Resumo
O artigo pretende analisar as novas e singulares experiências de mulheres ditas “indígenas” em Lourenço Marques - atual Maputo, Moçambique - elaboradas na medida em que essas interagiram com os variados modelos de dominação masculina e, ao mesmo tempo, com as recém-criadas instituições coloniais portuguesas reguladoras da vida social.
Palavras-chave:
Lourenço Marques; Colonialismo; Trabalhadoras “Indígenas”
Abstract
This article pretends to analyze the new and unique experiences of so-called “indigenous” women in Lourenço Marques - now Maputo, Mozambique - created as they interact with the various models of male domination and, at the same time, with the recently colonial institutions created by the Portuguese to regulate the social life of native people of the southern Mozambique.
Keywords:
Lourenço Marques; colonialism; native women workers
1. Introdução: entre a “escola de vício” e o “mundo temperado de ritmo e poesia”
Joaquim Alves Correia de Araújo era membro de uma família relativamente abastada do norte de Portugal. Em 1917. recém-formado em medicina pela Universidade do Porto, foi convocado para atuar na frente portuguesa em Moçambique naquilo que ficou conhecido como Ia Guerra Mundial. Para o campo levou consigo alguns pertences e um caderninho que lhe serviu de diário. As anotações do alferes-médico transparecem uma quase completa ignorância reinante entre círculos metropolitanos a respeito das populações colonizadas pelo Império português na África. De maneira geral, essas foram tratadas no diário como mais um aspecto da paisagem local, como rasos soldados aliados ou como guerreiros inimigos a serem derrotados. Durante sua estadia em Moçambique, entre 1917 e 1918, Joaquim Araújo esteve duas vezes em Lourenço Marques -atual Maputo, capital de Moçambique. Aproveitou a estadia na cidade como qualquer outro homem branco com posses poderia desfrutar. Hospedou-se no renomado Hotel Paris, reformado no início da década de 1910 e apresentado na imprensa local como “um dos melhores hotéis da cidade".1 1 O Africano. 28 de marco de 1914. World Newspaper Archive (doravante, WNA). Estava localizado distante do Hotel Africano, que ficava na Malanga, região fronteiriça ao centro da cidade, e que tinha como público alvo a "nossa gente” que sabia ler e/ou escrever em ronga.2 2 O Brado Africano. 01 de novembro de 1919. WNA. Passeou, comprou jornal, frequentou cafés, viu "fitas inglesas" no cinematógrafo (Araújo, 2015Araújo, Teresa (org.). Moçambique na I Guerra Mundial. Diário de um Alferes-médico, Joaquim Alves Correia de Araújo, 1917-1918. Ribeirão (Portugal), Edições Húmus, 2015.:52), fumou e bebeu champanhe no "bar da Julieta” (Araújo, 2015Araújo, Teresa (org.). Moçambique na I Guerra Mundial. Diário de um Alferes-médico, Joaquim Alves Correia de Araújo, 1917-1918. Ribeirão (Portugal), Edições Húmus, 2015.:118). Duas coisas lhe impressionaram. A primeira, o preço das coisas - achou a cidade caríssima. A segunda característica impactante foram os seus habitantes. Aparentemente ficou bastante surpreso ao constatar que a “maior parte da população [era] preta, principalmente trabalhadores e criados" (Araújo, 2015Araújo, Teresa (org.). Moçambique na I Guerra Mundial. Diário de um Alferes-médico, Joaquim Alves Correia de Araújo, 1917-1918. Ribeirão (Portugal), Edições Húmus, 2015.:52).
As possibilidades da cidade de Lourenço Marques e, principalmente, de seus subúrbios, como um espaço de emergência de novos parâmetros culturais e de possibilidades de reivindicação de direitos, ampliavam seus atrativos. As dificuldades de se proceder “a identificação dos indígenas em Lourenço Marques” era uma preocupação do administrador da Circunscrição do Maputo, uma das cinco circunscrições do distrito de Lourenço Marques. Em novembro de 1913, o intendente dos negócios indígenas, funcionário da Direção dos Serviços e Negócios Indígenas, órgão administrativo colonial responsável pelo trato das questões envolvendo os chamados indígenas, informou que a ausência de “passes ou documentos das autoridades donde os indígenas são naturais” possibilitava que eles dessem “nomes trocados” quando interpelados pelas autoridades. Essa estratégia de escapar do controle colonial sobre suas liberdades de ir e vir possibilitava-os “evadirem-se ao cumprimento das suas obrigações”. Por fim, concluiu que era melhor mudar esse estado de coisas, pois “como escola de vício, Lourenço Marques não é inferior a Roma Antiga”.3 3 Arquivo Histórico de Moçambique (doravante, AHM), Direção dos Serviços e Negócios Indígenas (doravante, DSNI), Caixa 225, Carta do Administrador da Circunscrição do Maputo para o Senhor Intendente dos Negócios Indígenas e Emigração, em 14 de novembro de 1913.
Décadas depois, José Craveirinha, considerado um dos mais importantes escritores moçambicanos, viveu ativamente as transformações pelas quais o país passou ao longo do século XX. Nascido em Lourenço Marques, em maio de 1922, criado entre dois mundos, o português de seu pai e o ronga de sua mãe, desde cedo experimentou contatos entre universos que se olhavam com desconfiança, mas que no espaço urbano inevitavelmente se tocavam (Chabal, 1994Chabal, Patrick. Vozes moçambicanas: literatura e nacionalidade. Lisboa, Editora Vega, 1994.:85-103). Foi criado nos bairros fronteiriços entre esses dois mundos, muito provavelmente próximo dos locais onde a “maior parte da população preta” vivia e aprendia os supostos “vícios” que amedrontavam os administradores coloniais portugueses. Numa época em que rebuliços pelos sons de tambores ocorriam nos suburbios laurentinos, trazendo algum conforto para urna vida sofrida por conta da exploração colonial, o poeta percebeu que ali existia um “mundo temperado de ritmo e poesia” (Craveirinha, 2009Craveirinha, José. O folclore moçambicano e as suas tendências. Maputo, Alcance Editores, 2009.:15).
Desde a ascensão de Lourenço Marques como centro do poder colonial português em suas possessões na costa da Africa oriental, no final do século XIX, existiu um embate entre a imagem que se construía sobre a cidade e a efetivação daquele espaço como ambiente vivido, especialmente quando direcionamos o olhar para o mundo daqueles que ocupavam a maioria dos postos de trabalho. Por um lado, independente das interpretações múltiplas sobre a ação colonizadora portuguesa em Moçambique, diferentes agentes sociais agiram em prol da edificação de uma “cidade de África que procura não sentir a África” (Rufino, 1929Rufino, José dos Santos (ed.). Álbuns fotográficos e descritivos da colònia de Moçambique. Volume III: Lourenço Marques - Aspectos da cidade. Vida Comercial Praia da Polana, etc. Lourenço Marques, J. S. Rufino, 1929.:111). Nesse sentido, existiu um esforço para silenciar aquilo que era considerado como representativamente africano que poderia existir dentro do perímetro urbano. Por outro lado, as entrelinhas da documentação colonial revelam cenas de um processo não linear. As insistentes burlas cotidianas das populações classificadas pelo linguajar colonial português como indígenas interferiram diretamente no esforço de tornar Lourenço Marques um centro propagador e exemplar do projeto civilizatório. Nesse sentido, ao longo deste artigo, analiso fragmentos das histórias de mulheres nativas que buscaram, sobretudo por meio da venda de sua força de trabalho ou na ocupação de postos de serviços nas ruas e cantinas de Lourenço Marques nas primeiras décadas do século XX, viver suas vidas compartilhando experiências que mostram novas e singulares recriações/ressignificações elaboradas na medida em que essas mulheres se viram forçadas a interagir com os variados modelos patriarcais de dominação e, ao mesmo tempo, com as recém- criadas instituições coloniais reguladoras da vida social.
2. Experiências de mulheres trabalhadoras “indígenas” em Lourenço Marques (1900-1940)
O processo de despersonificação das camadas populacionais denominadas indígenas consolidou-se com a utilização dessa categoria construída e implementada pelo colonialismo num processo que as tomava amórficas. Houve uma insistência em silenciar suas vozes e excluí-las sistematicamente por meio de um procedimento que inibia distinções individuais, caracterizando-as como distantes de supostos inibidores sociais naturais de sua existência e, consequente mente, propensas a atos vistos como viciados, sobretudo quando aqueles considerados indígenas encontravam-se afastadas de supostos inibidores sociais que moldariam naturalmente suas formas de ser e agir (Pereira, 2016Pereira, Matheus Serva. “Grandiosos batuques”: identidades e experiencias dos trabalhadores urbanos africanos de Lourenço Marques (1890-1930). Tese (Doutorado em História Social), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, Campinas, 2016.:131-187). Em setembro de 1928, por exemplo, a “Excelentíssima Senhora D. Ana Salbany Simões Duarte” dirigiu- se até a sede da Direção dos Serviços e Negócios Indígenas, localizada em Lourenço Marques. Suas acusações recaíam sobre uma mulher “indígena de nome Otasse ou Cotasse”. A “referida indígena” supostamente se dedicaria “a prática de feitiçaria indígena”, tendo feito com que “seu filho de dezoito anos”, Duarte Salbany, se encontrasse “absolutamente perdido”. Como consequência, havia deixado de “frequentar o Liceu” e abandonado “a casa dos pais”. A solução exigida para o caso era a deportação da acusada “para um distrito que não seja próximo” de Lourenço Marques. Como testemunhas de acusação, foram apresentadas “pessoas idóneas a serem ouvidas”, como “o senhor Dr. Francisco Maldonado, Diretor da Investigação Criminal, e o senhor Diretor da Agricultura engenheiro Guardado”.4 4 AHM, DSNI, Caixa n° 1634, Auto de notícia prestado pela Senhora D. Ana Salbany Simões Duarte, em 26 de setembro de 1928.
No mesmo dia da acusação, as testemunhas arroladas foram prontamente ouvidas. O engenheiro Guardado foi sucinto em suas declarações. Dizendo residir na cidade de Lourenço Marques, corroborou as acusações iniciais. Segundo ele, “a indígena arguida se dedica a prática de atos menos honestos”, e “parecendo-lhe por esse motivo, ser de boa política desviar, embora temporariamente esta indígena do Distrito”.5 5 AHM, DSNI, Caixa n° 1634, Auto de Declaração prestado por Raul Augusto da Silva Guardado no dia 26 de setembro de 1928. Acusada primeiramente de feitiçaria e de causadora de distúrbios em um lar de origem europeia, agora surgia a insinuação de praticar “atos menos honestos”. As declarações prestadas pela segunda testemunha, Francisco Maldonado, corroboravam as acusações, ao afirmar que Duarte Salbany vivia em estado de “certa mancebia com a arguida”, sendo de sua “convicção de que a arguida se entregava a prostituição”. Sua proposta para a solução do caso estava em conformidade com a dos dois depoentes apresentados anteriormente. Por causa do estilo de vida que levava e porque teria perturbado a vida dum menor e, com isso, a da respectiva família de origem portuguesa, julgava-a “prejudicial no meio em que tem vivido e conveniente qualquer medida que a afaste desse meio pelo menos temporariamente”.6 6 AHM, DSNI, Caixa n° 1634, Auto de Declaração prestado por Francisco António Vargas Maldonado no dia 26 de setembro de 1928.
Após o arrolamento das denúncias, enviou-se um telegrama para o fiscal de transportes de Xinavane, região distante cerca de 140 quilômetros da cidade de Lourenço Marques e onde vivia a acusada, perguntando o quão prejudicial seria a sua permanência na região. A resposta foi rápida. No dia seguinte, informavam que a “indígena Cotasse” dedicava-se a “prostituição e consta embriagar-se frequente vezes achando conveniente sua saída”.7 7 AHM, DSNI, Caixa n° 1634, Telegrama do Fiscal de Transporte de Xinavane para a Direção dos Serviços e Negócios Indígenas no dia 27 de setembro de 1928. Um policial foi enviado para detê-la e a sentença final afirmou ser “prejudicial a presença neste Distrito da indígena de nome Otasse ou Cotasse por se entregar a vadiagem e prostituição”, estipulando a sua deportação, por três anos, para o Distrito de Quelimane, no centro de Moçambique.8 8 AHM, DSNI, Caixa n° 1634, “Assunto: Deportação de Indígenas”, de 28 de setembro de 1928.
Ao longo das averiguações, em nenhum momento é levantada a necessidade de escutar aquela que era denunciada no caso. Sua deportação sumária, que seguia um procedimento recorrente das autoridades portuguesas na resolução de potenciais problemas com indivíduos nativos,9 9 A deportação como forma de controle sobre insubordinação das populações nativas foi uma política recorrente da administração colonial portuguesa. É possível encontrar diversos casos que tiveram essa mesma resolução. Ver: AHM, DSNI, Curadoria e Negócios Indígenas, caixas n° 573 e 602; AHM, DSNI, Tribunais indígenas, caixa n° 1632; AHM, DSNI, Transgressões e prisões, caixa n° 83. parece ter posto um fim ao drama familiar. Porém, para aquela acusada de feitiçaria, vadiagem, beberagem, prostituição e desvirtuação de menor, não foi permitida a palavra, nem mesmo identificar-se da maneira que desejasse. Na documentação indicam apenas sua possível região de origem, Xinavane, tendo a grafia do seu nome variado entre Otasse, Cotasse ou Kotasse.
Como era de se esperar naquele cenário colonial, o elo mais fraco dessa equação foi quem pagou o preço mais elevado pela audácia do seu envolvimento amoroso. No entanto, as entrelinhas revelam algo além da opressão típica desse sistema. Os riscos que o contato entre polos opostos da equação engendrada pelo colonialismo produziu eram iminentes, assim como a existência, mesmo que perigosa, de relações de contato e troca entre esses grupos ao longo do início do século XX, especialmente por conta das relações sociais que o processo de construção de Lourenço Marques e de sua malha urbana produziram nesse período. A expansão da presença branca/europeia na cidade, ocupando cargos no crescente posto burocrático do Estado colonial, relacionada à crescente demanda por mão de obra necessária para atender os anseios desse corpo burocrático, conjuntamente com a construção de uma infraestrutura capaz de responder as demandas existentes pela expansão da cidade e, por fim, das pressões exercidas pelos desmandos de agentes coloniais e particulares presentes ñas zonas rurais, transformou o cenário populacional de Lourenço Marques.10 10 Como afirma Valdemir Zamparoni, a partir de dados censitários existentes para o início do século XX, "a população branca [de Lourenço Marques, em 1912] tinha crescido, desde 1894, nove vezes e meia e a população total cerca de vinte e cinco vezes; o mercado de trabalho urbano também se ampliara e diversificara” (Zamparoni, 2007:231). Nesse contexto de ampliação das instituições coloniais, por um lado, a cidade tomou- se um local atrativo para conseguir distanciar-se dos riscos de ser recrutado como trabalhador forçado e/ou atender interesses próprios de obtenção de uma nova forma de vida afastada das restritas possibilidades existentes no mundo rural. Por outro lado, juntamente com essa ocupação da cidade pela população de origem africana de caráter mais permanente, o elevado número de trabalhadores homens migrantes rumo a regiões mineradoras da África do Sul proporcionou um grande trânsito num movimento marcado por vindas, idas e retornos, entre Johanesburgo, Lourenço Marques e zonas rurais, promovendo igualmente um trânsito de bens, ideias e formas de agir, que imprimiram algumas características específicas de ocupação da cidade direcionadas para e construídas por essa população (Penvenne, 1983Penvenne, Jeanne. “Here everyone walked with fea”: the Mozambique labor system and the workers of Lourenço Marques, 1945-1962. In: Cooper, Frederick (org.). Struggle for the city: migrant labor, capital, and the State in urban Africa. Berkeley, Sage, 1983, pp.131-166.; 1994; Harries, 1994Harries, Patrick. Work, culture, and identity: migrant laborers in Mozambique and Souht Africa, c. 1860-1910. Portsmouth, Heinemann; Johanesburgo, Witwatersrand University Press; Londres, James Currey, 1994.; Covane, 2001Covane, Luís António. O trabalho migratório e a agricultura no sul de Moçambique (1920-1992). Maputo, Promedia, 2001.; Zamparoni, 2007Zamparoni, Valdemir. De escravo a cozinheiro: colonialismo & racismo em Moçambique. Salvador, EDUFBA/ CEAO, 2007.).11 11 Como demonstra o estudo realizado, em 1977, pelo Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, desde o início do século XX que se consolidou de maneira estável um sistema migratório e de fornecimento de trabalhadores moçambicanos para as minas sul-africanas. Em 1904, por exemplo, os mineiros de origem moçambicana correspondiam a 60,2% da mão de obra das minas e, em 1906, 65,4% (Centro…, 1998:35).
Apesar das sistemáticas tentativas de apagamento das individualidades e das possibilidades de fala daqueles que se encontravam sob o domínio colonial português, a necessidade de organizar uma administração capaz de gerir a própria dominação proporcionou momentos em que camadas excluídas nativas puderam emitir algum som que reverberam nos nossos dias. Exatamente em razão da regulamentação e da vigilância que o Estado colonial português buscou manter sobre os ambientes de vivência e convivência daqueles percebidos como indígenas no meio urbano, são as entrelinhas dessa documentação que revelam a existência de diferentes combinações de experiências que produziram transformações pelas quais aqueles indivíduos precisaram passar para conseguirem encontrar formas consideradas minimamente dignas de sobrevivência. Foneticamente, Otasse, Cotasse e Kotasse não são significativamente diferentes entre si. Certamente essas variações demonstram as dificuldades de grafar, ou uma falta de interesse em grafar corretamente, um nome não português. As diferentes maneiras de escrita do nome abrem portas para pensarmos a relação entre os processos de segregação e silenciamento colonial sobre o qual viveram as populações ditas indígenas que se encontravam em Lourenço Marques e uma tática empregada para evadir-se das abordagens repressoras coloniais. Em 1908, o Secretário dos Negócios Indígenas, em seu relatório sobre a regulamentação do “trabalho indígena”, insistiu na necessidade da criação de uma maior vigilância sobre o trânsito desses indivíduos, pois era “sabido […] que, em regra, o preto dá sempre nomes trocados, quer o seu, quer o dos pais, indunas, régulos, etc” (Branco, 1909Branco, Francisco Xavier Ferrão de Castello. Relatório precedendo a proposta de regulamentação do trabalho indígena, apresentada ao conselho do Governo. In: Província de Moçambique. Relatórios e Informações. Anexos ao Boletim Oficial. 1908-09. Lourenço Marques, Imprensa nacional, 1909.). Da relação que “o preto” estabelecia com seus nomes, para a utilização disso como mecanismo de burla das restrições impostas pelo colonialismo, trocar de nome ao longo da vida não era, necessariamente, algo tão inusitado. Afinal, tinham uma relação com o seu nome bastante distinta daquela comumente existente no mundo europeu. Como inúmeros relatos de cunho etnográfico existentes para a região apontam, era comum que após diferentes cerimónias, principalmente as de puberdade, o nome de nascimento mudasse para outro de sua escolha pessoal (D’Ornellas, 1901D'ornellas, Ayres. Raças e línguas indígenas em Moçambique. Memória apresentada ao Congresso Colonial Nacional. Lisboa, A Liberal - Oficina Tipográfica, 1901.:48; Lima, 1934Lima, Fernando de Castro Pires. Contribuição para o Estudo do Folclore de Moçambique. Porto, Separata da revista de etnografia n° 14. Museu de Etnografia e História, 1934.:14; Junior, 1950Santos Junior, J. R. dos. A alma do indígena através da etnografia de Moçambique. Instituto de Antropologia da Universidade do Porto (Diretor - Prof. Dr. Mendes Correa), Lisboa, 1950.:15; Cabral, 1925Cabral, António Augusto Pereira. Raças, usos e costumes dos indígenas da Província de Moçambique. Lourenço Marques, Imprensa Nacional, 1925.:36; Junod, 2009Junod, Henry. Usos e costumes dos Bantu. Tomo 1 - Vida social. Campinas, Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas, Unicamp, 2009.:73, 109).
Otasse, Cotasse ou Kotasse foi uma dentre tantas outras mulheres responsáveis pela criação do mundo “temperado” que Craveirinha encontrou nos subúrbios de Lourenço Marques. Como lembra Jeanne Penvenne, as críticas sobre uma escrita androcêntrica da História lançaram luz na historiografia africanista para a importancia de pensar as mulheres africanas, especialmente para aquelas que se encontravam num contexto urbano. Historicamente tornadas invisíveis ou simplesmente silenciadas, foram mencionadas pelas vozes dominantes constantemente em termos negativos. Sempre que não se enquadravam no modelo da ideologia patriarcal “sobre a apropriada autoridade social masculina, […] articulada pelo poder dos homens mais velhos e pelo direito nativo parcialmente codificado pelo colonialismo” foram classificadas como desviantes (Penvenne, 1997Penvenne, Jeanne. Seeking the factory for women: Mozambican urbanization in the late colonial era. Journal of Urban History, vol. 23, n° 3, 1997, pp.342-379.:343).
Nesse sentido, a suspeita que rondava o "indígena Fanana Pendane, […] do régulo Capezulo" apresenta alguns aspectos da imbricada relação construída entre dominação masculina, formas de dominação política colonial e a apropriação das novas instituições coloniais por parte daquelas que se encontravam subjugadas por elas. Dirigindo-se para a sede administrativa de Bela Vista, localizada próximo à região da Catembe, ao sul da cidade de Lourenço Marques, Fanana reclamou com o administrador, em outubro de 1929, que “sua mulher, de nome Mitimbane ou Micuiche Alarge” havia fugido “de madrugada, em direção [àquela] cidade". Afirmando ser “um aleijado” que mal podia se deslocar em muletas, solicitou a intervenção do diretor dos Serviços e Negócios Indígenas para mandar sua mulher "regressar as terras para […] tomar conta da criança” de dois anos que havia, supostamente, abandonado. Fanana e o administrador de Bela Vista suspeitavam que Mitimbane ou Micuiche Alarge deslocara-se para Lourenço Marques com o intuito “certamente [de] entregar-se a prostituição".12 12 AHM, DSNI, Caixa 1609. Carta do Administrador de Bela Vista para o Senhor Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, 19 de outubro de 1929.
A visão de autoridades administrativas coloniais sobre o afluxo de mulheres africanas, de autoridades locais chefiadas por regulados, de homens trabalhadores, todas figuras masculinas, parece convergir na leitura de que a presença feminina em Lourenço Marques, principalmente daquelas mulheres que não mantinham laços fixos com formas de dominação masculina que regiam as relações de parentesco, aliança matrimonial e gênero no Sul de Moçambique, representou uma ameaça às consolidadas maneiras de controle e dominação existentes, quaisquer elas que fossem. Como uma ameaça em potencial, a construção de formas de pensar e, consequente mente, de ações administrativas coloniais, inseriu essas mulheres nos processos de reconfigurações sociais que ocorreram com o crescimento acelerado da cidade, relacionando-o com a diminuição maciça da presença masculina nas zonas rurais. Especialmente no que diz respeito às autoridades administrativas, estas temeram o afastamento das mulheres das tarefas agrícolas como fator que
poderia pôr em risco a manutenção do sistema de usufruto de uma força de trabalho masculina sazonal e barata, quer para as minas quer para os serviços internos à colónia e, ao mesmo tempo, abalar os mecanismos de reprodução biológica e social das comunidades (Zamparoni, 1998Zamparoni, Valdemir. Entre “nanos” & “mulungos”: colonialismo e paisagem social em Lourenço Marques, c.1890-c.1940. Tese (Doutorado em História Social), Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 1998.:280).
Demonstrando a crescente presença negra/indígena/africana na cidade, os dados estatísticos para o período analisado revelam que, pelo menos para a primeira década do século XX, o número de homens e mulheres nativos em Lourenço Marques manteve-se equiparado. Em 1897, o mapa estatístico da população da cidade de Lourenço Marques dividia seus dados em “maiores, até 7 anos de idade, de 8 a 14 anos e de 15 a 21 anos”. O número de “africanos, masculino” maiores e entre 15 e 21 anos era de 1.001 indivíduos, enquanto que para “africanos, feminino” era de apenas 370.13 13 Arquivo Histórico Ultramarino (doravante, AHU), Direção Geral do Ultramar (doravante, DGU), 3a Repartição, Caixa 2764, 1885-1898, Estatísticas. Para 1904, o Boletim Oficial informou existirem 9.849 habitantes em Lourenço Marques, dividindo a população em duas categorias, europeus e africanos. A primeira possuiria 4.691 pessoas e a segunda 4.888.14 14 Boletim Oficial, n° 48, 1904, Biblioteca Nacional de Portugal (doravante, BNP). Oito anos depois, novos dados estatísticos, distinguidos por local de moradia, entre “cidade” e “subúrbios”, apontaram um total de 11.366 homens e 5.979 mulheres. Em 1928, um novo levantamento da população habitante de Lourenço Marques constata que o total da “população africana” era de 23.090, 15.685 homens e 7.405 mulheres (Rita-Ferreira, 1967/1968Rita-Ferreira, António. Os africanos de Lourenço Marques. In: Separata de Memórias do Instituto de Investigação Científica de Moçambique. Lourenço Marques, I.I.C.M, 1967/1968, pp.93-491.). Sendo assim, ocorreu um crescimento em relação a 1897, quando cerca de 26% da população que poderia ser classificada enquanto africana da cidade era feminina, para 34%, em 1912, mantendo-se estável essa proporção em 1928.
É importante ressaltar que as informações estatísticas produzidas pelos agentes coloniais durante esse período são altamente variáveis (Reis, 1973Reis, Carlos Santos. A população de Lourenço Marques em 1894 (um censo inédito). Lisboa, Publicações do Centro de Estudos Demográficos, 1973.). Algo que interferia demasiadamente na fiabilidade desses números era a própria estrutura de cobrança de impostos criada pelo colonialismo. Como a população classificada como indígena deveria pagar o “imposto da palhota”, considerando-se cada mulher casada como uma unidade tributável, foram criadas táticas que buscaram enganar os recenseadores para que o imposto a ser pago não fosse demasiado elevado ou mesmo para evadir-se da tributação.15 15 O “imposto da palhota” foi o nome dado em Moçambique ao imposto que deveria ser pago ao Estado colonial pela população africana classificada como indígena. A palhota era o termo empregado em português para designar a habitação “indígena”. Ao longo do período colonial, sua cobrança variou bastante, inicialmente podendo ser pago em espécimes, mas rapidamente passando a ser obrigatório o seu pagamento em dinheiro. De maneira geral, ainda que o imposto tenha incidido sobre os africanos considerados indígenas do sexo masculino, a forma de cobrança foi comumente feita a partir do número de palhotas existentes numa determinada região e habitadas por um núcleo familiar composto por homem, mulher e filhos. É consenso na bibliografia que a criação de um mecanismo tributário por meio da cobrança do referido imposto em Moçambique correspondeu, conjuntamente com a expropriação de terras e a implementação do trabalho forçado, a um dos elementos essenciais na construção de uma força de trabalho dentro de parâmetros capitalistas, assim como a estrutura do Estado colonial dependia diretamente da arrecadação conseguida com essa tributação, o que explica o esforço hercúleo na sua cobrança. Mesmo que as mulheres ditas indígenas não tenham sofrido diretamente com a necessidade do pagamento desse imposto, é recorrente encontrar relatos de abusos cometidos por autoridades coloniais que, na ausência do pagamento do tributo, raptavam mulheres e crianças até que seus respectivos maridos ou pais pagassem o imposto da palhota (Capela, 1977; Zamparoni, 2007; Santos, 2014). A discrepância existente entre o número de palhotas e o número de adultos apresentado pelo Secretário Geral para o Intendente da Emigração, referente às circunscrições do Distrito de Lourenço Marques, revela como a estrutura produzida para codificar a realidade existente era influenciada pela própria estrutura colonial implementada para explorar aquela realidade. O mapa do “número de palhotas e do número provável de indivíduos adultos da raça indígena, de ambos os sexos” para aquela região era de tal maneira discrepante, que, segundo os dados apresentados, existiriam mais palhotas do que indivíduos residentes naquele distrito. Independente da ineficácia da burocracia colonial em realizar levantamentos estatísticos fidedignos no início do século XX, a discrepância entre esses números provavelmente está relacionada aos receios das populações locais em relação às campanhas de recrutamento para o trabalho forçado. A fuga de suas regiões de habitações, abandonando suas palhotas, quando da chegada de algum administrador colonial, pode ter terminado por produzir esse número maior de residências em comparação com ao dos habitantes.
Mapa do “número de palhotas e do número provável de indivíduos adultos da raça indígena, de ambos os sexos” do Distrito de Loureço Marques (1907)
Esses números demonstram que, de maneira bastante semelhante a outras cidades coloniais africanas que surgiram e/ou cresceram durante esse início do século XX graças as fortes pressões migratórias, a presença de mulheres negras era significativamente inferior à masculina.16 16 Outras cidades africanas passaram por processos semelhantes ao de Lourenço Marques nesse período, no que se refere à atividade laborai dessas mulheres e às dificuldades que enfrentaram. Um desses casos foi analisado em White (1983). Porém, era uma presença importante nas dinâmicas relações socioculturais que se desenvolviam naquele período. Em seu trabalho sobre as operárias nas indústrias de transformação da castanha do caju em Lourenço Marques, durante o colonialismo tardio (1945-1975), Jeanne Penvenne (2015)Penvenne, Jeanne. Women, migration & the cashew economy in Southern Mozambique 1945-1975. Oxford, James Currey, 2015. levanta como pontos fundamentais para o incentivo à migração feminina negra/africana para a cidade fatores de desastres ecológicos causadores da pauperização da vida nas zonas agrícolas, fatores económicos e outros de ordem pessoal, majoritariamente relacionados a vivência no âmbito matrimonial. Porém, como afirma Valdemir Zamparoni (1998)Zamparoni, Valdemir. Entre “nanos” & “mulungos”: colonialismo e paisagem social em Lourenço Marques, c.1890-c.1940. Tese (Doutorado em História Social), Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 1998., os números existentes para o colonialismo prematuro (1890-1940) “apontam que eram as mulheres jovens que estavam na cidade e não aquelas que, por um motivo ou outro, tinham vivenciado o esgarçamento de seus laços matrimoniais, como as divorciadas e viúvas” (Zamparoni, 1998Zamparoni, Valdemir. Entre “nanos” & “mulungos”: colonialismo e paisagem social em Lourenço Marques, c.1890-c.1940. Tese (Doutorado em História Social), Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 1998.:282).
Como aponta Kathleen Sheldon (2003)Sheldon, Kathleen. Markets and Gardens: placing women in the history of urban Mozambique. Canadian Journal of African Studies, vol. 37, n° 2/3, 2003, pp.358-395., as experiências de vivência das mulheres africanas no espaço urbano colonial moçambicano estiveram diretamente relacionadas às oportunidades de trabalho assalariado e às transformações que o meio urbano propiciava às formas de constituição da família. As mulheres classificadas como indígenas exerceram diversas atividades em Lourenço Marques, não sendo apenas prostitutas ou serviçais. Um exemplo disso são as vendedoras de carvão, as vendedoras de lenha ou as “vendedeiras de anãs e mangas” que ocupavam tendas no mercado municipal ou transitavam pelas ruas de Lourenço Marques vendendo seus produtos (Rufino, 1929Rufino, José dos Santos (ed.). Álbuns fotográficos e descritivos da colònia de Moçambique. Volume III: Lourenço Marques - Aspectos da cidade. Vida Comercial Praia da Polana, etc. Lourenço Marques, J. S. Rufino, 1929.:7, 11).
Um tipo de exercício profissional específico não necessariamente inibiu outras formas de tentar maximizar as potencialidades financeiras que o espaço urbano permitia. Uma '‘indígena serviçal”, que havia sido “contratada em Inhambane” como lavadeira, por exemplo, às “altas horas" da noite de 17 de outubro de 1915 foi presa por sair da casa dos patrões para “entregar-se a prostituição”.17 17 AHM, DSNI. Tribunais Indígenas, caixa n° 1603. Ver. também: AHM, DSNI. Diversos, caixa n° 29. Prostituir-se talvez tenha sido a única forma que a mesma encontrou para receber algum vencimento. Prática recorrente na contratação de serviçais domésticas, principalmente aquelas que se encontravam em situações precárias de redes de proteção, o não pagamento de salários pelos patrões ocasionou situações como a apresentada pela “indígena Tamuéla”, em julho de 1916. Recorrendo à Secretaria dos Negócios Indígenas para poder abandonar o emprego na casa de um funcionário dos Correios e retornar aos cuidados da “indígena Rosaria” - quem a levou para Lourenço Marques - Tamuéla contou ter ido “ainda criança” da Ilha de Moçambique para a capital. Tendo trabalhado por quinze anos naquela casa, sem nunca ter sido paga, exigia as "mensalidades em dívida pelos serviços” e a “sua liberdade".18 18 AHM. DSNI, Requerimentos, petições, reclamações e queixas, caixa n° 148. Encontrei caso semelhante em 1916-1917, quando o alferes da Secretaria dos Negócios Indígenas foi acusado de utilizar nos serviços domésticos em regime semelhante a escravidão a “menor Suzana, indígena de Quelimane”.19 19 AHM. DSNI, Requerimentos, petições, reclamações e queixas, caixa n° 149. A utilização do serviço de mulheres vindas para Lourenço Marques, muitas vezes ainda crianças, distantes de suas regiões de origem, empregadas nos afazeres domésticos em residências de funcionários administrativos coloniais portugueses em esquemas de exploração da mão de obra muito semelhantes a escravidão foi denunciada por alguns agentes que encabeçaram o processo de consolidação do colonialismo português na região. Percebido enquanto uma anomalia desse processo, causado por pessoas supostamente mal-intencionadas, e não como uma característica intrínseca do próprio sistema colonial, "o fornecimento gratuito de criados a determinados funcionários públicos, dando resultados bastante lastimáveis” era recorrente, conforme afirmou Freire de Andrade (1907D'andrade, A. Freire. Relatórios sobre Moçambique por Freire D’Andrade. Lourenço Marques, Imprensa Nacional, 1907.:11) dentre outros autores.
“Makalala!’ As pretas que vendem carvão” (Rufino, 1929Rufino, José dos Santos (ed.). Álbuns fotográficos e descritivos da colònia de Moçambique. Volume III: Lourenço Marques - Aspectos da cidade. Vida Comercial Praia da Polana, etc. Lourenço Marques, J. S. Rufino, 1929.:7).
Essas mulheres também agiram muitas vezes recorrendo a uma defesa de seus interesses por meio do acionamento dos órgãos administrativos coloniais. Defendendo sua autonomia enquanto trabalhadora e detentora de posses, a “indígena Inhkuge” apresentou-se na Secretaria dos Negócios Indígenas, em 1918, para prestar queixa contra o “auxiliar Antonio […], com quem vivia”. Reclamou que Antonio “a abandonou”, levando vários objetos que lhe pertenciam, como “uma cama, uma mesa, um banco, dois baldes, um ralador, cinco panelas, um cinto de missangas, um ferro de engomar, um pilão, cinco pratos, dois copos, uma chaleira, duas canecas, dois barris, uma lata, um galo e uma galinha”.20 20 AHM, DSNI, Requerimentos, petições, reclamações e queixas, caixa n° 149. Caso semelhante ocorreu em novembro de 1917. Joana, residente na estrada de Marracuene, subúrbios de Lourenço Marques, queixou-se do “indígena de nome Cantine”, empregado como condutor de riquichós. Joana havia abandonado Cantine por conta dos “maus tratos que este lhe afligia”. Agora acusava seu ex-amante de estar se negando a devolver “uma quantidade de roupa de uso de sua filha Indavaze”, “29 chapas de zinco” - fundamentais para a construção de residências nos subúrbios - e “alguma louça”. Seu objetivo com isso seria o de tentar reatar o relacionamento. Porém, Joana afirmava que seu desejo era apenas o de reaver seus objetos.21 21 Idem.
“Vendedeiras de Ananazes e mangas” (Rufino, 1929Rufino, José dos Santos (ed.). Álbuns fotográficos e descritivos da colònia de Moçambique. Volume III: Lourenço Marques - Aspectos da cidade. Vida Comercial Praia da Polana, etc. Lourenço Marques, J. S. Rufino, 1929.:11).
“Tipos de serviçais ‘Landins’. Ao centro Vendedeiras de Lenha” (Rufino, 1929Rufino, José dos Santos (ed.). Álbuns fotográficos e descritivos da colònia de Moçambique. Volume III: Lourenço Marques - Aspectos da cidade. Vida Comercial Praia da Polana, etc. Lourenço Marques, J. S. Rufino, 1929.:9).
A fotografia do meio retrata, novamente, as mulheres que se dedicavam à venda de produtos que eram fundamentais para a vivência cotidiana naquela Lourenço Marques do início do século XIX. A fotografia da direita, por seu turno, parece ser um exemplo das mulheres de tenra idade que, como veremos mais adiante, arriscou-se como “serviçal doméstica”.
Percebendo essa crescente presença feminina “indígena” em Lourenço Marques, associando-a à prestação de serviços domésticos e, sobretudo, ao trabalho nos estabelecimentos comerciais denominados como cantinas, que buscavam atender as demandas e angariar lucros com o recém-formado mercado consumidor de origem africana masculino proveniente das migrações, a administração colonial buscou regulamentar a presença dessas mulheres dentro desses espaços mercantis. De maneira geral, a interpretação dos regulamentos coloniais sobre as cantinas e, principalmente, sobre as mulheres “indígenas” que trabalhavam nesses locais, recaiu numa leitura delas como prostitutas a serviço dos cantineiros (Zamparoni, 2004Zamparoni, Valdemir. Copos e corpos: a disciplinarização do prazer em terras coloniais. Travessia n° 4/5, 2004, pp.119-137.). Inúmeras portarias insistiram em coibir o emprego da mão de obra feminina nesses estabelecimentos por associá-las a focos de desmoralização do meio citadino. Uma das primeiras medidas ocorreu em fevereiro de 1903, quando o Governador Geral solicitou a publicação de portaria que restringisse a existência de “botequins servidos por mulheres" por estarem produzindo “escândalo e desordem”.22 22 AHU, DGU, 1a Repartição, 1a Seção. 1903 - Correspondência. Em resposta ao telegrama enviado pelo Governador Geral para Lisboa, foi autorizada a publicação da portaria.
Ao mesmo tempo, os proprietários das cantinas buscaram de diversas maneiras burlar os regulamentos de moralização e propagação da sobriedade dentro do mundo urbano laurentino. Por vezes uniram-se, como em 1909, quando tentaram, sem sucesso, restringir “as rusgas aos indígenas vadios” realizadas pela polícia e que tanto prejudicava o seu comércio.23 23 Carta assinada por 51 proprietários de cantinas ao Governador Geral da Província de Moçambique. 29 de novembro de 1909. In: AHM, GG. Processos -Polícia (1908-1914), caixa n° 19. Noutros momentos, entre 1915 e 1916, foi a Secretaria dos Negócios Indígenas que enveredou uma campanha contrária ao emprego de mulheres em cantinas e ao seu emprego na prostituição. Segundo o secretário do órgão, "nos arrabaldes da cidade" algumas cantinas estariam empregando “mulheres indígenas na venda de bebidas, gêneros alimentícios e outras mercadorias do uso especial dos indígenas". Os cantineiros estariam aproveitando- se disso para explorar "essas mulheres consentindo que elas se entreguem a prostituição”.24 24 Carta do Secretário dos Negócios Indígenas para o Comissário de Polícia Civil, 18 de outubro de 1915. In: AHM, DSNI, Transgressões - prisões. Caixa n° 7. As averiguações policiais afirmavam que, pelo menos, 69 cantineiros dos subúrbios de Lourenço Marques teriam “mulheres indígenas nas cantinas” e, como forma de evitar repressões das autoridades coloniais e burlar os regulamentos existentes, afirmavam “viver maritalmente” com elas.25 25 Carta do Comissário de Polícia Civil de Lourenço Marques para o Secretário dos Negócios Indígenas, 31 de março de 1916. In: AHM, DSNI, Transgressões -prisões. Caixa n° 7. Após convocarem cantineiros e “indígenas […] moradoras da Malanga” para deporem, escutarem as testemunhas e recolherem as declarações dos depoentes, o Secretário dos Negócios Indígenas e o Comissário de Polícia Civil não conseguiram comprovar as acusações iniciais. Ambos concluíram que, para resolver aquilo que viam como amoral, seria necessário alterar o regulamento que permitia aos cantineiros manterem “serviçais mulheres indígenas” em suas lojas desde que existisse a corroboração de que eram suas amantes.26 26 Autos de Declaração prestados ao Secretário dos Negócios Indígenas em 30 de maio e em 01 de junho de 1916. In: AHM, DSNI, Transgressões - prisões. Caixa n° 7.
Como aponta Saheed Aderinto (2016)Aderinto, Saheed. Pleasure for sale: prostitution in colonial Africa, 1880s-1960s. In: JACOB, Frank (ed.) Prostitution: a companion to mankind. Frankfurt am Main, Peter Lang, 2016, pp.469-180., diferentes pesquisas têm enfocando a prostituição enquanto forma de trabalho que envolve monitorização das relações sexuais, como um fenômeno que surgiu no continente africano durante o período colonial e, principalmente, nos centros urbanos que foram fundados e/ou que cresceram durante esse contexto. No entanto, as interpretações desenvolvidas pelos contemporâneos a respeito dessas mulheres que conseguiram se manter relativamente independentes graças aos serviços prestados nas cantinas ou em outros espaços, esconderam uma vasta e variada gama de realidades construídas a partir das possibilidades de interações que o mundo urbano permitiu. O ato de prostituir-se em Lourenço Marques efetivamente foi uma das muitas maneiras que as mulheres classificadas como indígenas encontraram para angariar recursos, uma forma de vida relativamente autônoma e, consequentemente, inserirem-se nas transformações produzidas pelo colonialismo na região. O incómodo causado pela presença feminina negra/africana dentro do espaço da cantina, predominantemente masculino, e que possibilitava a interação entre grupos sociais considerados marcadamente distintos, contrariava cotidianamente o esforço intelectual e administrativo apresentado no início deste artigo. A existência de “serviçais mulheres indígenas” representou um risco à construção do mundo colonial marcado por categorias estanques.
Nesse sentido, no dia a dia da vigilância e do controle colonial sobre o mundo urbano laurentino, seguindo edital promulgado em dezembro de 1902, o livro de registro “das mulheres indígenas serviçais, dos donos de cantinas” contabilizou 73 entradas entre 1903 e 1905. Alguns anos depois, em 1907, os relatórios de Freire D’Andrade apontavam para a existência de 669 estabelecimentos comerciais licenciados para a venda de “vinhos e outras bebidas" em Lourenço Marques. Sua descrição desses estabelecimentos era bastante depreciativa. Segundo o autor, muitas das cantinas seriam estabelecimentos precários, "onde o cantineiro se instala com dois ou três barris de vinho, e, sentado a fumar, com a preta ao lado, procura atrair e explorar por todos os modos o negro" (D’Andrade, 1907D'andrade, A. Freire. Relatórios sobre Moçambique por Freire D’Andrade. Lourenço Marques, Imprensa Nacional, 1907.:6). O jornal O Progresso, em março de 1905, dizia que como resultado de uma rusga nas cantinas da Malanga teriam sido encontradas "23 pretas acusadas de exercerem a prostituição”.27 27 O Progresso. 21 de marco de 1905. BNP. Ou seja, o número de cantinas existentes na cidade era muito maior do que as registradas e, apesar dessas variações numéricas, fica evidente que a presença feminina negra/indígena nesse tipo de comércio parece ter sido bastante comum.
Com relação aos registros das mulheres serviçais nas cantinas, não foi possível saber ao certo quem se dirigiu para o órgão administrativo colonial e forneceu as informações. Ao longo do documento, a mudança na caligrafia e pequenas alterações no formato da anotação dos dados, indicam que certamente não foi sempre o mesmo funcionário que transcreveu as informações consideradas essenciais. Características físicas capazes de tomar as registradas identificáveis foram descritas, como a altura, o formato do rosto, da boca e do nariz, o tipo de cabelo e a cor dos olhos. A cor da pele aparece como outra característica importante. Os desígnios usados para defini-la foram “preta”, “parda” ou “bronzeada”. Em nenhuma das entradas existiu a preocupação em anotar uma suposta “raça”, “sub-raça”, “tribo” ou “etnia” a qual essas mulheres poderiam pertencer. O mais próximo que chegamos de algum indicativo provável disso são as referências genéricas de “sinais” físicos característicos, como orelhas furadas ou tatuagens. Também pareceu relevante para a administração colonial saber o local de nascença e a qual régulo as respectivas registradas estavam ligadas. As descrições físicas sugerem que essas mulheres estiveram presentes no momento do preenchimento do livro. Para além disso, é possível conjecturar que em determinados momentos as próprias registradas forneceram algumas das informações anotadas, pois é anotado que uma delas ignorava “o régulo a que pertence”.28 28 AHM, Administração do Conselho de Lourenço Marques (doravante ACLM), Livros de Registro, Caixa n° 3245.
Das 73 registradas, 72 afirmaram serem solteiras e uma viúva. Todas foram categorizadas como sendo “serviçais”. Suas prováveis idades variaram entre 14 e 35 anos, sendo a média de 24 anos. Dos sinais que apresentavam em seus corpos, aquelas que possuíam algum indicativo de pertença sociocultural foram 25. Dessas, 24 tinham tatuagens em diferentes partes do corpo. Do total das mulheres tatuadas, três também possuíam as orelhas furadas, uma outra tinha furo nas orelhas, mas não tatuagens. Para além desses símbolos que ostentavam, 63% das “mulheres indígenas serviçais” apontadas mostravam em seus corpos marcas das duras vidas que levavam. Uma delas era cega do olho esquerdo, três possuíam “o rosto com cicatriz de varíola” e 43 traziam cicatrizes na testa, no rosto, no pescoço, nos braços e nas mãos. Esse era o caso de Maria e Maria Lougame. Mãe e filha trabalhavam na cantina de José Antunes, localizada na Avenida Central. A primeira, com 30 anos, tinha "cicatrizes em ambos os braços”, a segunda, com 14 anos. apresentava “uma cicatriz no braço direito e outra na testa". O caso mais dramático era o da serviçal na cantina de João Freire de Oliveira, na Avenida D. Carlos. Fátima, com 25 anos e natural de Inhambane, foi descrita com “três cicatrizes por queimadura e falta de uns dentes na arcada dentária superior", possivelmente pelos maus tratos infligidos por seu patrão. Fátima havia fugido de seu serviço, retornando após seis meses de ausência.29 29 AHM, Administração do Conselho de Lourenço Marques (doravante ACLM), Livros de Registro, Caixa n° 3245. Os agentes coloniais que realizaram os registros podem ter confundido as “tatuagens”, muitas delas feitas por meio de escarificaçào, com o que foi chamado de “cicatrizes”. Na documentação aparecem essas duas categorias (“tatuagem” e “cicatriz”), sendo que quando aparece o termo “cicatriz” existiu a preocupação de localizá-las no corpo.
Portanto, encontramos nessa documentação registro de mulheres na casa dos 24 anos, aparentemente sem laços matrimoniais fixos e/ou restritivos, algumas ostentando marcas de pertença sociocultural, e majoritariamente, tendo seus corpos marcados pelas duras condições de vida. Mas, na sua maioria, estiveram dispostas a deslocarem-se de suas regiões de naturalidade rumo a Lourenço Marques, reforçando a ideia da existência de uma rede de circulação de mulheres "indígenas" em direção à cidade, desde o início do século XX, de toda região sul de Moçambique e de alguns países vizinhos.
“Um grupo de mulheres cafres de Delagoa Bay” (Lazarus, 1901J. & M. Lazarus. A Souvenir of Lourenço Marques. An album of views of the town. Lourenço Marques, Tabler & Co., 1901.:43). No original: “A group of Delagoa Bay Kafir Women”.
Nessa imagem, possivelmente tirada nos subúrbios da cidade, é plausível supor que estamos diante de mulheres muito semelhantes àquelas registradas como serviçais em cantinas entre 1903 e 1905. Muitas delas estão vestidas com o “quimáu” e com capulanas enroladas ao redor do corpo.30 30 Como aponta Benigna Zimba (2011), no processo de transformação no uso de tecidos localmente produzidos para tecidos importados no início do século XX teria se tornado notório, por uma parcela das mulheres africanas de Lourenço Marques, o uso de “blusas com mangas compridas e justas aos braços” (p.25), chamado quimáu. Outras usam um lenço na cabeça, colares e brincos. Ainda estão sentadas, no canto inferior esquerdo, duas meninas com vestidos e lenços cobrindo as cabeças, o que pode significar que frequentavam alguma escola missionària. Perto delas, mais à esquerda, está um homem negro com uma coroa de cera tendo, ao seu lado, outro usando um chapéu coco. Além desses dois, estão posicionados em pé, no meio das mulheres, dois homens brancos.
Do número total de mulheres que foram registradas, apenas 17 não informaram seus possíveis régulos. Destas, apenas duas afirmaram serem naturais de Lourenço Marques. As outras que não vincularam sua naturalidade com o pertencimento a um régulo específico aparecem sendo originárias de regiões relativamente urbanizadas ou com alguma presença branca/europeia, como Gaza, Inhambane ou Johanesburgo. Também são esses os casos daquelas originárias de bairros dos subúrbios de Lourenço Marques, como Chamanculo e Munhuana. É plausível supor que nessas regiões fosse possível desvincular-se mais facilmente dos laços que as ligassem a um regulado e, consequentemente, a uma determinada forma de vida. Porém, não é possível afirmar isso categoricamente. Afinal, o próprio registro pode ter sido comprometido, já que não fica explicito se foram os patrões ou as próprias “mulheres serviçais indígenas” que passaram essas informações.
O que chama a atenção é o grande número de mulheres advindas de algumas regiões específicas. Inhambane, Matola e, sobretudo, Catembe correspondem a 53% dos locais de origem registrados. Ou seja, mais da metade das “mulheres serviçais indígenas” das cantinas registradas em Lourenço Marques vinham dessas três regiões. Inhambane, situada cerca de 500 quilómetros ao norte de Lourenço Marques, era uma província e uma vila/cidade com presença contínua portuguesa desde o século XVIII. Essa longevidade da cidade pode ser um fator explicativo para a existência das dez originárias de Inhambane, sendo seis da própria cidade e quatro de regulados distintos. Nas regiões como a Matóla e a Catembe, que circundavam Lourenço Marques e eram influenciadas diretamente pelas grandes transformações ocorridas naquele início de século, manter laços com suas provenientes regiões rurais que facilitassem suas vindas e vidas na cidade parece ter sido a tônica para essas mulheres. Das dez originárias da Matóla, três eram de distintos régulos, quatro disseram pertencer ao régulo Anhana e três do régulo Achama. Para aquelas vindas da Catembe, essa confluência entre regulado de origem e o exercício da profissão de serviçais em cantinas é mais significativa. Do total de 19 contabilizadas, duas são colocadas apenas como naturais da Catembe, uma do régulo Machacarete, duas do régulo Guide e 14 do régulo Mavaia.
3. Considerações finais
As trabalhadoras registradas como “mulheres indígenas serviçais” das cantinas em Lourenço Marques apresentaram uma significativa similitude nas suas localidades de origens. Dificilmente somos capazes de encontrar fontes sistemáticas para esse início do século XX, para o sul de Moçambique, capazes de indicar esse tipo de informação. Para a segunda metade do século XX, solidariedade baseada num local de origem comum foi observado por Jeanne Penvenne para trabalhadores masculinos. Segundo a autora, no início do século XX, “as pessoas Chopi, da circunscrição de Zavala, tornaram-se os trabalhadores preferenciais no saneamento” de Lourenço Marques (Penvenne, 1995Penvenne, Jeanne. African workers and colonial racism. Mozambican strategies and struggles in Lourenço Marques, 1877-1962. Portsmouth, Heinemann, 1995.:52-53). Manipulando a seu favor a exploração colonial, aproveitando o fato de terem sido associados a esse tipo de trabalho específico, homens chopi buscaram construir estratégias para melhorarem suas condições de vida na cidade. Para os casos aqui analisados, não apenas homens, como indica Penvenne, mas também mulheres consideradas indígenas pelo sistema colonial português parecem ter construído e se aproveitado de redes de conterráneas que poderiam ser acionadas como um dos mecanismos catalizadores da escolha por Lourenço Marques como destino migratório. Fosse para arranjar algum emprego que tornasse possível a vida na cidade ou para apoiarem-se em momentos de dificuldade, essa circulação entre os percalços do espaço urbano laurentino e suas ligações com o mundo rural existente nos arrabaldes da cidade ou em paragens mais distantes indicam a existência, ainda por ser pesquisada, de redes migratórias marcadamente de mulheres para além daquelas conhecidas pela bibliografia que se debruçou sobre o tema para esse período e para essa região moçambicana.
Apesar de termos acesso a suas histórias sobretudo em momentos de conflito ou de desestruturação das vidas que vinham construindo até aquele momento, muitas dessas mulheres conseguiram migrar para um centro urbano que se esforçava em afastá-las. fixar-se numa nova realidade, lidar com diferentes esquemas de dominação e, em alguns poucos exemplos, arrecadar bens e prosperar. São exemplos como o de Inhkuge, que reclamou na Secretaria dos Negócios Indígenas, órgão criado pelo colonialismo, do seu ex-companheiro com quem havia vivido na cidade. Exigindo seus bens de volta, acabou por nos dar sinais do seu pertencimento a um mundo urbano que se buscava construir como semelhante ao europeu, sobretudo por meio da adoção de utensílios domésticos e de uso pessoal no cotidiano da sua vida. Somos privados pela documentação da informação a respeito do meio de obtenção de ganhos monetários por parte de Inhkuge. Não sabemos como ela conseguiu acumular seus bens. Mas temos pistas sobre como isso seria possível. As fotografias publicadas em 1929 por Santos Rufino apresentam a importância das mulheres no mercado informal de venda e abastecimento de produtos de consumo, como a lenha ou as frutas. Noutros casos de mulheres que acionaram o poder colonial, como os de Tamuéla ou da menor Suzana, que haviam migrado de regiões distantes para Lourenço Marques e haviam sido empregadas no serviço doméstico, fica evidente a fragilidade das condições de trabalho encontradas por elas. Ambas buscaram amparo na Secretaria dos Negócios Indígenas por entenderem que se encontravam em condições abusivas de trabalho, já que nada recebiam por seus serviços.
Casos como os de Tamuéla ou de Suzana pouco corroboram a construção imagética de Lourenço Marques como xitleta vasati, ou seja, como “um lugar onde mesmo as mulheres podem ir e voltar com segurança” (Zamparoni, 2007Zamparoni, Valdemir. De escravo a cozinheiro: colonialismo & racismo em Moçambique. Salvador, EDUFBA/ CEAO, 2007.:212; Covane, 2001Covane, Luís António. O trabalho migratório e a agricultura no sul de Moçambique (1920-1992). Maputo, Promedia, 2001.). Ainda assim, as experiências dentro do cenário urbano laurentino parecem ter dado às mulheres citadas ao longo deste artigo uma certa liberdade para atuarem, demonstrando uma agenciabilidade ativa na construção de seus novos papéis dentro dessa sociedade urbana colonial. Aparentemente, Otasse, Cotasse, ou Kotasse arriscou-se num relacionamento com um rapaz branco de uma família portuguesa que havia conhecido exercendo a prostituição. Seu futuro foi o de tantos outros que, por diversos motivos, transpassaram as barreiras impostas pelo regime colonial: o degredo. Outras como Fanana Pendane, supostamente tendo fugido do marido e da área rural na qual vivia para o mundo urbano de Lourenço Marques, caíram na leitura da dominação masculina de que uma mulher só poderia sobreviver por meio da venda do seu corpo. Como apresentei ao longo deste artigo, foram diversas as formas encontradas pelas mulheres ditas indígenas de se inserirem no mercado de trabalho laurentino. Um número particularmente significativo encontrou espaço para isso nas cantinas. Sendo lidas recorrentemente como passivas de serem exploradas pelos cantineiros por meio do seu emprego no ramo da prostituição, agiram como intermediadoras de um mundo predominantemente masculino mercantil colonial e do mundo dos trabalhadores ditos indígenas em busca das mercadorias. Arriscando-se fisicamente, o que é evidenciado pelos sinais existentes em seus corpos, essas mulheres não deixaram de agir em proveito próprio, acionando as ferramentas que lhes eram capazes dentro daquele cenário excludente.
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1
O Africano. 28 de marco de 1914. World Newspaper Archive (doravante, WNA).
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2
O Brado Africano. 01 de novembro de 1919. WNA.
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3
Arquivo Histórico de Moçambique (doravante, AHM), Direção dos Serviços e Negócios Indígenas (doravante, DSNI), Caixa 225, Carta do Administrador da Circunscrição do Maputo para o Senhor Intendente dos Negócios Indígenas e Emigração, em 14 de novembro de 1913.
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4
AHM, DSNI, Caixa n° 1634, Auto de notícia prestado pela Senhora D. Ana Salbany Simões Duarte, em 26 de setembro de 1928.
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5
AHM, DSNI, Caixa n° 1634, Auto de Declaração prestado por Raul Augusto da Silva Guardado no dia 26 de setembro de 1928.
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6
AHM, DSNI, Caixa n° 1634, Auto de Declaração prestado por Francisco António Vargas Maldonado no dia 26 de setembro de 1928.
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7
AHM, DSNI, Caixa n° 1634, Telegrama do Fiscal de Transporte de Xinavane para a Direção dos Serviços e Negócios Indígenas no dia 27 de setembro de 1928.
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8
AHM, DSNI, Caixa n° 1634, “Assunto: Deportação de Indígenas”, de 28 de setembro de 1928.
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9
A deportação como forma de controle sobre insubordinação das populações nativas foi uma política recorrente da administração colonial portuguesa. É possível encontrar diversos casos que tiveram essa mesma resolução. Ver: AHM, DSNI, Curadoria e Negócios Indígenas, caixas n° 573 e 602; AHM, DSNI, Tribunais indígenas, caixa n° 1632; AHM, DSNI, Transgressões e prisões, caixa n° 83.
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10
Como afirma Valdemir Zamparoni, a partir de dados censitários existentes para o início do século XX, "a população branca [de Lourenço Marques, em 1912] tinha crescido, desde 1894, nove vezes e meia e a população total cerca de vinte e cinco vezes; o mercado de trabalho urbano também se ampliara e diversificara” (Zamparoni, 2007Zamparoni, Valdemir. De escravo a cozinheiro: colonialismo & racismo em Moçambique. Salvador, EDUFBA/ CEAO, 2007.:231).
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11
Como demonstra o estudo realizado, em 1977, pelo Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, desde o início do século XX que se consolidou de maneira estável um sistema migratório e de fornecimento de trabalhadores moçambicanos para as minas sul-africanas. Em 1904, por exemplo, os mineiros de origem moçambicana correspondiam a 60,2% da mão de obra das minas e, em 1906, 65,4% (Centro…, 1998Centro de Estudos Africanos. O mineiro moçambicano: um estudo sobre a exportação de mão de obra em Inhambane. Maputo, Centro de Estudos Africanos, Universidade Eduardo Mondlane, 1998 [1977].:35).
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12
AHM, DSNI, Caixa 1609. Carta do Administrador de Bela Vista para o Senhor Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, 19 de outubro de 1929.
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13
Arquivo Histórico Ultramarino (doravante, AHU), Direção Geral do Ultramar (doravante, DGU), 3a Repartição, Caixa 2764, 1885-1898, Estatísticas.
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14
Boletim Oficial, n° 48, 1904, Biblioteca Nacional de Portugal (doravante, BNP).
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15
O “imposto da palhota” foi o nome dado em Moçambique ao imposto que deveria ser pago ao Estado colonial pela população africana classificada como indígena. A palhota era o termo empregado em português para designar a habitação “indígena”. Ao longo do período colonial, sua cobrança variou bastante, inicialmente podendo ser pago em espécimes, mas rapidamente passando a ser obrigatório o seu pagamento em dinheiro. De maneira geral, ainda que o imposto tenha incidido sobre os africanos considerados indígenas do sexo masculino, a forma de cobrança foi comumente feita a partir do número de palhotas existentes numa determinada região e habitadas por um núcleo familiar composto por homem, mulher e filhos. É consenso na bibliografia que a criação de um mecanismo tributário por meio da cobrança do referido imposto em Moçambique correspondeu, conjuntamente com a expropriação de terras e a implementação do trabalho forçado, a um dos elementos essenciais na construção de uma força de trabalho dentro de parâmetros capitalistas, assim como a estrutura do Estado colonial dependia diretamente da arrecadação conseguida com essa tributação, o que explica o esforço hercúleo na sua cobrança. Mesmo que as mulheres ditas indígenas não tenham sofrido diretamente com a necessidade do pagamento desse imposto, é recorrente encontrar relatos de abusos cometidos por autoridades coloniais que, na ausência do pagamento do tributo, raptavam mulheres e crianças até que seus respectivos maridos ou pais pagassem o imposto da palhota (Capela, 1977Capela, José. O Imposto de Palhota e a introdução do modo de produção capitalista nas colónias. Porto, Afrontamento, 1977.; Zamparoni, 2007Zamparoni, Valdemir. De escravo a cozinheiro: colonialismo & racismo em Moçambique. Salvador, EDUFBA/ CEAO, 2007.; Santos, 2014Santos, Maciel. Trabalho forçado na época colonial - um padrão a partir do caso português?. Hendu. 4(1), 2014, pp.9-21.).
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Outras cidades africanas passaram por processos semelhantes ao de Lourenço Marques nesse período, no que se refere à atividade laborai dessas mulheres e às dificuldades que enfrentaram. Um desses casos foi analisado em White (1983)White, Luise. A colonial state and an African petty bourgeoisie: prostitution, property, and class struggle in Nairobi, 1936-1940. In: Cooper, Frederick (ed.). Struggle for the city: migrant labor, capital, and the State in urban Africa. California, SAGE Publications, 1983, pp.167-194..
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AHM, DSNI. Tribunais Indígenas, caixa n° 1603. Ver. também: AHM, DSNI. Diversos, caixa n° 29.
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18
AHM. DSNI, Requerimentos, petições, reclamações e queixas, caixa n° 148.
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19
AHM. DSNI, Requerimentos, petições, reclamações e queixas, caixa n° 149.
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20
AHM, DSNI, Requerimentos, petições, reclamações e queixas, caixa n° 149.
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21
Idem.
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22
AHU, DGU, 1a Repartição, 1a Seção. 1903 - Correspondência. Em resposta ao telegrama enviado pelo Governador Geral para Lisboa, foi autorizada a publicação da portaria.
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23
Carta assinada por 51 proprietários de cantinas ao Governador Geral da Província de Moçambique. 29 de novembro de 1909. In: AHM, GG. Processos -Polícia (1908-1914), caixa n° 19.
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24
Carta do Secretário dos Negócios Indígenas para o Comissário de Polícia Civil, 18 de outubro de 1915. In: AHM, DSNI, Transgressões - prisões. Caixa n° 7.
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25
Carta do Comissário de Polícia Civil de Lourenço Marques para o Secretário dos Negócios Indígenas, 31 de março de 1916. In: AHM, DSNI, Transgressões -prisões. Caixa n° 7.
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26
Autos de Declaração prestados ao Secretário dos Negócios Indígenas em 30 de maio e em 01 de junho de 1916. In: AHM, DSNI, Transgressões - prisões. Caixa n° 7.
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27
O Progresso. 21 de marco de 1905. BNP.
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28
AHM, Administração do Conselho de Lourenço Marques (doravante ACLM), Livros de Registro, Caixa n° 3245.
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29
AHM, Administração do Conselho de Lourenço Marques (doravante ACLM), Livros de Registro, Caixa n° 3245. Os agentes coloniais que realizaram os registros podem ter confundido as “tatuagens”, muitas delas feitas por meio de escarificaçào, com o que foi chamado de “cicatrizes”. Na documentação aparecem essas duas categorias (“tatuagem” e “cicatriz”), sendo que quando aparece o termo “cicatriz” existiu a preocupação de localizá-las no corpo.
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Como aponta Benigna Zimba (2011)ZIMBA, Benigna. "O papel da mulher no consumo de tecido importado no norte e no sul de Moçambique, entre os finais do século XVIII e os meados do século XX”. In: NASCIMENTO, Augusto; ROCHA, Aurélio; RODRIGUES, Eugènia (Orgs.). Moçambique: relações históricas regionais e com países da CPLP. Maputo: Alcance Editores, 2011, pp.15-38., no processo de transformação no uso de tecidos localmente produzidos para tecidos importados no início do século XX teria se tornado notório, por uma parcela das mulheres africanas de Lourenço Marques, o uso de “blusas com mangas compridas e justas aos braços” (p.25), chamado quimáu.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
2017
Histórico
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Recebido
02 Ago 2017 -
Aceito
13 Nov 2017