Resumo
O Suriname é um país rico em referências geopolíticas-econômicas e culturais. Esse país, localizado no extremo norte da América do Sul, foi escolhido para este estudo devido aos fluxos migratórios oriundos da Amazônia brasileira, em especial, de Belém até o território surinamês. Abordam-se, nessa pesquisa, categorias de diferenciação de gênero, raça/etnia, classe, sexualidade e de origem e lugar; diversidade de experiências, mobilidades, deslocamentos e migração de mulheres e de homens e seus diferentes pontos de vista sob bases de análises interseccionais. Uma das principais questões que norteou este estudo foi compreender a racialização/sexualização das mulheres Amazônidas/brasileiras em mobilidade.
Palavras-chave
Migração de retorno; Migração Sul-Sul; Interseccionalidade
Abstract
Suriname is a country rich in geopolitical, economic, and cultural significance. This country was chosen for this study due to the migratory flows originating from the Brazilian Amazon, particularly from Belém to Surinamese territory. This research approaches categories of differentiation including gender, race, ethnicity, class, sexuality, origin, and place. The study examines the diversity of experiences, mobilities, displacements, and migration patterns of women and men, analyzing their different perspectives through intersectional analysis frameworks. One of the central questions of this study is understanding the racialization and sexualization of Amazonian/Brazilian women in mobility contexts.
Keywords
Return Migration; South-South Migration; Intersectionality
Introdução
Do Suriname, a ex-companheira de um primo que migrou por conta do garimpo há mais ou menos dez anos e hoje tem uma filha dessa idade. A família vive indo e vindo de lá, inclusive. (Mauro)1
A minha sogra trabalhava como cozinheira no garimpo no Suriname. Ela passava um tempo lá e voltava. (Roberto)
Ambos os relatos fazem parte dentre tantos que me chamaram a atenção, quando os ouvia, ao longo dos anos, em um momento e outro, de alguém conhecido que conhece alguém que foi para o Suriname. É algo que se sabe e se comenta, principalmente nos bairros da periferia da cidade de Belém do Pará. Seguindo a pista dessas narrativas, fiquei curiosa sobre o processo migratório e de mobilidades da capital Belém para a capital de Suriname de mulheres Amazônidas sob a perspectiva de migração de retorno à capital. Uma das questões que norteou este estudo foi compreender a racialização/sexualização das mulheres Amazônidas/brasileiras em mobilidade.
Segundo Adriana Piscitelli (2008), pensar nas articulações entre gênero, sexualidade, raça e etnicidade/nacionalidade contribui para compreender as experiências das migrantes brasileiras. Há um crescimento vertiginoso da migração feminina, ao longo dos anos, que merece a todo momento destaque (Piscitelli, 2007:719). Ela assinala que “[...] nos estudos sobre migração, há praticamente um consenso no que se refere à crescente participação feminina nas migrações internacionais”, bem como podemos notá-lo também em Kofman et al. (2000); Pessar (2005); Scott (2011); Assis (2007); Palmary (2010); Assis (2011). Quando se aborda esse crescimento vertiginoso da feminização da migração, é importante interrogar sobre as suas naturezas, conexões e articulações (Lazaridis, 2009).
Minha intenção foi romper com a perspectiva homogeneizadora acerca da mulher brasileira (Togni, 2011) atenta de que há uma “crença comum a discursos que intersectam nação e sexualidade em arenas transnacionais e de acordo com definições hegemônicas da identidade brasileira, tal como historicamente concebida numa arena global” (Maia, 2011:374).
Dediquei-me, então, a estabelecer contatos para entrevistas. Fiz um levantamento bibliográfico de produções sobre o Suriname e temas afins correlacionados à temática, como as produções sobre migrações e gênero, buscando, como base teórica, epistemologias negras que me convidaram a uma abordagem interseccional a qual contribuiu para reconfiguração das etapas da pesquisa e análise das entrevistas. É importante assinalar que, a partir daí, foi possível viabilizar o campo de pesquisa no Suriname – realizado em 2018 – com interlocutoras e interlocutores que aceitaram fazer parte da pesquisa, concedendo entrevistas com hora marcada, seja por meio de Whatsapp, por se encontrarem no Suriname, ou entrevistas presenciais, em Belém do Pará, durante os meses de janeiro de 2017 a julho de 2018. Muitas das entrevistas se deram em tom de conversa, sem gravações, e, depois, foram anotadas. Foram anotações rápidas, mas básicas, e inestimáveis, em um pequeno bloco na cidade de Paramaribo, Suriname. O tempo e o ritmo da entrevista foram conduzidos pelas interlocutoras, vale sublinhar. É preciso destacar que as conversas informais delinearam o percurso das entrevistas, pois justamente “[...] conversas sem expectativas trazem detalhes com o intuito de que entendamos melhor tudo o que foi dito e não dito” (Conrado, 2013:14) e se tornaram fundamentais para a abordagem do assunto da pesquisa em campo. A pesquisa se deu em duas etapas: marcação de entrevista presencial com quem estava em Belém, de seu retorno “definitivo”, ou via Whatsapp, com quem residia em Paramaribo.
Em referência às expectativas construídas do retorno, elas estão vinculadas ao jogo de experiências negociadas em suas narrativas, já em “terra natal”, que também ganham significados diversos e são atualizadas no dia a dia. A ideia do retorno (Sayad, 1998) está presente nas entrevistas e, muitas vezes, é alimentada pelos laços duráveis com a família e/ou com a comunidade originária, pelos contatos telefônicos, Internet e visitas ao Brasil. É o passado migratório e de mobilidades sob a perspectiva do presente acerca das experiências vividas. Glória Anzaldúa (1987) nos inspira a pensar, como chave de leitura interpretativa, sobre o exercício de ressignificação que desencadeia o processo de criação de narrativas, no presente.
Três agendamentos com mulheres que residem em Belém foram remarcados várias vezes, e, ao final, houve desistência. Houve outras recusas de amigas das interlocutoras que já tinham migrado para o Suriname. Em um primeiro momento, considerei a migração de retorno de Letícia e Juca em entrevista presencial realizada em Belém. Ambos não pensavam em retornar ao Suriname. Vale assinalar que há um clima de receio que circunda desde o agendamento até o momento da entrevista. A mãe de Leticia, por exemplo, perguntou, diversas vezes, se a sua filha não corria risco de retaliações ao contar sobre o assunto durante nosso encontro. É importante dizer que, no âmbito de nossa conversa, em tom de confidência, durante a entrevista, falar de idas e vindas ao Suriname acionam lembranças, comentários em tom de fofocas que circulam, majoritariamente, referentes a bairros da periferia de Belém ao produzirem histórias e narrativas locais, interpretadas por quem as protagonizou, dando sentido ao contexto de mobilidades Sul-Sul, conforme veremos mais adiante. Em segundo momento, entrevistas via Whatsapp, com Juliana que residia em Paramaribo, Suriname. E, em um terceiro momento, após desembarcar no Suriname, pude entrevistá-la pessoalmente, mais de uma vez. Em Paramaribo, conversas informais com filhas e filhos de brasileiras e demais pessoas em condição migratória e de mobilidades são apresentadas ao longo do artigo. Ainda em Belém, duas pessoas que negaram a entrevista já tinham sido traficadas para o Suriname e conseguiram fugir, retornando ao Brasil.
Segundo Kamala Kempadoo (2005), o tráfico como discurso e como prática emerge das intersecções de relações de poder estatais, capitalistas, patriarcais e racializadas a contraponto da atuação e desejos das mulheres que dão forma às próprias vidas. Desta maneira, elas criam estratégias de sobrevivência e vida. É o que Gloria Wekker define de agência como uma cristalização das subjetividades das mulheres com a possibilidade iminente do agir. Nesse sentido, elas buscam oportunidades para ampliar suas escolhas em nome de melhores condições de vida (Wekker, 2012). Portanto, a prostituição deve ser encarada como trabalho sexual, ao rejeitar-se a fusão entre as noções de prostituição e tráfico de mulheres (Kempadoo, 2005; Piscitelli, 2013).
Com minha ida, em 2018, a Paramaribo, durante minha estadia no bairro, comumente conhecido como área de brasileiras e brasileiros, pude efetuar entrevistas com hora marcada a fim de entender as motivações, significados, valores e visões de mundo (Fraser; Gondim, 2004) de brasileiras e brasileiros que foram passar temporadas ou que fixaram residência lá, além de entrevistar filhos de brasileiras. Trabalhei com depoimentos de mulheres e homens Amazônidas, em suas temporadas ou residência fora do Brasil bem como com filhos de brasileiras e brasileiros nascidos no Suriname. A dinâmica do trabalho de campo foi pautada pelas circunstâncias locais/regionais e contextos específicos por essas mobilidades. Quero dizer que acompanhei as percepções dessas pessoas que, recorrentemente, afirmam “vou lá, mas volto” e “idas e vindas” como expressões que remetem às estratégias, dinâmicas e planejamentos vinculados às suas mobilidades, trânsitos e deslocamentos.
A ideia foi escapar de explicações reducionistas de cunho determinista acerca da pobreza como o fator exclusivo definidor de mobilidades. Concepção que nos faz perder de vista a complexidade de questões envolvidas no processo migratório e de “lançar mão” do que bell hooks (2000b) salienta ao afirmar que manter conexões diretas com o mundo sempre obriga a pensar criticamente sobre a dinâmica de classe nesta sociedade.
Os resultados da pesquisa me conduzem a afirmar/observar multifacetadas visões de mundo protagonizadas por essas mulheres. Elas desestabilizam o padrão hegemônico das relações assimétricas de poder entre os gêneros, ao colocarem em xeque (diferenciadas) versões explicativas que as inferiorizam, conforme os relatos que seguem ao longo do texto. Demonstro esse argumento apresentando uma abordagem crítica baseada na literatura especializada, ao desconstruir uma base referente, fundamentalmente homogênea, sobre mulheres brasileiras que as anula em suas diversidades nas experiências raciais, de gênero, de sexualidade, de classe e de origem e de lugar.
Em “Paramaribo como contexto de pesquisa”, apresento o campo na capital surinamesa a partir da minha convivência local que me levou à imersão na área onde se concentram as brasileiras e os brasileiros e jovens surinamesas e surinameses descendentes de brasileiras. Daí seguem as demais seções intituladas a partir de narrativas de quem entrevistei, as quais emolduram as relações transnacionais, dando fluidez à própria ideia de brasileira em contexto situado, o que viabiliza compreender e analisar experiências de mundo a partir de suas complexidades.
Paramaribo como contexto de pesquisa
As trocas, fluxos e dinâmicas constantes de um país como o Suriname ganham espacialmente referências geopolíticas-econômicas e culturais particulares por fazerem parte da região chamada de Amazônia Internacional2, de significativos fluxos migratórios oriundos da Amazônia Brasileira. O Suriname é um país localizado no extremo norte da América do Sul, que serve como referência para brasileiras e brasileiros, oriundos do Pará e do Maranhão, em sua maioria, para, significativamente, rearticularem possibilidades “de ganho” por intermédio do trabalho em suas dinâmicas migratórias.
Os países continentais americanos da Guiana, Suriname, Guiana Francesa e Belize, ao final do século XX, foram comumente definidos como parte da região devido a uma história socioeconômica, política e étnico-cultural compartilhada com as ilhas do Mar do Caribe (Kempadoo, 2004).
A viagem de campo a Paramaribo, em 2018, teve duração de uma semana para a realização de entrevistas com brasileiras e brasileiros residentes no país. Cheguei ao aeroporto, em um domingo à noite, para embarque em voo da GOL. Naquela época, só existia um voo Belém-Paramaribo, aos domingos, com duração de uma hora e quarenta e cinco minutos. O que parecia ser o trajeto e itinerário de mais “fácil acesso” foi se configurando com fila muito longa e demorada, por horas. O check-in não era possível via online, via site. Com o tempo, houve aumento de oferta de voos para duas e, depois, três vezes por semana.
Após buscar informações com a única pessoa da empresa próxima ao local de embarcar para Paramaribo, soube que teria que imprimir o localizador na máquina de autoatendimento. Durante a compra de bilhetes de ida e volta, via site internacional que enviou o número do bilhete por e-mail, o número do localizador não foi informado. O acesso ao localizador acontecia somente no serviço de autoatendimento, onde só havia três máquinas, e uma não funcionava. Ambas as máquinas estavam travando na metade da operação, sem chegar à conclusão, o que exigia reiniciar a operação após a inclusão de todos os dados solicitados.
Eu me dirigi a um funcionário que estava no acesso à fila de despacho de bagagem e pedi que me ajudasse na aquisição do localizador. Ele indagou se eu havia conseguido via site. Era atencioso, mas também não sabia direito como resolver o problema. Ficou evidente que ele também, mesmo querendo ajudar as pessoas, não sabia como resolver e foi informado na fila de atendimento que dependia somente do bom funcionamento da máquina de autoatendimento. A maioria das pessoas ali presentes estava sem saber como resolver o problema. Após a permanência em uma fila sem êxito, tive que ser mais categórica para solicitar o localizador imprescindível para a viagem. Então, o mesmo funcionário foi a um setor e o trouxe em um pedaço de papel manuscrito, após eu ter dado o número de meu bilhete. Enquanto isso, a fila de autoatendimento permanecia lenta. Quando me dirigi para o despacho de bagagem e check-in, fui atendida por um ex-aluno da universidade onde leciono. Aproveitei para perguntar se tal situação era comum e ele disse que sempre era assim. Ele ainda me disse que o embarque para Paramaribo era “comumente tumultuado” e lotado.
Na chegada do voo em Paramaribo, de madrugada, fui requisitada para ajudar a um senhor no preenchimento da folha de entrada de estrangeiro no país porque ele tinha dificuldades, algo muito comum de acontecer. Osvaldina Araújo (2017:45) menciona a dificuldade no preenchimento da folha de entrada para o Suriname como “um tormento para a maioria daquelas pessoas” escrito em holandês e em inglês.
Dificuldades também por mim enfrentadas em nome da exigência categórica feita pelo agente, falando em holandês, em tom ríspido, que eu tinha que ter imprimido o meu bilhete aéreo. Ressalto que o bilhete estava disponível, de modo legível, no celular. O desconforto só foi resolvido após eu mostrar insistentemente o meu bilhete aéreo em meu celular.
Horas depois do meu desembarque, pela manhã, olhei a vista da janela do hotel em que fiquei hospedada em busca de me situar, de me reconhecer naquele lugar e de me localizar naquele cenário. O que eu vi primeiramente foi uma casa, cuja palavra cabeleireira estava escrita sem muito capricho, dando a impressão de ter sido usada uma caneta piloto, em três idiomas: holandês, inglês e português. Naquele momento, eu pude confirmar que estava em Paramaribo, ou melhor, em Klein Belém conhecida como Belenzinho (Oliveira, 2013; Araújo, 2017).
O Suriname se encontra inserido em contexto marcado pela multiculturalidade. Muitas das línguas faladas no Suriname são: o holandês, o sranantongo (taki taki), osaramaccan, o ndjuka, o javanês e o hindu, o português e o inglês. No contexto de mulheres migrantes, o marco da interseccionalidade de gênero, classe e diversidade cultural (Nash, 2012) ganha indispensável importância analítica.
Em agosto de 2018, para melhor compreensão das categorias classificatórias, segundo a raça/cor e etnia no Suriname, em entrevista realizada pelo Whatsaap com Raphaelle Sérvius-Harmois, do Instituto de Estudos em Línguas e Culturas da Amazônia (INTERMUNÃ), localizado na Guiana Francesa, com trânsito social muito rico entre as Guianas, explicou quem é denominado creole e mestiço, no Suriname. Ela elucida:
[...] creole são pessoas que “são mestiças com origens africanas, que são afrodescendentes, mas são pessoas com várias origens”, são pessoas que não se afirmam como quilombolas ou indígenas, que não são europeias, não são colonizadores. Quando não se encaixam nessas categorias, ganham essa nomeação de creole. Geralmente, são pessoas afrodescendentes, mas com origens também europeias, indígenas, mas que aparentemente são afrodescendentes. (Raphaelle)
Ela explicita que creole, para o holandês, são aquelas pessoas que assumem uma determinada origem africana, de trocas e contatos com indígenas e de contato com brancos holandeses – o que não significa, de modo algum, uma troca marcada pela equidade com esses últimos.
Segundo Raphaelle Harmois, a palavra mestiço, e em especial, no Suriname, é utilizada para classificar as pessoas de pele clara que são descendentes de africanos e europeus. Neste caso, pessoas de pele clara que não querem entrar em uma categoria “fora das miscigenações” em vários países da região das Guianas. Inclui também toda a população que migra por conta das abolições no continente africano e do Caribe, e Ásia. Pessoas que têm filhos com nativas e nativos e demais migrantes, sejam elas de origem africana e europeias, que não têm como afirmação identitária um grupo definido racial ou étnico. São pessoas de pele clara e, segundo Raphaelle, isso não quer dizer que as pessoas não tenham traços africanos, traços marcados africanos e/ou traços de outras partes do mundo que migraram para o Suriname. Então, ela postula que o uso do mestiço como categoria classificatória visa a escapar, fugir, de uma origem remetida aos povos africanos escravizados.
Há mais de quinze anos, cubanos e venezuelanos vão a Paramaribo tanto de passagem para outros países da América do Sul quanto para permanecer no país. Encontrei cubanos que passam temporadas em Paramaribo com o intuito de viajar para outros países da América do Sul. Como me disse Santiago, um jovem rapaz cubano, “do Suriname pode-se viajar para outros lugares.” Ele foi a Paramaribo com primos e tio. Havia cinco meses que residiam na cidade e seguiriam, depois, para o Uruguai.
Em Paramaribo, muitos brasileiros moram e trabalham no mesmo bairro onde se encontra o “comércio voltado para logística do garimpo e garimpeiros que procuram a capital para vender ouro, comprar utensílios de necessidades básicas e buscar diversão nos bares e night clubs” (Oliveira, 2013:47). Os hotéis que ali se concentram têm como sua maior clientela garimpeiros de passagem pela cidade. A capital surinamesa é uma localidade estratégica para garimpeiros em busca de serviços médicos, envio de remessas de dinheiro para a família, venda de ouro ou aquisição de mantimentos, como afirma Jubithana-Fernand (2009).
A mobilidade tem sido construída, principalmente, como um conceito masculino (Cresswell; Uteng, 2016). Gênero e sexualidades passam a ter importância e são reconfigurados por meio da experiência da mobilidade (Penttinen; Kynsilehto, 2017). Acionar as pessoas em mobilidade ou em condição migratória pelo mundo, a partir de suas complexidades, potencializa a análise crítica do racismo, sexismo e exploração de classe (Collins; Bilge, 2016). Se quisermos entender como as mobilidades são generificadas e racializadas, é importante começar observando como escrevemos/abordamos sobre suas realidades e o que fazemos com isso. (Subramanyan, 2016; Amos; Parmar,1984).
Juliana: minha última parada [...] (Paramaribo)
Juliana, 52 anos, autodeclara-se “travesti e negra, com muito orgulho”, trabalhou em Paramaribo, por vários anos. Iniciou uma nova fase de sua vida no garimpo3, em 1984, por causa da “fofoca do ouro”, que levou à mobilidade intensiva de brasileiros em busca de ouro, no Brasil. Ela nasceu em Tocantins e de lá se mudou ainda criança. Juliana se considera uma paraense por ter passado o maior tempo de sua vida – infância e adolescência – nesse Estado:
[...] Nasci no Tocantins, mas praticamente me criei no Pará, né. Morei muito tempo no Pará. Eu me considero um lado paraense, um lado tocantinense, mas assim meu lado paraense aflora mais porque eu gosto da cultura paraense, eu conheço bem, eu gosto. É o que convivo mais. Cultura do Tocantins eu pouco sei [...]. Eu sei pouca coisa. A imigração de paraense é muito grande. É maior do que dos outros estados do Brasil, por exemplo, maior do que do Maranhão, maior do que Goiás, do Sul. Paramaribo é do Pará. Pará está em peso aqui.4 (Juliana)
Do Pará iniciou seu “percurso da mobilidade” que a levou, posteriormente, a se instalar em Paramaribo. As relações de amizade, afetos e compadrio construídas se dão durante os percursos da mobilidade (Handerson, 2015). Ela foi morar, na adolescência, em São Geraldo do Araguaia, no Pará e de lá se mudou para São Paulo, onde morou com outra família por quatro anos como “companhia”, o que significa, grosso modo, fazer todo tipo de serviços gerais. Depois, passou a morar com seu pai, em São Félix do Xingu-PA, e de lá retornou para São Geraldo do Araguaia. Em 2003, trabalhou um ano nos garimpos da Guiana Francesa. Ela destacou, reiteradamente, como sofreu “discriminação por me verem homossexual” e saiu de Itaituba-PA onde era chamada de “negrinho” e passou por uma série de agressões e humilhações. Juliana trabalhou nos garimpos do alto do Tapajós. Ela foi cozinheira, fez ploc5 e marretagem6 nos garimpos. “Eu fazia tudo para ganhar dinheiro”. Já trabalhou, inclusive, com malária porque fui “atrás do ganho”. Por isso ela “fazia tudo”, o que significa invariavelmente trabalhar muito, exercendo várias atividades remuneradas, e foi para o garimpo “por conta própria” em nome do “trabalho cativo (que) não tem folga”.
A maioria das trabalhadoras sexuais – migrantes ou não – são autônomas ou operadoras independentes. Muitas vezes, combinam trabalho sexual com atividades geradoras de renda durante o ano, conforme Kempadoo (2016). Um desses trabalhos era o ploc, no cabaré, para garimpeiros, quando passou a ser reconhecida pelo seu nome social, Juliana, transgredindo fronteiras socialmente impostas. Tais fronteiras são rígidas, essencialistas, dicotômicas e excludentes, entre corpos masculinos e femininos, baseadas em sua experiência, vivências e trajetória de vida. Gênero, raça, classe e heteronormatividade atuam juntos, redefinindo-se mutuamente, segundo Minoso (2021). Juliana narra o que ela nomeia como “trajetória de garimpo” e diz que “sofreu muito preconceito e discriminação “por me verem homossexual” quando trabalhava na cozinha do garimpo e ao fazer ploc. O propósito de estigmatizar as práticas sexuais de negros e LGBTQI+ pode ser semelhante, mas o conteúdo atribuído a cada um é diferente (Collins, 2005). Camila P. Brito ressalva que “a objetificação ganha uma dimensão diferente no corpo de uma mulher trans negra” (Brito, 2016:70), e, no corpo de Juliana, mulher negra travesti, torna-se alvo de violências e discriminações por causa da transfobia que nega sua identidade de gênero e orientação sexual e visa a subjugar modos de existir como verbo político, social, cultural. Ela ouviu, em tom de ameaça, que “garimpo não é lugar de viado”:
É desse jeito a vida no garimpo [...] antes, quando eu tinha 28, 29, 30 anos. Eu já sofri muito preconceito. O cara já correu atrás de mim com uma arma. Já dormi no mato com medo de morrer [...]. Amanheci o dia no meio do mato. Ele foi embora e aí eu voltei. Dormi no meio do mato mesmo. Dormi não [disse enfaticamente]. Passei a noite. Isso foi no garimpo no meio de Brasília [...]. Eu tenho muita coisa na minha memória [...]. (Juliana)
“É através da mobilidade na migração entre lugares que as travestis alcançam o mais importante em suas trajetórias de vida enquanto pessoas que buscam, nesta circulação, dar certo na vida” (Patrício, 2008:139), enfrentando todas as formas de violência e discriminações. Juliana conta sua experiência em uma das vezes em que foi para o garimpo:
vender mercadorias (marretagem), mas não deu certo porque perdeu a mercadoria, ficou sem trabalho e ficou esperando uma vaga (de trabalho) [...] e procurou outra coisa para fazer e não achava e apareceu a oportunidade de cuidar de um cabaré [...] tomando conta do cabaré em um garimpo no Suriname [...] 04 dominicanas e 04 brasileiras [...] das brasileiras, tinha uma bem morena. Mas aqui no Suriname, as mulheres morenas não são muito procuradas, só por eles mesmos (surinameses). Tipo assim [...] brasileiro que vem pra cá pro Suriname eles preferem mulheres da pele clara, loura, bonita. Daquelas morenas [...] são “tipo descartada”. No meio dessas meninas, tinha uma moreninha. Ela ganhava muito dinheiro porque ela não escolhia cara [...]. As outras se revoltavam porque ela ganhava mais dinheiro [...]. Aí elas pegavam racismo com a outra [...]. - Deixou de fazer o ploc comigo para fazer com ela. Discriminava ela. As (mulheres) brancas [...] tinham horário determinado para o programa [...]. (Juliana)
Juliana se referiu à “morena” que ficava a noite toda com o cliente pelo mesmo valor de meia hora, caso o cliente quisesse, sem pagar mais nada além do valor por meia hora de programa. Sobre a “moreninha”, “bem morena”, há categorias variantes da morena para exclusão do uso da categoria negra como pertença racial; por exemplo, ao passear em uma das ruas bem conhecidas de Belém-Pará achei uma placa que remetia à “morena do açaí”.
As várias formas de dominação e controle sociossexual a que as mulheres estão submetidas variam de acordo com sua pertença étnico-racial. Segundo Mara Viveros Vigoya (2009), isso se configura em nome da racialização da sexualidade hierarquicamente construída. Já Peter Wade chama atenção à forma como as hierarquias raciais são articuladas com sexo/gênero a naturalizar hierarquias, materializá-las (Wade, 2013), embora esses dois processos possam ter pesos diferenciados, já que dependem das concepções que os sujeitos, nos países receptores, têm sobre a “mulher brasileira”.
Importante frisar que raça e nação não são percepções apenas reciprocamente constitutivas, como também são reeditadas concomitantemente (Raphael, 1995; Lowe, 1996; Murray, 1996). Segundo Ingrid Palmary (2016), a regulação do sexo é central para a construção de uma nação com base em regulamentações sexuais (em contextos situados e temporalmente localizados) para a identidade nacional tornar-se naturalizada. Mulheres migrantes são afetadas pela imbricação entre sexualidade, gênero, raça, etnicidade e nacionalidade, ao se referir às noções sexualizadas e racializadas de feminilidade pelo fato de serem brasileiras (Piscitelli, 2009).
A ruptura de um modelo que essencializa identidades negras – o que Beatriz Nascimento define como “representações baseadas em estereótipos de que sua capacidade sexual sobrepuja a das demais mulheres, de que sua cor funciona como atrativo erótico, enfim, de que o fato de pertencer às classes pobres” (Nascimento, 2006:106) – me instigou a trazer esse debate para o campo de estudos migratórios, implodindo representações sobre as “mulheres brasileiras” que as anulam em suas diversidades quanto às experiências raciais, de gênero, classe, de sexualidade e modos de vida.
A violência sexual colonial é também a base de todas as hierarquias de gênero e raça presentes em nossas sociedades, conforme Sueli Carneiro (2005). A própria construção de nacionalidade brasileira como projeto, desde a década de 1930, foi baseada na miscigenação como fundamento da ideologia do branqueamento e serviu de gérmen para o posterior mito da democracia racial que nasce, nos anos de 1950, pós-Segunda Guerra Mundial. O Brasil, então, passa a ser visto, internacionalmente, como uma nação de caráter de relações harmoniosas; sem confrontos raciais. No entanto, Lélia Gonzalez evidencia:
[...] a miscigenação é prova da “democracia racial” brasileira não está com nada. Na verdade, o grande contingente de brasileiros mestiços resultou de estupro, de violentação, de manipulação sexual da escrava [escravizada]. Por isso existem os preconceitos e os mitos relativos à mulher negra: de que ela é “mulher fácil”, de que é “boa de cama” [...] etc. e tal (Gonzalez, 2018:110).
A sexualidade sempre forneceu metáforas de gênero para a colonização (hooks, 1990). As críticas ao essencialismo desconstruíram, de forma útil, a ideia de uma monolítica identidade negra homogênea, segundo experiências múltiplas e situadas (hooks, 2000). E ocorreu também em nome das diversas formas de racialização/sexualização para as mulheres amazônidas/brasileiras que não se comportam segundo um tipo amazônico homogêneo nem de “mulheres brasileiras”. Existem indivíduos que emolduram dinâmicas de desejo, namoro e casamento com brasileiras, em contexto surinamês, porque “preferem as brasileiras”. As “construções racializadas de gênero”, como convida Cláudia Pons Cardoso, ao dissertar sobre a necessidade de leituras acerca da construção de estereótipos atentas à raça, gênero e sexualidade, [acrescento aqui a de nacionalidades] estão investidas de recursos capazes de desvendar a constituição dessas representações (Cardoso, 2014).
bell hooks (1990) chama a atenção de como, para corpos racializados, o sexismo sempre foi uma postura política mediadora da dominação racial por invocar que esse corpo precisa ser contido, controlado. A ideologia ocidental branca inaugurou o ideário de que o intelecto quase “espiritual” x (corpo) mundano reforça binarismos. “Mais que qualquer grupo de mulheres, nesta sociedade [estadunidense], as negras têm sido consideradas só corpo sem mente” (hooks, 1995:469), o que contribui para refletirmos sobre a nossa também. Lélia Gonzalez (1982:99) destaca “a exploração da mulher negra enquanto objeto sexual”.
Juliana conta como se dá a escolha de meninas para o programa descrevendo o tipo considerado padrão para “mulheres brasileiras”:
Nunca vi plocs de pele escura. Se tiver, não ganha nada. Preferência de garimpeiro (brasileiros) é loura, branca. Negra não. Eles não gastam dinheiro com (mulheres) pretas. Se tiver branca, as pretas [em geral] não ganham. “Morenos da terra” não gosta de mulher negra brasileira só das “mulheres negras da village”.7 É raro surinamês preto gostar de brasileira preta. Pele escura de jeito nenhum. (Juliana)
Kamala Kempadoo (2004) salienta hierarquias marcadas por cor da pele, tipo de cabelo e corpo, linguagem e características faciais, além de como a prostituição não é apenas relacionada ao gênero de maneira particular, mas também racializada. Antonius-Smits (1999), ao comentar sobre práticas sexuais, preferências e preços no garimpo, afirma que tanto os homens surinameses quanto brasileiros preferiam mulheres de sua própria nacionalidade, principalmente, por causa da barreira linguística. Quando queriam algo mais, denominado por eles como wild, os surinameses buscavam as brasileiras. Eles explicavam: “as brasileiras são conhecidas por te darem um momento especial e bom, tudo é permitido, elas não recusam nada. Elas sabem agradar um homem (...) A dimensão simbólica da heterossexualidade se refere aos significados sexuais usados para representar e avaliar as sexualidades das mulheres negras” (Collins, 2019:225). Nesse contexto, as mulheres Amazônidas, com cor de pele mais clara, têm maior valor estético no mercado sexual, em contexto migratório para o Suriname, do que as mulheres negras (pretas e pardas) de cabelo afro.
Juliana passou por dezenas de cabarés entre Brasil e Suriname, ao longo de décadas. Suas narrativas nos atentam para como os discursos de mobilidade de gênero operam e circulam, conforme Cresswell; Uteng (2016), dando sentidos aos deslocamentos e mobilidades, temporalmente situadas e em contextos determinados. Em 2004, Juliana permaneceu em Manaus por um ano para cuidar de duas crianças, filhos de sua comadre Simone, a quem ela conheceu em um dos garimpos onde trabalhou. Uma das crianças foi batizada por ela (Juliana). Simone enviava dinheiro para as despesas enquanto trabalhava no garimpo com o namorado. E, quando Juliana viaja para a “França” – Guiana Francesa – onde sua comadre se estabeleceu há anos, ela fica hospedada na casa “da comadre”.
O tempo que trabalhei na França (Guiana Francesa) foi bom, uma parte, mas trabalhei muito, sofri muito e não tive sorte, não recebi. Até hoje tem dinheiro meu jogado [...]. Na França (Guiana Francesa), se você trabalhar e você não receber logo - vim embora para cidade - aquela conta é perdida, ninguém paga [...]. Tem que ficar esperando a canoa que vem, que desce para pegar passageiro. Demoram dias [...]. Viaja três ou quatro dias subindo o rio. À noite, pára naquelas encostas na beira do rio, limpa o lugar para armar a rede, ajeita um fogão improvisado, corta dois paus como fogão, faz um arroz [...]. São dois ou três dias de varação [caminhando na mata até chegar a uma área de garimpo] - abrindo caminho que carrega tudo nas costas. Limpa para fazer o barraco. Trabalhei dois anos direto (sem sair) do garimpo. Tudo na grama. A gente só vivia escondido no mato. A polícia queimava tudo quando chegava nos garimpos na Guiana Francesa. Não pode guardar suas coisas junto contigo senão perde tudo. (Juliana)
Juliana conheceu a comadre “nos garimpos do Brasil, no alto do Tapajós quando trabalhou cozinhando, fazendo programa e na marretagem”. Viajou de Manaus-AM a Boa Vista-RR de ônibus e seguiu viagem abaixada dentro da canoa para não ser vista até atingir o rio Maroni [que atravessa a fronteira entre Suriname e Guiana Francesa]. Quando chegou à beira do rio, já tinha um navette, que é um microônibus, no qual todos permaneciam encolhidos e, assim, seguiam durante o percorrer da viagem. Ficava todo mundo encolhido um ou dois dias, esperando, e subia o rio no barco a motor, mantendo-se nesta posição. São vários percursos de mobilidade “atrás do ganho”.
Espírito de garimpeiro: só gastar, luxar
O Suriname é também “ganhar e perder”. Juliana narra que perdeu suas coisas. Ela tinha um apartamento alugado e tudo que havia dentro pertencia a ela. Não teve mais condições de pagar 400 dólares por mês de aluguel e perdeu tudo que havia comprado para mobiliar o apartamento.
A proprietária ficou com tudo que tinha dentro, ou seja, o valor que devia era muito inferior aos seus bens pessoais. Se fosse calcular tudo com o valor que comprou - devia 1.500 dólares - só que as suas coisas eram, por exemplo, só a cama, duas cômodas e o colchão que valiam como estimou 2.500 dólares. Roupas de 100 dólares e 200 dólares. Roupas que no Brasil são consideradas valiosas [...] tive momentos de glória; luxava [...] de ter 3 a 4 perfumes do mês. Hoje uso o perfume chinês. Aquele que é só o álcool. (Juliana)
Sobre o resto de seus pertences, como o álbum de fotos, com valor sentimental, inestimável, foi jogado fora. “Podia morar um bocado de tempo”. Daí voltou “à estaca zero”, de novo. Trabalhar e morar de favor até que conseguiu alugar um apartamento, isso sem falar das perdas. E teve que comprar as coisas no maior aperto, no “bico do ferro”.
Ouvi histórias de ganhar (com o trabalho) e perder como recorrentes entre brasileiras e brasileiros. E de recomeçar tudo outra vez. Aliás, esta é uma das expressões que faz parte das narrativas de brasileiras e brasileiros, nesse contexto. Já, por outro lado, em contraposição a tudo isso, é “farrear, gastar em dólar na cidade”: “luxar”: expressão muito comum na capital do Pará e em todo o estado para gastar, “sem estar condizente” com as expectativas sociais dadas a sua classe social. Em contexto migratório, é o contrário de poupar, economizar, significa sobressair “luxando”, mesmo quando seja algo efêmero, que traz positividade para a sua condição migratória.
Ao responder como foi viver no Suriname, Letícia, 43 anos, autodeclarada morena, conta que é “farra muita farra, Suriname é 24 horas de farra. Gastar! Comer do bom e do melhor. Eu já tinha minha casa da minha mãe (em Belém)”8. Sua fala traz a ideia de que não precisava se preocupar em economizar a maior parte dos seus ganhos. Indaguei, ainda, se foi feliz; ela disse que não. Tal afirmação remete à vida difícil no dia a dia no garimpo; porém, cita que houve época de “comer do bom e do melhor, farra, muita farra: luxar”. Luxar está diretamente vinculado a se sobrepor, imediatamente, a uma vida difícil, contrapondo o passado, o ontem imediato porque não se tinha como gastar anteriormente. Situação financeira que vai além dos itens básicos para sobrevivência. Luxar é, marcadamente, algo vinculado ao presente, sem reservas – naquele momento, para planejar o futuro. Luxar é agora! É algo imediato, é extravasar e poder rir, como um modo de deboche, a meu ver, de todas as dificuldades enraizadas na condição de viver em outro país, o que não significa, de modo algum, desfrutar de uma vida luxuosa, mesmo que momentânea ou temporária.
Nas entrevistas que realizei em Paramaribo em 2018, o idioma que brasileiras e brasileiros mais buscavam falar e aprendiam era o taki taki. Diogo, nascido em Paramaribo e filho de brasileira, contou que o sranantongo – taki taki “se aprende na vida”. Juliana também disse que “no taki-taki, eu me viro”, o que significa dizer que, embora não fale fluentemente, “entende um pouco” e consegue se comunicar. Uma dinâmica bem interessante ocorre com a língua creole. É uma forma de se comunicar com pessoas de nacionalidades diferentes e de origens étnicas distintas que não falam o seu idioma nativo ao travarem diálogos, quebrando barreiras linguísticas. Gloria Wekker (2012) comenta que a cultura criole falada comumente pela classe trabalhadora, como outras em culturas na diáspora negra, é uma cultura oral, repleta de provérbios, contação de histórias, enigmas e canções.9
Juca, 57 anos, paraense comenta sobre as brasileiras que conheceu no Suriname: “as mulheres surinamesas têm ódio das brasileiras [...] os maridos passam para o lado das brasileiras”.10 “Mulheres brasileiras” são diretamente vinculadas a uma moral sustentada pela “heterossexualidade normalizada” como regulação da sexualidade. As relações íntimas, privadas com “mulheres brasileiras” ocorrem de modo a reproduzir o que Patrícia Collins (2019) chama de heterossexualidade normalizada – como normal, natural e normativa. A ideia muito comum de que “os maridos passam para o lado das brasileiras” se firma em noções estereotipadas de que homens podem ser manipulados e controlados pelas mulheres, tornando a projeção de noções machistas estereotipadas. No artigo de bell hooks intitulado “De quem é essa buceta? um comentário feminista”, ela explicita sobre “a suposição machista de que a mulher como sujeito desejante, como iniciadora ativa, como sedutora sexual, é responsável pela qualidade, pela natureza e pelo conteúdo da resposta masculina” (hooks, 2019:281).
Letícia: eu aprendi a me valorizar
Letícia tem dois filhos, que ficaram com o pai quando embarcou para o Suriname, nos anos de 1990, e, depois, seus filhos foram morar com a avó materna. Ela inicia a entrevista dizendo que [...] “Belém é uma capital muito parada em termos financeiros, e lá é uma capital (Paramaribo) que corre dinheiro [...] mexe com uma coisa, mexe com outra. O dinheiro corre. O que você ganha em um mês aqui, ganha em um dia ali”. Letícia permaneceu por um ano e dois meses no Suriname e trabalhava, na época da entrevista, vendendo caldos e sopas; atualmente, trabalha como atendente em uma lanchonete. Casou-se em Belém no seu retorno. “[...] não fui com a ideia de morar lá, fui a trabalho. Eu comprei a minha passagem, eu fui com a minha passagem”. Não foi morar em clube, em Paramaribo. Morava em uma casa alugada com outras brasileiras. Quando a convidaram, disseram que havia “muito trabalho”. Foram buscá-la no aeroporto. “Chegando lá, foram outros planos. Falaram uma coisa e era outra”. Na segunda, “já me levaram pra o fogo”. Ficou pulando “de uma boate para outra”. Depois de quinze dias, “pulei garimpo”. No garimpo, trabalhou fazendo ploc e como “cozinheira de peão”, em garimpos distintos. Em Paramaribo, trabalhou como camareira em um hotel, assistente de cozinha, embaladora de supermercado e atendente em uma lanchonete. É comum, no Suriname, brasileiras trabalharem em atividades que não são sazonais como: camareira, manicure, cabelereira, ploc, vender os mais variados itens, garçonete, vendedora nos comércios locais, balconista e caixa de supermercado. E, no garimpo, as atividades são ploc, cozinheira, atendente no comércio local, conforme as anotações de campo. Muitas pessoas combinam o trabalho no setor formal com trabalhos no setor informal, vendendo mercadorias e oferecendo serviços, conforme Antonius-Smit et al. (1999). Indaguei à Letícia se tinha notícias de outras mulheres brasileiras que trabalharam no ploc, e ela me respondeu: “umas ficam jogadas nas drogas, outras casam, outras morrem. Outras voltam”.11
Com a chegada das mulheres brancas paraenses, ela já sabia que ia ganhar menos fazendo ploc no garimpo. “As preferências eram as mais jovens, louras [...], as brancas, preferencialmente, as brancas”. Sobre mulheres de outras nacionalidades, menciona “as francesas (da Guiana Francesa), muitas dominicanas na área de cozinha, no garimpo.” A construção do tipo da “brasileira branca e loura (de cabelos tingidos)” se encontra, nos depoimentos de Juca, Letícia e de Juliana como as preferidas em um mercado sexual para um tipo que está associado à nacionalidade: as brasileiras no Suriname, da Amazônia, majoritariamente, em nome das diversas formas de racialização/sexualização das mulheres amazônidas/brasileiras, tendo como referência a composição étnico-racial da Amazônia paraense que é diversa e múltipla, em contraposição à visão mítica que define a Amazônia Brasileira como, predominantemente, indígena.
Ao fazer o ploc no garimpo, onde o espaço é chamado de cabaré, Letícia faturava mais dinheiro do que nos clubes na capital. Então, permanecia por um mês em um garimpo, depois seguia para outros por 15 dias, e uma semana em outro garimpo.
[...] Adquiri o que tinha que adquirir e fui embora [...] fui para o Suriname por ilusão, que ia ganhar dinheiro, arrumar marido, comprar a minha casa, minhas coisas, ter um futuro. É só ilusão, foi uma grande ilusão. Foi uma aventura! Conheci alguém (para casar no Suriname), mas achei que não era vantagem, querem prender a mulher, querem fazer a mulher de doméstica, vêm quando acham que têm que vir a Belém, a mulher fica totalmente isolada da família. Eu não me sirvo de besta pra homem. (Letícia)
Letícia resolveu “voltar porque a gente vai se espertando” (ficando esperta). Nesse sentido, Osvaldina Araújo (2017:42) aborda que o “[...] importante era querer trabalhar e ter ‘cabeça’ (ser esperta) e responsável para guardar dinheiro, para retornar ao Brasil”. Letícia nos ensina que a ideia de espertar se desdobra, trazendo novos usos para o seu significado, de acordo com o contexto. As brasileiras são também consideradas ‘espertas’, uma vez que “sabem conquistar homem para ganhar dinheiro, sabem agradar”. E “se espertar” não é se iludir com homens e “não ser feita de besta”.
Quando perguntaram o que fui fazer no Suriname: você foi ganhar dinheiro? Ganhei. Eu fui fazer ploc pra lá. Com licença da expressão, eu fui dar o xiri. Agora o xiri é meu ou é teu? Aí encerrou (a fofoca no bairro onde sempre residiu). Você ganhou dinheiro? F. eu não vim [...]. Querem saber, eu respondi. (No Suriname) eu aprendi a lidar com qualquer situação [...]. Suriname tem a fama [...]. Até meus relacionamentos sabem que passei no Suriname. [...] a vida é muito sofrida (no Suriname) [...]. No garimpo, a gente acaba com cabelo, com pele, com unha. Prá mim foi bom, não foi ruim. Encontrei muita gente ruim, mas encontrei muita gente boa. [...] (Letícia)
Ela acrescenta que “na capital não tem emprego para homem. Para a mulher tem mais: babá, diarista [...]. Todo mundo sabe que pisei no Suriname: não matei, não roubei. O homem brasileiro tem um grande preconceito, tem que respeitar, independentemente, o que a mulher fez [...] ter passado pelo Suriname é ter experiência de vida”. Avtar Brah (1996) assinala a experiência como um processo de significação que dá condição para o que se constitui e se chama de "realidade". Por isso, a necessidade de se enfatizar a noção de experiência, não como um guia da "verdade", e sim como uma prática que faz sentido, simbólico e narrativo, como um campo de contestação e de conflito. Rotina de brasileiras é “sair de manhã e chegar à noite, o dia todo correndo atrás.” Letícia não se arrepende de ter ido ao Suriname porque serviu como experiência, mas preferia estar “sofrendo no meu país”. Ela contou que a maioria das mulheres maranhenses e de Boa Vista (Roraima) são levadas para serem exploradas no trabalho do garimpo. Nas boates de Paramaribo, estão muitas paraenses. Permaneceu no garimpo, passava quarenta dias, ia para outro garimpo e permanecia por 15 dias, cozinhava em outro por um mês, passava, então, em outro garimpo e trabalhava no cabaré por sete dias. No entanto, frisa que encontrou solidariedade, principalmente, no garimpo. Sobre o dia a dia do ploc, comenta:
As dominicanas têm inveja das brasileiras. As brasileiras “põem elas no bolso”, a brasileira sabe conquistar um homem. Desclassificam as mulheres brasileiras na Guiana Francesa e no Suriname. As brasileiras são vistas como as piores putas. Apesar disso, os surinameses ajudam as mulheres, se estabilizam quando se encaixa com elas, mas tratam elas como objetos. (Letícia)
Nesse contexto inseguro por estarem “atrás do ganho”, entre as brasileiras e dominicanas, havia uma disputa que passava por seletividade racial, sexualidade e nacionalidade, nas relações intragêneros de migrantes brasileiras com outras mulheres de outras nacionalidades. Existem diversos modos como as mulheres brasileiras respondem à dimensão de nacionalidade que serve como “sistema distintivo de opressão” (Collins, 2019:230). Isso fundamenta práticas simbólicas e estruturais marcadas pelo conflito para relações intragêneros de mulheres brasileiras com mulheres de outras nacionalidades, em contexto migratório, como moralmente aceitas socialmente por se basear em estereótipos de brasileiras como “algo ruim” e marcadamente como característica exclusiva delas.
Há algo que remete a uma ideia quase consensual para quem entrevistei: as “mulheres brasileiras estão preocupadas em ganhar dinheiro”, e os homens também, sem dúvida, mas em dimensões significativas que ganham especificidades sob a perspectiva de gênero, raça e sexualidade para esse campo discursivo. As concepções de “mulher brasileira” que circulam em Paramaribo, e nos garimpos, são relacionadas à objetificação e exotização, a partir de hierarquias raciais e sexuais interseccionadas constitutivas de sistema de dominação para mulheres migrantes de uma determinada região e país, pois “a sexualidade é um cimento conceitual que une as opressões interseccionais” (Collins, 2019:234).
Portanto, é por meio da experiência migratória que tentam renegociar estratégias de sobrevivência, entre suas “idas e vindas”, dando novos sentidos para o cuidado de filhos e práticas sociais envolvidas. Para Viviana Zelizer (2011:37), “as relações interpessoais familiares fornecem o exemplo óbvio: nenhuma família dura muito tempo sem uma extensa interação econômica entre seus membros”. Assim, formam-se redes, estabelecem-se conexões por intermédio de mulheres que convidam outras mulheres: vizinhas, amigas e parentes marcadas por condições sociais de classe similares com dificuldades para criação de filhos e ingresso no mercado de trabalho formal. O que é muito comum no universo de mulheres pobres que migram ou passam temporadas em busca de trabalho no Suriname.
Jovens surinameses/as: filhas/os de brasileiras
O Suriname faz fronteira com a República da Guiana, Brasil e a Guiana Francesa, que é o Departamento Ultramarino da França. O centro histórico de sua capital, Paramaribo, é reconhecido como Patrimônio Histórico da UNESCO desde 2002.
A partir de meados da década de 1990, muitos brasileiros começaram a se estabelecer em Paramaribo, segundo Marjo Theije (2007) e Rafael da Silva Oliveira (2013). De acordo com Rafael de Oliveira, há uma intensa mobilidade do garimpo não só de garimpeiros, como também “de comerciantes, intermediários, trabalhadoras sexuais, entre outros, tornando essa trama territorial ainda mais fluida e complexa” (Oliveira, 2012:450). A capital Paramaribo surge como lugar de passagem temporária, às vezes, dias para envio de remessas ao Brasil, e de lugar de espera para o ingresso em algum garimpo existente no país. O trabalho de campo se deu na capital surinamesa, pois eu desisti de visitar uma área de garimpo. O acesso estava interditado por Albina, município do Suriname que é um local estratégico para quem se desloca de Paramaribo.
Na capital, durante a minha estadia, no bairro comumente conhecido como área de brasileiras e brasileiros, pude efetuar entrevistas com hora marcada e conversas informais com brasileiras e brasileiros que foram passar temporadas ou que fixaram residência lá, e que são filhos/as de brasileiras. “Puxar conversa” foi a minha estratégia para me aproximar e entabular conversa em português. Tomava café em um lugar, almoçava em outro, lanchava em outro e jantava em outro. Revezava de novo, no dia seguinte. Comprava produtos de necessidades básicas no comércio local do bairro. Assim, transcorria meu dia, e foi dessa forma que meu campo de pesquisa foi se configurando em Paramaribo, no mesmo bairro onde se encontram o comércio voltado para a logística do garimpo bem como garimpeiros que procuram a capital para vender ouro, comprar utensílios de necessidades básicas e onde se concentram brasileiros/as jovens e surinameses filhos ou filhas de brasileiras de 18 a 25 anos, que trabalham na área do comércio. Perguntei sobre o lazer, e me descreveram que é frequentar um resort para encontrar com amigos, muitos brasileiros e filhos de brasileiros, para ouvir música no alto falante do carro em espaços abertos e conversar, quando têm folga no final de semana. Para quem nasceu no Suriname e fala o português, como nativo, significa, segundo Nina Schiller (2000:131), “vínculo permanente” com o Brasil, através de referências compartilhadas e constituídas de geração anterior com suas mães, sob bases locais e regionais. Para filhas e filhos de brasileiras, é o olhar sobre o Brasil se constituindo em dinâmica constante.
Tive conversas informais com jovens como Ricardo e Renata. Ele é recém-chegado do Pará. O plano dele era passar um tempo em Paramaribo, juntar dinheiro e, depois, voltar. Renata, 19 anos, chegou há nove meses em Paramaribo com a mãe, vindas do Pará. A mãe trabalha com marretagem no garimpo.
Teresa é surinamesa, tem 18 anos, filha de brasileira com javanês. Ela iniciou nossa conversa contando sobre sua mãe brasileira que trabalhou fazendo strip tease. A história sobre a vinda de sua mãe ao Suriname assinala sua origem brasileira. Sua mãe tinha 16 anos e, agora, tem 44 anos. É interessante retomar mais uma história de que se ganhou dinheiro e perdeu nas narrativas que ouvi. Teresa relatou que o pai “perdeu tudo” após ter tido boas condições financeiras. Ela se lembra das dificuldades financeiras que sua mãe passou para criá-la, diferentemente de suas irmãs do lado paterno. Teresa se casou com um rapaz indígena, e é mãe de uma criança com poucos meses de idade. Ela comentou a discriminação que o povo indígena sofre, a não aceitação no meio urbano, a dificuldade de conseguir trabalho. Aparentava estar cansada porque tinha ainda que permanecer no trabalho, após uma jornada iniciada cedo, pela manhã até 18h, e, se o outro funcionário não chegasse, ela teria que fazer outro turno – o que acontecia com frequência. Ela falou dos pratos típicos e me ensinou algumas palavras em javanês.
Márcia, 18 anos, surinamesa, filha de brasileira, voltou a morar com a mãe fazia um mês. O irmão se encontrava preso, acusado de tráfico de drogas na Espanha e com expectativa de ser solto em condicional. Morava na casa da tia e do tio, que chegou a espancá-la duas vezes, e, em uma delas, teve o maxilar deslocado. A mãe trabalha como cozinheira no garimpo e não tinha condições de criá-la.
Há uma nova geração de brasileiros e brasileiras. Alguns não o são de nascimento, como Diogo. Ele é surinamês e diz que “se sente brasileiro”, pois é filho de mãe maranhense e pai javanês. Ele aprendeu o holandês por ter crescido em Paramaribo e estudou, na escola, inglês e espanhol. Ele usou a expressão “colcha de retalhos étnicos” para traduzir o que intitula como “o verdadeiro Suriname”.
Esses jovens, significativamente, são trabalhadores no comércio local. O deslocamento para atividades no garimpo e/ou demais atividades remuneradas não se ajustam ao trabalho no comércio, já que exige o dia todo e todos os dias. Seus sonhos são estudar e se formar para exercer outras profissões que diferem das de seus pais. Surinamesas/es, diferentemente de suas mães, aprendem inglês e holandês nas escolas bem como outros idiomas e falam o português fluentemente. A realidade de jovens surinameses que trabalham no comércio local, marcada simbólica, econômica e socialmente pelo garimpo, como referência de mundo, serviu para mim como janela para a imersão no campo de pesquisa em Paramaribo.
Considerações finais
Neste estudo, as intersecções de classe, gênero, raça, regionalidade, nacionalidade e sexualidade potencializaram a análise crítica acerca do racismo, sexismo e exploração de classe que, segundo Patricia Collins e Sirma Blige (2016), refletem estruturas que se intercruzam em relações de poder. O intuito foi articular mobilidades e migração com gênero, raça, classe, nacionalidade e sexualidade. Foi nessa direção que fundamentei a análise investigativa tendo como base teórica o pensamento feminista negro que elucida a condição das mulheres e de homens em contextos distintos, situados. A questão de base, como eixo central, foi compreender as mulheres brasileiras de modo diverso, plural e não como categoria definidora, como algo dado, mas em constante ressignificação a partir de suas experiências migratórias e de mobilidades.
A ideia de “mulher brasileira” que circula, em Paramaribo e nos garimpos, é relacionada à objetificação e exotização a partir de hierarquias raciais e sexuais sobre mulheres amazônidas, brasileiras. As mulheres brancas amazônidas ganham maior valor estético para o mercado sexual com base no depoimento de Juca, Letícia e de Juliana, em contraposição às mulheres negras de cabelos afro. De acordo com a epistemologia do feminismo negro, o propósito foi salientar a diversidade de experiências de mulheres e de homens e seus diferentes pontos de vista. Demonstrei esse argumento, ao longo do artigo, apresentando uma abordagem crítica baseada na literatura especializada, ao desconstruir uma base cuja referência é, fundamentalmente, homogênea sobre “mulheres brasileiras” que, geralmente, anula-as em suas diversidades nas experiências raciais, de gênero, de sexualidade, de classe, de origem e de lugar.
Nina Schiller possibilita compreender que mulheres e homens, em contextos migratórios e de mobilidades em busca de trabalho, são percebidos através de estereótipos de gênero, raça, sexualidade e de nacionalidade (Schiller, 2000). Há uma ideia quase consensual, entre as pessoas que entrevistei, de que as “mulheres brasileiras estão preocupadas em ganhar dinheiro”, e os homens também, sem dúvida! No entanto, são dimensões significativas que ganham especificidades sob a perspectiva de gênero, raça e sexualidade para esse campo discursivo. Para Chandra Mohanty (2003), é imprescindível examinar a categoria analítica de “trabalho das mulheres” e olhar para a naturalização específica das hierarquias de gênero e raça através dessa categoria. Dentre outras questões muito pertinentes feitas por Mohanty (2003), destaco o que ela formulou como ponto de interrogação sobre: em que medida o uso de ideologias de gênero e raciais colabora na elaboração de formas de trabalho das mulheres em contexto sul global. As intersecções viabilizam enxergar diferentes formas de poder que produzem opressões específicas sobre mulheres e homens em mobilidades e contextos migratórios. O “Suriname ter a fama” de “lugar bom para trabalhar” e “lugar de prostituição” pode ser visto de forma relacional. Vale retomar a afirmativa de Kamala Kempadoo (2004) de que a prostituição pode, também, ser vista como uma prática geradora de renda na qual as mulheres se engajavam conscientemente.
Paramaribo é citado como um lugar temporário para “pular garimpo”, porque o “vou e volto” de sua terra de origem ao Suriname, também, faz parte de estratégias e planejamentos de quem entrevistei. Letícia, como as demais mulheres de bairros da periferia de Belém que migram para Paramaribo, busca, efetivamente, superar a privação econômica de sua família na sua comunidade afetiva e de origem. bell hooks (2000b) salienta que afirmar e manter conexões diretas com o mundo sempre obriga a pensar criticamente sobre a dinâmica de classe.
Ao longo de décadas, tem havido um fluxo de pessoas de Belém do Pará para o Suriname, de “idas e vindas”, que faz parte das vivências das classes populares de bairros da periferia da capital paraense. Em conversas informais, ao perguntar se já se ouviu falar de alguém que já foi ao Suriname, este é sempre marcado como lugar para passar temporadas e não para fazer turismo. Não é um lugar imaginado para turismo, mas um destino para onde se “tem a fama”. Juliana e Letícia trabalharam por anos no Suriname para escapar do jugo da precariedade movida pelas desigualdades sociais que vão além de materiais, sob condições inóspitas, ao percorrerem trajetos transfronteiriços. O dinheiro que entra e circula na comunidade na compra de gêneros e produtos para o bem-estar da família das pessoas entrevistadas é devido, significativamente, às remessas enviadas do Suriname. Isso ganha sentido no jogo de ausência física-presença na tomada de decisão, na dinâmica familiar, no que tange à criação dos filhos com contatos constantes e frequentes por ligação telefônica. É assim que Mariana, branca, 52 anos, nascida no Macapá, capital do Amapá, conta “criei meus filhos no garimpo”.
Para os jovens brasileiros no Suriname, Paramaribo é ainda lugar temporário, de passagem. O que ajudou, inclusive, a analisar o que está envolvido na ideia recorrente de emigrar para voltar, e carrega em si “ideologias” de seu país de origem (Brettell, 2003). Conversei, ainda, com jovens surinameses e surinamesas, com mães brasileiras da região Amazônica e de alguns estados do nordeste de onde se origina a geração anterior que migrou para o Suriname.
A ideia de que “preferem as brasileiras” é reconhecidamente predominante por grupos étnicos e de nacionalidades diferentes em contexto surinamês nas conversas informais com hindustanos, paquistaneses, asiáticos e surinameses. Nesse sentido, mergulhar nas dinâmicas do namoro e casamento com brasileiras é um tópico de pesquisa que essa experiência me convida a adentrar com mais profundidade em nome de novos desafios para esse campo de estudo. Foi com esse espírito que abordei questões e suscitei conversas sobre “idas e vindas”.
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1
Todos os nomes são fictícios para proteger suas verdadeiras identidades. Após expostos os objetivos do estudo, todas as pessoas entrevistadas concordaram, verbalmente, em participar da pesquisa.
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2
A Amazônia Internacional engloba nove países: Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa e Suriname. Disponível em: https://portalamazonia.com/amazonia-az/letra-a/amazonia-internacional-paises . Acesso em: 09 dez. 2022.
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3
Cada garimpo tem dinâmica própria, de sociabilidade e articulações. Neste artigo, o garimpo ganha sentido a partir das narrativas de interlocutoras e interlocutores.
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4
Entrevista realizada em Paramaribo em 2018.
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5
No Suriname, ploc é exercer o trabalho sexual como também nomear alguém que o exerça.
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6
Marretagem é uma espécie de comércio ambulante exercido, geralmente, por mulheres.
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7
Palavra de origem francesa utilizada para se referir às comunidades quilombolas na Guiana Francesa e no Suriname.
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8
Entrevista realizada em Belém do Pará em 2018.
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No original: “Creole working - class culture, like other cultures in the black diaspora, is an oral culture, replete with proverbs, verbal arts, storytelling, riddles and songs” (Wekker, 2012:2).
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10
Entrevista realizada em Belém do Pará em 2017.
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11
Entrevista realizada em Belém do Pará em 2017.
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Editoras/r responsáveis pelo processo de avaliação:
Natália Corazza PadovaniJulian SimõesLuciana Camargo Bueno
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Out 2025 -
Data do Fascículo
Ago 2025
Histórico
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Recebido
24 Jul 2023 -
Aceito
05 Maio 2025
