Open-access Masculinidades intoxicadas: capital de gênero e uso de drogas no fisiculturismo

Intoxicated Masculinities: Gender Capital and Drug Use in Bodybuilding

Resumo

Por meio de uma pesquisa qualitativa desenvolvida em múltiplos níveis, examinamos o capital de gênero entre atletas que se identificam com o gênero masculino cis no fisiculturismo. Investigamos os mecanismos envolvidos na construção de uma nova persona, articulada tanto em termos físicos (proporção entre músculos e gordura) quanto simbólicos (a elaboração de hipermasculinidades). Argumentamos que, especialmente entre atletas de alto desempenho, o esporte fomenta uma masculinidade “intoxicada”, resultante da interseção entre categorias morais e bioquímicas, expressa no consumo crônico e de longo prazo de substâncias. Como consequência, destacamos processos de hierarquização e legitimação nos quais pessoas que se identificam com o gênero masculino cis que destoam dos padrões hegemônicos são rotulados como inferiores e, simbolicamente, associados à feminilidade.

Palavras-chave
Masculinidades; Fisiculturismo; Drogas; Antropologia da Saúde; Corpo

Abstract

Through a qualitative study conducted at multiple levels, gender capital among athletes who identify as cisgender men in bodybuilding was examined. The mechanisms involved in constructing a new persona were investigated, articulated both in physical terms (the proportion between muscle and fat) and symbolic terms (the development of hypermasculinities). It is argued that, especially among high-performance athletes, an “intoxicated” masculinity is fostered by the sport, resulting from the intersection of moral and biochemical categories, and manifested in the chronic and long-term use of substances. Consequently, processes of hierarchization and legitimization are highlighted, in which individuals who identify as cisgender men but deviate from hegemonic standards are labeled as inferior and, symbolically, associated with femininity.

Keywords
Masculinities; Bodybuilding; Drugs; Anthropology of Health; Body

Introdução

Este artigo busca contribuir para os trabalhos socioantropológicos sobre masculinidade, defendendo que essa categoria transcende meras características comportamentais, fisiológicas e disposicionais, sendo, mais precisamente, concebida como uma prática incorporada – ou corporificada –, uma vez que está enraizada nas ações físicas e expressões sexuais que as pessoas empregam (Connell, 1995). Objetiva-se uma perspectiva privilegiada sobre a construção de masculinidade do fisiculturismo por meio de uma intersecção analítica de categorias como corpo, gênero e a utilização de drogas.

Uma crescente literatura socioantropológica ao longo das últimas décadas tem lançado luz sobre a complexa relação entre fisiculturismo e uma narrativa coerente de identidade1, e revela que esse esporte, frequentemente, é uma escolha de estilo de vida “arriscado”, que proporciona às pessoas uma plataforma para construir e manter um projeto de vida. Por meio da transformação física e da busca pela excelência corpórea, adeptos desse esporte frequentemente embarcam em uma profunda jornada de autodescoberta. No entanto, essa busca implacável pela perfeição física também pode levar ao uso de substâncias que melhoram a autoimagem ou o desempenho, o que borra as fronteiras entre as construções sociais e químicas do corpo (Giddens, 1991; Monaghan, 2001).

A ascensão do fisiculturismo, na década de 1970, nos Estados Unidos, coincidiu com a ascensão da segunda onda do movimento feminista e com mudanças significativas nas relações de gênero especialmente na América do Norte e na Europa. Não se trata de uma mera coincidência, dado que fisiculturistas forçaram a sociedade a enfrentar possíveis diferenças de gênero em meio a uma mudança cultural em direção à dissolução dessas esferas. Além disso, a popularidade da modalidade de levantamento de peso aconteceu também nesse período, momento em que corpos fortes não eram mais essenciais para vantagem econômica para o trabalho nas sociedades capitalistas (Wiegers, 1998; Kimmel, 2006; Bridges, 2009).

O desenvolvimento físico-corporal, com foco em características específicas e socialmente desejadas, emergiu como um recurso relacionado ao capital de gênero, à medida que os homens2 encaravam, cada vez mais, seus corpos como alvos de disciplina (Gill et al., 2005). Cada vez mais, os homens se tornam alvo de intervenções que articulam padrões culturais de masculinidade, desempenho e autocontrole. Essas práticas extrapolam a dieta e as técnicas corporais cultivadas nas academias, incorporando o uso contínuo de substâncias que não apenas moldam a constituição física, mas também reconfiguram a maneira como o indivíduo percebe e narra a si mesmo, ancorando sua identidade em ideais normativos de força, virilidade e disciplina. O capital de gênero, portanto, refere-se ao conjunto de conhecimentos e recursos disponíveis em um contexto específico que permite o acesso a identidades dentro de um determinado regime social, e que resulta em disparidades ou hierarquias entre os participantes frequentemente associadas a dicotomias de comportamentos femininos versus masculinos (Bridges, 2009). Nessas circunstâncias, o corpo se torna um símbolo poderoso que reflete a adesão a formas específicas de masculinidade (Dutton, 2012).

Seguindo essas premissas, investigamos as dinâmicas sociais de atletas e aspirantes envolvidos no uso prolongado de esteroides anabolizantes-androgênicos e outras substâncias para melhoria da imagem e do desempenho que ultrapassassem dois anos de uso crônico3. Este estudo, um desdobramento de pesquisas mais amplas relacionadas aos esportes e masculinidades (Sá, 2021; Sá, 2023), está alinhado à crescente demanda por investigações sobre as experiências de gênero de atletas em geral (Piatkowski et al., 2023).

Metodologicamente, as interações com os atletas se iniciaram na pesquisa etnográfica em uma cidade de médio porte no Sudeste do Brasil, por intermédio de um interlocutor-chave que nos apresentou para outros sujeitos. Pelo método qualitativo de “bola de neve”, não foi possível determinar a probabilidade de seleção de cada participante, mas a estratégia mostrou-se útil para investigar um grupo de difícil acesso (Vinuto, 2007). Ao longo de cerca de oito meses, foram realizadas entrevistas individuais, observações em academias, participação em confraternizações de fim de semana e inserção em comunidades virtuais indicadas pelos próprios interlocutores. Devido à sensibilidade do tema, foi garantido anonimato a todos os participantes. Neste artigo, apresentamos os resultados das interações com um grupo de seis homens cisgêneros, atualmente com idades entre 24 e 35 anos.

Na primeira parte deste artigo, discutimos a inserção antropológica em uma pesquisa de campo permeada por múltiplos desafios e obstáculos subjacentes. Para adentrar um ambiente ostensivamente masculino, foi necessário adotar posturas culturalmente associadas à virilidade. Partindo de uma categoria nativa e pejorativa de academias de musculação, Frango, examinamos como o trabalho de campo pode demandar do antropólogo a incorporação de práticas e comportamentos de risco. No presente estudo, isso incluiu desde o exercício físico em intensidade máxima – arriscando ser esmagado por anilhas, – até o contato e o flerte com o consumo de anabolizantes e outras classes de medicamentos, tema que aprofundamos na parte final.

Na segunda parte, investigamos como esse estilo de vida atendia às angústias emocionais dos praticantes. A literatura recente sugere, por exemplo, a existência de uma “crise na masculinidade” no Ocidente, associada ao desejo masculino de ganhar massa muscular como uma resposta ao crescimento do poder feminino. Segundo essa perspectiva, muitos homens cis recorreriam à hipertrofia para redefinir sua masculinidade (Gray; Ginsberg, 2007). No entanto, autores como Underwood (2017) contestam essa visão, argumentando que não se trata de uma crise, mas de uma reconfiguração da masculinidade em que a principal ameaça não seria o avanço das mulheres no campo financeiro, mas a perda de capital sexual. Propomos uma abordagem distinta: sugerimos que as práticas esportivas e os comportamentos de risco funcionam como mecanismos pelos quais alguns homens buscam redefinir seu capital de gênero, moldando suas masculinidades e estabelecendo diferenciações sociais entre pares. A masculinidade, então, não pode ser reduzida a uma reação ao poder feminino, mas deve ser compreendida em um contexto mais amplo de disputas e afirmações dentro do próprio universo masculino.

Para embasar tais constatações, procuramos demonstrar um paralelo entre as trajetórias de vida de dois atletas com ênfase nas prerrogativas que condicionam e/ou possibilitam a inauguração desse estilo de vida4 para, assim, compreender essas emoções e papéis de gênero partindo de uma prática social (Rezende; Coelho, 2010). Assim, buscar destaque como jogador de futebol, acumulando conquistas e reconhecimentos, ou cultivar músculos proeminentes como fisiculturista, adotando uma disciplina de vida rigorosa, representam estratégias para angariar prestígio em seus respectivos círculos sociais.

Ao final, investigamos as propriedades simbólicas atribuídas aos recursos farmacêuticos que atuam na interseção entre corpo e gênero. Esses recursos funcionam como vetores fundamentais para compreender a transformação material-semiótica ou ciborguiana (Haraway, 1985). Conforme observado em pesquisas socioantropológicas sobre o tema, o corpo não é apenas um “projeto físico hiperreflexivo”, mas também um “local de comunicação social” (Brown, 1999, p. 84), no qual homens cisgêneros sinalizam sua masculinidade, ao mesmo tempo que são forçados a lidar com a desconexão entre seus corpos e estilos de vida e aquilo que a sociedade considera normal (Macho et al., 2021).

Diante de um cenário de “desafios de masculinidade” (Messerschmidt, 2000), no qual ideais de gênero conflitantes se manifestam, o esporte opera como um espaço em que o uso de medicamentos é racionalizado a partir da noção de risco. Nesse contexto, o risco não é percebido apenas como algo a ser evitado, mas como um recurso simbólico que legitima práticas consideradas necessárias para atingir padrões corporais e performativos valorizados. Essa lógica estabelece hierarquias e subordinações que não apenas toleram, mas incentivam o consumo de substâncias no ambiente estudado. Por exemplo, homens cisgêneros que se opunham a esse consumo podiam ser rotulados de “bichas” ou “estrogenados”, pois, segundo a lógica grupal, a ingestão desses medicamentos os tornaria “mais homens”. Tal fenômeno evidencia que o gênero se constitui como prática social constantemente referenciada nos corpos e ações dos sujeitos (Connell, 1995). Assim, a intoxicação decorrente do uso crônico e prolongado de substâncias não apenas reconfigura hierarquias internas, mas também se consolida como marcador que produz diferenças e reforça disputas entre homens cisgêneros, redefinindo os próprios ideais de masculinidade.

Um frango entre homens: ganhando respeito em uma academia “hardcore” de musculação

O termo frango nomeia um estereótipo frequentemente evocado no contexto das academias de musculação e no universo fitness em virtude de seu forte significado. Simboliza homens cis que ainda não possuem grande força muscular ou habilidade física, e é utilizado em tom jocoso ou depreciativo para designar indivíduos magros ou que, até então, não têm músculos bem desenvolvidos. Se o corpo se torna um marcador social de diferenciação, os comportamentos também são rotulados de forma diferenciada. O desconhecimento em relação a treinamentos, dietas e até mesmo sobre o uso de anabolizantes se torna justificativa para tal caracterização. Parte da trajetória de desenvolvimento nas academias, portanto, gira em torno de adquirir características comportamentais e físicas que vão em sentido contrário a tal rótulo.

A Academia Hardcore5, locus de estudo em nosso trabalho de campo, destacou-se por sua singularidade em relação aos padrões contemporâneos. Uma atmosfera de intensidade viril permeava tanto o ambiente quanto os praticantes, em sua maioria fisiculturistas amadores. Frases motivacionais adornavam as paredes, troféus permaneciam em exposição e os equipamentos exibiam sinais de desgaste, sem parecer afetar os frequentadores. Gritos e o som de pesos sendo ocasionalmente largados no chão eram comuns e até incentivados. Tais características delineavam um cenário consideravelmente distinto das academias de rede predominantes no Brasil.

Operando de maneira independente sob a mesma gestão desde os anos 1980, essa academia de bairro não oferecia serviços especializados, como crossfit, pilates ou artes marciais, tampouco adotava medidas como placas de advertência contra venda e uso de drogas nos banheiros, ao contrário de outras academias na região. A clientela, majoritariamente de classe média, desfrutava de mensalidades acessíveis (cerca de 110,00 reais mensais), que podiam ser reduzidas com planos semestrais ou anuais. Ocasionalmente o proprietário demonstrava flexibilidade em relação ao pagamento. A heteronormatividade6 emergia como um elemento central nas interações sociais naquele contexto, revelando-se um componente fundamental em nossa imersão durante o período de pesquisa em busca da academia adequada.

Corpo, comportamento, confiança e vestuário eram elementos distintivos nesse ambiente. As características corporais eram o principal critério para estabelecer hierarquias nas relações interpessoais. Comportamentos como a humildade diante dos mais experientes, o esforço físico e o respeito ao espaço alheio eram fundamentais. A confiança, frequentemente ligada ao uso de drogas legais e ilegais, servia para distinguir os praticantes “naturais” (que não utilizavam substâncias para melhorar imagem ou desempenho) dos 'hormonizados' (usuários). Quanto ao vestuário, fisiculturistas escolhiam camisetas extragrandes para não exibir suas formas físicas, sugerindo que seus corpos ainda estavam em evolução, o que mudava próximo ao campeonato.

Uma distinção clara entre os frequentadores dessa academia em comparação com outras era evidente pelos rostos contorcidos pelo esforço extremo, o que refletia a determinação de levar o corpo ao limite físico, transformando cada sessão de treino em um verdadeiro espetáculo (Liokaftos, 2017). O suor e, ocasionalmente, feridas nas mãos e nas canelas, resultado do levantamento e transporte de pesos, eram interpretados como sinais de dedicação aos rituais nos quais o corpo é o epicentro da transformação via intensidade e agressividade. A habilidade técnica para movimentar grandes volumes de peso e a demonstração de esforço físico são vistas como formas de dominância, estabelecendo hierarquias dentro do ambiente (Wacquant, 2004). Por outro lado, conversar ao telefone e até mesmo flertar com mulheres são comportamentos malvistos pelos mais experientes. Como forma de inserção nesse ambiente, foi necessário fazer uma negociação entre risco e intensidade, estabelecendo uma busca subjetiva de se “tornar homem” a partir do treinamento físico ou, nos termos locais, “ir até a falha muscular”7.

Assim como em outras pesquisas socioantropológicas relacionadas, as barreiras iniciais foram minimizadas pela intermediação de um interlocutor responsável pelas devidas apresentações (Monaghan, 1999). Ele facilitou nossa integração e foi fundamental para nossa imersão no ambiente. O denominamos8 Alfa, uma referência ao termo popular “macho alfa”, que ele próprio apreciava. Praticava musculação havia mais de cinco anos e era estudante de engenharia em uma universidade pública. Com cerca de 1,68 m de altura e aproximadamente 88 kg, ele geralmente mantinha a cabeça raspada e costumava ouvir música com fones de ouvido durante os treinos para manter a concentração. Logo no primeiro dia de academia, recomendou: “Treino com um cronômetro, estou até focado em respirar [...] no intervalo entre as séries, não tem muito tempo para conversa”. Diante disso, optamos por esperar até o final dos treinos para fazer perguntas e estabelecer contato com ele e com outros atletas.

Alfa, conhecido de longa data, apesar do distanciamento ao longo dos anos, aceitou o desafio de introduzir o pesquisador no mundo do fisiculturismo durante o trabalho de campo, apresentando-o à maior parte dos interlocutores. A amizade prévia foi um importante recurso metodológico, pois ajudou a apagar a hierarquia entre pesquisador e participante (Tillmann-Healy, 2003), ao mesmo tempo que forneceu uma relação dialógica singular. Uma das primeiras perguntas estava relacionada ao uso de drogas, o que não era oculto para as pessoas que frequentavam a academia:

Contexto: o fisiculturista conta sua trajetória de uso de drogas a partir do método de blast and cruise, popular entre atletas.

Alfa: [...] então, entrei em cruise eterno, até hoje nunca fiz blast. Pretendo fazer, se bobear, não sei. Decidi hormonizar, mano, e minha cabeça melhorou mais ainda. Me sinto muito bem; mano, muito bem mesmo; no treino, conexão neuromuscular, qualidade de vida. Se achar um macho alfa é uma parada muito boa. Até agora, só evoluí. Tive uma evolução assim, que meu treinador até me elogia, acha que até flutuei pra tentar competir, coisa que tenho que pensar mais pra frente. É uma coisa que, hoje em dia, não me vejo sem treinar, não me vejo sem comer frango, essa porra virou minha vida. Independentemente de faculdade, independentemente de obrigação, independentemente de tudo, é isso que me move.

O relato de Alfa suscitou reflexões sobre a articulação entre corpo e papéis de gênero. Ele concebia a si próprio e ao seu corpo como uma expressão criativa de si mesmo e de uma masculinidade em ascensão. Fazia uso crônico de drogas há dois anos e encontrava-se na fase de cruise, buscando minimizar danos decorrentes do consumo. Nesse período, procurava manter exames regulares enquanto se adaptava ao uso de testosterona e decanoato de nandrolona. Aguardava a aprovação de seu treinador, a quem atribuía autoridade semelhante à de um médico, para iniciar doses ainda mais altas. Sua trajetória de uso de substâncias, combinada à alimentação controlada e à prática intensa de exercícios físicos, redefiniu seu capital de gênero: consolidou-se como um “macho alfa”, dominante e bem-sucedido em sua busca por um corpo escultural.

Percebemos que a elaboração da identidade de gênero e do corpo foi uma experiência socialmente construída e que produziu status dentro e fora daquele ambiente. Para nos integrarmos, foi preciso adotar uma série desses padrões controversos e aprender ao menos o básico do fisiculturismo para sermos aceitos. Por exemplo, foi necessário levar ao limite a intensidade em exercícios multiarticulares como o supino e o agachamento livre com barra. Durante o treinamento, o pesquisador quase foi esmagado com uma barra de 75kg, uma experiência assustadora que foi ambiguamente9 ironizada e valorizada pelos fisiculturistas presentes. Aproveitamos a oportunidade para indagar um dos caras grandes sobre o medo durante exercícios físicos:

Ômega: Mano, sobre medo, eu tenho a sensação quando eu tô fazendo exercício livre, medo de verdade mesmo, medo real, tipo quando você vai fazer uma remada curvada pesada, um agachamento. Hoje mesmo, era peito, tá difícil de jogar o halter em cima do peito deitando, e aí, eu pensei, eu tava fazendo com 44,46 kg cada halter, é eu pensei assim: vou tentar passar para uns 48kg e 50kg. Porra é peso para caralho, para quem agora tá pesando 90 kg, peso pra caralho. Mano, fui aquecendo, só que se sabe, eu vou subindo, sem chegar na falha Aí quando eu vejo que tá chegando perto da falha em 10 repetição, 10-12, eu conto mais umas três séries subindo a carga. Aí quando chegou na segunda, chegou em 36kg, eu fiz tranquilo, deu 12 repetições. Guardei, fui para 40kg, esperei dois minutos no cronômetro, fui lá e não tava confiante. Eu sou acostumado a fazer com mais, mas eu não estava confiante de pegar o peso e ir até o banquinho, de medo, medo, mesmo.

[...] Tem o medo do ego também, para você não ter o ego ferido ali dentro. Agachamento: eu tenho o joelho todo zoado, coloco 80, 90kg cada lado, dá 180kg com o peso da barra. É dois de mim nas minhas costas. Todo mundo te olhando, eu tenho que fazer. Aí você planejou seis repetições e você tá na terceira, se fica “porra, tem que ir mano, os leigos vão falar ‘o maluco só fez três repetições’” [risadas].

A construção da masculinidade dentro do fisiculturismo envolve rituais que reafirmam a virilidade e reforçam hierarquias dentro e fora das academias. No contexto esportivo, superar o medo é central, pois os desafios no treino reverberavam no cotidiano. Essa relação com o medo assume dualidades: por um lado, é visto como motor para a superação; por outro, é algo negativo quando associado a cautelas que comprometiam a busca pela excelência física.

Essa dinâmica configura-se como uma performance (Boscoboinik; Horakova, 2014), na qual o atleta ocupa o centro das atenções, conduzindo os treinos com intensidade e buscando reconhecimento entre os iguais. A experiência corporal extrema se estende à negociação emocional expressa na linguagem em que sentimentos emasculadores (frangote, fresco etc.) eram compensados pelo uso de palavrões. Nesse esporte, o fracasso não se restringe à dimensão física, mas afeta a masculinidade performada, com a busca pelo capital de gênero entrelaçada à administração dos riscos

Fisiculturistas, por fim, orgulham-se de suas escolhas e de seu estilo de vida; valorizam a pertença a um grupo admirado por sua coragem física e rusticidade (Wacquant, 2004). O esporte se consolida não apenas como uma prática atlética, mas como espaço privilegiado para a afirmação de uma masculinidade forjada na resistência, no sofrimento e na superação.

Entrevistando caras grandes: conversões corporais a partir do fisiculturismo

A adoção desse estilo de vida pelos indivíduos analisados emergiu de experiências subjetivas marcantes, frequentemente narradas em tom quase testemunhal. Certos eventos, como será demonstrado adiante, tiveram papel estruturante na configuração do senso de agência e na trajetória desses sujeitos. Nesse contexto, o estilo de vida funcionava como vetor identitário, articulando uma identidade coletiva manifestada, explícita ou implicitamente, nas interações sociais. O sofrimento, por sua vez, era ressignificado por meio da imagem corporal, que assumia caráter simbólico e relacional, permitindo a construção de vínculos e sentimento de pertencimento. Assim, a corporalidade tornava-se não apenas marcador identitário, mas também veículo para expressar experiências individuais e coletivas. Cada corpo era um signo de sofrimento e superação, condensando narrativas que ultrapassavam a dimensão biológica e se inseriam em dinâmicas sociais e culturais amplas.

Conforme o aprofundamento de laços, tivemos a oportunidade de conduzir entrevistas em profundidade com alguns interlocutores da Academia Hardcore. Em termos socioantropológicos, buscamos traçar paralelos nas trajetórias de vida desses sujeitos e compreender continuidades e descontinuidades de gênero, explorando sentimentos que, apesar de vividos singularmente, podem ser compreendidos coletivamente e dentro de uma temporalidade social de um grupo específico. Como pressuposto analítico, incluímos a abordagem person-centered (Levy; Hollan, 1998) para as entrevistas. Sob inspiração psicanalítica, o intuito foi explorar diversas elaborações dos sujeitos sobre suas próprias experiências de vida, emoções, objetivos e desejos.

Um exemplo de como os tipos de solidariedade se estabelecem por meio do corpo pode ser observado nas transformações compartilhadas nas mídias sociais. Esses vínculos ficam evidentes especialmente em publicações que exibem relatos e fotos do “antes e depois” de corpos considerados gordos ou magros, em comparação com físicos musculosos e definidos. Essas imagens representam visualmente o processo de construção corporal e funcionam como forma de identificação e pertencimento dentro desses grupos, suscitando a curiosidade de iniciantes que questionam aos atletas: “Como você conquistou esse shape?10. Por vezes, ídolos retribuem os anseios dos iniciantes, que passam, então, a ser submetidos a uma análise detalhada de suas compleições físicas e de suas trajetórias de vida. O sofrimento do iniciante, então, torna-se elemento significativo para o eventual estabelecimento de relações de reciprocidade:

Ômega: [...] veio esse moleque que me adicionou [em uma rede social], ele tinha um coach11 na época. Aí ele mandava os bagulhos do coach e era maior zoado, sabe? Aí um amigo dele entrou na consultoria desse cara, e o moleque recebeu a mesma coisa, o mesmo treino, a mesma dieta. E era bem caro os bagulhos dele, e ele pagou tipo anual, sabe? [Risadas] E o coach passava tudo no copiando e colando para todo mundo. Ele ficou chateadão, aí eu fui meio que ajudando ele, e ele sumiu, sabe? Aí eu mandava mensagem pra saber dele, pra ver como tá e tal, e ele nem lia ou respondia sabe? Aí um ano e meio depois, ele apareceu de novo, aí ele falou que parou com tudo e entrou em depressão, a avó dele tinha morrido, e ele morava com a avó. Ele era molecão, 18 anos, aí eu fiquei com dó né mano, porque eu já ajudei né, passei com familiares com depressão e eu sei como é difícil. [...] ganhou 40kg, duro de grana, tava com 120kg ... parou de treinar e tal, aí eu comecei a ajudar ele, no que ele precisasse, sabe? O principal mesmo foi que ele melhorou da depressão, voltou a treinar, tá procurando trampo, tá tendo uma rotina. Mas no geral, eu não ajudo não, só se o cara tiver realmente interessado.

A jornada do iniciante no fisiculturismo é marcada por uma busca contínua por contato com “ídolos” dentro e fora das academias. As emoções desempenham um papel central, pois moldam o que, em termos maussianos, poderíamos chamar de dádivas corporais (Mauss, 1973). O corpo – desejado em suas proporções idealizadas de musculatura e gordura – era concebido coletivamente, tornando-se um objeto de admiração e de desejo. No entanto, por trás dessa imagem de perfeição, havia um passado de dor e sacrifício que funcionava como um catalisador emocional capaz de sensibilizar novos adeptos.

Nessas condições, emerge uma economia moral em torno do corpo idealizado. Atletas, ao serem admirados e elogiados pelos iniciantes, sentiam a necessidade de retribuir essa veneração compartilhando conhecimentos, técnicas, metodologias e até substâncias que viabilizassem a transformação corporal. Essa troca, semelhante a um rito de passagem, convertia o sofrimento do iniciante em um desejo intenso de transformação, impulsionado tanto pela busca por uma nova identidade quanto pelo acúmulo de capital de gênero.

Assim, a vida desses sujeitos passa a se organizar em torno de um projeto contínuo de aprimoramento físico, no qual o corpo se tornava o palco para uma incessante busca pela superação. Eventualmente, essa transformação ultrapassava a dimensão corporal, moldando a própria persona do praticante e redefinindo seus interesses, relações, aspirações e, principalmente, sua masculinidade.

Transformação 1: a jornada para se tornar um “Macho Alfa”

Como visto anteriormente, nosso interlocutor principal classificou sua experiência de transformação corporal como uma transformação simbólica de sua própria masculinidade. Contou que o “fundo do poço” de sua vida foi se tornar um falso-magro12 quando teve um problema de saúde (não especificado e não relacionado à musculação), que foi curado pela medicina aos 18 anos. Quando o processo acabou, recebeu o diagnóstico de depressão (palavra que evitava nos relatos, referia-se a ela como “doença”). Sua condição promoveu uma regressão estética. Ele nos relatou o seu início no fisiculturismo:

Alfa: Tipo assim: tive um problema de saúde, que não vem ao caso, nada a ver com bola13 ou com o mundo de musculação. Me tratei, fiquei zero bala e, logo em seguida, começou um problema na minha vida que fiquei zoado, na cabeça, não tinha foco para nada. Tava namorando, mas não tinha vontade de comer, não tinha vontade de sair. Parei de treinar e só comia porcaria (biscoitos, bolo, chocolate, refrigerante) e minha saúde foi pro espaço... e nesses seis, oito meses, desde o começo da minha doença, até eu sair dessa merda de cabeça, eu fiquei levemente gordo, cheguei no fundo do poço em todos os sentidos da minha vida. Estava pesando 67 kg e 300g, eu acho que eu estava gordo, abdômen dilatado e pele lixo, minha barba tava um lixo, tudo uma bosta. Não tinha vontade de fazer nada, faculdade uma bosta. Um dia eu fui no [sic] banheiro ‒ é até engraçado isso. No banheiro aqui de casa tem um espelho que vai desde o pé até a cabeça, aqueles espelhos que pegam tudo, sabe? Aí eu olhei pra mim, tava sem camisa, e falei pra mim mesmo “olha que bosta como eu estou zoado” [...].

Na narração de sua trajetória, ele destaca como sua atenção estava muito mais vinculada aos componentes ou comportamentos de um estilo de vida saudável (como alimentação e prática de exercício físico) do que ao diagnóstico da doença em si. Em outras palavras, seu bem-estar emocional estava fundamentalmente ligado à sua aparência corporal e trajetória disciplinar de incorporar diversas variáveis que promoveriam a construção corporal e simbólica de uma nova pessoa. Ele complementou

Alfa: Eu sempre liguei pra isso, mas até então nunca tive muita garra, [...] eu já gostava um pouco de bola e fazer dieta. Olhei pro espelho, então, e disse que eu precisava mudar essa porra. “Estou muito ruim, fico muito mal”, eu disse. Aí, eu li um versículo da Bíblia que me motivou muito pra eu correr atrás. E eu comecei a correr atrás e arranjar um jeito pra fazer mais dinheiro, pra bancar minha consultoria. Demorei uns dois ou três meses para conseguir uma fonte. No começo, fazia pouco, mas já deu pra bancar natural14. Aí eu fiquei uns três meses natural, minha cabeça já mudou muito, minha qualidade de vida, minha pele, meu sono. Tudo, tudo na minha vida mudou nesses 2 meses.

No trecho, ele atribui à depressão o gatilho para sua profunda transformação. Posteriormente, afirmou: “minha depressão, eu não curei com medicação, foi uma série de fatores, depressão tem um milhão de variáveis”. Procurou, então, algum mecanismo para obter renda suficiente para bancar a consultoria com um mago do fisiculturismo e, por meio do sucesso de vendas pela internet, conseguiu capital suficiente para investir no próprio corpo. Em vez de procurar uma solução imediata para a doença, como remédio ou terapia, buscou “salvação” pelo estilo de vida. Pouco a pouco, pela conjunção adequada dos diversos componentes, renasceu outra pessoa:

Alfa: Eu fui do inferno ao céu em 2 meses. O treinador me tirou duma bosta na minha vida. Aí, mano, quando eu acertei na dieta, no sono, no treino ‒ eu não sabia treinar direito (por exemplo, treinar costas, eu não sabia treinar nada, treinar costas era outro mundo, hoje eu saio com as costas ardendo, perna eu não sabia treinar direito) ‒ ,a minha cabeça formatou, como eu tivesse zerado minha cabeça na minha crise. Minha cabeça mudou completamente. Melhorei muito nesses 3 meses, a qualidade de vida, saúde... Tenho vontade de sair de casa, de olhar no espelho e me achar bonito, autoestima... depois desses três meses, me acostumei com todo esse estilo de vida, essa rotina e acostumei com os detalhes, tipo reparar tudo, detalhe que faz a diferença, de usar luz baixa no computador... Acostumei com tudo que o pessoal acha que é exagero e decidi hormonizar.

Alfa, como muitos outros fisiculturistas, significou sua experiência de saúde-doença como um problema de autonomia individual. Ele acreditava que a responsabilidade por sua saúde era exclusivamente sua, ignorando o poder disciplinar que o cercava. Essa visão se alinha à tese de Alain Ehrenberg (2004), que identifica uma mudança histórico-cultural significativa nas concepções e vivências dos corpos na contemporaneidade: da disciplina para a autonomia. Se antes as instituições sociais impunham normas rígidas que estruturavam a vida dos indivíduos, hoje há uma valorização da autonomia, na qual cada pessoa é responsável por construir sua identidade e trajetória. Essa nova regra social impõe uma excessiva “doença de responsabilização”, na qual o indivíduo se torna o único responsável por sua saúde, bem-estar e destino. Por exemplo, precisava seguir uma dieta rigorosa, treinar intensamente, dormir bem e até controlar a exposição à luz do computador. Essa busca incessante pela perfeição gerou uma permanente negociação entre sua própria vontade e as regras de vida de atleta. Ao se adequar a esse poder disciplinar, encontrou uma “cura” para seus problemas, mas a um custo alto: sua autonomia foi sufocada pela pressão social relacionada ao corpo ideal. Assim, apenas por meio dessa adequação conseguiu se sentir subjetivamente bem com sua experiência de gênero.

Transformação 2: de jogador de futebol a fisiculturista

O segundo interlocutor foi nomeado Ômega, tem cerca de 1,75m e pesava entre 95 e 105 kg no período de realização das entrevistas. Apesar do seu corpo grande e amedrontador – adjetivo que apreciava –, era extremamente amigável, considerado nas academias como um “livro aberto”. Tinha 26 anos, era gerente de uma empresa e muitas de suas interações transmitiam um caráter nostálgico ligado à sua trajetória de vida com amigos e até mesmo com o pesquisador. Os trechos expostos a seguir ocorreram em momentos de refeições livres15, em finais de semana, e o interlocutor explorou, especialmente, seu início no esporte:

Ômega: Eu era jogador de futebol. Comecei na musculação ainda nas categorias de base por volta dos 14 anos. Aos 19, quando parei com o futebol, precisava preencher o vazio com outro esporte. Fui para musculação e luta, que já havia praticado quando criança, porém pelas cirurgias no joelho, não me mantive na luta por muito tempo e segui somente na musculação, onde nunca mais parei. [...] era um vazio 100% interno, eu não me via fazendo outra coisa que não fosse jogar futebol. Quando parei, fiquei sem norte. Aí fui preencher com o esporte (musculação) que era algo que sempre gostei! Como entrei em uma academia de bairro, onde os donos eram bb16 mesmo, e tinha vários atletas na gym17, eu acabei me envolvendo bastante, e ia pesquisando sobre. e então, desde o início, eu levei a sério o esporte por estar no meio de pessoas que praticavam o esporte de forma profissional [...]

A impossibilidade de seguir carreira no futebol profissional representou significativa desilusão. Foi nesse contexto que o fisiculturismo surgiu como uma nova perspectiva de vida, uma oportunidade de reconstruir sua masculinidade. Foi acolhido por fisiculturistas experientes em uma academia e, sob a tutela desses, iniciou, aos 15 anos, o uso esporádico de drogas:

Ômega: Foi um tapa buraco mano; era um vazio, se sente vazio. Olha se faz algo que você não ama na vida, você fica sem norte. O fisiculturismo veio como tapa buraco. Na verdade, eu tentei a luta antes, só que o joelho doía muito por causa do impacto; eu vi que não daria para levar tão a sério. Seria algo bem hobbie mesmo, não daria pra levar a sério. Eu sempre vou querer praticar um esporte a sério, diariamente mesmo. Vi que aquilo não daria certo. Como eu já estava dentro da academia, da musculação, eu já tava ali e comecei no fisiculturismo. [...]. Eu não era um cara que se diferenciava, juntos dos demais assim. Eu era um jogador normal, falando dentro de um time, eu era só mais um. Eu não era um jogador diferenciado, eu era diferenciado na rua, no bairro.

O depoimento revelou um profundo sofrimento vinculado à perda de seu status social, antes celebrado no bairro por suas habilidades no futebol, as quais definiam sua identidade e lhe conferiam prestígio. Com o fim precoce de sua carreira, viu-se abruptamente privado dessa fonte de reconhecimento. Mais do que um passatempo, buscava uma nova arena que lhe proporcionasse o mesmo nível de distinção.

A frustração por não atingir o ideal masculino desencadeou uma crise existencial, deixando-o à deriva, sem referências claras de valor ou propósito. O deslocamento evidenciava como o reconhecimento social, mediado pelo desempenho físico, estruturava sua autoimagem e sua posição no grupo. A ausência desse eixo de validação expôs sua vulnerabilidade emocional e a fragilidade da construção identitária masculina baseada na performance atlética (Christiansen, 2020).

Essa experiência nos leva a refletir sobre como o capital de gênero associado à atividade física desempenha um papel crucial na constituição da masculinidade. A prática esportiva reafirma valores culturais ligados à força e à disciplina e oferece oportunidades para a redefinição da masculinidade e da mobilidade social. No vácuo deixado pelo fracasso futebolístico, a busca por novos referenciais esportivos, físicos e simbólicos tornou-se imperativa, evidenciando como a performance de gênero é negociada e validada.

Desafios de masculinidade no fisiculturismo: capital de gênero e uso de drogas

À medida que o pesquisador que se inseriu na prática etnográfica foi aceito em um grupo de atletas da Academia Hardcore, ele recebeu inúmeros convites para confraternizações nos finais de semana. Foi durante um desses encontros que o interlocutor principal revelou que seria uma oportunidade de expandir conhecimentos acerca do uso de drogas no mundo esportivo. Durante uma interação, deparamo-nos com o que Messerschmidt (2000) nomeia como desafios da masculinidade, caracterizados por confrontos entre diferentes concepções do que significa ser um homem cisgênero. Foram reveladas visões antagônicas sobre idealizações de masculinidade, especialmente entre fisiculturistas e jovens não envolvidos com o esporte, acontecimento que foi crucial para a pesquisa.

Fisiculturistas, dessa forma, seriam caracterizados pelo senso comum de maneira similar à “pequenos grandes homens”, uma alusão à descrição pioneira de Klein (1993) ao analisar a cultura das academias na Califórnia. Misturando psicologia e estudos de gênero, o autor defendeu a visão de que o corpo musculoso era uma “construção psicologicamente defensiva” (Klein, 1993, p. 18), interpretando-o, implicitamente, como um mecanismo de compensação para uma suposta falta e/ou fragilidade de virilidade18. No entanto, essa caracterização foi rejeitada por fisiculturistas que teceram narrativas complexas para legitimar o uso social de drogas, tecendo uma relação profunda entre masculinidade e a positivação do risco associado ao consumo. A seguir, discutimos um protocolo farmacológico “pré-sexo”, ponto inicial de uma discussão que quase resultou em confronto físico:

[contexto: Discussão sobre drogas para fins sexuais].

Alfa: Olha, o protocolo que eu uso em ocasiões especiais com minha mulher é: Proviron (Mesterolona) 1 cápsula (50mg); Tadalafil 10-20mg e HCG 250ui.

Nutricionista: Não tá dando conta, né? Tem que tomar essas coisas, né?...

Grupo: [risadas].

Pesquisador [intervenção]: O Tadalafil, eu até entendo, mas por que as outras substâncias?

Alfa: Quantidade na hora H (volume ejaculatório). A gente usa HCG, offlabel19 para outra coisa, mas, na situação, é pra quantidade mesmo. [...]

Pesquisador: E na hora H, sua mina só usa ocitocina ou usa outras coisas também?

Alfa: [...] não, mano, só ocitocina, mas vocês são lerdos, porra!,Acham que é igual colocar a camisinha, aí do nada, um vai e shot’ [do inglês, shot, injetar] ou toma tadala [abreviação para tadalafil]. Nada a ver. Puta que o pariu, é tipo assim.

Grupo: [Risadas].

Alfa: a gente vai sair pra jantar e estamos a fim de foder. Então, antes de sair, ela já shota ocitocina... vai toda melosa comer, e eu tomo 10mg de tadala, vou que nem cavalo. Aí quando arrasto, só bagaço [risadas].

Praticante de Crossfit: Ocitocina que tua piveta toma é injetável?

Alfa: Tem a nasal pra bicha que nem você. A gente usa veterinária injetável20. Não tem viadagem aqui não [risadas], mas a real da ocitocina, minha mina só usa pré-sexo mesmo. Mulher relaxa demais com ocitocina, fica mais passiva, goza mais fácil... Bom demais

[continua]

Connell (1995) observa que diferentes grupos de homens, cada um buscando afirmar uma masculinidade hegemônica, frequentemente entram em conflito. No caso do fisiculturista, seu comportamento era visto por si próprio como hipermasculino, afinal, quem teria coragem de usar quatro diferentes substâncias complementares para aprimorar o desempenho sexual? Somente um homem viril aceitaria uma escalada no risco pela busca da perfeição da performance de seu capital de gênero, no caso, sexual. A intoxicação seria um elemento simbólico que produziria distinção entre os próprios homens e até mesmo entre mulheres21. Essa perspectiva, no entanto, foi amplamente contestada por jovens que não praticavam o esporte, os quais retrataram o fisiculturista como alguém que buscava compensar uma lacuna de gênero por meio de recursos exógenos. É por essa mesma razão que Bridges (2010) aponta o capital de gênero como um elemento altamente dependente do contexto. O relato continuou e os ânimos ficaram ainda mais exaltados:

[Contexto: a discussão continua e o nutricionista acusa o atleta de ser broxa]

Alfa: Então, a testosterona é a 4ª na linha sucessória em relação à disfunção erétil. Então, chamar de broxa sem saber nem o que é estradiol é a prova de que não sabe porra nenhuma. Fico puto com isso.

Pesquisador: Me passa essas linhas aí depois.

Nutricionista: Tá broxando, hein.

Grupo: [risadas]

Alfa: É Dopamina / Estradiol / Prolactina / testosterona. Por que você acha que o cara tá com eixo22 bom e broxa?

Professor de inglês: Psicológico faz broxar mais que anabolizante.

Alfa: O Pesquisador faz pós ou mestrado, sei lá, nessa área aí e eu o ajudo.

Pesquisador: Faz sentido.

Alfa: [...] “ah, mas marombeiro é broxa”. Frase de frango de merda. Nem 40 de braço tem. Fico puto.

Praticante de Crossfit: Sabe qual a ocitocina da minha? Minha rola, quando ela ver, ela endoida [risadas], a ocitocina dela vai no caralho.

Alfa: Compra a nasal para você [nome no feminino], é perfeito para você que não aguenta agulha: Ai, faz dodói. Que moleque estrogenado de bosta.

Praticante de Crossfit: Mano, cala sua boca, para poder transar, tu se enche de droga, bicho. Eu só preciso de sexo oral.

Alfa: Você é ignorante, isso que você é, Risadas. Sua mina produz ocitocina enquanto você vai transar, seu burro.

Praticante de crossfit: Ela produz, a sua injeta. Tem uma diferença aí.

Alfa: Qual seu ponto nisso, saúde? Ah, não aguento, esse arrombado toma cerveja pra ficar em casa e fala isso. A diferença é que o que eu uso serve para algo. Moleque cachaceiro! Tem vergonha, não?

Como indicado por outras etnografias relacionadas ao esporte, fisiculturistas precisam negociar maneiras sutis de apresentar as regras do jogo de gênero para recém-chegados. E, é claro, o humor frequentemente desempenhou um papel central nesse processo de socialização e na reprodução da desigualdade entre os participantes (Goffman, 1959, 1967; Bridges, 2010). As acusações preenchem o papel social de atribuir rótulos de masculinidade e buscam o convencimento geral do grupo de qual o modelo hegemônico iria se sobressair naquela esfera de interação social.

O domínio técnico sobre o uso de substâncias, aliado ao desejo pelo risco, legitima a imposição do capital de gênero como elemento central nessas dinâmicas sociais. Isso indica que os recursos farmacêuticos não apenas refletem as construções de gênero, mas atuam como instrumentos ativos na formação dessas identidades. Por meio do uso dessas substâncias, os indivíduos conformam suas masculinidades e conquistam capital sexual (Measham, 2002).

Simultaneamente, a rejeição da figura do homem natural, entendido como aquele que não recorre a hormônios para aprimoramento, funciona como uma forma de emasculação simbólica. Essa rejeição associa tal perfil à feminilidade e ao estigma pejorativo do estrogenado. Tal oposição evidencia que masculinidade e feminilidade não são categorias estritamente vinculadas a homens e mulheres, mas metáforas de poder e ação atravessadas por marcadores sociais e contextuais que configuram as experiências dos sujeitos (Almeida, 2018).

Portanto, nesses desafios de masculinidade, homens cis estão constantemente sob escrutínio, avaliando-se e sendo avaliados pelos outros. Normas sociais são constantemente vigiadas e fiscalizadas, para concessão ou não da aceitação com base em gênero (Kimmel, 1997). De fato, a masculinidade se define pela busca incessante de validação externa, estruturando-se em assimetrias e hierarquias que opõem modelos hegemônicos e subordinados (Carrigan et al., 1985; Almeida, 2018).

Dessa forma, dois modelos de masculinidade disputavam naquela discussão a hegemonia sobre o verdadeiro significado de ser homem. De um lado, a percepção popular via o fisiculturista como alguém que mascarava inseguranças por meio da musculatura excessiva, frequentemente associando o corpo esculpido artificialmente à disfunção sexual e à fragilidade emocional. De outro, emergia a figura do homem intoxicado, que, ao enfrentar riscos constantes, se autoproclamava o ápice da hierarquia masculina. Para ele, o consumo de substâncias era um rito de afirmação de virilidade, e qualquer questionamento era respondido com agressividade, desqualificando seus críticos como fracos, inferiores e femininos.

Nessa batalha discursiva e simbólica, cada modelo de masculinidade buscava se consolidar como única expressão legítima, reconfigurando normas sociais e reafirmando as assimetrias de gênero. Embora distintos em suas manifestações, ambos compartilhavam a necessidade contínua de validação, marginalizando e desqualificando qualquer desvio de seus padrões normativos.

Masculinidades Intoxicadas

O estudo do fisiculturismo revela dimensões fundamentais sobre a maneira como os fármacos configuram novas formas de percepção e construção de gênero, ao moldar simultaneamente o corpo e a subjetividade. Na contemporaneidade, a masculinidade não pode ser compreendida apenas como um dado natural ou cultural fixo, mas como um vetor plástico, produzido a partir de mecanismos artificiais que criam dinâmicas inéditas de empoderamento, distinção social e acumulação de capital de gênero. Esse fenômeno não apenas redefine os significados do que é ser homem, mas também abre caminhos para ascensão social e afirmação individual em um contexto marcado por valores corporais e performativos.

Embora a intoxicação por drogas e o desejo pelo risco sejam frequentemente desaprovados socialmente, eles persistem como sintomas reveladores de uma transformação profunda nos padrões tradicionais de masculinidade. A busca pelo corpo ideal com proporções específicas de musculatura e gordura (Sautchuk, 2007) funciona como um eixo central na reconfiguração da autopercepção de força, virilidade e poder de homens cis. Cada vez mais, o uso de substâncias farmacológicas se torna fundamental para a construção de um novo tipo de homem, que se manifesta nas dimensões física, sexual e simbólica, e cujo processo de formação exige etapas rigorosas e está condicionado a demandas sociais específicas.

A primeira etapa desse processo envolve a inserção na academia, um espaço marcado por rituais de virilidade e comportamentos de risco. Tais práticas não apenas expressam a busca por prestígio em um ambiente corporalmente competitivo, mas também consolidam uma lógica social que valoriza o sofrimento como prova de dedicação e resistência. Em seguida, emerge o empoderamento emocional através da identificação com o esporte, muitas vezes atravessado pelo sofrimento, que se traduz em laços de solidariedade significativos entre os praticantes. Por fim, configuram-se verdadeiras economias morais em torno do corpo ideal, nas quais a troca de saberes entre atletas experientes e iniciantes por meio de dicas para crescimento muscular e perda de gordura reforça vínculos e reproduz normas corporais compartilhadas.

Ao cumprir esses requisitos, a construção do corpo e da identidade pode culminar na autopercepção como vencedor ou macho alfa, evidenciando uma redefinição do capital de gênero. E, em alguns casos, a masculinidade pode até mesmo ser concebida como uma performance que articula dimensões morais e bioquímicas. A postura diante do risco, especialmente associada ao uso de substâncias, transforma-se em um marcador social central da masculinidade, demarcando distinções entre homens comuns e aqueles autodenominados hormonizados. Embora essa lógica possa ser contestada, ela é legitimada pelos atletas que, ao associar a rejeição do uso de fármacos ao feminino, reforçam uma hierarquia de gênero por meio de termos pejorativos.

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  • 1
    Essa categoria é objeto de debates nos estudos de gênero. Enquanto alguns a defendem como ferramenta analítica essencial para compreender a experiência subjetiva e a autodefinição dos indivíduos, outros a contestam, enfatizando seus limites teóricos e políticos (por exemplo, Butler, 1990). Ao adotá-la, incorporamos essas críticas, entendendo-a não como algo fixo e essencial, mas como uma construção relacional e performativa. Não a tratamos como uma categoria estanque, mas como um processo dinâmico pelo qual os sujeitos investem na produção de si, atravessado por normativas sociais, práticas corporais e discursos biomédicos. Como performance, ela não existe isoladamente, mas se insere em hierarquias simbólicas amplas, articulando-se fisicamente ‒ por modelagem e controle do corpo ‒ e simbolicamente ‒ pela incorporação de discursos sobre força, virilidade e resistência. Inspirando-nos em Hall (2002), compreendemos a identidade como um ponto de articulação entre discursos e práticas, sempre provisória e sujeita a reconfigurações, não como uma essência a ser descoberta. Assim, a categoria possibilita investigar os mecanismos pelos quais atletas se reconhecem como pertencentes a um grupo e negociam status e legitimidade nas hierarquias da masculinidade, dentro e fora do esporte.
  • 2
    Reconhecemos os debates contemporâneos que questionam a noção essencialista de “sexo masculino”, à luz de estudos antropológicos, sociológicos, históricos e políticos que problematizam a crença em uma base biológica fixa para as diferenças de gênero (por exemplo, Haraway, 1985). Contudo, adotamos as expressões utilizadas pelos interlocutores, respeitando suas concepções pessoais e autodefinições. Ao referir-nos aos sujeitos, usamos a forma como eles mesmos se identificam (homem/pessoa do sexo masculino), indivíduos cultural e socialmente identificados como tais e que, após o processo de socialização, reconhecem-se e são reconhecidos no gênero masculino. Essa escolha terminológica não implica validar de forma acrítica as categorias do senso comum, mas sim compreender as dinâmicas do grupo investigado, respeitando seus modos de significação e seus discursos.
  • 3
    Há duas grandes práticas farmacológicas nas academias: ciclar e blast and cruise. O grupo que cicla usa substâncias de forma cíclica e recreativa, com períodos significativos de alternância no uso e restrições ao consumo crônico. O grupo de blast and cruise utiliza diversas substâncias por longos períodos, com “explosões” de fármacos para maximizar ganhos musculares, seguidas de períodos de baixa dose para limitar danos à saúde (Sagoe et al., 2015; Sá, 2021). Nosso recorte focou em atletas adeptos desta última etnofarmacologia, pouco estudada na literatura.
  • 4
    Compreendemos o termo “estilo de vida”, segundo Gilberto Velho (1995): uma marca de diferenciação total que se manifestava em todos os aspectos da vida dessas pessoas. Um exemplo: mesmo em uma confraternização entre amigos, o atleta escolhe alimentos não calóricos caso estivesse em fase de emagrecimento.
  • 5
    Nome fictício que reflete a percepção dos próprios praticantes sobre o espaço, evocando uma estética de intensidade e marginal.
  • 6
    Um dos pesquisadores explorou várias academias até encontrar a adequada para o trabalho de campo. Notavelmente, em grandes redes, o acesso a pessoas fora do padrão cisgênero é maior. Na academia em questão, não foi encontrada tal diversidade.
  • 7
    Levantar um peso até não aguentar mais.
  • 8
    Não obstante a prática etnográfica in loco tenha sido realizada por apenas um dos autores, vamos nos referir a ela na terceira pessoa do plural em função da autoria dupla do texto como um todo.
  • 9
    O pesquisador que realizou a observação, com 1,75m e cerca de 65 kg, buscou respeito entre fisiculturistas locais que detinham, segundo Bridges (2010), domínio simbólico no ambiente. Adotou técnicas corporais refletindo a intensidade observada, visando integração ao grupo. Ao levar o exercício físico ao limite, enfrentou zombarias e imitou os mais fortes para ser aceito. Isso ecoa estudos de gênero, mostrando a relação entre construção de masculinidades e adoção comportamentos de risco (Connell, 1995).
  • 10
    Pode ser compreendido como a silhueta ou formato do corpo.
  • 11
    O coach, treinador físico, é uma figura altamente controversa no meio da musculação. Sua atuação é frequentemente comparada à de um "mago" — termo irônico utilizado para designar treinadores, médicos e profissionais da saúde que orientam atletas de alto rendimento no uso de substâncias e estratégias de aprimoramento físico. Sua influência se manifesta na prescrição de dietas específicas, no uso de medicamentos e na aplicação de técnicas de treino diferenciadas, consolidando seu papel na transformação corporal de seus atletas.
  • 12
    Refere-se a uma pessoa que aparenta ser magra, porém apresenta muita gordura e pouco músculo.
  • 13
    Designa o uso de drogas.
  • 14
    Ficar, ser ou estar natural significa não consumir esteroides anabolizantes androgênicos (EAA).
  • 15
    Refeições estratégicas nas quais o atleta poderia comer o que quiser. Geralmente ocorrem em momentos de confraternizações.
  • 16
    Abreviação para bodybuilder.
  • 17
    Expressão em inglês que significa academia de ginástica ou ginásio.
  • 18
    Uma das críticas a essa visão é que a etnografia de Klein retratou uma imagem estereotipada dos fisiculturistas como um grupo homogêneo de homens psicologicamente vulneráveis. Ver mais em Christiansen (2020); Macho et al. (2021).
  • 19
    Trata-se do uso off-label, ou seja, da utilização de um medicamento para finalidades diferentes daquelas aprovadas oficialmente em seu registro. Esse uso pode envolver doses, indicações ou públicos não previstos na bula, o que levanta questões sobre segurança, eficácia e regulação, além de refletir práticas médicas e sociais que extrapolam os limites formais da prescrição farmacêutica.
  • 20
    Nesses contextos, o uso de medicamentos veterinários fornece um ar de superioridade ao homem, que se equipara, simbolicamente, ao cavalo.
  • 21
    As companheiras de atletas eram também estimuladas a se tornarem “hiperfemininas” pela utilização de hormônios como a ocitocina. Assim, preencheriam características desejáveis pelos homens no ato sexual, como ficarem mais passivas, relaxadas, o que culminaria, segundo eles, em maior facilidade de se obter o orgasmo.
  • 22
    O uso de anabolizantes inibe a produção de testosterona e a espermatogênese em homens por meio da supressão do eixo HPT (hipotálamo-pituitária-testicular). Dentre as várias consequências, tem-se a perda de massa muscular com ganho de gordura, aparecimento de sintomas psicológicos como depressão, ansiedade, raiva e instabilidade emocional, dentre outros.
  • Editoras/r responsáveis pelo processo de avaliação:
    Natália Corazza Padovani
    Julian Simões
    Luciana Camargo Bueno

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Out 2025
  • Data do Fascículo
    Ago 2025

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2024
  • Aceito
    12 Fev 2025
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