Julian, Luciana e Natália: Conte um pouco para nós sobre sua trajetória artística. Como você começou a desenhar? Você também atua com outras vertentes das artes visuais?
Camila: Eu sempre gostei de desenhar, mas nunca fui muito boa. Eu era daquelas crianças com dificuldade de pintar dentro das linhas dos desenhos, sabe? Não considero que eu seja tecnicamente boa agora, como adulta. Mas acho que não é sobre isso, é sobre vontade de se expressar usando linguagens diferentes. Hoje, eu trabalho mais com ilustração digital. Esse formato permite uma circulação maior e é pela ilustração digital que eu atuo apoiando, sempre que posso ou que me são dadas condições para isso, mobilizações, movimentos, pautas e atos políticos. Já tive algumas ilustrações que até circularam bastante, ligadas à questão migratória, ao direito ao aborto seguro e à causa palestina, por exemplo. Só que, com a pandemia e o trabalho remoto, eu fiquei muito cansada das telas digitais e voltei a fazer algumas pinturas em acrílica. Também me dediquei a aprender um pouquinho da técnica de xilogravura nesse período. Essas coisas me ajudaram muito a descansar a cabeça, já que foram tempos difíceis de se viver, com tanta desgraça e um homem obtuso na presidência da República. A ilustração digital enfrenta o problema de cair na lógica dos algoritmos das redes sociais; a gente acaba ficando um pouco refém do ritmo que essas empresas impõem. Imagino que isso seja especialmente difícil para quem de fato vive de arte e ilustração, o que não é o meu caso, mas acontece com outras profissões também.
J.L.N.: Como você considera que sua trajetória se relaciona com os feminismos? Particularmente, teorias feministas e os estudos de gênero te inspiram de alguma maneira?
Camila: Se relaciona em tudo. A arte e a cultura pra mim sempre foram aspectos importantes da militância. Às vezes, a gente acha que é só escrevendo panfleto feio, fazendo ato de rua e palestra que vamos trazer as pessoas pro nosso lado. E, muitas vezes, quando usamos a arte é desde uma perspectiva conservadora, em que tudo tem que ser explícito e didático demais, sem possibilidades de abrir para interpretações. Com os movimentos feministas não é tão diferente assim, e eu mesma tenho dificuldade de fugir disso. As teorias e estudos de gênero também foram importantes pro meu trabalho, mas acho que a arte é ainda mais potente quando fala sobre aquilo que a academia não consegue ou não quer falar. Talvez o melhor exemplo disso no Brasil seja o carnaval e, em especial, as escolas de samba. Elas produzem a memória do que foi esquecido pela pesquisa e a educação formal, principalmente a memória da experiência negra. Eu sou socióloga e trabalho como socióloga, mas a arte é uma das ferramentas que escolhi desde cedo para contribuir com o feminismo, então meus desenhos estão frequentemente ligados a ele. Só que me incomoda o fato de que mulheres artistas - sejam elas pintoras, cineastas ou escritoras - são quase sempre enquadradas dentro dessa perspectiva do gênero e do feminismo, como se o que a gente produzisse não pudesse também ter um caráter de universalidade. Como se fosse sempre “arte de mulheres” e “sobre mulheres”, enquanto a arte feita pelo homem nunca é vista pelo seu marcador de gênero. Mas o feminismo também foi importante para que eu tomasse coragem de tornar públicas as coisas que faço. Até poucos anos atrás, eu não assinava nenhum desenho, eu tinha vergonha. Depois comecei a reparar como é comum a gente ver homens - sobretudo os brancos e com algum capital - produzindo coisas tecnicamente e esteticamente fracas, mas botando a cara no mundo. Aí comecei a assinar e divulgar meus desenhos. Não porque eu achava que eram melhores, nunca achei. Foi um pouco por raiva, um pouco por teimosia e muito para incentivar outras amigas e conhecidas. Esse movimento foi muito importante. Depois que passei a expor e publicar minhas coisas, eu fiz parcerias muito legais: capas de livros, cartilhas de educação popular, cartazes políticos, camisetas para coletivos, adesivos para campanhas sindicais, etc.
J.L.N .: Você conhecia a cadernos pagu ? Conhecia a revista e as capas da revista em suas edições impressas? Conte um pouco sobre a sua relação com a revista?
Camila: Bom, eu fiz Ciências Sociais, então a cadernos pagu e a Revista de Estudos Feministas foram as grandes referências, pra mim, na área do gênero. Eu fazia parte de um coletivo feminista e me lembro que a gente sempre ficava feliz quando uma dessas publicações impressas caía na nossa mão, até porque lá por 2006 era mais difícil ter acesso às coisas pela internet. Em relação às capas, eu lembro de uma que tinha uma gravura de manifestação, emoldurada por um fundo vermelho. Me chamou atenção porque, em geral, as capas de vocês vinham com cores mais suaves e eu gosto de cores fortes, não sou muito do minimalismo. De todo jeito, quero dizer que fico muito feliz de estar aqui na pagu , é muito doido. Nunca tinha me passado pela cabeça dar uma entrevista como artista.
J.L.N .: Agora, gostaríamos de saber um pouco mais sobre a imagem “Direito à preguiça”, que ilustra o nº 69 da cadernos pagu de 2023, reinaugurando as capas da revista no ano em que o periódico celebra 30 anos de existência.
Camila: Que bom! Porque queria mesmo falar sobre ele algum dia. O quadro retrata uma mulher-preguiça tomando um litrão de cerveja sozinha, em plena luz do dia, em um bar da minha rua preferida de Florianópolis. Eu o fiz a partir do incômodo que me causam os discursos que retratam as mulheres como guerreiras, competentes, fortes, lutadoras, que conseguem fazer tudo, que podem ser qualquer coisa, etc. Em síntese, uma ojeriza com a ideia de “empoderamento”. Pra mim é um discurso que, muitas vezes, está vinculado ao feminismo liberal e publicitário. Um discurso que aparece quase como uma assombração pra perturbar a gente todo 8 de março e provoca campanhas meio bizarras, como a ação feita pelo McDonalds, que colocou lanchonetes operando com uma equipe 100% feminina nesse dia. Aposto que as trabalhadoras preferiam ganhar um dia de folga, mas a ideia era mostrar que as mulheres são capazes, são competentes, bem no espírito “ we can do it ” daquele cartaz que virou um ícone do feminismo; aquele da moça arregaçando as mangas, mas que foi feito por uma fábrica estadunidense para incentivar suas trabalhadoras a serem mais produtivas. No campo progressista, esse discurso também se repete, da mulher que pode e deve ser super qualificada, possuir diferentes talentos e habilidades, ser inteligente e engajada, estar informada politicamente, ser gostosa e nunca estar insatisfeita com seu corpo, estar de bem com vida e produzir conteúdo animado pras redes sociais, se valorizar e nunca ficar chateada ou com o coração quebrado, manter-se sempre saudável e, sobretudo, ser produtiva. O que acontece é que diferentes dados da realidade mostram que as mulheres trabalhadoras estão super sobrecarregadas, cansadas pra caramba. A intensidade e o tempo do nosso trabalho têm se dilatado com as crises do capital e o uso de novas tecnologias. A tecnologia deveria nos dar mais tempo livre, mas ela tem sido usada para nos exigir mais produção. Isso vale para toda a classe trabalhadora, mas nós, mulheres, estamos ainda mais cansadas e adoecidas por conta do trabalho reprodutivo não remunerado. Talvez o discurso do “ we can do it ” devesse ser voltado pros homens, para convencer eles de que são capazes de limpar um banheiro, cozinhar, cuidar dos filhos etc. Eu acho muito cruel um feminismo que diante dessa realidade de cansaço parece pressionar as mulheres para a excelência e o empoderamento. Se a gente faz o recorte de raça é ainda pior, porque estatisticamente as mulheres negras formam o grupo mais sobrecarregado desse país. Como socialista, eu acho que a gente tem que trabalhar menos, para que a vida não seja só um anexo da labuta. Quero uma luta feminista que exija a redução da jornada de trabalho, condições de transporte mais dignas para que a gente não gaste tanto tempo no ônibus e a socialização das tarefas de cuidado, com uma educação que produza uma masculinidade mais responsiva e com a criação de mais aparelhos públicos de cuidado, como creches, instituições especializadas para atender os mais vulneráveis, restaurantes e lavanderias populares. E quero também um mundo mais seguro para as mulheres, que a gente não tenha medo de ser agredida em casa e se sinta confortável na rua. Tudo isso pra poder ter tempo e condições de relaxar, fazer festa, ir pra praia com as amigas, ler literatura, dançar, não fazer nada, passar mais tempo com nossos amores e tomar uma cerveja sentada no bar preferido antes da tarde cair. Em resumo, eu fiz esse quadro porque o feminismo em que eu acredito não é o do empoderamento, é o da luta pelo direito à preguiça e à vadiagem.
J.L.N.: A gente gostaria de te convidar para trazer para a revista mais três desenhos teus que você considere relevantes e em diálogo com a história da cadernos pagu . Gostaríamos que você nos contasse um pouco sobre essas ilustrações também.
Camila: Escolhi trabalhos com técnicas e finalidades diferentes. O primeiro é uma xilogravura de 2020, chamada “Resistência e Paciência”. Foi feita durante a pandemia, quando eu estava isolada, sozinha, lecionando on-line e ficando maluca. São duas mulheres com os cabelos entrelaçados e uma delas está com a metade do rosto coberto.
O segundo é uma ilustração digital que produzi para o 1º de Maio de 2019 e que depois virou um pôster que circulou bastante. Ele é uma releitura de um cartaz soviético que trazia a representação de um homem camponês e um operário exibindo as ferramentas que formam o símbolo clássico do comunismo: a foice e o martelo. Eu redesenhei essa gravura usando meu traço e colocando trabalhadoras no lugar.
Por último, escolhi um desenho feito no papel usando marcadores e lápis de cor. Ele é de 2015, antes de eu aprender a ilustrar usando o computador. É um retrato da Maria Bonita que fiz para uma marca de bijuterias de uma amiga minha. Foi um dos primeiros trabalhos remunerados de ilustração que eu fiz e que acabou gerando toda uma coleção chamada “Irmãs Coragem” e depois uma exposição com o mesmo título. Foi importante pra mim porque foi quando eu percebi que tinham pessoas, além dos meus amigos e amigas, que genuinamente gostavam das coisas que eu desenhava.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Jan 2024 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2023