.

Em 1930, Cecília iniciou sua carreira de jornalista, dirigindo a "Página de Educação" no jornal carioca Diário de Notícias, tendo sob sua responsabilidade uma coluna diária denominada "Comentário". Segundo Lamego (1996, p.23), a presença de Cecília "na direção de uma seção de jornal representa um poder que poucas mulheres de sua década conheceram". Durante os três anos em que a "Página de Educação" foi publicada, a autora fez dela "o grande porta-voz da chamada Escola Nova" (Lamego, 1996, p.31).

Em carta de 8 de abril de 1931, endereçada a Fernando de Azevedo, Cecília Meireles confidenciou ao amigo os motivos que a levaram à atividade jornalística:

Os tempos e as criaturas ainda não mudaram suficientemente. E o vivo sentimento da minha ineficiência em qualquer escola, pelo conhecimento direto da atmosfera que me cercaria, levou-me à ação jornalística, talvez mais vantajosa, de mais repercussão - porque é uma esperança obstinada esta, que se tem de que o público leia e compreenda...

(apud LAMEGO, 1996, P.58)

Cecília Meireles e Fernando de Azevedo mantiveram correspondência entre 1931 e 1938. Em julho de 1931, Meireles escreveu a Fernando de Azevedo buscando restabelecer a autoestima do educador, que já se "sentia derrotado" pelas estratégias de Francisco Campos, então ministro da Educação e Saúde do governo Getúlio Vargas:

Junto com esta carta, envio-lhe, a pedido do meu amigo Prof. Gerardo Sequel, um número da

Revista de Pedagogia

, de Madri, em que vem um artigo sobre a sua Reforma. Isso servirá para lhe demonstrar, mais uma vez, que não houve, apenas, mas continuará a haver um pequeno grupo de criaturas dispostas a defender essa obra que o Sr. quis oferecer ao Brasil.

(apud LAMEGO, 1996, P.96)

Após a publicação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932, ocorreu uma forte reação dos católicos contra os intelectuais que buscavam a modernização do ensino. Um dos temas enfaticamente assinalados nessa ofensiva era o da suposta vinculação da nova pedagogia com o comunismo, o que motivou Cecília a escrever uma longa carta a Fernando de Azevedo, dizendo:

Muito pior que ela [uma gripe que assolava o Rio de Janeiro] é o Sr. Tristão de Ataíde, por exemplo. Ainda não li, mas sei que ele escreveu um dos seus venenosos artigos contra o Anísio [Teixeira]. Está, evidentemente, resolvido a desmoralizar a Escola Nova, e isso de procurar confundi-la com o comunismo parece-lhe decerto um método de eficácia. Infelizmente, com esta ausência de mentalidade que caracteriza o nosso povo, com esta falta de análise e ventilação de quaisquer assuntos que signifiquem opinião, com esta facilidade com que qualquer pessoa desnatura publicamente o pensamento de outra, com o coro da ignorância e da má-fé tão pronto a se manifestar, e tão solidário - ainda a confusão é, na verdade, um método de resultados certos entre nós.

(apud LAMEGO, 1996, P.224)

3 3 Sobre a acusação de comunismo feita aos escolanovistas e às suas fontes filosóficas, ver os trabalhos de Cunha e Costa (2002; 2006).

Em outro fragmento da mesma carta, Meireles assim se expressou:

Estive hoje com o Dr. Anísio [Teixeira]. Parece-me que principia a sentir fatigado com estas ruindades do Tristão [de Athayde]. Sem falar noutras, de sacristia, feitas com a mesma unção e talvez mais veneno. Decididamente, precisamos acabar com estas intrigas contra a Escola Nova. A minha situação não me permite tomar a palavra neste momento: quem é que poderíamos encontrar que escrevesse qualquer coisa útil e valiosa? Aqui no Rio já estão esgotados os elementos. Se o Sr., de acordo com o que conversamos, pudesse obter aí em São Paulo uns dois ou três artigos, então já os poderíamos alternar, talvez, com outros nossos, fazendo um movimento de defesa que serviria para esclarecer o público.

(apud LAMEGO, 1996, P.226)

Segundo avaliação de Lamego (1996, p.116), Cecília Meireles, "com a certeza de que vivia tempos políticos", colocou-se a serviço da sociedade com o "melhor de sua ira e inteligência", buscando abrir às gerações futuras a perspectiva de uma vida social menos marcada por "diferenças sociais, religiosas e pelo culto ao nacionalismo doentio".

Em 1934, atuando como diretora do Centro Infantil do Pavilhão Mourisco, no Rio de Janeiro, Cecília inaugurou uma biblioteca infantil, a primeira do gênero no país. Era um "centro de cultura infantil" que recebia as crianças após as aulas, desenvolvendo "atividades não somente de biblioteca, como também artísticas e musicais" (Lôbo, 1996, p.528). Segundo Geir Campos (apud Corrêa, 2001, p.39), "além do salão de leitura, a biblioteca tinha também um setor de manualidades, um de brinquedos e jogos, e uma sessãozinha de cinema toda quinta-feira". A própria Cecília era responsável pela seção artística da biblioteca, na qual se realizavam "dramatizações, hora do conto, conferências e exposições, para as quais eram convidados artistas e educadores" que apoiavam a obra (Pimenta, 2001, p.105).

Na cerimônia de inauguração do Pavilhão Mourisco, o diretor da Instrução Pública do Distrito Federal, Anísio Teixeira, afirmou que "a Casa da Criança que se inaugurava tinha o caráter muito mais amplo que um centro de cultura infantil", pois "seria um verdadeiro órgão de pesquisa, cujos trabalhos no futuro produziriam os mais benéficos resultados" (Lôbo, 1996, p.537). No ano seguinte, 1935, Cecília foi nomeada professora de literatura da recém-fundada Universidade do Distrito Federal. Em outubro de 1937, o Pavilhão Mourisco foi desativado. Segundo Pimenta (2001, p.114), "o fechamento da biblioteca foi divulgado na imprensa nacional e internacional", tendo como explicação "infundados motivos políticos"; alegou-se que havia no acervo "um livro de conotações comunistas, cujas ideias eram perniciosas ao público infantil" (Lôbo, 1996, p.537).

O fato é que, desde 1935, já se pronunciavam as tendências políticas conservadoras que, dois anos mais tarde, confluiriam para a instalação do Estado Novo, o regime ditatorial comandado por Vargas até 1945, no qual Gustavo Capanema atuou como ministro da Educação4 4 Sobre o Estado Novo e a educação, ver Cunha (1989), Horta (1994) e Schwartzman, Bomeny e Costa (2000). . Tais tendências conservadoras, lideradas principalmente pelo grupo católico, levaram à demissão de Anísio Teixeira da Diretoria do Ensino, o que tornou "difícil a continuidade dos trabalhos do Pavilhão Mourisco" (Lôbo, 1996, p.537)5 5 Sobre a vida e a obra de Anísio Teixeira, ver os trabalhos de Pagni (2000; 2008). .

Como informa Ana Maria Oliveira (2001, p.324), em 1938, Cecília Meireles tornou-se a primeira mulher premiada pela Academia Brasileira de Letras em um concurso de poesia, com o livro Viagem. Entre 1941 e 1943, Cecília escreveu na coluna "Professores e Estudantes" do jornal A Manhã, divulgando naquele espaço um vasto estudo sobre folclore infantil. Durante as décadas de 1940 e 1950, Cecília publicou vários livros e, em 1959, "ainda ligada às questões educacionais", assinou o documento intitulado "Mais uma vez convocados", um manifesto elaborado por Fernando de Azevedo em defesa do ensino público (Corrêa, 2001, p.51).

Em 1962, a doença que levaria Cecília Meireles à morte começou a se manifestar (Oliveira, 2001, p.326). Em setembro de 1964, a Academia Brasileira de Letras atribuiu a ela o Prêmio "Machado de Assis" pelo conjunto de sua obra. A premiação foi feita post-mortem, pois em novembro daquele ano Cecília faleceu, tendo permanecido lúcida e trabalhando quase até os seus últimos dias de vida (Oliveira, 2001, p.331).

CONCEPÇÕES GERAIS SOBRE EDUCAÇÃO

As atividades profissionais de Cecília Meireles no campo da educação, bem como seu contato com os líderes da Escola Nova, conforme relatado na seção anterior, indicam a proximidade da poetisa com as formulações teóricas da nova pedagogia e com o movimento de renovação educacional que se desenvolvia em vários países e também no Brasil. Os textos que a autora publicou na "Página de Educação" do jornal carioca, no início da década de 1930, confirmam essa proximidade, pois neles encontra-se um discurso permeado de expressões características do escolanovismo.

Em artigo de 1930, no qual dialogava com os educadores da época, Cecília Meireles (2001, v.1, p.143) remeteu-se a um dos lemas do escolanovismo, afirmando que "a criança é o futuro cidadão, e que a escola é o vestíbulo da vida". Para Cecília, no entanto, dizer isso não era o bastante, sendo "mister senti-lo profundamente", de maneira que o sentir esteja integrado na própria personalidade, para que as ações diárias promovam "uma realidade positiva a essas convicções subjetivas". Meireles (2001, v.1, p.144) destacou também que "os donos, os responsáveis" pelo futuro "são os educadores de hoje" e que a "transformação geral que se aguarda" depende "da sua coesão, da sua orientação, da sua energia e do seu exemplo".

Em matéria do mesmo ano, ao escrever sobre os concursos de beleza que se realizavam naquela época e despertavam grande interesse nas crianças, Cecília abordou o tema das metodologias de ensino, enfatizando a necessidade de "conduzir o interesse da criança desse terreno superficial para outros mais longínquos, mais fecundos, mais favoráveis à sua formação interior" (Meireles, 2001, v.1, p.147-148). Sua sugestão era que se fizesse uma grande festa infantil, em que as jovens estrangeiras proporcionassem "pôr a criança em contato com o mundo, através da sua presença". Os educadores deveriam "aproveitar a ocasião" para ensinar geografia, história, solidariedade e patriotismo, entre outros temas socialmente relevantes.

Cecília fazia eco aos ensinamentos da nova pedagogia, ao considerar que os professores deviam transformar o conteúdo aprendido de maneira superficial, decorrente da experiência cotidiana do aluno, em ponto de partida para o conhecimento histórico, o conhecimento formalizado. Para isso, fazia-se imprescindível uma sólida formação do professorado, uma formação que fosse "móvel, progressiva, sempre atual, constante, que faça de cada professor um indivíduo diariamente renovado, alerta aos acontecimentos e ao tempo" (Meireles, 2001, v.1, p.98).

Em um texto de 1931, Cecília Meireles (2001, v.1, p.123) afirmou que "para que a educação se processe com eficiência é necessário, antes de tudo, um ambiente favorável", uma vez que a educação moderna consiste em um conjunto de "desenvolvimentos harmoniosos", compreendendo a saúde, a estética e a moral, correspondentes às faculdades e possibilidades que se podem encontrar na criatura humana. A esse princípio de educação integral do indivíduo, tão caro ao escolanovismo, a autora acrescentava uma tese socializadora igualmente defendida pela Escola Nova: a escola, além de elevar a criança, poderia elevar também, "embora em outras proporções", todo o ambiente social que cerca cada geração. Assim, para a poetisa, a instituição de ensino constituía "a maior potência para o progresso humano", tendo responsabilidade decisiva no processo de "civilização" (Meireles, 2001, v.1, p.125).

Em matéria de 1932, Cecília comentou que, quando a renovação educacional teve início no Brasil, interpretou-se equivocadamente que os escolanovistas viam os livros como material dispensável, desnecessário para a educação. Refutando essa ideia, Meireles (2001, v.3, p.261) deu como exemplo a atitude de Anísio Teixeira, que, ao ser nomeado professor do Instituto de Educação, declinou dos honorários a ele devidos e solicitou que a verba fosse aplicada na organização da biblioteca da escola. A poetisa, portanto, não considerava dispensáveis os conteúdos trazidos pelos livros, mas fazia "a distinção entre o livro e o livro, o pensamento e o pensamento". A atitude de Anísio Teixeira, ao oferecer seus honorários "para tão útil serviço", foi a "mais evidente, mais concreta e mais importante" iniciativa para favorecer as condições do ensino e, assim, melhorar o estado geral da educação (Meireles, 2001, v.3, p.261-262).

Mostrando-se aliada dos renovadores liberais e, portanto, contrária aos pensadores católicos, Cecília considerava que educação e religião eram esferas distintas. Em artigo de 1931, afirmou que "Educação é um problema de liberdade: preparo do homem para se orientar por si. Religião é catequese: subordinação do homem ao interesse de uma seita, ou de um indivíduo. Nem sequer de Deus" (Meireles, 2001, v.2, p.163). Além de avessa ao ensino religioso nas escolas, a poetisa também discordava da manutenção de dois tipos de escolas, uma para os ricos, outra para os pobres. Em 1932, em defesa da escola única, Meireles (2001, v.3, p.224) expôs que a instituição de ensino deveria ser um ambiente de vida "oferecido à formação humana": "Não podemos querer escolas diversas, uma vez que reconhecemos lamentáveis as divisões injustas da sociedade numa base de recursos materiais".

Em 1931, Meireles (2001, v.1, p.71) abordou indiretamente o tema da coeducação, lema defendido pelos liberais, em confronto com os católicos, fazendo críticas à atitude das participantes do Segundo Congresso Feminista. A jornalista relatou que, na proposta de criação de certa Liga de Assistência Educacional às Meninas Pobres, definiu-se doar roupas e livros às crianças do sexo feminino, possibilitando que prosseguissem nos estudos aquelas que se mostrassem mais "aptas e capazes". Favorecendo as meninas, a referida Liga evidenciou o problema da responsabilidade quanto à educação dos meninos. "Por esse andar", afirmou Meireles (2001, v.1, p.71-72), "começa-se por distinguir, no mundo, duas facções, meninos e meninas", que futuramente serão homens e mulheres, "eivados" de um preconceito que o feminismo se encarrega de positivar, agravando-o.

INFÂNCIA E FAMÍLIA

No início da década de 1930, havia no Brasil um elevado índice de mortalidade infantil. Diante dos esforços dos órgãos governamentais para solucionar tal problema, Cecília assim se manifestou em 1931:

Eu creio, mesmo, que, se não fosse querer demais, deveríamos tratar não apenas de combater a mortalidade, mas de defender ativamente a vida infantil, o que não é propriamente a mesma coisa. Creio que não se deve apenas acautelar a vida, da morte, mas afirmar a vida para que se desenvolva totalmente.

(MEIRELES, 2001, V.1, P.218)

A autora mostrava-se preocupada com a morte de crianças, mas enfatizava a necessidade de promover o desenvolvimento integral da infância e não apenas por meio de medidas voltadas para os aspectos físicos, como a erradicação de doenças e intervenções sanitárias gerais. Ao considerar educação e saúde "problemas intimamente ligados" e creditar à escola a responsabilidade de educar, não de curar, Cecília via que o "problema da educação" já englobava "o da saúde, resolvendo-o por antecipação" (Meireles, 2001, v.2, p.83-84). A jornalista conclamava médicos e educadores à discussão, mostrando-se sintonizada com a superação de um ideário estritamente higienista por uma visão propriamente educacional, comandada pelas novas concepções científicas que forneciam as bases da nova pedagogia6 6 Sobre as concepções higienistas, cujas origens se localizam no século XIX, e suas decorrências educacionais, ver Carvalho (1997), Boarini (2003) e Gondra (2004). .

Em matéria de 1931, Cecília afirmou que a criança "é a base para a transformação do futuro", tema que integra, de maneira fundamental, o temário do escolanovismo. Sua noção de infância repercutia o ideário socializador comum aos escolanovistas, pois entendia que educar as crianças era o mesmo que educar o povo, pois "o povo que se educa para um ideal, só já não está educado para ele porque lhe faltou na infância uma educação para isso" (Meireles, 2001, v.2, p.157-158).

A educação integral, porém, não se resolvia no âmbito escolar, pensava Cecília Meireles (2001, v.1, p.113), porque a educação moderna, "para ser uma realidade viva", dependia da integração e do entendimento entre pais e professores, o que proporcionaria a unificação da escola e do lar em torno de intenções compartilhadas. Para a autora, família e professores deveriam compreender o alcance de suas responsabilidades quanto ao fornecimento de "um ambiente tanto quanto homogêneo para desenvolvimento de um plano educacional" que trouxesse "resultados positivos na construção de um Brasil melhor" (Meireles, 2001, v.1, p.116).7 7 Sobre as relações entre família e escola, do higienismo do século XIX ao escolanovismo, ver Cunha (2000).

Em artigo de 1930, Cecília colocou em debate a recepção dos novos métodos de ensino pelas famílias. A nova escola buscava uma transformação metodológica, que, "pelo contraste com a monotonia da velha escola, não somente surpreende como, até certo ponto, escandaliza a opinião de pais de alunos e até dos próprios alunos" (Meireles, 2001, v.1, p.107). Para amenizar tal estranheza, as escolas deveriam realizar pequenas reuniões presididas pelo professor da classe, às quais compareceriam todos os interessados, em que fosse possível "tratar cada assunto em particular com a familiaridade que a prática nos está mostrando necessária", de maneira a estabelecer um clima de "simpatia permanente, e de uma confiança tranquila entre o lar e a escola" (Meireles, 2001, v.1, p.108).

Desse modo, "lucraria" o professor, que teria a oportunidade de conhecer de perto cada questão aflitiva em particular; e "lucrariam" também os pais, que, com o tempo, ficariam mais animados em perguntar aos mestres sobre os aspectos que considerassem "mais obscuros". E "lucraria" também a criança, que,

...uma vez bem compreendidas pelos pais as transformações da escola nova, receberia a insubstituível influência da família, observando a atenção com que esta acolhia essas transformações, e sentiria realmente pela professora esse carinho, essa docilidade, esse amor que converte o ambiente da escola numa atmosfera mais alta, onde a vida assume o seu verdadeiro sentido, e cada criatura se aproxima da outra, sentindo e respeitando as suas íntimas finalidades.

(MEIRELES, 2001, V.1, P.108)

Escrevendo em 1931, Meireles (2001, v.1, p.119) ressaltou que uma das dificuldades para a realização do ensino baseado nas diretrizes da Escola Nova era a "falta de preparo dos pais", sua "incompreensão das transformações pedagógicas", o que atrapalhava a ação do professor, causando prejuízos "à boa marcha das coisas". Uma família "não esclarecida" acabava contrariando o trabalho da escola; com a intenção de ajudar o professor, proporcionava erroneamente à criança uma orientação de "outros tempos", em absoluto desacordo com o que a escola deseja oferecer "nos dias de hoje".

Nesse mesmo texto, Meireles (2001, v.1, p.119-120) afirmou que outro grande obstáculo à implantação das novas ideias educacionais era a mentalidade dos professores, ainda muito presa às velhas tradições do ensino. O professorado, geralmente "composto de elementos heterogêneos", possui visões individuais e convicções de "infalibilidade". Com intolerância a "meia dúzia de coisas que aprenderam, da Escola Nova", tais mestres tendem "vertiginosamente" para uma rotina talvez "pior ainda que a da Velha Escola", dizia a autora.

Para aproximar os familiares do trabalho realizado pela escola, foram criados, ao longo de 1930, os Círculos de Pais, que eram reuniões para viabilizar a participação das famílias no acompanhamento do cotidiano escolar de seus filhos. Em matéria daquela época, Meireles escreveu que os Círculos deveriam receber uma "atenção especial", pois a "obra máxima de qualquer governo" tinha que ser a educação:

Que cada Círculo de Pais e Professores seja não uma tentativa, não uma série de discursos, não uma hora de declamação para excitar meia dúzia de vaidades, e contrariar outras tantas, mas uma realização grave, séria, pensada e útil, como hoje apenas em alguns casos vem nitidamente sendo.

(2001, V.1, P.122)

AS ARTES NA ESCOLA

Em 1932, Meireles (2001, v.4, p.300) fez um alerta a seus leitores, mencionando a "infelicidade dos filhos dos homens, que recebem de presente instrumentos de morte antes mesmo de aprenderem o significado da vida". Para Cecília, o mundo infantil vinha sendo armado com livros perigosos e brinquedos nocivos, "além de todos os preconceitos que recebe das fronteiras do mundo dos adultos, tão acessíveis às perniciosas comunicações". Para a poetisa, era um grande perigo presentear as crianças com "brinquedos detestáveis", como revólveres e outros artefatos belicosos.

Em vez de brincadeiras que incentivassem atitudes de agressividade, a autora preferia que as crianças se ocupassem com atividades artísticas. Nas escolas, é extremamente prazeroso ver uma criança "dizendo versos, dançando, realizando uma representação teatral", escreveu Cecília em 1931 (Meireles, 2001, v.4, p.39), pois a atividade artística "está no próprio programa da Escola Nova, e é do próprio interesse criador da infância".

Em matéria publicada em 1932, Cecília Meireles (2001, v.4, p.67) analisou que, até a Reforma Fernando de Azevedo, o desenho era uma disciplina de importância secundária nas escolas; os "especialistas em cruzadas de alfabetização" acreditavam que, para as crianças, bastava "aprender a ler, escrever e contar", não havendo nenhuma valorização das artes como recurso educativo8 8 O trabalho de Barbosa (2002) informa sobre a introdução das artes na Reforma Azevedo e em outras iniciativas educacionais da época, todas motivadas pelo novo ideário pedagógico. . A autora considerava muito importante a prática de preparação de desenhos pelas próprias crianças, mas, conforme consta em texto de 1930, aconselhava a fusão dessa técnica a outros métodos de ensino, como o "cinema falado": depois de prontos, os desenhos seriam projetados pelas próprias crianças, que emprestariam suas vozes aos personagens criados por elas mesmas (Meireles, 2001, v.4, p.7-8). Segundo Meireles, as crianças

...se encarregam de reconhecer as qualidades e os defeitos dos desenhos a projetar, como, com o seu direito de crítica habilmente aproveitado, irão distinguindo cada vez melhor os bons e os maus trabalhos, tanto seus como dos colegas, segue-se que a todos os professores conviria um interesse mais intenso pelas projeções fixas, em que têm um auxiliar de primeira ordem na sua tarefa de educar.

(2001, V.4, P.8)

O cinema, segundo Meireles (2001, v.4, p.7), "é um dos auxiliares mais importantes para o professor moderno". Utilizando projeções interessantes, o professor pode obter um rendimento maior e mais seguro de seus alunos, estimulando sua curiosidade e proporcionando-lhes ver o que talvez nunca veriam a não ser por intermédio dessa novíssima tecnologia.

Em 1930, Cecília abordou a criação da Associação Brasileira de Música, mostrando-se entusiasmada pela iniciativa de promover a educação musical do povo brasileiro por meio de audições públicas, gratuitas, em concertos realizados em praças e escolas. Segundo Meireles (2001, v.4, p.3), a música exerce poderosa influência na formação do indivíduo, sendo o fator estético indispensável à moderna orientação do ensino, no que tange à constituição da estrutura psíquica das pessoas. Mas a poetisa discordava dos que concebiam o ensino musical limitado ao aprendizado de hinos, considerando um "desastre geral" essa prática, pois os alunos a ela submetidos cantam, contrariados, letras sem nenhuma significação, incompreensíveis, que não passam de "retórica ridícula nos lábios infantis" (Meireles, 2001, v.4, p.3).

Meireles (2001, v.4, p.4-5) desejava que a campanha de propaganda da Associação recentemente criada destacasse sua ação sobre o magistério, que consistia em buscar a colaboração íntima entre musicistas e professores primários. Ambos teriam o que dar e o que receber, segundo a autora, pois reunir aptidões e experiências diversas para atingir um fim "é ainda a maneira mais certa e pronta de atingi-lo".

Ao incentivar a participação das crianças em peças teatrais, mesmo atuando como simples expectadoras, em artigo de 1931, Meireles (2001, v.4, p.45-46) enfatizou que "um pouco de cor, um pouco de luz, um pouco de movimento, um pouco de som" trazem felicidade, entusiasmo e animação a "esse pequeno mundo", o mundo infantil. A autora ressaltou a importância de "alegrar a criança, educando-a, elevando-a", sem desconsiderar a função educacional das atividades lúdicas, tomando-se o cuidado de não "descer à banalidade", pois não basta fazer a criança rir.

UM DISCURSO PECULIAR

Em matéria datada de 12 de junho de 1932, quando comemorou os dois primeiros anos de sua "Página de Educação", Meireles (2001, v.4, p.177) escreveu que o problema da educação não seria resolvido em dois ou três anos, devido à extensão das exigências que lhe eram inerentes e às dificuldades para "atender aos seus detalhes, sem prejuízo para a obra de seu conjunto". "Os sonhos levam tempo a ganhar a sua realidade exata, principalmente quando não querem transigir em se perder uma deformação apressada". Cecília afirmou também que aqueles dois anos foram "intensos de sinceridade, de desinteresse, de luta, de altivez e de fé. Talvez muitas vidas humanas não tenham tido dois anos assim" (Meireles, 2001, v.4, p.179).

Essas frases ensejam duas reflexões. A primeira refere-se aos vínculos de Cecília Meireles com o movimento educacional renovador em curso no Brasil, no início da década de 1930, o que aqui se apresenta a título de fechamento do presente trabalho. A segunda, que vem a título de abertura para novas investigações, diz respeito à peculiaridade do discurso da poetisa, tendo em vista o veículo de comunicação por ela utilizado para expressar suas concepções educacionais.

Na última parte do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (Azevedo, 1932, p.73-74), após a apresentação de um farto conjunto de propostas para a reconstrução educacional no Brasil, consta que "as únicas revoluções fecundas são as que se fazem ou se consolidam pela educação", e que só a educação pode transformar a "doutrina democrática" em "fonte de esforço moral, de energia criadora, de solidariedade social e de espírito de cooperação". Mas os signatários do documento reconhecem também, citando Gustave Belot, que o "ideal da democracia" não é "coisa feita e realizada", mas sim "um caminho a seguir" e "um programa de longos deveres".

Em sua coluna diária, a poetisa repercutiu vários itens do temário da Escola Nova, resumidamente exposto no início do presente trabalho, incluindo aspectos específicos, como a discussão das relações entre escola e família e o incentivo ao emprego das artes como recurso educativo, conforme mostrado. Mas, além disso, Cecília Meireles parecia ter plena consciência das dificuldades que se interpunham à efetivação das inovações pretendidas pelos pioneiros, entre os quais ela se inscrevia, bem como da imprevisibilidade do percurso por eles traçado para a transformação educacional no Brasil - o que, em seu escrito comemorativo, aparece designado como "sonhos". Sonhos cuja realização envolvia disputas políticas e embates filosóficos.

Tais disputas e embates Cecília enfrentou, no início dos anos de 1930, utilizando um recurso essencialmente diferente do empregado por muitos de seus contemporâneos: o jornal, um veículo de comunicação que, embora alcance os educadores profissionais, é acessível a um público não especializado em assuntos educacionais, um conjunto amplo de leitores com diversas formações e interesses. Esse tipo de veículo de comunicação facilita ao autor expressar suas paixões - sinceridade, fé, como diz o texto comemorativo da poetisa - que outros meios não permitem. Tendo a chance de expor seus sentimentos dessa maneira, o orador caminha pela linha tênue que o separa de seu auditório, visualizando a diferença que almeja eliminar por meio da negociação de sentidos9 9 As designações orador" e "auditório", conforme empregadas aqui, pertencem ao contexto teórico da retórica. A retórica, segundo Meyer (2007, p. 25), é "a negociação da diferença entre os indivíduos sobre uma questão dada". .

Cabe ao orador encontrar os melhores argumentos para que seu discurso cumpra a função a que se destina, que é estabelecer problemas e tentar solucioná-los. Espera-se que a pesquisa que originou o presente trabalho, em que se procurou valorizar as fontes primárias, tenha continuidade por meio da investigação das estratégias discursivas utilizadas por Cecília Meireles para difundir o temário escolanovista.

Recebido em: SETEMBRO 2009

Aprovado para publicação em: MARÇO 2010

Decorrente da monografia Cecília Meireles no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, defendida em 2007, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, de Ribeirão Preto, por Aline Vieira de Souza, este trabalho é uma versão ampliada e revista da comunicação "Educação e arte em Cecília Meireles", apresentada no 2º. Simpósio Internacional em Educação e Filosofia, realizado na Universidade Estadual Paulista, campus de Marília, em agosto de 2008.

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  • XAVIER, M. C. (Org.). Manifesto dos pioneiros da educação: um legado educacional em debate. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
  • 1
    Sobre o Manifesto e o conflito entre católicos e liberais, ver Cury (1984), Cunha (1995; 2008), Pagni (2000) e Xavier (2004).
  • 2
    A variedade de tendências filosóficas e pedagógicas do escolanovismo pode ser avaliada por meio do trabalho de Cambi (1999, p. 514-555). Lourenço Filho (1974), por sua vez, explicita as linhas-mestras do temário da Escola Nova. No decorrer deste artigo, serão fornecidas indicações bibliográficas específicas sobre outros assuntos componentes do aludido temário.
  • 3
    Sobre a acusação de comunismo feita aos escolanovistas e às suas fontes filosóficas, ver os trabalhos de Cunha e Costa (2002; 2006).
  • 4
    Sobre o Estado Novo e a educação, ver Cunha (1989), Horta (1994) e Schwartzman, Bomeny e Costa (2000).
  • 5
    Sobre a vida e a obra de Anísio Teixeira, ver os trabalhos de Pagni (2000; 2008).
  • 6
    Sobre as concepções higienistas, cujas origens se localizam no século XIX, e suas decorrências educacionais, ver Carvalho (1997), Boarini (2003) e Gondra (2004).
  • 7
    Sobre as relações entre família e escola, do higienismo do século XIX ao escolanovismo, ver Cunha (2000).
  • 8
    O trabalho de Barbosa (2002) informa sobre a introdução das artes na Reforma Azevedo e em outras iniciativas educacionais da época, todas motivadas pelo novo ideário pedagógico.
  • 9
    As designações orador" e "auditório", conforme empregadas aqui, pertencem ao contexto teórico da retórica. A retórica, segundo Meyer (2007, p. 25), é "a negociação da diferença entre os indivíduos sobre uma questão dada".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Recebido
      Set 2009
    • Aceito
      Mar 2010
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