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A construção de diferenças de gênero entre estudantes de medicina

Construction of gender differences among medical students

Resumos

Neste artigo, apresentamos os resultados de uma pesquisa empírica sobre a construção identitária de estudantes de medicina em espaços não formais da universidade, em uma sociedade de consumo. Fundamentaram o estudo noções do pós-estruturalismo, principalmente sobre a natureza construída das identidades de gênero pelos discursos. Os resultados sinalizam a importância de se reconhecer que as experiências e subjetividades são passíveis de mudanças e de se integrar a problematização dos discursos dominantes aos currículos formais, facilitando uma maior igualdade de gênero, etnia e classe social.

Cidadania; Gênero; Sexualidade; Identidades; Educação Médica


This article relates the results of an empirical research on the processes through which medical students' identity are constructed in the university non-formal settings, in a consumer society. The study was theoretically based on some pos structuralism notions referring to the construction of gender identities by the discourses. The results point to the need for educators to reflect that the experiences and selves are subject to change, and to integrate the problematization of the dominant discourses to the formal curriculum, favoring greater gender, ethnic and social class equity.

Citizenship; Gender; Sexuality; Identities; Medical Education


ARTIGOS

A construção de diferenças de gênero entre estudantes de medicina* * O artigo é baseado na pesquisa "Cidadania e alteridades: espaços não formais da Universidade e construções identitárias por estudantes em uma universidade pública" coordenada por Vera Helena Ferraz de Siqueira com apoio do CNPq (Edital Universal/07).

Construction of gender differences among medical students

Vera Helena Ferraz de SiqueiraI; Glória Walkyria de Fátima RochaII

IDoutora em Educação, Columbia University, professora associada do Laboratório de Linguagens e Mediações (LLM) do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde/UFRJ. verahfs@yahoo.com.br

IIDoutora em Educação, PUC-Rio, médica Pediatra lotada no Laboratório de Linguagens e Mediações do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde/UFRJ. gloriawalkyria@yahoo.com.br

RESUMO

Neste artigo, apresentamos os resultados de uma pesquisa empírica sobre a construção identitária de estudantes de medicina em espaços não formais da universidade, em uma sociedade de consumo. Fundamentaram o estudo noções do pós-estruturalismo, principalmente sobre a natureza construída das identidades de gênero pelos discursos. Os resultados sinalizam a importância de se reconhecer que as experiências e subjetividades são passíveis de mudanças e de se integrar a problematização dos discursos dominantes aos currículos formais, facilitando uma maior igualdade de gênero, etnia e classe social.

Palavras-chave: Cidadania, Gênero, Sexualidade, Identidades, Educação Médica.

ABSTRACT

This article relates the results of an empirical research on the processes through which medical students' identity are constructed in the university non-formal settings, in a consumer society. The study was theoretically based on some pos structuralism notions referring to the construction of gender identities by the discourses. The results point to the need for educators to reflect that the experiences and selves are subject to change, and to integrate the problematization of the dominant discourses to the formal curriculum, favoring greater gender, ethnic and social class equity.

Key Words: Citizenship, Gender, Sexuality, Identities, Medical Education.

Introdução

Este artigo trata da construção identitária de estudantes de medicina, em espaços não formais da universidade, com foco em questões de gênero e de sexualidade, entendendo que essas categorias não devem ser vistas isoladamente em relação às de raça/etnia e classe social. Partimos do pressuposto de que ocorrem atualmente importantes redefinições do senso de pertencimento e de identidades sociais das novas gerações. Entre os processos que marcam a contemporaneidade, com repercussões no nível econômico e social e na constituição da vida de cada indivíduo, estão as tendências à globalização, a transitoriedade das mercadorias, a instabilidade dos valores, a coexistência de múltiplas culturas e os avanços tecnológicos e suas repercussões nas diversas esferas da vida dos indivíduos.

Diversos autores (Hall, 1997, 2000a, 2000b; Baudrillard, 1981; Sarlo, 2004; Giddens, 1993; Giroux, 2003) vêm contribuindo para o entendimento dessas transformações. O desalojamento das identidades em relação a tempos e tradições específicas (Hall, 2000a), uma crescente homogeneização cultural (Canclini, 1997; Barbero, 1997), indivíduos desinteressados que se sentem socialmente incapazes (Giroux, 2003), a perda da capacidade da mente individual de se localizar na história (Jameson apud Gilbert, 1999) são algumas das múltiplas redefinições do senso de pertencimento que vêm sendo relacionadas a essas transformações.

Um outro processo que se potencializa a partir dessas rupturas é o da exclusão: a rejeição ao outro, considerado inferior e diferente. Certamente esse processo não é novo, entretanto, vários autores vêm apontando certas condições colocadas na chamada "modernidade tardia" como responsáveis por acentuar a rejeição do diferente, o que ocorre a partir de determinantes maiores – como as políticas recentes de inclusão de minorias em nosso contexto – e em nível micro pela identificação de certas características no outro que, de certa forma, constituem uma ameaça à identidade do sujeito. Entre importantes catalisadores dos processos de exclusão estão gênero, etnia, classe social e cultura.

A questão da cidadania está estreitamente relacionada às formas pelas quais atualmente estão se dando a construção das identidades e das diferenças. Canclini (1997) aponta os direitos à diferença como uma dimensão central tomada na América Latina nos últimos tempos para se entender a cidadania – e não mais os direitos à igualdade, como anteriormente. Mais do que valores abstratos, os direitos são importantes como algo que se constrói e muda em relação a práticas e discursos. A cidadania e os direitos não falam unicamente da estrutura formal de uma sociedade; além disso, indicam o estado da luta pelo reconhecimento dos outros como "sujeitos de interesses válidos, valores pertinentes e demandas legítimas", argumenta o autor.

A Universidade, como outras instituições educacionais modernas, é um dos lugares privilegiados para a formação da cidadania, tendo como um de seus projetos centrais a imposição de uma visão de mundo coerente ao jovem, enfatizando a racionalidade, o progresso e a autonomia individual. No Brasil, de forma geral, universidades públicas são consideradas instituições de excelência, onde a indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão garantiria uma formação privilegiada aos estudantes que conseguem acesso às suas disputadas vagas. Entre as mudanças ocorridas nessas instituições nos últimos tempos, reflexo de mudanças sociais e econômicas maiores, verifica-se o aumento do número de mulheres alunas, com evidentes repercussões na construção identitária de ambos os sexos. E, se ainda não refletida em termos numéricos, existe atualmente uma pressão sem precedentes para o ingresso de indivíduos até hoje excluídos desse nível de ensino – negros e/ou alunos provenientes de escolas públicas –, convocando os alunos a emitirem opiniões, sentimentos e valores. A força adquirida por movimentos reivindicatórios – das mulheres, dos negros e de outras minorias – impulsiona reorganizações sociais em inúmeras esferas, e faz chegar às instituições familiar e escolar, entre outras, discursos como da igualdade política, cultural e econômica entre homens e mulheres, através de materiais simbólicos que são negociados em contextos práticos com a mediação crescente da mídia. Bauman (2005:90) sinaliza que "a construção da identidade assume hoje a forma de uma experimentação infindável", com origem na idéia característica da era moderna "de que nada na condição humana é dado de uma vez por todas ou imposto sem direito de apelo ou reforma". Essa visão não essencialista da identidade é central para se entender como as relações de poder são construídas.

O processo de formação do self é cada vez mais influenciado pelos deslocamentos contemporâneos e pelos materiais simbólicos mediados pelas tecnologias que se expandem em um leque de opções disponíveis ao indivíduo e enfraquecem – sem destruir – a conexão entre a formação e o local compartilhado (Thompson, 1998). Tendo em vista esse hiato, Thompson questiona:

Num mundo em que a capacidade de experimentar não está mais ligada à atividade de encontro, como os sujeitos podem relacionar experiências mediadas aos contextos práticos da vida cotidiana? (Id. ib.:182).

Agrupamentos constituídos por iniciativa dos indivíduos – como no caso dos formados pelos jovens na instituição universitária – são instâncias socializadoras onde se exercem e negociam relações de poder, e constituem contextos ricos para se indagar sobre as repercussões dessas transformações contemporâneas. Esses espaços de convivência, sem dúvida, se assemelham aos que têm lugar em outras circunstâncias do cotidiano dos/as jovens, como em clubes, festas, etc.; entretanto, é importante caracterizar suas especificidades: são organizados e ocorrem dentro da instituição universitária, não sendo autônomos aos respectivos dispositivos de poder que regulam o funcionamento dos sujeitos nas instituições escolares, como as regras e definições quanto ao uso do espaço, do tempo, etc.; e são instâncias socializadoras criadas por iniciativa dos próprios jovens, ao contrário, por exemplo, dos encontros que se dão em clubes, shopping centers e festas para as quais são convidados/as. Assim, de forma importante, o cotidiano na universidade toma forma quando alunos de graduação, atores centrais na universidade, desenvolvem espaços de socialização de diferentes ordens, fora das demarcações do currículo formal: festas, grupos de estudo, encontros religiosos, debates sobre afirmação da raça e da opção sexual, e atividades comunitárias. Nesses espaços, que não coincidem com os das políticas e normas do currículo formal, os sujeitos deliberam, se posicionam, se engajam em ações e assumem valores.

Sabemos que a cultura escolar não se limita a conteúdos. Na situação escolar se aprendem muitas outras coisas, inúmeras das quais vão depender da experiência de interação entre os sujeitos nas diversificadas relações grupais. Em grande medida, a partir das interpelações feitas nessas relações, esses alunos passam a ocupar certas posições de sujeito, seja como alunos, consumidores, filhos ou cidadãos: o/a jovem "esperto/a", o/a "comprometido/a", o/a "reformador/a social", o/a "estudioso/a" e daí para diante.

A análise dos processos de construção das identidades e das diferenças entre alunos de graduação oferece importantes subsídios para os desafios colocados atualmente para a universidade pública brasileira referente à sua democratização. Dentre as mudanças ocorridas nas escolas médicas, reflexo de transformações sociais e econômicas maiores, a partir dos anos 80, verificamos o aumento do número de alunas, repercutindo na construção identitária de ambos os sexos.1 1 No Brasil, até 1897, existiam apenas duas faculdades de medicina, a do Rio de Janeiro e a da Bahia, que vinham aceitando matrículas de mulheres há pelo menos uma década, desde a reforma Leôncio de Carvalho, porém com uma freqüência reduzida. Mesmo São Paulo, apesar da dianteira em políticas de saúde pública, viu inaugurada somente em 1913 uma faculdade de medicina oficialmente reconhecida (Mott, 2005). Nos anos 40, as médicas eram apenas 1% do total de profissionais de medicina no país. Hoje, quase 35% dos médicos são mulheres. No total dos médicos com menos de 30 anos de idade, as mulheres correspondem a aproximadamente 50% da força de trabalho (Médici, 1985; Machado, 1997). Entretanto, como em outras profissões que vêm passando por um processo de assalariamento concomitante à sua feminilização, as atividades de maior prestígio social continuam sendo ocupadas por homens (Hirata apud Rodrigues, 2004).

A questão identitária é central à abordagem da cidadania, ocupando lugar prioritário na agenda de indagações deste trabalho, e não temos conhecimento de pesquisas com esse enfoque entre estudantes universitários.2 2 Maria Apparecida Mamede vem conduzindo investigações na PUC/RJ sobre as possibilidades de articulação entre o que as matérias veiculadas pela mídia apresentam e o posicionamento dos jovens. O seu foco recai no campo da problematização moral (n. das a.). As instituições acadêmicas mantêm-se freqüentemente afastadas das rupturas radicais, de ordem da cultura, da ética etc., que marcam o mundo contemporâneo. Entretanto, essas rupturas adentram o mundo dos estudantes e se manifestam com freqüência fora dos limites do currículo formal, sendo seu conhecimento importante inclusive para se problematizar o saber escolar em relação a outros saberes e outras questões implicadas na cultura dos jovens.

Portanto, este artigo se baseia em pesquisa empírica em que investigamos como, em diferentes contextos de convivência não formal do espaço universitário, as identidades sociais – particularmente de gênero – e as diferenças que vêm sendo construídas entre alunos e alunas de medicina. Que posições de sujeito são assumidas a partir das interpelações feitas pelos grupos? Que marcações de diferença se fazem presentes na apreensão que se faz do outro, particularmente daquela que faz parte da minoria de gênero? Como essas marcações se relacionam com os projetos individuais de vida?

A partir da identificação e breve caracterização dos agrupamentos que se constituem por iniciativa dos estudantes no espaço do Centro de Ciências da Saúde de uma universidade pública, o foco do artigo recai principalmente sobre as construções identitárias que ocorrem no contexto dos tradicionais trotes universitários, instâncias em que o poder é exercido, sobretudo sobre os corpos e sexualidades dos sujeitos, estabelecendo diferenciações e hierarquias. Foucault (2003) situa o surgimento do poder disciplinar, característico da sociedade moderna no século XVIII, que considera o marco histórico para que o corpo passe a se constituir objeto de continua vigilância e controle através do que chamou arte do corpo humano. Regras, horários, desfiles, sistemas de inspeção constituem técnicas de vigilância geradas nessa sociedade e estão bastante evidentes nesses rituais universitários.

Certeau (2007) ajuda no direcionamento do olhar para espaços de inventividade e ação, fugindo da visão apenas repressiva do poder, ao sinalizar para "maneiras de fazer" da criatividade cotidiana, feitas a partir de uma reapropriação do sistema, reconhecendo, entretanto, que o investimento do indivíduo diminui na medida em que se dá a expansão tecnocrática do sistema. O autor considera que uma analogia pode ser feita entre a análise que efetua dessas invenções que proliferam no cotidiano dos indivíduos e as operações a que Foucault se refere em Microfísica do Poder. Sem desconsiderar as diferenças entre as respectivas perspectivas, o estudioso indica que são

análogas, porque se trata de distinguir as operações quase microbianas que proliferam no seio das estruturas tecnocráticas e alteram o seu funcionamento por uma multiplicidade de "táticas" articuladas sobre os "detalhes" do cotidiano (Id. ib:41).

[e segue]

Em Vigiar e Punir, Michel Foucault substitui a análise dos aparelhos que exercem o poder (isto é, das instituições localizáveis, expansionistas, repressivas e legais), pela dos "dispositivos" que "vampirizaram" as instituições e reorganizaram clandestinamente o funcionamento do poder: procedimentos técnicos "minúsculos", atuando sobre e com os detalhes, redistribuíram o espaço para transformá-lo no operador de uma "vigilância" generalizada (Id. ib:41).

Essas noções teóricas subsidiam o presente artigo, que é estruturado da seguinte forma: em um primeiro momento discutimos a questão da construção identitária em sua relação com sexualidade e gênero, a partir, sobretudo, de noções foucaultianas sobre o poder disciplinar. Em seguida, a partir do estudo empírico, evidenciamos como os/as alunos/as se constroem em relação a sua sexualidade e aos papéis sociais como homens e mulheres nessa rede de relações permeada pelo poder. Constatamos que o binarismo é hegemônico nos discursos; entretanto, a heterogeneidade é grande, e nos defrontamos também com outros discursos, de jovens que parecem estar se construindo como pessoas "diferentes" do que ainda é hegemônico na sociedade em termos de comportamentos e valores esperados da mulher.

Discurso, identidade e gênero

O estudo foi realizado com o aporte de contribuições feitas principalmente por estudiosos da linguagem e comunicação, em relação a questões de identidade, poder e diferença, centrais para a abordagem da cidadania, em um cenário, por alguns, chamado de pós-moderno.

Para a coleta de dados realizamos entrevistas de cunho exploratório com 12 (doze) estudantes de medicina – seis mulheres e seis homens de diferentes períodos – de uma grande universidade pública da região sudeste do país, ocasião em que os/as informantes foram incentivados/as a levantarem também suas próprias temáticas e experiências.

Procedemos ainda a observações dos alunos em diferentes espaços de encontro, tais como, na aula inaugural da Faculdade de Medicina, nos corredores e nos espaços de convivência do Centro de Ciências da Saúde e do Centro Acadêmico. Além disso, contamos com o material resultante das observações e das transcrições das entrevistas.

Assumimos que os discursos não apenas representam os objetos, mas também os constituem (Foucault, 2002). Assim, para além de representar e reproduzir entidades e relações sociais, os discursos as constroem: são responsáveis por entidades como cidadania ou juventude, e posicionam as pessoas de diversas maneiras como sujeitos sociais –como estudantes, médicos ou pacientes (Fairclough, 2001).

Foucault assinala a importância de questionar os efeitos recíprocos de poder e conhecimento que os discursos asseguram, afirmando:

Minha hipótese é de que o indivíduo não é o dado sobre o qual se exerce e se abate o poder. O indivíduo, com suas características, sua identidade, fixado a si mesmo, é o produto de uma relação de poder que se exerce sobre os corpos, multiplicidades, movimentos, desejos, forças (Foucault, 2003:161-162).

Fairclough (2001) acrescenta que os indivíduos não são meramente posicionados de maneira passiva, mas são capazes de agir como agentes frente a esses discursos, negociando seu relacionamento com os mesmos. O discurso é um construtor de poderes, ideologias, conhecimento e relações sociais, não sendo, portanto, algo puramente instrumental, alheio às pressões culturais. Ao contrário, está condicionado pelo contexto, ou condições de produção.

Para Fairclough, toda fala é considerada uma forma de ação – é uma forma de prática social e não atividade puramente individual – e integra um embate pela disputa de hegemonia. Como prática política, "o discurso estabelece, mantém e transforma as relações de poder e as entidades coletivas (classes, blocos, comunidades grupos) entre as quais existem relações de poder". Como prática ideológica "constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo de posições diversas nas relações de poder" (Fairclough, 2001:94).

É possível afirmar que os sujeitos são discursivamente produzidos, o que vai contra a noção de naturalização dos sujeitos, tão contestada nos últimos tempos pelo campo dos estudos culturais, por feministas, pós-estruturalistas, entre outros. O discurso está ligado ao poder, na medida em que age como uma forma de disciplina, subjetivando para uma dada forma de pensar, de agir, de se posicionar. Múltiplos discursos, vários dos quais veiculados pelas mídias, competem na constituição da identidade dos sujeitos como homens, mulheres, cidadãos, estudantes etc.

Como há quase um século ensinou Bakhtin (1999 [1929]), a consciência individual é um fato sócio ideológico, sendo, portanto, necessário contextualizar o meio ideológico e social de nossa época – das múltiplas mediações – e o contexto mais próximo da vida desses estudantes para se chegar ao entendimento da construção de suas identidades.

Nos corredores do Centro de Ciências da Saúde: um olhar sobre o cotidiano

De forma importante, o cotidiano na universidade se materializa quando alunos de graduação desenvolvem agrupamentos de diferentes ordens, fora das demarcações do currículo formal, constituindo comunidades, a exemplo de diversas outras como a família e a sala de aula. Nesses espaços são várias as experiências e os contextos aos quais esses jovens estão expostos. As subjetividades desses alunos e alunas se produzem nessas práticas, construindo um ou outro entendimento de si. Revestidas como "brincadeiras", marcações de diferença de gênero se dão entre esses jovens nas festas, diálogos e diferentes representações, como é o caso do tradicional trote de calouros.

Os corredores e o centro de convivência do prédio do Centro de Ciências da Saúde constituem cenário para as mais diversas interações entre os/as estudantes de diversas profissões da área da saúde.3 3 Biologia, Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina e Nutrição. Os deslocamentos são muitos ao longo do dia, principalmente durante o intervalo das aulas reservado ao almoço. Os agrupamentos dos/as jovens evidenciam afiliações e interesses variados: vemos em um canto estudantes que, ao se dispersarem das salas de aula, não perdem tempo e se acomodam em uma roda de samba, onde permanecem tocando e cantando enquanto dura esse intervalo; em outro canto, a uns cinco metros da banda, alunos aproveitam o horário do almoço para assistirem a um filme semanal exibido por iniciativa de um projeto de extensão de uma unidade universitária. Ainda nos corredores, outros alunos, em uma roda, estudam sentados no chão; nos centros acadêmicos, alguns jogam pingue-pongue, outros "batem papo" ou ainda se concentram em torno da exibição de um vídeo por eles mesmos escolhido. Muitos casais namoram, e não é raro também ver agrupamentos só de moças ou só de moços. No horário do almoço e nos intervalos das aulas, o ritmo é acelerado para se "dar conta" das múltiplas interpelações feitas por celulares, navegação e interações na internet e para participação em grupos com objetivos os mais variados possíveis.

Na praça de alimentação nos defrontamos com um burburinho de vozes de alunos que, ao mesmo tempo, comem e conversam acaloradamente, enquanto outros não despregam os olhos de um aparelho de televisão afixado em uma das paredes de uma lanchonete. Em uma sala de aula, um grupo de jovens católicos aproveita o horário de almoço para fazer suas preces, enquanto não longe dali um grupo planeja atividades a serem desenvolvidas na comunidade. Alguns mais, outros menos, esses grupos renovam seus afiliados e alguns alunos transitam entre vários deles.

Pelas paredes do CCS, na maior parte de forma desordenada, vemos uma multiplicidade de cartazes, convites para festas e avisos sobre reuniões, atestando para a multiplicação de instâncias de encontros, presenciais ou não, para serem experienciados. Alguns desses discursos fazem uso prioritariamente de imagens, alguns apenas das palavras, e outros combinam diferentes semióticas. Dentre esses textos, não são poucos os que transgridem o discurso normalizado e permeado por regras que imperam na universidade. De forma geral, há uma ausência de manifestações visíveis em relação a questões políticas ou as que concernem à organização curricular ou procedimentos de ensino. Apenas por ocasião da eleição dos dirigentes dos Centros Acadêmicos surgem alguns posicionamentos quanto aos assuntos como o caráter público da universidade, e as condições de alimentação e moradia oferecidas pela universidade aos estudantes.

Muito se tem dito sobre a perda da utopia dos jovens e de seu crescente individualismo na sociedade contemporânea. O cenário com que nos defrontamos no CCS, se não é testemunho de bandeiras políticas, acena para algum tipo de agenciamento dos estudantes, consubstanciado em pequenas invenções e na formação de comunidades com os mais diversos interesses, que correm paralelas às atividades curriculares formais. Certamente, as atividades informais não são autônomas aos diversos dispositivos de poder que regulam o funcionamento dos sujeitos, como é o caso da regulação do tempo e do espaço inerente ao currículo escolar. Entretanto, nessas interações nota-se um afrouxamento dessa regulação. O informal teima em tomar lugar e se sobressair em relação aos poucos quadros "institucionais", contendo avisos acadêmicos e divulgações de eventos. Os quadros mantidos pelos estudantes "transbordam" com as mais variadas chamadas. Estamos frente a improvisações que influenciam a subjetividade e a agência dos estudantes. Como sinaliza Certeau (2007:41) as práticas da vida cotidiana, geralmente subestimadas, apresentam-se essencialmente como "maneiras de fazer", através das quais os usuários se reapropriam do espaço.

O tempo é escasso para os estudantes de medicina se reunirem. O currículo formal ocupa todo o tempo e o local não é propício para os alunos ficarem após as aulas, uma vez que não oferece segurança para se locomoverem à noite. Como colocado por Marcos, estudante do 5º período de medicina, falando sobre a organização temporal do currículo:

- Tem poucas atividades que congreguem, que agreguem os estudantes da Faculdade entre todas as turmas; é que a Faculdade ainda é vista como uma escola, como colégio. Então, você chega às 8 horas da manhã, vai para a aula, estuda, estuda, estuda, suga, almoça, dispersa pelo campus, volta, suga, suga, suga, 4 horas a carona já está saindo, todo mundo pica a mula para casa e vai seguir sua vida.

- O "suga" é...?

- É o aprendizado bancário: é o cara pegando, pegando, pegando, pegando tudo que ele conseguir absorver. E sem discussão; ele aprende, aprende; vai para casa, lê,lê, lê; pega o plantão dele, faz alguma coisa. Mas a faculdade, eu ainda vejo esse entendimento de colégio, então a gente tem pouca integração na faculdade.

Veiga Neto (2002) sinaliza para o fato de que a universidade brasileira, nos últimos tempos, tem se afastado da proposta de sua democratização, transformando o espaço escolar num não-lugar a partir da divisão efetuada no currículo universitário em disciplinas obrigatórias e disciplinas eletivas. Com essa prática, cada turma deixou de ser um lugar com identidade própria e mais ou menos estável, e passou a ser um lugar pobre em marcações identitárias, sem história, sem relações minimamente duradouras. Esses não-lugares fazem da escola algo bem diferente daquilo que os idealizadores da Modernidade pensaram que ela deveria ser: um lugar onde impera a igualdade, voltado para a formação de sujeitos autônomos. Ao contrário, conforme indica o autor, esses não-lugares ensinam o individualismo e não ensinam civilidade, dado que reduzem os códigos de convivência a um mínimo.

Os resultados da pesquisa revelam a formação, pelos estudantes de medicina, de uma diversidade de grupos mais ou menos formalizados: grupos para realização de festas de recepção de calouros, do trote, de celebrações, eventos científicos e esportivos, festas, grupos religiosos – evangélicos e católicos –, bem como grupos que se reúnem para fazer algumas ações solidárias e assistencialistas. Os grupos de estudantes de medicina se constituem no cotidiano da universidade em função de afinidades ou de necessidades de ajuda mútua que estão fortemente ligadas à origem social do/a aluno/a e a outros canalizadores de processos de exclusão como etnia, cultura, gênero e sexualidade.

Dentre os eventos mais significativos promovidos por grupos de estudantes em espaços não formais da universidade destacou-se o "trote", uma das práticas sociais mais antigas e tradicionais do meio universitário em que se objetiva em tese dar "boas-vindas" aos novos estudantes – os calouros/as – que estão ingressando no curso médico de graduação, e que neste trabalho foi destacado para o entendimento e reflexão sobre como as questões de sexualidade e gênero são vivenciadas por estes estudantes de medicina.

Construindo as alteridades: a centralidade da sexualidade

Durante o "trote" na Faculdade de Medicina, conforme relatado pelos sujeitos da pesquisa, os calouros são submetidos a humilhações e provocações diversas. Pelos corredores, por ocasião do início do semestre, espalham-se cartazes com enunciados do tipo "Calouro vai morrer! Eu quero sangue".

Os/as alunos/as referem-se ao trote como algo "humilhante", "perigoso", "insuportável". Todos/as os/as entrevistados/as identificaram uma de suas "etapas", conhecida como o "teatrinho", como a instância mais "ultrajante". Ela ocorre em uma quadra esportiva do campus da universidade, e nela os calouros são levados a "representar uma peça". Vejamos um excerto da entrevista conduzida com Thales4 4 Todos os nomes usados aqui são fictícios. , aluno do 8º período da Faculdade:

- (...) eu achei a parte humilhante o famoso teatrinho que ocorre na semana seguinte ou duas semanas depois. Depois que foi recolhido dinheiro, né, [referindo-se ao "pedágio" em que os estudantes pedem dinheiro nas ruas] aí, os alunos são convidados para fazer um teatro, serem atores, assim...

- De uma peça; representar uma peça?

- Representar uma peça que ocorre geralmente na quadra de esportes. E aí falam prá eles assim: "Olha, vocês vão representar uma peça e tal; vocês estudam. Você vai ser fulano, você vai..." Eles escolhem os papéis. Dentre os papéis, existem alguns papéis que são considerados assim baixos, né...

- Por exemplo?

- Um representa um órgão genital. O outro representa outro e aí eles vão ter que se... [faz o gesto, mas titubeia]

- Encontrar?

- Encontrar [pausa, em que parece não encontrar as palavras]. Simular um ato sexual. Um negócio bem assim considerado por mim infantil, né, e também (...) Grotesco! Outros já representando bonecos de desenhos, filmes, mas sempre tem um aspecto que envolve sexualidade. Inclusive, eles fazem uma entrevista.

Revestidos de brincadeiras aparentemente inocentes – como angariar fundos para festas ou executar danças eróticas –, os trotes são artefatos que produzem conhecimentos e significados sociais. Apesar de todos serem submetidos a tais provações, é em relação às alunas mulheres que estas adquirem um significado mais específico relacionado à sexualidade. Muitas tentam escapar dessas atividades, freqüentemente consideradas humilhantes, e que para uns/umas poucos/as é "divertido". Em uma atividade que se constitui rotina no trote, conduzida ao ar livre em frente a um quiosque de alimentação, calouros e calouras são questionados por veteranos sobre questões de foro íntimo, que envolvem sua sexualidade.

- (...) Na primeira semana eles fazem uma entrevista. Na entrevista eles falam assim: "Você é virgem?"

-Essa entrevista é com público também?

- É com público aberto. Exatamente. Chegam, pegam uma pessoa, fazem ela dançar [em tom de comando] - "Canta uma musiquinha! Aula de ginástica é a música". Só que a música é pornográfica. "Aula de ginástica!" E aí vai, né: "Mão na perninha! Mão..."

- Como os calouros se comportam?

- Existem aqueles que já se identificam, né?

- Que gostam, né...

- É claro, claro! E é assim: para muitas meninas é humilhante porque nessa tal música "aula de ginástica", as meninas são obrigadas a dançar, entendeu, e é tipo um funk, né; essa música é tipo um funk e elas dançam rebolando e tem que botar a mão na região genital e fazer aquela coisa assim de roupa...

É importante aqui remeter às formulações foucaultianas sobre a centralidade da sexualidade na época moderna, para um entendimento dessas práticas. Foucault (1988) situa o século XVIII como aquele em que teve início uma proliferação de discursos sobre o sexo, através da incitação promovida pelas instituições escolar, familiar, pela medicina e, sobretudo, pela pastoral cristã. Este se constitui o marco histórico na sociedade ocidental para que cada um passe a fazer de sua sexualidade um discurso permanente, para que tudo passe a ser dito e detalhado.

Como observamos em outro artigo (Siqueira, 2006), contrariamente à teoria vigente sobre a repressão do sexo, estamos frente à noção da constituição de uma aparelhagem que nos últimos séculos põe em funcionamento discursos múltiplos e entrecruzados, estabelecidos a partir de diferentes pontos de vista para obter efeitos de poder sobre os sujeitos. É nessa sociedade, à qual o filósofo se refere como "inexaurível e impaciente" em relação ao sexo, que tais práticas efetuadas entre os estudantes de medicina se constituem como acréscimo discursivo, fazendo circular na sociedade novas narrativas de gênero e de sexualidade.

Apesar de Foucault não ter se detido especificamente em questões de gênero, algumas noções, como a dos "efeitos do poder na subjetivação do sujeito moderno e sua incidência sobre o corpo", tiveram influência importante nas teorias feministas. Em sua genealogia da ética social, como colocado por Albuquerque na introdução de Microfísica do Poder (2003), Foucault mostra como se efetivou em nossa sociedade a emergência da subjetividade em relação às questões da sexualidade e poder. Encontramos em História da sexualidade – o cuidado de si reflexões sobre a moral dos prazeres orientadora de como o indivíduo deve se constituir em sujeito moral, ou seja, da "cultura de si". Tendo como tema central o poder na sociedade capitalista, Foucault evidenciou como a identidade é produto de uma relação de poder exercida sobre os corpos, movimentos e desejos. Tal noção, ao situar o corpo e sexualidade como construções culturais, corre em direção oposta à visão essencialista das diferenças concebidas em torno da matriz genital/biológica predominante até os anos 60, quando teóricas feministas criaram a noção de gênero como categoria analítica da divisão sexuada do mundo. Essa formulação, um marco importante no conhecimento da área, desloca o eixo do entendimento das relações, sobretudo, para aspectos da cultura, de forma coerente com a visão de descentramento do indivíduo (Siqueira, 2006).

O espaço institucional da universidade é um dos lócus onde de forma importante se dá a relação desses estudantes consigo mesmos e com os outros, na medida em que o poder chega até seus corpos para marcá-los através da violência não só simbólica como também física. Carlota, estudante do quinto período, diz:

- Tem outra brincadeira também [no trote] que na época tinha [três anos atrás, quando ingressou no curso], não sei se ainda tem um teatrinho - cada um se veste de alguma coisa e tem a representação. É lá na quadra de esportes. Então tem... Sei lá. A "tiazinha", tem que dançar...

- Para as meninas é diferente dos meninos? Você acha que é difícil tanto para um como para outro?

- Na nossa época eles compraram, acho que 1700 ovos. Eles tacavam com muita força, de doer. De acertar no olho! Tem gente que tomou no olho. Machucou realmente. Eu tomei um na cabeça que doeu, um na coxa, que ficou roxo. Machuca. Eu acho isso desnecessário. É horrível! Horrível! Tem gente que chora.

O sexo aparece como central na caracterização feita pelos alunos sobre a violência do "teatrinho":

Thales: - Quando as pessoas vão representar a peça, juntam veteranos de vários períodos com vários ovos na mão. Tem pessoas que levam caixas de ovos! Levam sacos com caixas de ovos e aí lançam, alguns lançam com força pra ... né? Outros já lançam só prá brincar, né, mas essa é a prática que eu considerei mais humilhante e por alguns considerada insuportável. Durante o meu trote teve pessoas que se machucaram, outro cortou aqui a testa.

- A testa...

- A testa. Teve um rapaz que foi atingido aqui na barriga próximo, né [aponta].

- Regiões genitais?

- Próximo a regiões genitais. Ele estava sem camisa, saiu machucado.

-Ninguém reagiu?

- Houve uma revolta. Inclusive, teve um aluno que pegou um ovo e tacou de volta. Aí essa atitude fez com que a multidão fosse em cima dele tacar mais ovo ainda! E aí, houve até um princípio de briga, mas não chegou a ter briga, não. Só juntou assim, aquela discussão, empurrou, mas separaram.

- Mas aí você acha que eles...?

- Os alunos ficaram revoltados; a maioria ficou revoltada com o teatrinho!

-O que o pessoal comenta depois? Quer dizer, fora os que riem?

- Uns ficam muito sem graça.

- Mas ninguém se rebela?

- Não. Os que se rebelam, se rebelam calados. Existe um assim... Quando eu passei pelo trote algumas pessoas ficaram revoltadas, falaram comigo. Eu também fiquei revoltado com algumas coisas, esse tipo de coisa - perguntar se a pessoa é virgem, fazer escorregar. Eu fiquei revoltado e comentei. Eles comentaram, mas ninguém protestou contra os veteranos.

Os/as alunos/as comentam entre eles, muitos/as criticam as situações a que são submetidos/as, mas não ocorre uma resistência efetiva. Primeiramente, os poucos que tentam, não encontram suporte por parte da instituição para reverter o estado das coisas. Nem a direção nem a coordenação da graduação se dispõem a interferir, pois isso implicaria em tomar medidas como a expulsão de alunos, o que certamente não convém à escola. Isso porque esses alunos da chamada "turma da bagunça". Aqui, correspondem às expectativas dos cursos de medicina, à medida que auferem boas notas nos estudos. O curso de medicina em questão vem obtendo as melhores notas nas avaliações nacionais, e reúne pesquisadores com amplo reconhecimento no mundo acadêmico. Impera no curso uma cultura de excelência e de produtividade solidamente implantadas no Centro, com uma rígida demanda em termos do desempenho do alunado e da produtividade docente, refletindo a mentalidade empresarial que, conforme vem sendo apontado por vários estudiosos do campo da educação (Giroux, 2003; Veiga Neto, 2002) adentrou instâncias da esfera pública como a universidade, conforme alertas feitos nos últimos tempos (Giroux, 2003). Esses alunos, da "turma da bagunça", alinham-se ao "ethos" da racionalidade médica, em que alunos e profissionais são representados como seres dotados de qualidades intelectuais superiores.

A reação por parte dos/as estudantes não se dá ou é tímida, porque reagir resultaria em ser visto/a como "diferente". Para os rapazes, implicaria em ser visto como "careta". No caso das mulheres, o modelo de representação com que contam em nossa cultura ainda é o da masculinidade hegemônica, definida por Connell (1997:39) como

a configuração de prática genérica que encarna a resposta correntemente aceita ao problema da legitimidade do patriarcado, a que garante (ou se toma para garantir) a posição dominante dos homens e a subordinação das mulheres.

Reagir, provavelmente, implicaria até certo ponto em afetar a "feminilidade", haja vista que a construção do corpo da mulher em nossa sociedade é estreitamente relacionada à exibição do corpo e à ostentação da sexualidade para apreciação do homem. Entretanto, outras explicações devem ser buscadas para esse silenciamento. Podemos hipotetizar que não faz parte do repertório desses alunos e alunas uma linguagem de crítica e de possibilidade. Giroux (2003) sugere que para os/as estudantes universitários/as irem além das questões do entendimento até um envolvimento com as dimensões mais profundas que os/as tornam cúmplices de ideologias opressoras, eles/as devem ser orientados/as

para abordar e formular estratégias de transformação pelas quais suas crenças individualizadas possam ser articuladas com discursos públicos mais amplos, que aumentem os imperativos da vida pública democrática (Id. Ib.:121).

Podemos extrapolar tais considerações, feitas em relação à universidade norte americana, também para a nossa, lembrando que a linguagem técnica e científica que impera na formação desses/as estudantes, ao excluir outros modos de discursos filosóficos, sociais e políticos, não contribui para que expressem sua própria opinião e para a tomada de ação.

A sociedade tem expectativas em relação ao comportamento dos indivíduos, enquadrando-os em determinados papéis e em ideais de comportamentos. Por ocasião dos trotes, como também ocorre durante festividades carnavalescas, conforme Rodrigues (2006), libera-se o que no cotidiano é interditado: abusos de palavra, gestos, xingamentos, humilhações. Em outras palavras, infringem-se as expectativas sociais. É importante frisar que o poder exercido pelos/as veteranos/as, ao submeter os/as calouros/as a humilhações, assujeita homens e mulheres, jovens de diferentes classes sociais e etnias. Aqui, é importante remeter às questões de relações de poder, conforme concebidas por Foucault. Marcações corporais, verdadeiras inscrições de poder, são efetivadas e consentidas – os corpos são pintados, perfilados, os movimentos controlados, e são construídas palavras de ordem, denominações e recomendações. Esses enunciados não apenas representam esses espaços, mas são seus constitutivos e subjetivam os indivíduos em relação ao que podem ou não fazer, querer, pensar. As relações de subordinação são exercidas em várias direções, sendo possível alguém desempenhar um papel subordinado em uma dada relação e um de dominação em outra ocasião. Isto se relaciona, também, à não essencialidade das identidades, que são construídas a partir de diferentes discursos e posições de sujeito: assim é que esses/as alunos/as – calouros, mulheres ou outras categorias "diferentes", seja na cor da pele, na aparência física ou na posição social que ocupam – exercerão o poder sobre outros/as, ao se tornarem veteranos. Como coloca Foucault (2003:148),

se o poder tivesse apenas a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande super-ego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil.

Mereceria um posterior investimento averiguar as especificidades dos discursos e ações dessas mulheres e de outras minorias, ao serem submetidas e ao serem atores/as do trote. E, não podemos esquecer que, conforme apontado anteriormente, estudantes que cursam medicina pertencem em geral a classes sociais mais privilegiadas, como no caso daqueles/as que compuseram nossa amostra. Não seria correto reduzir a construção do sujeito a um atributo único, apesar de se reconhecer a carga adicional do sexo para as mulheres, principalmente em uma sociedade patriarcal como a nossa. É importante assumir a opressão múltipla, reconhecendo, por exemplo, que sexo e etnia não perpassam da mesma forma toda e qualquer classe social, daí a importância de problematizar as formas através das quais essas identidades se cruzam, reproduzindo, reestruturando ou desafiando os arranjos sociais existentes. A inclusão de amostras mais diversificadas permitiria avançar no entendimento dessas questões.

Construindo-se a partir da naturalização das diferenças

A ideologia, como mostrou Althusser, não se limita a idéias, mas tem uma materialidade, na medida em que ocorre em instituições como a universidade, através de práticas que influenciam as ações dos indivíduos, como nas situações em que esses alunos e alunas se constituem de forma generificada através da fala. Vejamos o seguinte excerto da entrevista feita com Carlota, aluna mencionada acima:

- Então me diga uma coisa, como é ser mulher no curso de medicina?

- Para mim é tranqüilo. Mas a gente estava até conversando um dia desses sobre isso, eu tenho preconceito com médica mulher. Eu não gosto de ir à médica mulher. Apesar de eu achar que eu vou ser competente e de conhecer amigas minhas que eu sei que são competentes, eu particularmente não gosto.

- Você conseguiria verbalizar o que é isso, porque isso acontece?

- Sei lá, eu acho que mulher é mais lesada, não sei...

- O que é lesada?

- No sentido de... Não sei explicar, mas em relação à dor, por exemplo. Acho que ela nunca te leva a sério, porque, não sei se é porque é parto, alguma coisa assim... Minha mãe mesmo fala que ela não gosta de obstetra mulher. Possivelmente porque ela teve filho, sabe como é a dor. Homem é mais preocupado. Acho que mulher é mais insegura nesse sentido de chegar e falar. Os homens, não sei, se têm alguma coisa mais de machismo próprio, sabe? É isso e pronto!

Scott teoriza gênero como um sistema de marcação de diferenças e organização do poder, situando como núcleo essencial da sua definição a relação entre duas proposições:

o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significações às relações de poder (Scott, 1990:14).

Tendo em vista essa visão relacional, ligada a questões de poder, Scott postula que gênero implica em quatro elementos inter-relacionados:

...primeiro, os símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas (...). Em segundo lugar, os conceitos normativos que põem em evidência as interpretações do sentido dos símbolos, que se esforçam para limitar e conter suas possibilidades metafóricas (...). O gênero é construído através do parentesco, mas não exclusivamente; ele é construído igualmente na economia e na organização política (...). O quarto aspecto de gênero é a identidade subjetiva (Id. ib.:14-15).

Dessa forma, a estudiosa expõe a multiplicidade de correlações de forças a partir das quais se deve pensar o efeito do gênero nas relações sociais e institucionais.

Nesta e em outras entrevistas, pareceu-nos que os/as alunos/as têm poucas ocasiões para elaborar um raciocínio e refletir sobre questões que concernem a suas identidades de gênero. A fala de Carlota é exemplar, à medida que mostra muita dificuldade para verbalizar, porque prefere médicos homens em detrimento de mulheres. Apesar de não ter dito diretamente que considera os homens mais competentes, isso está implícito quando afirma: "Apesar de eu achar que eu vou ser competente e de conhecer amigas minhas que eu sei que são competentes, eu particularmente não gosto". Nesta fala, o atributo competência é situado como insuficiente entre mulheres, correspondendo a uma qualidade que identifica nela própria e em poucas alunas mulheres. É interessante notar que essas mulheres estão entre as que consideram suas amigas e que Carlota tem um dos coeficientes de rendimento mais elevados em sua turma de Medicina. Sua fala vai ao encontro das reflexões de Santos (2004), ao analisar que no mercado de trabalho, diante da desconfiança da capacidade feminina de liderança, aparece a idéia de que as mulheres para conquistar algo em termos profissionais na medicina precisam comprovar que são mais competentes do que os homens e isso exige delas uma dedicação muito maior. Em geral, elas precisam de maiores esforços pessoais e investimento na carreira para ocupar cargos de chefia ou direção.

Na fala a seguir, notamos também que essa jovem generaliza para todas as mulheres a experiência do parto, associando a tal vivência à falta de empatia pela dor alheia. Logo adiante, usa o termo "machismo" de forma inapropriada, para falar de uma maior segurança dos homens em detrimento da insegurança feminina.

- Mas em relação a você, você sente isso?

- Não. Em relação a quê? Insegurança?

- É.

- Eu acho que estou muito no básico ainda. Estou saindo do básico agora. Então eu não tenho total segurança das coisas. Mas às vezes eu vejo até residentes e médicos fazendo besteiras, que eu sei estão fazendo besteiras. Não é possível que fulano não visse isso... E agora que a gente está na enfermaria, direto, a gente vê o pouco caso dos internos para examinar o paciente e para conversar, dar atenção e isso eu acho que faz a diferença.

- Mas daí, você está falando de homem e mulher?

- As mulheres parecem que são mais assim [faz um gesto com a mão que corresponde a "cheia das coisas", "frescas" e demora a voltar a falar, parecendo estar pensando]. Não sei qual a ligação, mas são menos... Não sei te explicar.

Novamente, parece que faltam à aluna ocasiões para elaborar melhor suas visões sobre as mulheres, particularmente no exercício da Medicina. Se tivesse mais oportunidades para refletir sobre essas questões, continuaria alinhada a tais posicionamentos? Conforme já mencionado, as identidades se definem através de um processo de produção da diferença, com base no que se considera inferior. Ao emitir esse juízo, Carlota está ocupando uma dada posição, e se constituindo, desde já, de forma subordinada aos homens médicos. Na medida em que considera que as médicas mulheres não são tão competentes como os homens, por que seria diferente no seu caso? A identidade hegemônica continua sendo a do homem branco, que surge como "a identidade" e não como uma dentre a multiplicidade de identidades existentes. Ser mulher é algo exterior e subordinado, correspondendo à sua diferença. Uma estratégia usada para desvalorizar a mulher tem sido a naturalização do seu papel como mãe e esposa, o que contribui para afastá-la da vida pública. Construções como essas desvalorizam e dificultam a inserção da mulher no mundo do trabalho, principalmente para ocupar funções socialmente valorizadas e de direção.

A hegemonia masculina nas profissões que detêm um maior status em nossa sociedade é um fenômeno cultural e social, as diferenças de gênero sendo estabelecidas e mantidas cultural e ideologicamente. Vale aqui recorrer às distinções estabelecidas por Gramsci (apud Coutinho, 1999:127) entre a sociedade política,

que é formada pelo conjunto dos mecanismos através dos quais a sociedade dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência e que se identifica com os aparelhos de coerção,

e a sociedade civil

formada pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, as igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, a organização material da cultura, etc.

Como coloca Coutinho, o pensador italiano introduz assim a noção de que no âmbito da sociedade civil as classes buscam exercer sua hegemonia mediante o consenso, e a luta pela hegemonia penetra todas as esferas da vida social, cultural, econômica e política. Essas alunas colaboram para a manutenção da hegemonia masculina, ao representarem o exercício profissional médico como generificado. Segue a fala de Maria, uma aluna negra (a única da sua turma!) de classe média que, ao falar sobre suas afinidades com colegas, posiciona-se sobre o lugar da mulher.

- É, então fica difícil assim. O meu grupo é mais... Eu ando com meninas que são mais vaidosas, mais "patricinhas", essas coisas, mas eu sou meio termo. Não sei se é porque eu ando com garoto, ando com garota, sei lá. Eu não sei mesmo muito definir assim "menina na faculdade de medicina"... [pensando]. Acho que é um brilho, é um brilho a mais, sabe. Acho que a mulher é mais delicada, a mulher é mais dedicada também. Mais do que o homem sempre. Tem uns que...! Normalmente, comportamento de menina é mais sério; meninas encaram as coisas mais a sério, vamos dizer assim.

Nesta fala, Maria essencializa a identidade feminina, referindo-se genericamente à mulher como mais delicada e mais dedicada em relação ao homem. Ao afirmar que "é um brilho, é um brilho a mais", novamente categoriza "a mulher" a partir de sua condição de fêmea. Delicadeza e dedicação são atributos que vêm sendo historicamente atribuídos à mulher, estreitamente relacionados ao papel materno. À mãe cabe prover o aconchego, o carinho, o cuidado. O "brilho" a que Maria se refere pode estar associado à condição atribuída à mulher como "rainha do lar" ou de "ornamento" do ambiente de trabalho. Ao dizer que o comportamento de menina é mais sério, está contrapondo-o àquele narrado, dos rapazes, em relação ao trote. Como no caso do trote, as diferenças são estabelecidas e naturalizadas através de pretensas "brincadeiras", como notamos na fala de Thales, ao mencionar uma conversa com amigos:

- Ah! Tipo assim: uma brincadeira bem bobinha, né. Eu estava conversando com um colega e aí ele falou assim: "Você vê como as mulheres lavam as mãos muito bem!" Aí eu falei assim: "Não só as mãos como utensílios também. Todas as mulheres." (...)

- E qual era o sentido da brincadeira? Eu não peguei.

- Não, é porque eu estava brincando com as mulheres em relação a serem donas-de-casa. Então, elas teriam mais habilidade para...

- Ah! Isso foi na sala de aula, foi?

- Não, foi na enfermaria quando ela estava lavando as mãos.

"Cuidar", tradicionalmente, tem sido uma aptidão relacionada à mulher, ao contrário do "tratar", atribuição masculina associada à medicina. Nesta fala, encontramos traços dessa representação, à medida que se dá uma transferência de um comportamento de "dona-de-casa" para o domínio masculino da medicina.

Deslocamentos identitários?

Entretanto, novos comportamentos, que fogem aos "tradicionais", apareceram em algumas falas. É interessante notar que Carlota, a mesma aluna anteriormente mencionada, dá sinais de mudanças e maior liberdade no comportamento feminino. Carlota chegou para a entrevista com uma colega de turma, que esteve presente no decorrer da entrevista. Mencionamos esse fato porque durante a entrevista, freqüentemente, ela buscava anuência da outra para contar algo sobre o comportamento do grupo. Decididamente coloca que tem um grupo de meninas com o qual tem muita afinidade e convivência:

- Então você está falando que a afinidade maior seria com esse grupo das meninas.

- Sim. Não, tem os meninos também que eu gosto muito, que de vez em quando saem com a gente. Mas não é aquele do grupo diário.

- Mas o que você encontra nesse grupo de meninas que você não encontraria nos outros?

- O jeito de pensar, de levar a vida. Tem o grupo daquele pessoal que gosta só de estudar. Tem o grupo do pessoal que não quer saber de nada, só quer sair. Eu acho que eu me enquadro no grupo que estuda, mas também leva uma vida social agradável e suficiente, entendeu? No ponto! [com ênfase] Não sei se é metidez minha falar que é no ponto, mas eu acho que é assim.

- Nesse grupo das meninas, é claro que são algumas meninas que tem mais afinidade, não outras. E quem ficaria de fora desse grupo das meninas?

- [risos] Assim, a gente gosta muito de falar besteira, besteira mesmo [risos]; a gente gosta de sair e tem aquelas outras pessoas tanto homens como mulheres que não gostam de fazer isso. A gente vai pra boite, dança até o chão, bebe, às vezes fica tonto, fala besteira e tem gente que acha isso feio. Falo normalmente, dentro de sala de aula, oi, tudo bem. Não tem muito assunto.

Essas moças pertencem a uma elite brasileira. O pai de Carlota é médico e ela mora em um bairro nobre da cidade. Ela e outras moças formam um grupo que "gosta de se divertir muito". Os critérios de inclusão e exclusão do grupo por parte de Carlota são claros: ficam de fora aqueles/as que, a seu ver, poderiam censurar seu comportamento. Ao colocar isso, está implícito estar ciente de que esse comportamento não corresponde ao tradicionalmente esperado para "meninas de bem". Entretanto, não tenta ocultar este comportamento; antes, relata-o e descreve-o com vivacidade e firmeza. Essas meninas são identificadas como transgressoras e se vangloriam disso. Posicionam-se propositadamente como "as diferentes", que não aceitam as normas vigentes sobre como se comportar. Saem em grupo de umas dez meninas para se divertir e "fazer muita coisa errada". Não titubeiam, como Thales, que não encontra as palavras certas para relatar e se posicionar em relação aos aspectos mais "picantes" do trote. Parece que o fato de se destacarem nas suas turmas como excelentes alunas pesa na aceitação e mesmo admiração de outros estudantes, a despeito de terem comportamentos que fogem à docilidade e recato prescritos para a mulher.

Segue trecho de entrevista na qual, ao ser questionada sobre o futuro, Carlota se posiciona firmemente como tendo em vista privilegiar os estudos e vida profissional.

- E em relação a suas perspectivas. Como é que você se pensa daqui a dez anos, como você se enxerga?

- Estudando, trabalhando.

- Estudando? Daqui a dez anos?

- Tenho que estudar toda a vida.

- Você está falando de um doutorado?

- Não sei. Talvez alguns cursos de especialização. Eu gostaria de fazer especialização fora, não sei exatamente em que ainda, mas gostaria de fazer. Trabalhando em consultório, em hospital também gosto, acho legal.

- Você pensa em ter um consultório próprio?

- Penso. Não me imagino casada, nem com filhos.

- Você não se imagina casada nem com filhos?

- Não, talvez mais tarde, mas não é uma prioridade de vida para mim. Talvez eu mude de idéia no dia em que eu encontrar uma pessoa que mexa totalmente com minha cabeça.

- Agora profissão é uma prioridade de vida?

- É, acho que sim. Quero conhecer vários lugares do mundo, viajar, acho legal. Tem até um professor nosso que o estilo de vida dele me agrada sabe? Ele já fez pós em vários lugares do mundo... Já morou em vários lugares, é super reconhecido aqui na universidade.

Há algumas décadas, essa fala de Carlota não teria lugar. Ela está se colocando a partir de uma sociedade onde já se permite que a mulher assuma outros papéis além daqueles que lhes eram reservados: de dona-de-casa e quando muito "professora primária". Sua fala também evidencia o discurso circulante sobre a educação permanente.

Uma dimensão essencial do discurso é a intertextualidade. Todo o texto é híbrido ou heterogêneo quanto à sua enunciação, no sentido de que ele reúne uma série de outras vozes mais ou menos evidentes no texto. Essa noção de intertextualidade tem origem em formulações de Bakhtin, para quem toda enunciação monológica é uma abstração.

Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada de escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as (Baktin, 1999:98).

A noção da heterogeneidade dos textos, originada nos escritos de Bakhtin sobre dialogismo, ajuda a entender a complexidade dos atos de fala, na qual se fazem presentes várias vozes, umas mais e outras menos evidentes. Observa-se que novos modelos e papéis femininos passam a integrar de forma significativa o repertório simbólico que circula na sociedade. Na academia, alguns estudos vêm evidenciando maior liberdade e posicionamentos menos tradicionais entre as mulheres no que se refere a questões sexuais e de gênero, principalmente nas classes sociais mais altas. Na mídia, notamos que uma profusão de enunciados sobre o surgimento de uma "nova mulher" moderna, que não depende do marido, que é profissional e que busca o prazer, prolifera nos últimos tempos em seriados, telenovelas e revistas semanais. Como bem coloca Jameson (2004), a importância da pós-modernidade reside não nas formas objetivas da mídia, tecnologia ou informação, mas em como elas são apropriadas como novos modos de experiências e expressão – em como elas conformam a identidade. Carlota assimila claramente discursos da mídia e de outras instituições que questionam os papéis tradicionais assumidos pela mulher, definindo uma maneira de viver que dá lugar à construção de outros sentidos. Ao afirmar "quero conhecer vários lugares do mundo, viajar (...) não me imagino casada, nem com filhos [daqui a 10 anos]", ela está se auto constituindo como alguém autorizada pelos diversos discursos circulantes e pela própria configuração social hoje existente – que, com todas as suas contradições, oferece avanços sociais inegáveis para as mulheres – a influir no traçado de sua biografia com muito mais liberdade do que a disponível às mulheres de gerações anteriores.

Considerações finais

A luta das mulheres para ingressar na medicina tem sido historicamente intensa e valorosa. Firmar-se no mundo do trabalho no Brasil em condições iguais às do homem é ainda um ideal, a despeito de conquistas efetuadas nas últimas décadas. No decorrer do processo formativo, a consciência dessas alunas e alunos – um fato sócio-ideológico, como aponta Bakhtin (1999) – vai se formando e transformando através dos significados construídos nas várias experiências e contextos que vivenciam. Parece possível hipotetizar que essas representações constituídas situacionalmente terão repercussões nas opções que farão em sua vida profissional. Ou seja, marcações de igualdade e diferença têm dimensões simbólicas com conseqüências objetivas nas vidas dos indivíduos.

Nesse sentido, é importante entender esses processos. Quando as estudantes de medicina, informantes deste estudo, adotam comportamentos e emitem valores que as posicionam como inferiores aos homens, elas estão se subjetivando como menos capazes, naturalizando as diferenças e reforçando os homens como mais aptos e superiores. Em instâncias como o trote, à medida que seus corpos se tornam objeto do poder masculino, elas aprendem a lidar com a ambivalência, a aceitar e a reproduzir situações onde prevalece o sexismo, o assédio moral e a falta de ética.

No entanto, a heterogeneidade é grande, e nos defrontamos também com outros discursos, de jovens que parecem estar se construindo como pessoas "diferentes" do que ainda é hegemônico na sociedade em termos de comportamentos e valores esperados da mulher. Elas se engajam em processos aos quais Giddens (1993) denomina de "reflexivos", que influenciam a escrita de suas biografias, fugindo dos padrões impostos pela sociedade e experimentando novas formas de ser. Como apontam alguns estudiosos sobre transformações na contemporaneidade, uma das conseqüências dos deslocamentos atuais é que, à medida que não se apegam mais a portos seguros, os indivíduos têm mais liberdade para definir seus próprios caminhos, de serem diferentes daquilo que ainda é tomado como norma na sociedade. Algumas análises apontam para possibilidades positivas advindas da pluralidade de experiências e contextos nos quais o sujeito pós-moderno está exposto. Hall nota que cada um desses mundos tem

seus próprios códigos de comportamento, seus lugares e economias, e... prazeres [e acrescenta] ...para os que a eles têm acesso se oferece a possibilidade de alguma escolha e de algum controle no que se refere à vida cotidiana. Essa pluralização da vida social amplia as posições e as identidades disponíveis para as pessoas comuns (ao menos no mundo industrializado) em suas atividades de trabalho e em suas vidas sociais, familiares e sexuais cotidianas (Hall apud Gilbert, 1999:28).

Laclau, ao situar a variedade de "posições de sujeito", isto é, de identidades, característica da modernidade tardia, indica que esses deslocamentos têm características positivas, pois desarticula as identidades estáveis do passado e abre possibilidade de novas articulações: a criação de novas identidades, a produção de novos sujeitos (Laclau apud Hall, 2000a).

Apesar de terem o privilégio de cursarem uma das melhores e mais procuradas faculdades do país, e pertencerem às classes sociais mais abastadas, a incerteza marca os futuros desses/as jovens. Transformações importantes estão se dando nas relações entre homens e mulheres, e eles não têm mais garantia, como há tempos atrás, de estabilidade na constituição de famílias. Incertezas marcam também sua vida profissional, haja vista que transformações importantes estão se dando no mundo do trabalho, particularmente na medicina, que de uma profissão liberal passou a uma atividade assalariada, com conseqüente perda de status e remuneração (Machado, 2006). A abertura para a pluralidade e para a incerteza é característica da vida desses jovens.

Devemos ter em vista que a formação universitária, conforme sugere Giroux (2003) não deve ser tomada apenas como estratégia técnica, mas como prática política e moral, que facilite o desenvolvimento nos jovens de um senso de protagonismo, particularmente com relação às obrigações da cidadania e da vida pública em um cenário cultural e global que vem sofrendo transformações radicais. Os resultados deste estudo sinalizam para a centralidade de se facilitar "novas formas de subjetividade", através de processos de diálogo e de problematização das identidades. Como sugeriu Foucault (1984:308):

Sem dúvida o objetivo principal atualmente não é descobrir o que somos, mas recusar o que somos. Cabe a nós promover novas formas de subjetividade. (...) É preciso imaginar e construir o que poderíamos ser (...) Cabe a nós promover novas formas de subjetividade em recusa do tipo de individualidade que nos foi imposta durante muitos séculos (tradução das autoras).

Parece importante, assim, que no contexto educacional se contemple que questões de desigualdade e de identidade são construídas de forma relacional com o "outro", e que se integre ao currículo formal da medicina a problematização da identidade social do/a aluno/a, favorecendo uma maior eqüidade de gênero, de etnia e de classe social.

Recebido para publicação em julho de 2006, aceito em junho de 2007.

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  • *
    O artigo é baseado na pesquisa "Cidadania e alteridades: espaços não formais da Universidade e construções identitárias por estudantes em uma universidade pública" coordenada por Vera Helena Ferraz de Siqueira com apoio do CNPq (Edital Universal/07).
  • 1
    No Brasil, até 1897, existiam apenas duas faculdades de medicina, a do Rio de Janeiro e a da Bahia, que vinham aceitando matrículas de mulheres há pelo menos uma década, desde a reforma Leôncio de Carvalho, porém com uma freqüência reduzida. Mesmo São Paulo, apesar da dianteira em políticas de saúde pública, viu inaugurada somente em 1913 uma faculdade de medicina oficialmente reconhecida (Mott, 2005).
  • 2
    Maria Apparecida Mamede vem conduzindo investigações na PUC/RJ sobre as possibilidades de articulação entre o que as matérias veiculadas pela mídia apresentam e o posicionamento dos jovens. O seu foco recai no campo da problematização moral (n. das a.).
  • 3
    Biologia, Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina e Nutrição.
  • 4
    Todos os nomes usados aqui são fictícios.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Ago 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2008

    Histórico

    • Recebido
      Jul 2006
    • Aceito
      Jun 2007
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