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A reivindicação da violência: gênero, sexualidade e a constituição da vítima*

Resumo

Este artigo objetiva discutir como relações de gênero e de sexualidade operam na tessitura de narrativas sobre violência e como a reivindicação narrativa da violência atua no perfazimento de relações de gênero e de sexualidade. Valho-me da análise de narrativas a respeito do “caso Emília” – um caso de estupro e assassinato – acionadas por algumas das mulheres que compuseram o comitê dedicado a desvendar o desaparecimento. Parto de três tematizações principais: a) a de que a “luta por justiça” requer a disputa pela legitimidade de a vítima ser uma vítima; b) a de que, no seio dessas disputas, a publicização da intimidade da dor e do sofrimento costuma operar nos contornos de legitimação de denúncias, denunciantes e vítimas, mobilizando, por exemplo, noções de gênero ligadas à maternidade; e, por fim, c) a de que as reivindicações da violência tendem a atualizar convenções morais acerca da sexualidade, como aquelas que envolvem as noções de “prostituição” e “tráfico de pessoas”.

Violência; Vítima; Gênero; Sexualidade

Abstract

This article seeks to discuss how gender and sexuality relations operate in the weaving of narratives about violence and how the narrative claim to violence contributes to making gender and sexuality relations. I analyze the narratives employed in the “Emíliacase” – a case of rape and murder – by some of the women who were part of the committee dedicated to uncovering her disappearance. I address three main themes: a) that the “struggle for justice” requires the dispute for the victim’s legitimacy as a victim; b) that, within these disputes, the publicization of intimate pain and suffering usually operates along the outlines of the legitimation of accusations, accusers and victims, mobilizing, for instance, notions of gender related to motherhood; and, lastly, c) that the claims to violence tend to actualize moral conventions surrounding sexuality, such as those involving notions of “prostitution” and “human trafficking”.

Violence; Victim; Gender; Sexuality

Para Mariza Corrêa

“Pediu desculpas”: apresentação

Na quarta-feira, 19 de setembro de 2012, Emíliadesapareceu.1 1 Neste artigo, adoto o itálico para expressões êmicas, colhidas em meio ao trabalho de campo, e para nomes próprios ficcionais, que protegem as identidades dos interlocutores desta pesquisa. Além disso, são indicadas por aspas expressões êmicas mais longas, as citações às falas dos interlocutores e às referências bibliográficas interiores aos parágrafos, as classificações aproximativas por mim mesmo desempenhadas e palavras e expressões que requerem destaques especiais ou rasuras em momentos pontuais do texto. Contava 16 anos de idade. Naquele dia, como de costume, havia ido à escola. Após as aulas, dirigiu-se ao sítio em que vivia com sua mãe e seus irmãos, na zona rural do município de Rosário, no semiárido paraibano.2 2 Rosárioé uma pequena cidade localizada nas proximidades de Campina Grande e, segundo o censo do IBGE de 2013, possui pouco mais de 42 mil habitantes. Não chegou em casa, contudo. Tereza, sua mãe, desesperou-se. A filha nunca havia desaparecido, tampouco se atrasava tanto. Terezadeixou a casa, passou na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rosáriopara pegar algumas fotografias de Emíliae seguiu rapidamente para a delegacia de polícia local. Não foi atendida. O delegado já não estava disponível àquele horário. Terezaesperou a noite inteira, em contato com suas colegas da diretoria do sindicato, mas sem quaisquer notícias. Enfim, na quinta-feira, o delegado a recebeu. Na delegacia, Terezacontou do sumiço de Emíliae de suas preocupações. Deparou-se, entretanto, com indiferenças. O delegado não acreditou que algo sério pudesse ter havido, não mobilizou esforços para desvendar a ausência. “O delegado disse ‘não, ela deve estar com o namorado, volta aqui na terça’”. “E aí o delegado sempre dizia assim: ‘essa menina fugiu com o namorado’”. De fato, Terezasó pôde prestar a queixa – que oficializou o desaparecimento de sua filha – na terça-feira, seis dias após o não regresso.

Nesses dias, porém, Terezae as demais diretoras do sindicato se aliaram nas buscas. Juntas, teriam mais chances de encontrar Emília. Na sexta-feira seguinte ao desaparecimento, o grupo de trabalho de mulheres da ASA, a Articulação Semiárido Brasileiro, reunir-se-ia em Campina Grande. De regra, Terezaestaria na reunião. Com Emíliadesaparecida, não esteve. As militantes sentiram sua falta e acabaram por saber, pelas sindicalistas de Rosário, do desaparecimento de Emíliae, inclusive, das dificuldades de Terezacom o delegado da cidade. Algumas instituições ligadas à ASA decidiram, então, somar-se às sindicalistas na procura por Emília. Foi assim que integrantes da Articulação buscaram a Delegacia da Mulher de Campina Grande. Sem êxitos. “Nós não fomos bem recebidas”. A competência para o caso pertencia à delegacia de Rosário, alegou-se. Foi assim, também, que convocaram uma reunião com o sindicato e as organizações da ASA que haviam ido à delegacia. “Era preciso decidir o que fazer”.

Na reunião, militantes de diferentes movimentos sociais resolveram montar o Comitê de Solidariedade Emília, por meio do qual passaram, elas mesmas, a investigar o desaparecimento da adolescente e a pressionar membros de governos e parlamentares para tomadas de providências acerca do “caso”. As indiferenças, afinal, prolongavam-se. Embora, sob pressão das sindicalistas e das outras integrantes do comitê, o delegado de Rosárioestivesse “ouvindo muitas pessoas”, suas hipóteses explicativas para o desaparecimento de Emíliaruíam muito facilmente. Além de não haver um “namorado” a quem se pudesse adjudicar a falta, não havia a vontade pelo pai, em que o delegado cria. “A tese dele era a de que ela fugiu para ficar com o pai. Mas ela não morava com o pai desde os 07 anos”. Quando o pai de Emíliadeixou a casa de Tereza, seus filhos eram crianças. Os laços atuais eram frouxos. “O pai veio à cidade, se apresentou à delegacia. Isso derrubou a tese do delegado”.

Frente à demora das investigações oficiais, Terezae as sindicalistas reagiram. As articulações políticas docomitê garantiram a Terezauma maior repercussão para a sua busca. Auxiliaram na divulgação do caso junto aos meios de comunicação, por exemplo, e catalisaram as pressões àqueles agentes estatais. Mas de tal modo que o próprio Secretário de Segurança do Governo da Paraíba recebeu o grupo de pessoas organizadas no comitê. Entre elas, ao lado de Tereza, achava-se Francisca, uma militante da Comissão Pastoral da Terra que, pouco mais de um ano após a reunião com o secretário, contar-me-ia, ainda indignada, sobre a resposta desferida por ele ao grupo de mulheres: “E eu tive o desprazer de escutar do próprio Secretário de Segurança Pública: ‘essa menina foi embora com o namorado e vocês estão aqui tudo preocupadas’”. Quando Terezae o comitêencontraram o corpo de Emília, havia 45 dias do desaparecimento.

Na manhã de 30 de outubro de 2012, mal Franciscahavia chegado à sua sala na sede da CPT em Campina Grande, recebeu um telefonema. Não passava das 8h30. No outro lado da linha, estava Jussara, membro de uma das organizações ligadas à ASA, moradora de Estrela, um município próximo a Rosário. “Jussaraligou pra mim e disse: – ‘Francisca, encontraram uma mulher, eu não sei como é a história ainda, só sei que encontraram pela manhã, machucada, foi levada pra o Hospital de Trauma’”. Franciscadesligou o telefone e entrou em contato com outras integrantes do comitê. Podia ser Emília. O comitê de solidariedade, então, movimentou-se mais uma vez. De fato, não foi difícil mobilizar pessoas para ir ao Trauma, em Campina, perquirir o ocorrido. Como Mariana, uma integrante do comitêe militante de uma organização não governamental do campo da agroecologia, recordou, “o comitêestava atento a todos os casos”. “Nesse mesmo dia, havia falecido uma menina de 14 anos, vítima também de um estupro”. Segundo Mariana, essa adolescente faleceu de uma infecção decorrente da violência sexual. “Era um caso de internet. Ela saiu de casa para encontrar a pessoa, quando voltou, o pai a expulsou de casa”. Podia ser Emília. Não era. Tal qual não era Emíliaa mulher de quem Jussarafalara ao telefone.

Na UTI do Hospital de Trauma, encontrava-se Glória, vítima de múltiplas lesões corporais, estupro e tentativa de homicídio. No final da tarde do dia anterior ao telefonema de Jussara, Glóriahavia saído para caminhar. Foi surpreendida por um carro, entretanto. Dentro do automóvel, achava-se Paulo, um vaqueiro que trabalhava em uma fazenda próxima à casa de Glória. Pauloa violentou. Marianarecorda que “ele bateu muito nela, ela teve 27 pontos, perdeu parte da orelha. Ele achou que ela tinha falecido. Ela desmaiou, na verdade”. Desfalecida, Glóriafoi jogada numa vala de cinco metros de profundidade, por onde passa um dos grandes canos da CAGEPA, a Companhia de Água e Esgoto da Paraíba. No fundo da vala, havia ferragens. Glóriase machucou ainda mais. Para cima, existia uma escada de regra utilizada pelos funcionários da companhia para consertos no encanamento. Durante a noite e a madrugada, Glóriaacordou e desmaiou algumas vezes, até que conseguiu alcançar a superfície. Segundo Francisca, “ela conseguiu subir. A gente até hoje não entende como. Ela disse que escutou uma voz dizer que ela precisava ir, que aquelas pessoas estavam ligadas à história daquela menina, que ela também não conhecia, que desapareceu”.

Glóriacaminhou e encontrou uma casa. Aturdida, bateu à porta e foi atendida por uma mulher. “A sorte é que era uma agente comunitária de saúde que a reconheceu pela voz porque ela estava toda deformada”. Essa mulher a levou ao Hospital de Trauma, em Campina Grande, e notícias sobre o caso passaram a circular pela cidade de Estrela. Assim, Jussarasoube do acontecido. Assim, Francisca, Terezae as integrantes do comitê de solidariedade também souberam e se dirigiram ao hospital. Lá, conheceram Glóriae descortinaram a existência de Paulo, o vaqueiro. Glóriao reconheceu imediatamente. Depois de alguns dias de hospital, ainda muito debilitada, Glóriase apresentou à Delegacia da Mulher em Campina Grande. As integrantes do comitê, então, associaram a delegacia da mulher à delegacia de Rosárioe convenceram o delegado de Rosárioa investigar Paulo. Não foi difícil esquadrinhar os vínculos. Glória, afinal, conforme os registros oficiais, seria a quarta vítima do vaqueiro.

De acordo com Mariana, em 22 de fevereiro de 2012, perto do carnaval daquele ano, Pauloabordou uma menina, de 18 anos, numa das ruas de Estrela. “Ele parou uma menina, colocou uma arma na cabeça dela, mandou-a entrar no carro, levou-a para o mato e a estuprou com a arma na cabeça”. Depois, passou a procurá-la e ameaçá-la para que ela não contasse sobre o fato a outras pessoas. Durante um desses “encontros”, no entanto, um vigia assistiu à cena de ameaça e decidiu conversar com ela para entender o que acontecia. Ela falou. O vigia a levou à polícia. Abriu-se o inquérito contra Paulo, mas, por razões que Marianadesconhece, apenas o indiciaram por porte ilegal de armas, não pelo sequestro ou pela violência sexual. “Ela chegou a realizar exame de corpo de delito, mas ele voltou a ameaçá-la e ela foi embora”. Pouco mais de um mês após, em 05 de abril, enquanto já respondia a esse primeiro inquérito, Pauloabordou uma segunda menina, agora de 16 anos, também em Estrela. Não pôde consumar a violência, porém. No momento em que ele a coagia, armado, para que ela entrasse no carro, um colega de colégio interviu e a puxou para fora do automóvel. “A segunda menina foi à delegacia e prestou depoimento, mas isso não agravou o primeiro caso”. Ao que se sabe, Emíliafoi a terceira vítima.

Quando as integrantes do Comitê de Solidariedade Emíliaapresentaram ao delegado de Rosárioas evidências produzidas pelo depoimento de Glóriajunto à Delegacia da Mulher de Campina Grande, o delegado se pôs a agir. “Depois do quarto crime, o delegado foi super competente”, notou Mariana. Paulofoi preso em 07 de novembro de 2012. Fugia, de carro e mala pronta, para o Rio Grande de Norte. Logo depois de preso, depôs e assumiu a autoria dos crimes. Confessou que dedicou uma semana a vigiar Emília, seus caminhos e horários de passagem pela estrada. Tratava-se de um trajeto ermo, com poucas casas nas redondezas. Paulodisse que coagiu Emíliae a colocou dentro do carro. Agrediu-a. Estuprou-a. Matou-a. Do sequestro ao assassinato, passaram-se quatro horas. A morte de Emíliadecorreu, provavelmente, do traumatismo craniano produzido por um golpe de espingarda impingido por Paulo. “Se você ver fotos, ela está toda desfigurada. Ele bateu muito nela. Ela sofreu muito”. “Ele a matou espancando”. O corpo permaneceu jogado no curral da fazenda em que Paulotrabalhava, o mesmo local onde a maior parte das violências aconteceram e onde, somente no dia seguinte, o corpo foi enterrado. A prisão de Paulose deu entre as 18h e as 18h30. Às 20h30 já se sabia onde estava o corpo de Emília. O tal curral se localiza próximo à casa em que Paulovivia com sua companheira e sua filha. À época do assassinato de Emília, a filha de Paulosomava 02 anos. A companheira de Paulo, 16. Paulo, 21. Diante do resultado das investigações, constrangido, o Secretário de Segurança do Governo da Paraíba pediu desculpas a Tereza. Pediu desculpas.

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As narrativas sobre o “caso Emília” e as reflexões que alinhavo neste texto compuseram minha tese de doutorado, defendida em março de 2017, sob orientação de Regina Facchini, junto ao Programa de Doutorado de Ciências Sociais da Unicamp. Nas páginas do terceiro capítulo da tese e mesmo aqui, tais narrativas se somam a inúmeras outras narrativas sobre violência em que aquilo que tenho chamado de “imagens de brutalidade” (Efrem Filho, 2016Efrem Filho, Roberto. Corpos brutalizados: conflitos e materializações nas mortes de LGBT. cadernos pagu(46), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2016, pp.311-340.) ocupa um lugar central. Essa “brutalidade” opera, segundo venho percebendo, em duas dimensões umbilicalmente comprometidas, de difícil diferenciação, e que sobrevivem amalgamadas uma à outra. Apenas didaticamente, poder-se-ia dizer que a primeira dessas dimensões concerniria ao corpo brutalizado pelo “ato” da violência. O ato correspondente ao golpe de espingarda contra a cabeça de Emília, por exemplo. A segunda delas consistiria no corpo brutalizado pelas narrativas que o forjam em documentos e denúncias ou mesmo nos autos de inquéritos policiais e processos judicias.

Essa segunda dimensão se realizaria na constância da informação, em notas públicas ou matérias jornalísticas, acerca do crânio fraturado de Emília. O ato precisa ser tecido pela palavra, (re)construído, (re)formulado. Ele, o ato, é inacessível a quem quer que não haja vivenciado ou assistido à sua deflagração. Por isso, a primeira dimensão somente existe através da segunda. Uma não precede a outra. Dialeticamente, fazem-se. O Comitê de Solidariedade Emília– assim como movimentos sociais e outros sujeitos políticos engajados em contextos similares – investe em formas narrativas de contato, na contextura da dimensão narrativa por meio da qual a violência pode ser visibilizada. Não basta fazer saber do assassinato de Emília, algo que, para todos os efeitos formais, as estatísticas oficiais não ignoram e, inclusive, demonstram. É indispensável fazer saber que, antes ou depois de estuprada, antes ou depois do homicídio, seu rosto foi desfigurado, seu crânio foi fraturado.

De pronto, minha percepção dessas duas dimensões, a partir das quais a brutalidade se realiza, resulta das análises de Mariza Corrêa (1983)Corrêa, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1983.sobre a relação entre os atos e os autos. No imprescindível Morte em família, Corrêa se debruça sobre narrativas constitutivas de tribunais do júri e autos de processos judiciais. Logo na introdução do livro, ela alerta, contudo, para uma dimensão metodológica fundamental de seu trabalho: a da irrecuperabilidade do “fato”. Naquilo sobre o que a pesquisadora se detém, nos autos processuais, o “fato” ou o “ato” que enseja o conflito perde espaço para as versões disputantes desses atos. Nos autos, há uma pluralidade de fatos selecionados, por um ou outro agente do processo judicial, para figurar como verdade ou contrapor outros fatos. Há fatos disputados em sua natureza de “fato”, realidade ou irrealidade. Há, enfim, fatos cujos sentidos são questionados, diferentemente interpretados. Inexiste, assim, “o ato” em estado puro a ser conhecido. Por isso, de acordo com Mariza Corrêa, cabe-lhe – ou seja, cabe-nos – não perquirir “a verdade dos fatos”, mas manter analiticamente os fatos em suspensão, afinal “não há mais a possibilidade de, através do processo, revivê-los, fazer a caminhada inversa e chegar aos fatos reais, às relações concretas existentes por detrás de cada crime” (Corrêa, 1983Corrêa, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1983.:26).

Manter analiticamente os fatos em suspensão não implica numa pretensão de neutralidade frente a eles. Pelo contrário, demanda a compreensão das relações de poder que perfazem as narrativas e suas contendas, o crime “como pretexto para o escrutínio da adequação ou não do acusado (e da vítima) a outras normas de convívio social e ao seu reforço ou enfraquecimento” (Corrêa, 1983Corrêa, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1983.:24). Em outras palavras, demanda o enfrentamento analítico – político, de toda sorte – das relações de poder que permitem ou não a arquitetura narrativa do ato de brutalização como uma imagem de brutalidade, da vítima como vitimável, do acusado como acusável. Trata-se, destarte, de considerar a não obviedade do ato, da violência e da brutalidade. Consequentemente, trata-se de investigar as relações de poder que atuam nos interstícios das duas dimensões da brutalidade. Dá-se que se a primeira dimensão só existe através da segunda, não apenas o “ato”, mas a própria noção de “brutalidade” também se encontra sob conflito.

Conflitos assim representam o principal objeto das discussões desenvolvidas neste artigo. Seguindo as pistas deixadas por Mariza Corrêa, pretendo aqui compreender as relações de poder que conformam as disputas narrativas em torno dos atos reivindicados por movimentos sociais como sendo “violência”. Com isso, intenciono discutir como relações de gênero e de sexualidade operam na tessitura de narrativas sobre violência e, ao revés, como a reivindicação narrativa da violência atua no perfazimento de relações de gênero e de sexualidade – relações reciprocamente constituídas por relações de classe, racialização, geração, territoriais etc.3 3 Influenciado pelas análises de autores como Anne McClintock (2010)e Néstor Perlongher (2008), tenho me valido do conceito de “reciprocidades constitutivas” (Efrem Filho, 2017) para compreender os modos pelos quais relações sociais de poder, como de classe, território, gênero, sexualidade, geração, racialização etc., fazem-se umas através das outras nas experiências dos sujeitos e nos conflitos sociais. Com isso, permito-me, como fez Isadora Lins França (2012), tratar gênero e sexualidade também como linguagens que oportunizam a compreensão de outros conflitos. Para tanto, parto de três tematizações principais: a) a de que a “luta por justiça” requer, de antemão, a disputa pela legitimidade de a vítima ser uma vítima, de modo que as imagens de brutalidade acionadas pelos movimentos sociais performatizam os corpos das vítimas e auxiliam no forjamento desses corpos como vitimados; b) a de que, no seio dessas disputas, a publicização da intimidade da dor e do sofrimento costuma operar nos contornos de legitimação de denúncias, denunciantes e vítimas, mobilizando, por exemplo, noções de gênero ligadas à maternidade na performatização e na organização do sujeito político coletivo que reivindica o reconhecimento da violência; e, por fim, c) a de que as reivindicações narrativas da violência tendem a acionar e atualizar inúmeras convenções de gênero e de sexualidade, como aquelas que envolvem as noções de “prostituição” e “tráfico de pessoas”, recolocando ou retensionando convenções morais acerca da sexualidade.

Para alcançar essas três tematizações, percorro o corpusnarrativo proveniente de parte do trabalho de campo de minha pesquisa de doutorado. Ele consiste em narrativas que abordam violências identificadas, por quem narra, como “violências de gênero e sexualidade”. Essas narrativas foram acessadas através do trabalho etnográfico junto a atividades de movimentos sociais e a atividades em que as integrantes do Comitê de Solidariedade Emíliase encontravam, como um ato público contra a violência, ocorrido na cidade de Rosário. Além disso e sobretudo, essas narrativas sobre violência foram colhidas por meio de entrevistas em profundidade realizadas por mim junto a membros do comitê. No transcurso do referido trabalho de campo, segui a indicação metodológica, apreendida no decorrer da pesquisa, de que uma narrativa sobre violência conduz a outras narrativas sobre violência. Há sempre mais um “caso” a citar e disputar.

1. Disputas em torno da vítima

A violência não é óbvia. Pelo contrário, faz-se território narrativo de disputas. Estas disputas, no entanto, direcionam-se tanto à engenharia narrativa dos “fatos” – o desaparecimento de Emília, a hipótese da fuga, a desfiguração do seu rosto – quanto às personagens dessas narrativas conflitantes. A violência não é óbvia porque as “vítimas” não são óbvias. Emíliatampouco. Seus corpos e suas vidas se encontram sob rasura. No interior do campo de estudos de gênero e sexualidade, é notório o argumento de Judith Butler (2010bButler, Judith.Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 3ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2010b [Trad. Renato Aguiar].; 2002Butler, Judith. Cuerpos que importam: sobre los limites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires, Paidós, 2002.) acerca da inexistência de um sexo pré-discursivo, anterior a relações de poder. Tal noção resulta de um diálogo explícito com os trabalhos de Michel Foucault (2010)Foucault, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo, Graal, 2010 [Trad. Maria Theresa da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque].e, como se sabe, acabou consolidando uma ruptura, já esboçada em trabalhos anteriores do campo de estudos de gênero, com a definição de que gênero corresponde a uma elaboração cultural superposta a um sexo anterior e biologicamente predeterminado. Segundo as contribuições de Butler, sexo é desde sempre gênero, assim como natureza é desde sempre história, biologia é desde sempre discurso e, enfim, poder. Esse movimento analítico desencadeado por Butler – que, é de se notar, não difere substancialmente do desenho interpretativo de Mariza Corrêa (1983)Corrêa, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1983.acerca da correlação entre “atos” e “autos” – engendraria, em sua obra (2010a; 2009), a conclusão de que uma “ontologia do corpo” consistiria necessariamente numa “ontologia social”. Do mesmo modo que inexiste sexo anterior a cultura e discurso, inexiste corpo. Claro, novamente, o corpo existe, ele adoece, enruga, machuca-se, mas não a despeito das relações que o perfazem. Disso se depreende que os corpos são forjados através de relações sociais. Como as vidas.

Em seu léxico, Butler se refere a “vidas precárias”. Essa precariedade das vidas, entretanto, contra o que se possa imaginar, não se limita à ideia de uma potência universal para a morte, à certeza de que toda vida é frágil e, ao fim, morrível. Trata-se de bem mais que isso. Corte profundo. A vida somente se faz apreensível diante das circunstâncias em que a sua perda adquire relevância. O valor da vida se dá à importância da perda. A vida é precária porque perdível, mas apenas é perdível se digna de luto. Em outras palavras, a perda precisa ser sentida.

A apreensão da capacidade de ser chorada precede e torna possível a apreensão da vida precária. Dita capacidade precede e torna possível a apreensão do ser vivo enquanto vivo, exposto à não-vida desde o princípio (Butler, 2010aButler, Judith. Marcos de guerra: las vidas lloradas. Buenos Aires, Paidós, 2010a.:33).4 4 Na obra de origem da referência: “La aprehensión de la capacidad de ser llorada precede y hace posible la aprehensión de la vida precaria. Dicha capacidad precede y hace posible la aprehensión del ser vivo en cuanto vivo, expuesto a la no-vida desde el principio” (Butler, 2010a:33).

Sendo assim, a apreensão da vida demanda, antes, a apreensão do sentido da perda.

No arcabouço teórico de Butler, o conceito de “apreensão” se liga aos conceitos de “inteligibilidade”, “reconhecibilidade” e “reconhecimento”. As discussões que a autora desenvolve sobre esses termos são complexas e, parece-me, por vezes confusas e circulares. Em linhas gerais, “apreensão” remete a um modo de conhecer que ainda não é “reconhecimento”. Conhecer uma vida e, portanto, sua precariedade requer a inteligibilidade da vida, ou seja, sua localização em esquemas históricos gerais que estabelecem âmbitos do que é cognoscível. A inteligibilidade, a seu tempo, permite – ainda que não engendre necessariamente – a reconhecibilidade da vida, que pode, também a seu tempo, ensejar o reconhecimento da vida. Nesse cenário conceitual, “reconhecimento” seria um termo mais forte, oriundo da tradição hegeliana e objeto de intensos debates teóricos, conquanto “apreensão” seria um termo mais vago, menos preciso e que “pode implicar em marcar, registrar ou reconhecer sem pleno reconhecimento” (Butler, 2010aButler, Judith. Marcos de guerra: las vidas lloradas. Buenos Aires, Paidós, 2010a.:18).5 5 Na mesma obra: “La ‘aprehensión’, por su parte, es un término menos preciso, ya que puede correto? implicar el marcar, registrar o reconocer sin pleno reconocimiento” (Butler, 2010a:18). Dessas voltas vocabulares, ao que aqui nos importa, apresa-se a ideia de que os conflitos e relações sociais que forjam ou não corpos e vidas forjam ou não, mutuamente, suas inteligibilidades (e, em diferentes escalas, apreensões, reconhecibilidades e reconhecimentos).

Dessa forma, os corpos e vidas das “vítimas” não são óbvios porque, a priori, não são obviamente choráveis, dignos de luto. Carecem de legitimidade para a suposição de um pranteamento generalizado. Seguindo as inferências de Butler (2010bButler, Judith.Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 3ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2010b [Trad. Renato Aguiar].), pode-se dizer que o corpo e a vida de Emílianão são óbvios porque suas inteligibilidades restam em questão, ou seja, suas “precariedades” não foram apreendidas. Disso não se conclui, no entanto, que a filha deTereza não seja de alguma forma compreensível como vida: sua morte, para todos os efeitos, ao menos depois de comprovada, fez dela “vítima” em um processo judicial. Disso se conclui, porém, que seu corpo e sua vida não são inteiramente apreensíveis, ao menos, por exemplo, quanto às relações de gênero, sexualidade e classe que os constituem e constituem a brutalidade que assinalou sua morte e, antes, caracterizou as indisposições de um delegado de polícia ou de um secretário de segurança acerca do caso de uma meninaque, eles tinham certeza, haveria apenas fugido com o namorado. A ausência de Emílianão é sentida pelos agentes de Estado inicialmente acionados por quem sente a sua ausência, a mãe. A recusa inicial desses agentes a procurar a adolescente desaparecida e, mais profundamente, a não apreensão do próprio “desaparecimento” – não uma mera “fuga com o namorado” – conformam publicamente a ininteligibilidade da ausência, da vida ausente e, reciprocamente, do “fato”. Emíliaé suficientemente inteligível como uma adolescente, estudante, filha de Tereza, uma sindicalista rural. Mas sua ausência não conta, carece de relevância e, desse modo, não engendra aquela apreensão do sentido da perda.

Por isso, os esforços de Terezaou do Comitê de Solidariedade Emíliaacabam por se conduzir, necessariamente, à constituição narrativa da vítima, aquela que precisa ser legitimada e apreendida até mesmo nas dimensões que escapam às inteligibilidades estatais. Parte significativa desses esforços de construção da vítima explora a performatização do corpo como vitimado. Nesse sentido, as narrativas manejam a materialidade, cortada e recortada, dos corpos e de suas cicatrizes, dos crânios e de suas fraturas, por meio de gestos de reivindicação de imagens de brutalidade que oportunizam a edificação da vítima. Daí serem tão relevantes, na contextura das narrativas sobre violência, as imagens da destruição provocada no corpo de Emília; da dilaceração de seu rosto; do traumatismo craniano provocado por um golpe de espingarda; ou dos hematomas que ainda se achavam no rosto de Glóriaquando ela conseguiu deixar o hospital e, depois, dirigir-se à delegacia de polícia; e da sua orelha decepada em razão da queda. As narrativas de constituição das vítimas brutalizam seus corpos para, por meio dessa brutalização, garantir-lhes inteligibilidade.

Por mais assustadoras que sejam as imagens de brutalidade, a estratégia ativada em meio às narrativas de reivindicação da violência não deixa de ser finamente complexa. A brutalização narrativa dos corpos empurra o corpo ao extremo. Ela ironiza presunções normativas, de Estado ou liberais, sobre a universalidade da vida ou do direito à vida. Esgarçado o corpo ao limite, os sujeitos que o apresentam a público engendram tensões entre corpos e normas até que aquela vida sob dúvida se torne digna de atenção por parte de outros sujeitos que, autodeclarados ou pressupostos defensores da “vida”, ainda que como abstração, não poderão, no extremo, ignorar que ali, sob tamanhas cicatrizes, num corpo tão sangrável quanto “qualquer um”, jaz uma vida. Claro, eles poderão ignorar, como de regra ignoram, mas precisamente aí habita a ironia da disputa. Desse modo, contraditoriamente, as narrativas de brutalização dos atos e dos corpos tencionam produzir vida.

Como Bruna Mantese de Souza (2015)Souza, Bruna Mantese de. Mulheres de fibra: narrativas e o ato de narrar entre usuárias e trabalhadoras de um serviço de atenção a vítimas de violência na periferia de São Paulo.Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2015.argumentou, apoiando-se também nos trabalhos de Michel Foucault (2010Foucault, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo, Graal, 2010 [Trad. Maria Theresa da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque].; 2008Foucault, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 35ª ed. Petrópolis, Vozes, 2008 [Trad. Raquel Ramalhete].), a violência é produtiva, tal qual o poder é produtivo. Nesse sentido de que se vale Souza e de que eu, sob sua influência, igualmente me valho, à violência não compete exclusivamente a destruição ou a obliteração dos corpos. Em certos contextos narrativos, a violência produz vítima e, para isso, produz vida precária. A vítima compreende um corpo que é, ele mesmo, um testemunho, ou, como notou Souza, “um corpo-testemunho”, “uma materialização do ato de testemunhar” (2015:192). As cicatrizes e fraturas impactam quem se depara com as narrativas. No limite, comovem, perturbam, condoem, constrangem. Porém, fazem mais. Cicatrizes e fraturas contam histórias. Por isso o seu testemunho, a sua pretensão de prova. Cicatrizes e fraturas são, a um só tempo, o extremo do corpo e o extremo da narrativa. O problema, entretanto, reside no fato de que, muitas vezes, frente a agentes de Estado e nos interstícios de conflitos sociais perversos, nem os extremos convencem.

Dá-se que nessas disputas, manobra-se também uma “chancela moral” a determinadas personagens. A vítima, de certo, está entre elas. A dedicação narrativa à caracterização de Emíliacomo uma filha amada, obediente e já envolvida com a militância política – de acordo com Francisca, Emíliaparticipava das atividades do sindicato – contrasta com as posições dos agentes policiais e do Secretário de Segurança de que ela haveria, por livre escolha, “fugido com o namorado” ou de que havia “se revoltado” contra uma mãe que a “explorava”. “Uma menina que era feliz, que morava com a mãe e os irmãos, que colaborava no grupo de jovens do sindicato (...). As coisas não a ligavam com a adolescente rebelde que foge de casa”. Segundo Francisca, Emílianão deixaria, por vontade própria, a casa da família, a não ser que a houvessem “aliciado” – “mesmo assim, ela não tinha característica de uma pessoa de aliciamento fácil”. “Mesmo que ela tivesse sido levada, teria sido à força”. A adesão da figura de Emíliaà persona da mãe e às convenções em torno da noção de família – e, em especial, à do afeto familiar – opõe-se às conjecturas das alegações oficiais acerca de Emília, uma meninaque teria fugido com o namorado sem sequer comunicar à família e que, então, acabaria por demonstrar distanciamento dos vínculos familiares. Como recurso de legitimação, a mãe traz a filha para perto de si. As integrantes do comitê de solidariedadetrazem Emíliapara junto de Tereza.

Além da vítima, contudo, aquela chancela moral deve se estender também aos sujeitos que se esforçam para a construção da vítima, inclusive à própria mãe. Durante o processo de legitimação de Emília, antes do encontro do corpo, Terezacareceu igualmente de legitimação pública. “Tereza, naquele momento, além de não saber da filha, ainda estava sendo vitimada porque os machos que escutam nas delegacias geralmente culpam a mãe, porque a mãe não era para ter deixado a filha sozinha em casa” – contou Francisca. Terezafoi contestada. O divórcio do pai de seus filhos e a dedicação ao sindicato de trabalhadores rurais, por exemplo, são elementos de sua trajetória de vida que, segundo as integrantes do comitê de solidariedade, murmuravam nas fofocas da cidade de Rosárioe inteiravam o que seriam as razões da culpa de Terezano sumiço de Emília. Essas razões se fundam na disrupção de convenções de gênero e da noção modelar de família. Contra elas, é preciso investimento narrativo, ainda que, com isso, ratifique-se convenções morais irmanadas àquelas que acusam Terezade descumprir. Se Emíliaé narrativamente levada para a rua, Terezaa traz para casa, para perto de si. Se Terezaé levada para a rua, para fora do casamento e da domesticidade, Tereza, o comitêe os demais sujeitos engajados na busca por Emíliadevem investir na caracterização de Terezacomo uma “boa mãe”. Em outras palavras, a figura da mãe, de regra movimentada para atribuir validade à vítima, é, ela mesma, objeto de conflitos. A mãe não consiste numa autoridade moral inquestionável.

Essa aprovação moral da vítima e dos sujeitos empenhados em sua estruturação requer, não raras vezes, contraste. Nas disputas em torno da admissibilidade da vítima, ela é antagonicamente diferenciada do agente perpetrador da violência, o algoz, e contrastada a um contexto cruel que, mais do que simples pano de fundo, participa da vitimização. A vítima tem de vir acompanhada de seu avesso narrativo. Nas palavras de Franciscae de Tereza, Paulose trata de um “monstro” ou de um “maníaco”, uma “mente doentia”, ou seja, trata-se de um arquétipo de algoz que se encontra entre a insanidade e a bestialidade. Não à toa, eu fui detalhadamente informado de que, quando do assassinato de Emília, a filha de Pauloestava com 02 anos de idade e sua companheira apenas com 16. A meninafoi mãe aos 14 anos. Paulofoi pai aos 19. “Eu vejo uma pessoa extremamente fria” – disse-me Mariana. O “monstro”, contudo, também não vem sozinho. Vem cercado por outros sujeitos – as integrantes do comitêdesconfiam sobretudo de um rapaz, enteado de uma personagem política relevante da região e aparentemente atuante junto ao mercado de drogas ilícitas, e que o próprio Pauloapontara como sendo partícipe dos crimes –, mas principalmente vem cercado por tramas complexas e assustadoras que, dispostas narrativamente, convertem Rosárionum agente do perigo.

Há alguns meses do desaparecimento de Emília, em fevereiro de 2012, um estupro coletivo abalou a cidade de Rosário. Segundo os documentos publicados pelos movimentos sociais apoiadores das vítimas, cinco mulheres foram ofertadas como “presentes de aniversário”. Estevão, um morador da cidade, orquestrou uma festa de aniversário para seu irmão, Afonso, em sua própria casa, convidando algumas mulheres e montando um assalto simulado. Durante a festa, homens encapuzados penetraram a casa, prenderam as mulheres em diferentes cômodos e as violentaram sexualmente. Estevãoe Afonsotambém se encapuzaram e participaram dos estupros. Em meio às violências, duas mulheres reconheceram Estevão. Ambas seriam mortas. A irmã de uma delas, entretanto, ao ouvir os gritos da irmã sendo estuprada em outro cômodo da casa, captou o nome de Estevãosendo pronunciado em meio ao alarido. As informações dessa irmã e das outras mulheres sobreviventes, mas também as confissões de alguns dos homens envolvidos terminariam engendrando a condenação judicial de todos os autores dos estupros. Estevãoseria também condenado numa ação judicial referente aos dois homicídios.

De acordo com Franciscae as militantes dos movimentos feministas com quem conversei sobre o caso, Estevãoe Afonsose destacavam no comércio varejista de drogas ilícitas na região de Rosário. As inúmeras armas e os bens de que dispunham e a inexistência de notícias sobre rendas, vínculos empregatícios ou quaisquer trabalhos regulares comprovariam a implicação dos irmãos nesse comércio. Também o comprovaria a participação de rapazes muito jovens na simulação do assalto e, portanto, na execução dos estupros. Nas narrativas de Franciscae das militantes a que me referi, as mulheres foram entregues de presente de um irmão para outro, mas foram também sexualmente ofertadas, em meio a um processo de demarcação territorial interior ao mercado de drogas, aos sujeitos envolvidos com a liturgia da violência.

Tereza, a mãe de Emília, compunha uma comissão de mulheres que lutavampela punição dos culpados pelo estupro coletivoe pelos homicídios das duas vítimas que haviam reconhecido Estevão. Na noite anterior ao desaparecimento de sua filha, Terezaparticipara de uma reunião dessa comissão – “reunião”, segundo Francisca, “que discutia a questão da punição dos mandantes, a questão da mobilização da sociedade pela justiça naquele estupro”. Embora as investigações policiais e as conclusões judiciais não apontem para a existência de nexos de causalidade entre o caso de Emíliae o estupro coletivo, embora nada conecte Pauloa Estevãoe Afonso, a presença do caso do estupro coletivonas narrativas sobre o caso de Emíliaemblematiza a caracterização de Rosário como um território do perigo, ele mesmo uma “imagem de brutalidade”.

No que ouvi durante as entrevistas com as integrantes do Comitê de Solidariedade Emília, Rosárioé uma cidade emaranhada em relatos sobre violência, com casos e mais casos a serem minuciosamente descritos e perscrutados. No que escutei sobre Rosário, tudo converge para o terror. Mas de tal forma que a hipótese de existência de alguma correlação, por mais tênue e vaga que fosse, entre o caso de estupro coletivoe o caso de desaparecimento de Emília, operou como um fantasma ameaçador durante todo o percurso de busca pela filha de Tereza. Um ataque a Tereza, ao sindicato de trabalhadores rurais ou à comissão de mulheres poderia ocorrer através de um ataque a Emília. O improvável não representa barreira para realidades ficcionais. Pior. O improvável se soma a diversas outras hipóteses mais ou menos (im)prováveis e, juntos, eles preenchem densamente as finas malhas narrativas da realidade do terror. Marianame contou que Terezarecebeu muitos trotes. O telefone tocava e uma voz desconhecida anunciava “vi sua menina aqui, na comunidade tal”. Terezaentão montava na moto e seguia até o local indicado. “Nada era perto do rapaz”, disse-me Mariana, sugerindo a desconfiança de que talvez os trotes intencionassem distanciar dePauloas investigações empreendidas pelo comitê. Além dos trotes, porém, o desaparecimento de Emíliaensejou o aparecimento de outras histórias de desaparecimento e, inclusive, do que identificaram como “tráfico de pessoas”.

O surgimento de Pauloaparentemente eliminou as hipóteses anteriores e individualizou, nele, a responsabilidade pelo desaparecimento de Emília. A culpa seria do “monstro”, do vaqueiro de “mente doentia”. Caso encerrado. Tudo restaria explicado. Dúvidas, porém, não abandonaram as militantes do Comitê de Solidariedade Emília. Pelo contrário, elas permanecem e se direcionam às zonas obscuras do que não pode ser compreendido, do que não faz sentido. As dúvidas dizem respeito, de antemão, à relação entre Pauloe o rapaz que ele havia indicado como sendo seu cúmplice, ao que envolve o boyzinho, suas proximidades com o “tráfico de drogas” ou de influências familiares junto a postos de Estado; mas concernem também à defesa judicial de Paulo. “A gente faz perguntas, mas não sabe como investigar”, argumentou Mariana. “Pauloé um vaqueiro sem terra. Ele morava na propriedade de um dentista. Ele cuidava do gado desse dentista que fornece leite para um laticínio. O pai dele é muito pobre, mora perto da região. E ele tem dois advogados”. Nos autos do processo judicial em que Emíliaconsta como vítima, Paulopossui dois advogados particulares. “E a gente fica se questionando o porquê”.

As mais ou menos razoáveis dúvidas sobre Paulo, os trotes telefônicos recebidos por Tereza, as histórias sobre tráficos de drogas, pessoas e órgãos, a sombra persistente do caso de estupro coletivo, a lentidão ou a inércia dos agentes de Estado competentes para a busca por Emília, os murmúrios da cidade de Rosário, tudo converge para o terror, para a composição fabular daquelas malhas finas e hipoteticamente entrelaçadas, para a sensação partilhada pelas integrantes docomitêde que há mistérios e perigos maiores à espreita. “A gente começou a sentir medo de se expor muito. Porque a gente acabou se expondo muito. A gente foi para a televisão”, reconheceu Mariana. A intenção de desvendar quais faces dessas malhas correspondem à “verdade” e quais delas correspondem à “ilusão”, no entanto, recoloca um tipo de dicotomia de que o próprio terror se alimenta para a fabricação daquilo que Michael Taussig chamou de “objetividade ilusória” (1993:87). Cria-se, segundo as palavras de Taussig sobre o realismo mágico atuante no Putumayo, “uma realidade incerta, a partir da ficção, dando contornos e voz à forma informe da realidade, na qual uma atuação recíproca da verdade e da ilusão torna-se uma força social fantasmagórica” (1993:126).

A base argumentativa de Taussig é a de que todas as sociedades existem por meio de ficções tomadas como realidade. Isto significa que, em seu arsenal analítico, a própria cisão entre realidade e ficção se acha sob questão. O que se daria, entretanto, na “cultura do terror”, seria a transformação do que comumente seriam problemas filosóficos, epistemológicos e ontológicos acerca da representação, da realidade e da ilusão, da certeza e da dúvida, em algo maior, “em um meio de dominação altamente revestido de poder” (Taussig, 1993Taussig, Michael T. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um estudo sobre o terror e a cura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993 [Trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura].:127). O medo sentido por Francisca, Marianae Terezaexplicitaria efeitos desse poder, das reais incertezas nele produzidas. Trata-se do temor diante da dúvida. Trata-se da capilaridade do medo e da tangência de sua consequência mais cruel: a urgência da ansiedade pela estabilização, pela definição, pela segurança e, sendo assim, pelo controle. Diante de tamanhas indefinições e suspeitas, alguma resposta haveria de ser dada aos questionamentos de Terezae do Comitê de Solidariedade Emíliaa respeito do desaparecimento da menina. Alguma resposta precisaria finalizar o “caso”, conferir inteligibilidade e coerência aos “fatos”, ocupar o lócusdaquela “objetividade ilusória”.

Como dito, a solução do “caso Emília”, a priori aceita pelas integrantes do comitê de solidariedadee pelos agentes de Estado ligados ao caso, encerrou-se na individualização da responsabilidade pela autoria da violência. Descoberto o corpo de Emília, passou-se a lutarpela condenação judicial de Paulo. A individualização do problema, portanto, apartou o caso de desaparecimento de Emíliados demais casos e suspeitas envolvidos naquelas finas malhas do terror. Formalmente, para os sentidos oficiais ali presentes, os crimes cometidos por Paulonada teriam a ver com tráfico de pessoas, tráfico de drogas, disputas territoriais, agentes políticos locais ou com todo esse emaranhado de hipóteses e relações de poder complexas e imprecisas. A solução de individualização, portanto, isolou o assassinato de Emília. Se algo do “terror” ficou, circunscreveu-se narrativamente à brutalização do corpo de Emília e a Paulo, o “monstro”. Sua “mente doentia” assumiu todas as causas. Ou quase todas, já que nas narrativas das integrantes do comitê, a bestialidade de Paulose soma ao “machismo” da região de Rosárioe à longa lista de casos de violência contra as mulheres. No mais, todos os outros feixes de terror são apagados, não passariam de ilusão, ao menos no que concerne à solução coerente do “caso Emília”.

Em resumo, o contexto narrativo de terror convergido por trotes, tráficos, dúvidas inesgotáveis e realidades incertas demanda a ratificação da dicotomia entre “verdade” e “ilusão” com vistas à produção de uma objetividade (ilusória) que explique, conforme os sentidos formais de Estado, a violência. Essa objetividade ilusória – a individualização judicializada da solução, em se tratando do assassinato de Emília– proporciona coerência aos fatos e distancia deles o terror que inicialmente a demandou. Assim, as densas malhas do terror não são atacadas, apenas a solução isolada é atingida. Pune-se o “monstro”, convalida-se sentidos de Estado. Como argumentei, entretanto, a solução da individualização não convenceu absolutamente as integrantes do comitê de solidariedade. Ainda que elas hajam lutado pela condenação judicial de Pauloe, algumas delas, acionado aquela noção de monstruosidade; ainda que elas tenham aceitado, como não poderia deixar de ser, a responsabilidade pessoal do vaqueiro na perpetração da violência contra Emília, as dúvidas a que me referi anteriormente, e das quais as militantes me falaram, mantêm o terror no encalço da objetividade ilusória. As dúvidas continuam assombrando as pretensões de coerência e as lógicas estatais.

Descartar analiticamente essas dúvidas como mera ilusão seria tanto reproduzir a dicotomia – entre “verdade” e “ilusão” – que nutre o terror, quanto desprezar as finas malhas desse terror, ou, em outras palavras, as intrincadas relações de poder que se fazem, reciprocamente, nos entremeios dessas assustadoras urdiduras. Ainda que a realidade se faça intraduzível ou inexplicável, ininteligível nos excessos dos seus horrores, relações de poder latejam nas narrativas que tramam a incomensurabilidade do terror. Nas histórias que as integrantes do Comitê de Solidariedade Emíliame contavam havia tantos sinais de relações de classe, de geração, de territorialização, de racialização etc., quanto sinais de gênero e de sexualidade. O fato de essa “realidade” ser “fantástica”, com direito a personagens monstruosas e clímaces cinematográficos, não desfaz as relações sociais nela existentes. Mas conhecer essas relações exige a consideração analítica desse terror – de sua narrativa, sempre. Não porque as relações de poder sobrevivam nos porões do terror, escamoteadas atrás dele, e devam ser “descobertas”, “reveladas”, como se o terror não passasse de uma carapaça “ideológica” ou dissimuladora. E sim porque essas relações de poder são terror. De muitos modos, elas são incomensuráveis e incompreensíveis, tal qual o terror.

A mim cabe, no espaço-tempo da análise, cursar ao máximo a amplitude, os contornos e os nós das malhas de terror, das narrativas sobre violência, considerando a fricção desse esforço analítico com a incomensurabilidade essencial ao terror. Trata-se de uma batalha pelas margens do inteligível – daí também a relevância, para este texto, do debate com as contribuições teóricas de Judith Butler, páginas atrás. Trata-se de um jogo de lusco-fusco, em que aquilo que não se compreende existirá, à queima-roupa, em disputa com exercícios de compreensão que nunca se completarão. O manejo analítico de narrativas de violência requer a aceitação metodológica de que algo não será passível de compreensão, descrição ou racionalização e de que essa incomensurabilidade do terror não deve, como dito, ser descartada. Deve, ao contrário, ser levada a sério, já que é na fricção com ela que a análise se desenlaça. Claro, isso tudo se torna mais ou menos viável enquanto se escreve um texto, como eu escrevo este, e o terror adentra o objeto de estudo. Quando, porém, o telefone toca na madrugada e, do outro lado, alguém desconhecido diz “sua filha está aqui”, as trincheiras das malhas do terror provocam mais angústia e medo do que uma análise acadêmica conseguiria comportar.

“A gente começou a sentir medo de se expor muito. Porque a gente acabou se expondo muito. A gente foi para a televisão”. O emaranhado do terror parece, de novo e de novo, penetrar todos os espaços e demandar uma “objetividade ilusória” que ofereça, de alguma forma, alguma certeza. Como visto, tal objetividade não bastará, talvez baste apenas a determinados sentidos de Estado, e os fantasmas do terror permanecerão assombrando as dúvidas dos sujeitos ligados aos “casos”. Contudo, ao ofertar uma “solução”, por mais precária e excludente que seja, essa objetividade termina por assentar a legitimidade da vítima, sua inteligibilidade. Descoberta, enterrada e mutilada no curral da fazenda em que Paulotrabalhava como vaqueiro, Emíliaé uma vítima incontestável. Ao menos até que alguém a conteste. Terezae as integrantes do comitê de solidariedade, por sua vez, têm suas razões imediatas justificadas e, enfim, merecem escutar um pedido de desculpas. A “objetividade ilusória”, ao afastar aparentemente a incomensurabilidade do terror, livra Tereza e as integrantes do comitêda necessidade de falar sobre as malhas não conhecidas desse terror. De suas narrativas podem desaparecer tráficos de pessoas, de drogas ou de órgãos. Tudo que converge para o terror, em tese, cede lugar para o “cunho sexual” do crime e para o “monstro”. Elas e Emíliaficam livres, portanto, das dúvidas e incertezas do terror. Ao menos até que o telefone toque na madrugada. Afinal, Tereza se movimenta exatamente aí: no risco de viver na carne – e nas narrativas, sempre – a fricção com aquilo que não se explica, mas ameaça.

2. Os rituais de pranteamento coletivo e a maternagem da ação política

“Ouvi o seu chamado / Atentei para suas palavras / E agora estou aqui para servir / Estou disposto a lutar / Estou disposto a alcançar / Minha promessa / Usa-me”. Encontrei Terezalogo no início da caminhada. Já havia escurecido e algumas centenas de pessoas preenchiam as ruazinhas da cidade de Rosárioseguindo uma Kombi. Do automóvel, caixas de som propagavam orações, mensagens contra a violência e cantos. Como eu, Terezae as outras integrantes do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Rosárioportavam velas acesas e um papel com as letras de sete canções religiosas.6 6 Os versos acima transcritos pertencem à música “Eis-me aqui”, conhecida na voz da cantora gospel Arianne. Eu a cumprimentei, mas de pronto compreendi que não seria aquele o momento de me apresentar. Terezachorava com a vela nas mãos. Das caixas de som, ouvia-se a voz de Gisele, a irmã sobrevivente ao estupro coletivo. Giselefalava do sofrimento de sua mãe e da necessidade de justiça para o assassinato de sua irmã, Eliane, e de Flávia, a segunda moça morta. No topo do papel com as canções, escreveu-se “Caminhada de Vida Espiritual / 2 anos de saudade Elianee Flávia”. Àquele dia, dois anos após o episódio do assalto simulado, da série de estupros e dos dois homicídios, Estevãoainda não havia sido julgado e condenado em razão das mortes. [Nota do diário de campo, 12 de fevereiro de 2014].

A “Caminhada de Vida Espiritual” de 12 de fevereiro de 2014 consistiu num momento público de pranteamento coletivo da perda. Em outras palavras, tratou-se de um momento de significação compartilhada da relevância daquelas vidas – “precárias”, no sentido empregado por Judith Butler (2010aButler, Judith. Marcos de guerra: las vidas lloradas. Buenos Aires, Paidós, 2010a.; 2009Butler, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violência. 1ª reimp. Buenos Aires, Paidós, 2009.) e acima debatido. Esses rituais de pranteamento atuam no engendramento do sujeito “nós”. Os instantes de produção compartilhada do luto participam da conformação identitária de grupos e movimentos sociais: “um dos nossos morreu” é o que está sendo dito. Ao relatar a morte de “um”, tece-se os conteúdos e contornos do pronome possessivo “nossos” e, pressupostamente, do pronome pessoal “nós”. Ao fazer isso, falas como as de Giseleou das integrantes do Comitê de Solidariedade Emíliaconvertem as narrativas sobre violência em um artefato do cotidiano facilmente reconhecível. Elas produzem essas narrativas sobre violência e morte não como algo puramente “excepcional”, mas como algo constante. Nos rituais de pranteamento, portanto, a incomensurabilidade do terror é cotidianizada, familiarizada e, desse modo, “domesticada”, ou melhor, “tornada doméstica”. Assim, as narrativas sobre violência adentram a domesticidade, angariam intimidade, conformam uma técnica e uma estética compartilhadas de enfretamento à dor e, reciprocamente, de enredamento de vínculos de solidariedade e constituição do sujeito “nós”.

Em suma, a reivindicação narrativa da violência nos momentos de pranteamento coletivo enseja a ressignificação da violência por meio da domesticação dos manejos da dor e participa da constituição do sujeito que conjuga o verbo “lutar”. Tal sujeito pode ser Terezaou Gisele, mas também um movimento social, como o movimento de mulheres, o Comitê de Solidariedade Emíliaou o grupo engajado na “luta por justiça” no caso do “estupro coletivo”. Importa perceber, contudo, que esse “sujeito” de que venho tratando somente é compreensível a partir de suas experiências, de seus trânsitos e conflitos. Noutros termos, posso dizer, em diálogo com as análises desenvolvidas por Regina Facchini (2011Facchini, Regina. “Não faz mal pensar que não se está só”: estilo, produção cultural e feminismo entre as minas do rockem São Paulo. cadernos pagu(36), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2011, pp.117-153.; 2008Facchini, Regina. “Não faz mal pensar que não se está só”: estilo, produção cultural e feminismo entre as minas do rockem São Paulo. cadernos pagu(36), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2011, pp.117-153.), que se os sujeitos trafegam identidades – Terezaé a sindicalista rural, a mãe que bate à porta da delegacia, a militante que constitui o comitê de solidariedade–, se eles vivenciam conflitos e lutas, seus verbos não são conjugados por um sujeito já pronto, acabado e completo, mas, pelo contrário e mais complexamente, esse sujeito se modifica contingencialmente, faz-se e faz história enquanto trafega. Tais tráfegos a que remetem suas narrativas consistem em “experiências” que, como indicam Avtar Brah (2006)Brah, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. cadernos pagu(26), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2006, pp.329-376.e E. P. Thompson (1987)Thompson, E. P. A formação da classe operária inglesa I: a árvore da liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987 [Trad. Denise Bottmann]., não são posteriores aos sujeitos; elas dialeticamente os forjam e são por eles forjadas.

Pelo o que pude observar, os rituais de pranteamento coletivo estão entre essas experiências. De certo, nesses rituais, a relevância da dor e da opressão marca as narrativas dos militantes. Porém, o gesto coletivo de narrar cotidianamente as violências e mortes ressignifica essas marcas e possibilita, diria Veena Das (2007Das, Veena. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkley, University of California Press, 2007.; 2011Das, Veena. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. cadernos pagu(37), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2011, pp.9-41.), a reabitação de um cotidiano devastado. É na experimentação desse cotidiano destruído que os sujeitos vão se fazendo e sendo feitos também através dessas narrativas sobre violência. Nelas, as imagens, de costume brutalizadas, dos atos de violência são reivindicadas e transformadas em contexto narrativo nos entremeios do qual outros verbos são conjugados, por vivos e mortos, e a lutase vivifica.

Nas narrativas de violência, portanto, a dor e a opressão marcam indelevelmente os sujeitos, mas não os eliminam, tampouco os explicam cabalmente; não pesam como uma estrutura intransponível, não reproduzem a “prisão disciplinar” foucaultiana, nem o “modo de produção” althusseriano. Pelo contrário, nessas narrativas, como percebeu Das, molda-se o sujeito “através de transações complexas entre a violência como momento originário e a violência que se infiltra nas relações correntes e se torna uma espécie de atmosfera que não pode ser expelida para ‘fora’” (2011:15). Ou seja, para o que interessa a Veena Das (2007)Das, Veena. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkley, University of California Press, 2007.em seus estudos acerca das narrativas de mulheres marcadas pelas violências da Partição da Índia, ou para o que interessa mais imediatamente a este texto no que tange aos rituais de pranteamento interiores aos movimentos sociais, a violência não necessariamente obsta os sujeitos, sobretudo se através da sua renarração cotidiana, da “descida ao cotidiano”, os sujeitos movimentam a violência e se movimentam em suas reentrâncias. Argumentei acima, referindo-me à tese de Bruna Mantese de Souza (2015)Souza, Bruna Mantese de. Mulheres de fibra: narrativas e o ato de narrar entre usuárias e trabalhadoras de um serviço de atenção a vítimas de violência na periferia de São Paulo.Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2015., que a violência é produtiva, não meramente destrutiva. Seu potencial produtivo, no entanto, acha-se diretamente associado à produção dos sujeitos que agem sobre ela e a tecem narrativamente.

“Presente”! – é a palavra de ordem, o que se diz nos momentos em que os mortos são nomeados, lembrados, pranteados. Em meio a um grupo de pessoas, alguém grita enfaticamente: – “João Pedro Teixeira”! Todos respondem conjuntamente: – “Presente”! Ou: “Margarida Maria Alves”! “Presente”! “Carlos Marighela”! “Presente”! Nos congressos e encontros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, da Comissão Pastoral da Terra, das pastorais de base da Igreja Católica, dos movimentos de mulheres, do partido político de que eu participo e das esquerdas em geral em nosso país, a presentificação dos mortos consiste em um instante fundamental para a organização política e para a luta. Mas esses instantes de pranteamento coletivo da perda não se circunscrevem aos espaços internos às organizações e aos movimentos sociais. Eles também são levados a público. “Emília”! “Presente”! – é o que estava sendo dito na manhã de 19 de setembro de 2013, um ano após o dia do desaparecimento da filha de Tereza, quando o Comitê de Solidariedade Emíliae o polo sindical regional ligado ao Sindicato de Trabalhadores Rurais de Rosário realizaram um ato público pela “justiça” no “caso Emília” e, consequentemente, pela condenação judicial do vaqueiro Paulo.

De acordo com o que Marianame contou, o ato daquele 19 de setembro reuniu 500 mulheres na pequena Rosário. Antes do evento, Terezae as sindicalistas distribuíram cerca de oito mil panfletos sobre o caso, nas praças, ruas e escolas da cidade e dos municípios vizinhos. O colégio em que Emíliaestudava foi visitado, assim como a sua turma à época do desaparecimento, agora já frequentando outra escola. No ato, as mulheres, vindas de outras cidades do polo sindical ou da própria Rosário, distribuíram panfletos, seguraram cartazes e faixas, gritaram palavras de ordem contra a violência e amarraram fitas pretas pela cidade, simbolizando os 127 assassinatos de mulheres ocorridos na Paraíba no ano anterior, 2012. Emíliacompunha esses números. Elianee Flávia, as vítimas fatais do episódio do estupro coletivo, também. Reunidas inicialmente na porta do fórum judicial da cidade, as centenas de mulheres seguiram pelas ruas, parando e gritando palavras de ordem em frente a algumas casas e estabelecimentos comerciais vinculados a pessoas que, segundo as integrantes do comitê de solidariedade (e aquelas densas malhas do terror), possuíam alguma conexão com Paulo, a impunidade e os crimes. Para o final do ato, marcou-se uma celebração, diante da Igreja Matriz, proferida pelo Deputado Estadual Frei Anastácio, do Partido dos Trabalhadores, um religioso e antigo parceiro dos movimentos camponeses e da Comissão Pastoral da Terra.

Durante o ato público da manhã de 19 de setembro de 2013, o ritual de pranteamento coletivo preencheu as ruas de Rosário. As narrativas de violência cotidianizadas no íntimo dos movimentos sociais e do Comitê de Solidariedade Emíliareverberaram em milhares de panfletos, apresentaram-se às escolas e praças, estamparam faixas com nomes de vítimas, trouxeram as imagens de brutalidade e os excessivos números de homicídios de mulheres às palavras de ordem. Entre as centenas de mulheres que ocuparam as ruas de Rosário, o pranteamento coletivo tanto participou da constituição dos sujeitos – as vítimas, o comitê,os movimentos, as mulheres – quanto, em maior ou menor grau, provocou denúncia, atacou suspeitos, convocou à ação os agentes de Estado aparentemente competentes para a fabricação da “justiça” no caso do assassinato de Emília. Nas ruas de Rosário, o ritual de pranteamento coletivo perfez experiências de luta por direitos que se realizam por meio da explicitação pública dos afetos, da reivindicação pública do sofrimento.

Apesar da pauta mais imediata da “punição dos culpados”, nessas experiências de pranteamento coletivo e luta, sobressai-se o enfrentamento à violência e não simplesmente ao crime.7 7 Este meu movimento analítico de diferenciação entre “violência” e “crime” advém de um diálogo com as contribuições de Debert e Gregori (2008). Nesses cenários, a reivindicação narrativa da violência arquiteta publicamente a violência como uma inadmissibilidade histórica, como aquilo que não pode se repetir e que as imagens de brutalidade e os números acionados representam emblematicamente. As lutasem questão, portanto, não se prendem aos sujeitos diretamente implicados nos casos particulares. Não se circunscrevem a Pauloou Estevão. Não se preocupam tão-só com Emília, Eliane e Flávia. As lutastentam alcançar aqueles sujeitos que não devem ser vitimados pelas mesmas relações de poder que permitiram as mortes de Emília, Eliane e Flávia.A lutade Terezae do Comitê de Solidariedade Emíliapela punição de Paulo; a lutade Gisele e do grupo de mulheres de Rosáriopela punição de Estevãoe dos demais rapazes: nenhuma dessas lutasse atém à “punição”, todas elas tecem narrativamente a violência como um inadmissível histórico, constroem e ensinam o que deve ser compreendido como “violência”, disputam os seus sentidos e, ao promoverem o pranteamento coletivo da perda, significam as vidas choradas, conferem-lhes relevância pública para que outras vidas – de outras mulheres, de outros trabalhadores, de outros filhos... – não sejam mais perdidas.

Os rituais de pranteamento possuem ainda duas características notáveis. A primeira delas se materializa nas “velas acesas”, a segunda se evidencia na figura das “mães”. Na manhã do dia 12 de fevereiro de 2014, antes de deixar João Pessoa a caminho de Rosário, eu fui informado de que o “ato” que haveria naquela tarde, em razão dos dois anos do episódio do “estupro coletivo” e dos assassinatos de Eliane e Flávia, seria uma “vigília”, uma “caminhada espiritual”, algo parecido com uma “procissão”. Algumas militantes feministas me explicaram que “as mulheres” de Rosárioe dos movimentos que atuavam junto ao caso haviam preferido esse formato “religioso” porque “a cidade” receava os atos públicos mais explicitamente “políticos”, com tons de denúncia. Embora em setembro, alguns meses antes, centenas de mulheres houvessem ocupado a cidade em um ato acerca do “caso Emília”, como contei, agora o “clima” já não permitiria outro protesto como aquele. As pessoas de Rosário, mesmo aquelas que julgavam justa a causa em discussão, temeriam as repercussões desses atos e as possíveis consequências para quem deles participasse. Nessa justificativa para o caráter “religioso” daquela manifestação pública, as densas malhas do terror ofereciam seus sinais de persistência. O medo continuava ali.

Quando, portanto, naquele fim de tarde de fevereiro, eu e algumas estudantes da Faculdade de Direito, ligadas ao Núcleo de Extensão Popular (NEP), chegamos a Rosário, as velas já estavam acesas e Terezacaminhava, junto com outras sindicalistas, em meio à multidão, às orações e aos cantos amplificados pelas caixas de som da Kombi. O rosto de Emíliaestampava sua camisa. Durante a “caminhada”, Giseledizia ao microfone da tristeza provocada pelas mortes de Fláviae Eliane, sua irmã. Falava das trajetórias de vida das duas mulheres, em especial de Eliane, ambas muito jovens, queridas e admiradas na cidade; descrevia seus trabalhos e opções; mas contava repetidamente dos sofrimentos de sua mãe, que até então não se recuperara dos efeitos emocionais da notícia da morte de uma de suas filhas. Nos intervalos das falas de Gisele, as canções religiosas eram entoadas e as orações proferidas. Também eram ditas mensagens contra a violência às mulheres. A caminhada terminou com uma missa na Igreja Matriz de Rosário, diante da qual o corpo de uma das moças havia sido baleado e deixado por Estevão, no começo da manhã seguinte à noite da festa do assalto simulado.

As velas acesas e a estética religiosa a elas associada são traços frequentes das manifestações públicas de movimentos sociais. Em parte, advêm provavelmente dos legados da Teologia da Libertação e do modo como as pastorais e comunidades eclesiais de base da Igreja Católica se implicaram nas lutas sociaise influenciaram a entrada em cena daqueles “novos personagens” de que tratou Eder Sader (1988)Sader, Eder. Quando novos personagens entram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-80. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.em seu trabalho acerca das experiências e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo nas décadas de 1970 e 19808 8 Além do supracitado texto de Eder Sader, os trabalhos de Ana Maria Doimo (1995; 1984) contribuem decisivamente para a discussão, nas ciências sociais, acerca da ascensão dos movimentos sociais brasileiros no pós-70 e ajudam, inclusive, na compreensão da sua relação com setores da Igreja Católica. . Na região de Rosário, mas na Paraíba de forma geral, os sinais dessa influência se mantêm visíveis e se demonstram inclusive na presença de agentes pastorais da CPT na composição do Comitê de Solidariedade Emíliae na participação do Deputado Frei Anastácio no ato das 500 mulheres, em 19 de setembro de 2013. Os legados da Teologia da Libertação, porém, não explicam completamente as velas acesas que eu vi iluminarem as ruas da cidade de Rosário. Elas são uma réplica ao medo, como me foi dito, uma tática de manifestação pública tomada num cenário adverso – o que comunica o seu potencial de aceitabilidade social e legitimação. Protestos ocasionariam temor; velas acesas possibilitariam a fruição do luto público, do pranteamento coletivo e da luta por “justiça” em outros moldes.

De fato, os rituais de pranteamento coletivo da perda, mesmo aqueles que se dão em forma de “protesto”, costumam mobilizar remissões a signos religiosos. O empenho para o testemunho, a rememoração dos mortos, a constituição do seu luto e a exposição da dor e do exemplo (para que não se repita) são todos gestos que remetem a cosmologias e crenças, notadamente cristãs. Essas referências às religiosidades são mais ou menos sutis ou evidentes, mas concernem a uma estética reconhecível por um público maior do que aquele já acostumado aos repertórios dos movimentos sociais e das lutaspor direitos. Intersectada às imagens de brutalidade e à reivindicação narrativa da violência, a “linguagem religiosa” permite a formação e a capilarização de um consenso mínimo, ainda que frágil, em torno de uma determinada pauta, afastando conflitos latentes e dispensando tomadas de posição mais graves. Tal linguagem religiosa funciona como um aglutinador. Ela catalisa a coalisão de diferentes sujeitos e ameniza, ao menos provisoriamente, as suas diferenças e os seus conflitos. Uma “caminhada de vida espiritual” prescinde, por exemplo, de uma adesão explícita a um programa político feminista ou de esquerda. Com isso, abarca um espectro amplo de prováveis participantes, somando todos aqueles a priori solidários a uma família que sofreu uma tragédia – mas, sobretudo, a uma mãe que sofreu uma tragédia – e todos aqueles que se colocam abstratamente contra a “violência”.

Em alguma dimensão, no extremo, essa forma de pranteamento coletivo, atravessada intensamente pela linguagem religiosa, perde em contundência política. Os algozes, as pessoas nubladamente a eles conectadas e os integrantes do Poder Judiciário e do Executivo deixam de ser nomeadamente denunciados e pressionados. Durante uma “vigília” ou uma “procissão”, não se suspendem as orações e os testemunhos para que se possa gritar palavras de ordem às portas do comerciante X ou do juiz Y, ou para enumerar os casos de assassinatos de mulheres na Paraíba, como ocorreu no ato de 19 de setembro de 2013. A anunciação dos nomes, dos números, das denúncias e das palavras de ordem feministas poderia fraturar aquele consenso mínimo e prejudicar a força social promovida pela adesão da população da cidade à causa do julgamento sobre os homicídios de Flávia e Eliane, a filha brutalmente morta de uma mãe publicamente inconsolável. Por outro lado, com essa opção, deixa-se de denunciar a inércia do Magistrado ou do Promotor de Justiça, a morosidade dos serviços públicos, as falhas dos órgãos estatais e dos mecanismos de governo, a ineficácia das políticas públicas etc. Ou seja, a tessitura narrativa da violência como uma “inadmissibilidade histórica” forjada a partir da explicitação das relações sociais – de gênero, de classe, de sexualidade – que possibilitam a existência da violência perde em potência crítica e passa a ceder espaço à “objetividade ilusória” do caso concreto específico, à sua individualização, ou, no máximo, a um discurso de “enfrentamento à violência” baseado em uma noção demasiadamente abstrata de violência, distante dos vínculos com aquelas relações sociais.

Acontece aqui algo aparentemente próximo ao que se dá com o que Patrícia Birman e Márcia Pereira Leite (2004)Leite, Márcia Pereira. As mães em movimento. In: Birman, Patrícia; Leite, Márcia Pereira; (orgs.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz.Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2004, pp.141-190.chamaram de “movimentos cívico-religiosos por justiça e paz”. De acordo com as autoras, nos grandes eventos de defesa da “paz” no Rio de Janeiro, como a campanha do “Basta! Eu Quero Paz”, de julho de 2000, quando “uma oposição generalizada à ‘violência’ parece emergir na cidade” (Birman; Leite, 2004Birman, Patrícia. Movimentos cívico-religiosos no Rio de Janeiro e alguns de seus impasses: o caso do Mural da Dor. In: Birman, Patrícia; Leite, Márcia Pereira (orgs.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2004, pp.221-286.:15), a “paz” exsurge como lócus de convergência geral, aglutinando desde integrantes de movimentos sociais, mães de vítimas de violência policial e grupos de Direitos Humanos até grandes meios de comunicação, agentes de Estado, como os próprios policiais que se apresentam também como “vítimas”, e governantes que comparecem aos eventos como “cidadãos”. Birman e Leite (2004Birman, Patrícia. Movimentos cívico-religiosos no Rio de Janeiro e alguns de seus impasses: o caso do Mural da Dor. In: Birman, Patrícia; Leite, Márcia Pereira (orgs.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2004, pp.221-286.) avaliam, contudo, que nas voltas dessa performance pública de “unidade”, diversos sentidos são atribuíveis ao que se denomina como “violência”, a depender dos projetos de combate à violência em jogo. Esses projetos, que podem ser antagônicos e excludentes, terminam ofuscados pelo lema da paz, em tese universalizante e apreensível por todos. Como Márcia Leite aponta, a viabilidade desse tipo de “manifestação” se deve ao fato de ela

transcorrer sem ser propriamente contra nada, nem ninguém, mas a favor daquilo por que todos os participantes (como também os cariocas e/ou os brasileiros que individualmente compartilhariam sentimentos e valores contrários à violência) ansiariam: a paz (Leite, 2004Leite, Márcia Pereira. As mães em movimento. In: Birman, Patrícia; Leite, Márcia Pereira; (orgs.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz.Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2004, pp.141-190.:153).

Esses “eventos” a que Márcia Leite e Patrícia Birman se dedicaram analiticamente também contam com referências às religiosidades. Mas essas referências se expressam em outros termos. Segundo Birman, no lugar dos marcos políticos da Teologia da Libertação e de suas bandeiras igualitárias, iniciativas como o “Basta!” intencionam uma “unificação moral na cidade, com base na expressão de emoções relacionadas à paz” (2004:232). Valorizar-se-ia uma “união mística” entre diferentes pessoas e grupos sociais, baseada na presunção de certa “espiritualidade”, numa “forma zen” de participação cívica na arena pública. “Buscava-se por intermédio da gestão ritual e midiática das emoções criar uma proximidade entre as pessoas para além de suas diferenças sociais, culturais e políticas” (Birman, 2004Birman, Patrícia. Movimentos cívico-religiosos no Rio de Janeiro e alguns de seus impasses: o caso do Mural da Dor. In: Birman, Patrícia; Leite, Márcia Pereira (orgs.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2004, pp.221-286.:232). Há nesses casos, desse modo, um apagamento dos conflitos sociais, do que decorre a substituição da lutapor “justiça”, cara ao léxico dos movimentos sociais e das esquerdas, pela lutapela “paz”, esta abstração retórica.

Como argumentei, experiências de pranteamento coletivo – e, portanto, de luta– intensamente atravessadas pela linguagem religiosa podem acarretar em perda de contundência política e minorar sua potencialidade crítica, como ocorreu na “caminhada de vida espiritual” que preencheu as ruas de Rosárioem 12 de fevereiro de 2014 e a que eu pude assistir de perto, ou de dentro, com uma vela acesa às mãos. Entretanto, apesar da mencionada perda, a caminhada de Rosárionão se confunde com os eventos analisados por Leite e Birman. O que os distingue está impresso, sobremaneira, na correlação entre a mobilização dos signos religiosos e a disputa política. Influenciadas seja pelos princípios da Teologia da Libertação, seja pela orientação mais orgânica dos movimentos sociais em nome da configuração daquele “consenso mínimo”, seja pelas crenças compartilhadas, experiências como a “caminhada de vida espiritual” de Rosáriovivenciam a linguagem religiosa através da disputa política e a disputa política através da linguagem religiosa. Isto não quer dizer que tal linguagem seja uma simples “ferramenta” à disposição da disputa. Pelo contrário, significa que a disputa política, a tomada de posição e a lutapor “justiça” perfazem essa linguagem religiosa. “Estou disposto a lutar/Estou disposto a alcançar” – dizia a canção transmitida pelas caixas de som na Kombi.

Além disso, essa disputa política, como dito, não se restringe à resolução dos casos individuais ou à punição dos algozes. Ela se dirige à tessitura da inadmissibilidade histórica e conecta Emília, Elianee Fláviaa dezenas de outros casos e às relações sociais que os oportunizam. É por isso que, em Rosário, a “caminhada da vida espiritual” de fevereiro de 2014 só se explica em conexão com o ato das 500 mulheres de setembro de 2013 e com todas as outras ações e mobilizações proporcionadas por aqueles sujeitos em luta. Se a “caminhada espiritual”, compreendida isoladamente, pode representar um arrefecimento em contundência política, potencialidade crítica e capacidade de denúncia, localizada nos meandros das movimentações, ela ganha novos sentidos, exprime força social, capacidade de articulação e de mobilização e, no limite, demonstra cabalmente – ainda que discretamente – ao Juiz de Direito, ao Promotor de Justiça, ao Comerciante, ao Secretário de Segurança Pública etc. que aquelas “mulheres” conseguiram, de novo, trazer centenas de pessoas às ruas de Rosárioe, exercendo o pranteamento coletivo da perda, iluminar uma cidade com velas acesas.

Não me parece pouco. Ainda mais se considerarmos que essas velas acendiam aos dois anos de um episódio como o do “estupro coletivo de Rosário”. Como eu disse, as narrativas das integrantes do Comitê de Solidariedade Emíliase desenlaçam em fricção constante com as finas malhas do terror. Mas essas malhas se adensam substancialmente quando tocam o estupro coletivo. Nele, a sombra da incomensurabilidade é tamanha que toda “objetividade ilusória” claudica perante o inexplicável, o desconhecido, o medo. Quero dizer, com isso, que reunir “500 mulheres” para um protesto acerca do assassinato de Emíliae contra o vaqueiro Paulo– “o monstro” – consiste numa tarefa menos árdua do que reunir essas mesmas mulheres, em Rosário, para abordar os assassinatos de Eliane e Fláviae a punição de Estevão. Um assalto simulado; um “presente de aniversário”; homens distribuindo e violentando mulheres conhecidas nos cômodos de uma casa familiar; ligações suspeitas com o mercado de drogas ilícitas e a propriedade rural: elementos demais, horrores demais, dúvidas demais. Por que elas estavam na casa? Por que foram à festa? Que tipo de relações estabeleciam com “gente assim”? Por que somente duas morreram? Como souberam quem as estuprou? As militantes feministas com quem conversei me disseram que essas perguntas – vorazmente marcadas por convenções de gênero e de sexualidade – circularam por Rosário, ocuparam os murmúrios da cidade e, em razão da necessidade de constituição narrativa e legitimação das vítimas, precisaram ser respondidas. Nessas respostas, a “mãe” insurgia.

De acordo com o que aquelas militantes me relataram do que ouviram sobre o episódio do estupro coletivo, Giselereconheceu, junto à polícia, parte dos homens autores das violências e a própria simulação do assalto. De dentro do quarto onde estava sendo violentada por Afonso, embora houvesse permanecido vendada durante todo o acontecimento, Gisele escutou gritos de Eliane, sua irmã, vindos de outro cômodo da casa. Na sala, Elianechorava, gritava o nome de Estevão, pedia que ele parasse, que não a violentasse, que se lembrasse do quanto ela o havia ajudado, e alegava, recorrendo à figura de sua mãe, “minha mãe não aguenta isso, não”. Esta frase, dita a mim pelas militantes feministas e publicada nas notícias sobre o fato, constaria também nos autos do processo judicial que levaria à punição de Estevãopelos homicídios de Elianee Flávia, as duas mulheres que o haveriam reconhecido durante o estupro porque as vendas, inicialmente colocadas em seus olhos pelos supostos assaltantes, teriam caído9 9 Os dois processos judiciais relativos aos estupros e aos homicídios correram em segredo de justiça e, por isso, eu não tive acesso a eles. As informações que trago ao texto vieram, como afirmado, do que me foi falado pelas militantes feministas com quem conversei sobre o assunto e que acompanharam, em razão de sua militância, os desdobramentos do “caso”. A maior parte dessas informações, contudo, foi também divulgada por veículos de comunicação paraibanos e nacionais. . Em suma, segundo essas narrativas sobre o “fato”, a “mãe” foi vocalizada no instante extremo da violência. Sua figura seria também acionada nas lembranças de Giseleacerca daquela noite, nos autos do processo judicial, nas matérias jornalísticas, nas falas das militantes feministas com quem conversei e, enfim, ao microfone da Kombi da “caminhada da vida espiritual”. A “mãe” posta discursivamente contra Estevão, para impedir a violência, chega inconsolável aos meus olhos e ouvidos de muitas maneiras.

Afirmei anteriormente que a linguagem religiosa funciona como um “aglutinador” porque ela garante uma coalisão ampla, apesar de frágil e temporária, de sujeitos a priori dessemelhantes. Agora ressalto que a reivindicação da imagem da “mãe” opera nesse mesmo sentido. Não me parece acidental a repetição de sua invocação em distintos corpos narrativos – falas de militantes, autos de processos judiciais, matérias jornalísticas etc. O “fato” de Elianehaver pronunciado aquela frase, o “fato” de Gisele a ter ouvido e o “fato”, enfim, de a própria Giselea tecer narrativamente em suas reconstituições sobre o que aconteceu naquela noite não conduziriam automaticamente a frase às linhas de páginas de processos ou de jornais. Relações de poder atuam para a convergência em torno da frase, de sua aceitabilidade inclusive, na conformação da versão pública ou “oficial” sobre o que se deu na festa de aniversário. Penso que a capilaridade de citação da frase “minha mãe não aguenta isso, não” simboliza a relevância conferida à figura da “mãe”. Há na palavra “mãe”, na imagem, uma força, um vigor persuasivo.

Por um lado, essa relevância deriva, como Márcia Leite (2004)Leite, Márcia Pereira. As mães em movimento. In: Birman, Patrícia; Leite, Márcia Pereira; (orgs.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz.Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2004, pp.141-190.percebeu, da proeminência dos signos cristãos e, claro, da alusão à personagem de Maria, mãe de Jesus. Deriva, mutuamente, também, da gravidade da “mãe” para as convenções morais e de gênero e, logo, para as altercações em torno da “vítima”, algo que as contribuições analíticas de Adriana Vianna (2014)Vianna, Adriana. Violência, Estado e gênero: entre corpos e corpus entrecruzados. In: Souza Lima, Antônio Carlos de.; Garcia-Acosta, Virgia (orgs.). Margens da violência: subsídios ao estudo do problema da violência nos contextos mexicano e brasileiro. Brasília, ABA, 2014, pp.209-237.me ajudaram a discernir. O vocábulo “mãe”, se avivado em ambientes narrativos nos quais os “fatos” restam sob disputa e estruturação, faz-se uma “palavra-ato”, como a compreendeu Vianna (2014)Vianna, Adriana. Violência, Estado e gênero: entre corpos e corpus entrecruzados. In: Souza Lima, Antônio Carlos de.; Garcia-Acosta, Virgia (orgs.). Margens da violência: subsídios ao estudo do problema da violência nos contextos mexicano e brasileiro. Brasília, ABA, 2014, pp.209-237.: sua ativação enseja uma “empatia” capaz de superar diferenças e reunir sujeitos, assim como compõe mapas morais que auxiliam na demarcação de aliados e oponentes em determinados conflitos. Como notei, os esforços de Terezapara arrastar Emíliapara casa e, portanto, para perto de si, sintomatizam a gravidade da “mãe” para a legitimação da filha na condição de vítima da violência denunciada e combatida. A reivindicação da violência, das imagens de brutalidade, e a reivindicação da mãe agem como siameses narrativos nos processos de constituição da vítima. Como objetar a posição de “vítima” da pessoa que, conforme as narrativas acerca do “caso”, convoca a “mãe” – aquela que “aguenta” muito, mas “isso, não” – no átimo-limite da violência?

Na frase ouvida e rememorada por Giselee registrada e tecida insistentemente por outros sujeitos, o verbo “aguentar” consubstancia o sujeito “mãe”. Em pressuposto, a “mãe” é aquela que “aguenta”, ou seja, a mãe é aquela acostumada ao sofrimento, à dor.10 10 Minha percepção desse “corpo que aguenta” deriva da noção, de que se vale Bruna Mantese de Souza (2015), de “corpo elástico”, o corpo das “mulheres de fibra” que suporta dor e violência. A menção ao verbo “aguentar” sugere, conseguintemente, que a relação da mãe com tudo o que carece de ser “aguentado” é comum, frequente, ordinária; o extraordinário e o excessivo, aquilo que a figura trazida à cena não “aguentaria”, encontrar-se-iam na violência sexual imposta a Eliane. O vigor persuasivo da “mãe”, sendo assim, sua potencialidade de aglutinação em torno de um “caso” ou de uma “causa”, ata-se à contextura narrativa da disposição ontológica da “mãe” para a dor, uma dor que se torna insuportável na inadmissibilidade da violência inscrita no corpo da filha. Há, aqui, dessa forma, uma passagem da dor rotineira para uma dor exorbitante, para o espaço do profundo inconsolável da “dor da mãe” pelo filho, pela filha ou, no fim das contas, por sua perda. Esse “sofrimento da mãe” consiste, segundo Adriana Vianna (2014)Vianna, Adriana. Violência, Estado e gênero: entre corpos e corpus entrecruzados. In: Souza Lima, Antônio Carlos de.; Garcia-Acosta, Virgia (orgs.). Margens da violência: subsídios ao estudo do problema da violência nos contextos mexicano e brasileiro. Brasília, ABA, 2014, pp.209-237., na imagem de um sofrimento distinto e superior a qualquer outro, de um sofrimento-prova do elo inquebrantável entra a “mãe” e a filha perdida.

Tal inseparabilidade entre “mãe” e “filha”, assinalada pelo “sofrimento da mãe”, integrava a fala pública de Giseledurante a “caminhada da vida espiritual” de 12 de fevereiro de 2014. Sua dedicação à descrição de Elianecomo uma pessoa querida e admirada em Rosáriovinha intimamente ligada à lembrança de sua mãe, mas sobremaneira à referência ao sofrimento insuperável vivenciado pela senhora que, por causa do sofrimento e de seus efeitos, não conseguiu comparecer à caminhada – algo que, dada a agudeza da dor narrada, parecia compreensível a todos. De dentro da Kombi, Giselecontava, às centenas de pessoas com velas nas mãos, quem era Elianee quão “injusta” havia sido a violência praticada contra ela e Flávia. Com isso, Giselereforçava a inteligibilidade de sua irmã na condição de “vítima”. Nesse reforço, porém, ela não agia sozinha. Através das caixas de som, Giseletrazia a “mãe” (e a dor) novamente à cena, num gesto que anunciava a relevância da “mãe” (e da dor) para a caracterização da inteligibilidade da vítima. Na caminhada, como nas narrativas analisadas por Vianna (2014)Vianna, Adriana. Violência, Estado e gênero: entre corpos e corpus entrecruzados. In: Souza Lima, Antônio Carlos de.; Garcia-Acosta, Virgia (orgs.). Margens da violência: subsídios ao estudo do problema da violência nos contextos mexicano e brasileiro. Brasília, ABA, 2014, pp.209-237., a “dor da mãe” se fazia recíproca à produção de uma “carreira moral” para a filha. De forma homóloga aos movimentos narrativos de Tereza, Giseleproporcionava que sua mãe – mesmo fisicamente ausente, e por isso mesmo – trouxesse Elianepara perto de si.

A “mãe”, entretanto, não funciona somente como uma figura mencionável nos processos de pranteamento coletivo da perda e disputa acerca da legitimidade da vítima. Há ocasiões e contextos em que a figura da “mãe” assume o pranteamento. Isso pode acontecer mais diretamente, quando as próprias mães performatizam a figura “mãe”, ou mais mediatamente, quando um grupo de sujeitos implicados nos rituais de pranteamento coletivo e nas lutaspor “justiça” ou por direitos performatiza a “mãe” e a “maternagem”. O primeiro caso concerne, claro, às lutastravadas por Tereza. O segundo caso pertence, por exemplo, ao Comitê de Solidariedade Emília. De acordo com o que venho argumentando neste artigo, mas, antes de mim, como vêm indicando os trabalhos de Márcia Leite (2013), Fábio Araújo (2007)Araújo, Fábio Alves. Do luto à luta: a experiência das mães de Acari.Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia), IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 2007., Paula Lacerda (2012Lacerda, Paula Mendes. O “caso dos meninos emasculados de Altamira”: polícia, justiça e movimento social. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Museu Nacional / UFRJ, Rio de Janeiro, 2012.; 2014Lacerda, Paula Mendes.O sofrer, o narrar e o agir: dimensões da mobilização social de familiares de vítimas. Horizontes Antropológicos, vol. 20, Porto Alegre, 2014, pp.45-76.), Adriana Vianna (2014)Vianna, Adriana. Violência, Estado e gênero: entre corpos e corpus entrecruzados. In: Souza Lima, Antônio Carlos de.; Garcia-Acosta, Virgia (orgs.). Margens da violência: subsídios ao estudo do problema da violência nos contextos mexicano e brasileiro. Brasília, ABA, 2014, pp.209-237.e Adriana Vianna e Juliana Farias (2011)Vianna, Adriana; Farias, Juliana. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. cadernos pagu(37), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp 2011, pp.79-116., as experiências de lutase centram, muitas vezes, na persona da “mãe”, aquela de quem se pressupõe a encarnação de uma dor universalmente apreensível e inteligível, a dor da perda de um filho. Essa “mãe”, todavia, supera em muito a figura central de Tereza, aquela a quem o secretário de segurança se vê na condição de pedir desculpas. Embora a “mãe” não represente, como visto, uma autoridade moral inquestionável, as definições de gênero que distinguiriam a maternidade se alargam sobre outros sujeitos, como acontece com o comitêe suas integrantes, as quais, mães ou não, são relativamente autorizadas a mobilizar “narrativas maternais” e a “agir maternalmente”.

As integrantes do Comitê de Solidariedade Emíliavão a delegacias e audiências, confrontam autoridades estatais, substituem as funções policiais investigando hipóteses e indícios de crimes, fazem o possível e o impossível por “uma filha”, o que, a despeito dos procedimentos e formalidades oficiais, de regra se espera de uma “mãe”. Mais do que isso, elas chegam a assumir coletivamente a “maternidade” da filha de Tereza. “Emíliaera uma militante do polo (sindical), do nosso movimento. Ela era uma militante da juventude. Na marcha de Felicidade11 11 Felicidadeé o nome fictício para uma das cidades componentes do polo sindical de trabalhadores rurais a que o Sindicato de Rosáriopertence. Como comentei ainda no começo deste artigo, o polo possui um grupo de trabalho de mulheres – aquele a cuja reunião Terezanão pode ir por causa do desaparecimento de Emília. Esse grupo de trabalho organiza “marchas” a cada 8 de março, revezando os locais ano a ano. A “marcha de Felicidade” foi uma dessas marchas, da qual Emíliaparticipou. , ela foi animadora de ônibus”, contou-me Mariana. “Quando ela desapareceu, ela deixou de ser filha da Terezapara ser filha do polo”. A assunção do lugar da “mãe”, além de conotar sentimentos de proximidade e afetuosidade em relação a Emília, oferece a essas militantes um campo de ação marcado pela “maternagem”, ou seja, pela possibilidade de “ir além”, de transpor barreiras, inclusive as legais, em defesa de sua “filha”, assim como permite experimentar esteticamente o luto público, exercer ainda mais legitimamente o pranteamento coletivo da perda e, enfim, a luta.

No seu “A guerra das mães”, Adriana Vianna e Juliana Farias (2011)Vianna, Adriana; Farias, Juliana. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. cadernos pagu(37), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp 2011, pp.79-116.relatam um episódio de seu trabalho de campo esclarecedor da capacidade de alargamento da imagem da “mãe” a outros sujeitos, mães de vítimas ou não, mães ou não. Durante uma sessão do júri a que assistiam, a respeito de um assassinato de que um policial militar era acusado, viram-se ser, elas mesmas – sentadas do lado da plateia ocupado pela mãe do rapaz assassinado, por sua família e pelos “familiares de vítimas” – designadas pelo promotor de justiça como parte das “mães” que “pediam justiça” naquele caso.

Podíamos ser tornados “essas mães” porque ali compartilhávamos e performávamos um modo específico de habitar o espaço público e de “pedir justiça”, ancorado na força do laço representado como o mais vital e inquestionável culturalmente e em uma estética específica de sofrimento (Vianna; Farias, 2011Vianna, Adriana; Farias, Juliana. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. cadernos pagu(37), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp 2011, pp.79-116.:105-106).

Essa possibilidade de “ser mãe” indica, portanto, performatividade. Trata-se de uma performatividade de gênero, sim, mas especialmente de uma forma própria de empreender a lutapor meio dos sinais do “sofrimento”, exatamente do que venho denominando como “pranteamento coletivo da perda”.

O pranteamento coletivo da perda, exercido publicamente por Terezaou pelo Comitê de Solidariedade Emília, é radicalmente assinalado pela “mãe”, por sua performatividade, pelo o que isso exprime em competência para a gestão e a rememoração dos mortos e da dor, para o exercício político de exposição da lágrima, para a legitimidade da reivindicação narrativa da violência. Nos conflitos de que tomam parte (ou de que são feitos parte), os sujeitos políticos de que venho tratando neste texto – sejam eles as mães, o comitêou os movimentos sociais – movimentam-se por estratégias, mais ou menos (in)conscientes, que podem ser chamadas de “maternagem da ação política”. Para que essa “maternagem” se desdobre sequer é necessário que a mãe se faça pessoalmente presente, como não se fez na “caminhada da vida espiritual” de Rosário. Em realidade, sequer é preciso que haja uma mãe a ser referida. Apenas a “mãe” carece de ser presentificada. As convenções, sobretudo de gênero, que conformam a ideia de “mãe”, da personagem que encarna o trabalho de cuidado que pode ser levado ao extremo, principalmente se os sinais do sofrimento intraduzível e incomparável estiverem suficientemente à vista, são o que deve ser estetizado e experienciado em público.

Nesse processo de maternagem da ação política, os sujeitos se mobilizam entre a reafirmação de convenções de gênero e a disrupção dessas mesmas convenções. O recurso à “mãe” (e à dor) se vale de noções de “mulher” e “maternidade” calcadas nessas convenções e, sendo assim, remetem a moralidades e práticas sociais historicamente envolvidas em formas de subalternização. Como notou Fábio Araújo a respeito das movimentações das “mães de Acari”, essas noções de “mulher” e “maternidade”, formadas a partir da suposição de um “determinismo biológico que está embutido na construção da maternidade como um fim natural da mulher” (Araújo, 2007Araújo, Fábio Alves. Do luto à luta: a experiência das mães de Acari.Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia), IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 2007.:51), estão entre os alvos originários das críticas feministas. Porém, como o próprio autor percebe, tais noções são, também, o ponto de partida para a ação daquelas mães. Dá-se que os sujeitos e suas astúcias ironizam as estruturas sociais e as relações de poder que os constrangem. Em resumo, com as estruturas ou a partir das estruturas sociais, os sujeitos fazem o possível – e, se performatizam a “mãe”, arriscam-se igualmente ao impossível, como a uma “mãe” é esperado fazer. As experiências de maternagem da ação política não reproduzem formas de dominação. Pelo contrário, elas abrem um campo de ação, estetizado pela “mãe” e pelo sofrimento, que se opõe manifestamente a qualquer conjectura de “passividade”. O trabalho de cuidado é lutapolítica.

Além disso, o alargamento da “mãe”, sua expansão para outros sujeitos, desnaturaliza a mãe e a maternidade, exibindo as normas e suas fragilidades, tudo aquilo que seria “essencial” e “natural” às mães, mas que os rituais de pranteamento coletivo trafegam, retorcem e permitem que seja encarnado por aqueles outros sujeitos. A maternagem da ação política denuncia os esforços de performatividade para a constituição de toda “mãe”. Faz mais: denuncia as engrenagens fundamentais das arenas de Estado em que os conflitos sociais se desenlaçam, como a ideia de separação entre público e privado. É que as “mães” – de acordo com o que Adriana Vianna e Juliana Farias (2011Vianna, Adriana; Farias, Juliana. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. cadernos pagu(37), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp 2011, pp.79-116.:94) compreenderam –,

ao falarem em nome de uma ordem doméstica que foi desfeita brutalmente pelo assassinato dos filhos, elas (e eles, no caso de demais familiares) trazem o feminino não em seus corpos individuais, mas como marca de significação das relações que se romperam, bem como da violência ilegítima que as destruiu.

Segundo Vianna e Farias (2011)Vianna, Adriana; Farias, Juliana. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. cadernos pagu(37), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp 2011, pp.79-116., esse cenário possibilita que as “mães” levem a “casa”, o doméstico, para a cena de protesto, o que, acredito, anuncia a desnaturalização das fronteiras entre público e privado e, assim, novamente, denuncia os esforços de performatização dessas fronteiras e separações forjadas em relações de gênero (reciprocamente de classe, racialização, sexualidade, territorialização etc.).

A ratificação das convenções em torno da “mãe” não abrange, porém, todo o plexo de situações em que as atualizações das convenções de gênero e de sexualidade se realizam. De início, essas atualizações aparentam se dar perversamente contra os sujeitos que não correspondem àquelas convenções, tais quais filhas ou mães não aproximáveis da modelagem moral – uma disputa, como argumentei – da “vítima”. Buscar trazer Emíliapara dentro de casa, para perto da família e da mãe, implica, como dito, em conferir importância aos valores que circundam essas noções “feminilizantes” ou “familiarizantes”. Implica também, é inescapável, na transferência da esfera da ilegitimidade a outros sujeitos, ou seja, àqueles que não se adequam aos mencionados valores. Trata-se, portanto, da reincidência na criação de “exteriores constitutivos”. Interessa, porém, o fato de que, não raro, esses exteriores são tramados a partir daquilo que Maria Filomena Gregori (2016Gregori, Maria Filomena. Prazeres perigosos: erotismo, gênero e limites da sexualidade. São Paulo, Companhia das Letras, 2016.; 2014Gregori, Maria Filomena. Práticas eróticas e limites da sexualidade: contribuições de estudos recentes. cadernos pagu(42), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2014, pp.47-74.; 2008Gregori, Maria Filomena. Limites da sexualidade: violência, gênero e erotismo. Revista de Antropologia da USP, vol. 51 (2). São Paulo, 2008, pp.575-606.) designou, em diálogo com contribuições anteriores como as de Gayle Rubin (1998)Rubin, Gayle. Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. In: Nardi, Peter. M; Schneider, Beth. E. (ed.). Social perspectives in lesbian and gay studies: a reader. New York, Routledge, 1998, pp.100-133.e Carole Vance (1992Vance, Carole. Pleasure and danger: toward a politics of sexuality. In: Vance, Carole. (ed.). Pleasure and danger: exploring female sexuality. London, Pandora Press, 1992 [1984], pp. 01 – 27.[1984]), como sendo “os limites da sexualidade”, um espaço fronteiriço no qual residem norma e transgressão, consentimento e abuso, prazer e dor, a tensa relação entre prazer e perigo.

De acordo com Gregori (2008Gregori, Maria Filomena. Limites da sexualidade: violência, gênero e erotismo. Revista de Antropologia da USP, vol. 51 (2). São Paulo, 2008, pp.575-606.:576), tais limites

indicam, de fato, um processo social bastante complexo relativo à ampliação ou à restrição de normatividades sexuais, em particular, sobre a criação de âmbitos de maior tolerância e os novos limites que vão sendo impostos, bem como situações em que aquilo que é considerado abusivo passa a ser qualificado como normal.

Nessa formulação, os limites da sexualidade operam por meio de deslocamentos entre velhos e novos “problemas” baseados na sexualidade, do que decorre que o enfrentamento a algum desses limites acaba se relacionando à emergência de “novas ansiedades” acerca do que é ou não é aceitável, recriando essas noções, ainda que em outros pontos da fronteira, e aludindo a “pânicos sexuais”. Em suma, o conflito sobre a manutenção ou a superação de determinado limite produz a oportunidade para o surgimento de novos limites e formas de regulação.

Nas narrativas das integrantes do Comitê de Solidariedade Emíliae nas contendas a que estão vinculadas, a prostituição, por exemplo, emerge como objeto de tensão. Lá, entretanto, a impressão inicial de que as meninas ou mulheres que não se enquadram nos investimentos morais dedicados a Emíliaseriam ilegitimáveis enquanto “vítimas” – porque não voltariam para casa ou porque fugiriam com o namorado – é habilidosamente desfeita pelas militantes. As vítimas que, nos conflitos por sua legitimação, são afastadas dos padrões de moralidade e das convenções de gênero e de sexualidade sofrem de novos investimentos para a caracterização da “vítima”. É assim, portanto, que prostitutas são narrativamente compreendidas como “vítimas” vulneráveis de um contexto social de desigualdades e que o “tráfico de pessoas” exsurge como uma chave de inteligibilidade para a compreensão dos frequentes “desaparecimentos” de adolescentes e jovens, sobretudo do gênero feminino – cisgêneros, travestisou transexuais–, mas igualmente de rapazes homossexuais.

Ocorre que as afirmações do delegado e do secretário de segurança a respeito de uma “fuga com o namorado”, embora demonstrem indisponibilidades de Estado na resolução de conflitos que envolvam determinados sujeitos, como mães e filhas da classe trabalhadora, possuem algum lastro nas experiências que constituem o território de Rosário. “Tem uma coisa que é interessante e ninguém olhou, assim, não tem um olhar ainda sobre isso em Rosário: por que meninas, muitas meninas em Rosárioconhecem rapazes de fora, de repente esse rapaz oferece casa, comida e roupa lavada, casam-se e vão embora?”. Segundo Francisca, a migração dessas meninasé bastante frequente e se explicaria pela aceleração econômica de Rosário, uma cidade de “fronteira”, próxima a Pernambuco, pela qual nos últimos anos de neodesenvolvimentismo circulou mais dinheiro e, sendo assim, mais prostituição, tráfico de pessoas e de drogas ilícitas. “A gente tem fronteira, tráfico, grana, prostituição. Se a gente juntar esses quatro elementos com uma sociedade extremamente machista... Aí a gente vai ter um mundo de situações de violência”. Esse “mundo”, enfim, levou as integrantes do comitêa, nos entremeios dos 45 dias de busca por Emília, acreditar na possibilidade de ocorrência do crime de tráfico de pessoas.

Os trabalhos de José Miguel Nieto Olivar (2013)Olivar, José Miguel Nieto. Devir puta: políticas da prostituição de rua na experiência de quatro mulheres militantes. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2013., de Adriana Piscitelli (2013Piscitelli, Adriana. Trânsitos: brasileiras nos mercados transnacionais do sexo. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2013; 2008Piscitelli, Adriana. Entre as “máfias” e a “ajuda”: a construção de conhecimento sobre tráfico de pessoas. cadernos pagu(31), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2008, pp.29-63.) e de Thadeus Blanchette e Ana Paula da Silva (2011)Blanchette, Thadeus Gregory; Silva, Ana Paula da. O mito de Maria, uma traficada exemplar: confrontando leituras mitológicas do tráfico com as experiências de migrantes brasileiros, trabalhadores do sexo. Revista Interdisciplinar de Mobilidade Humana, no37, Brasília, 2011, pp.79-105.oferecem análises relevantes a respeito de como narrativas políticas, morais, legais e, inclusive, feministas acerca da prostituição e do tráfico de pessoas compõem exercícios de controle de gênero sobre trânsitos, mulheres, populações e territórios. Piscitelli descreve, por exemplo, que na interpretação de suas interlocutoras, “trabalhadoras do sexo” na Espanha, as ações de combate ao tráfico não objetivariam eliminar o que seria o “tráfico de pessoas”, mas procurariam, na realidade, controlar as mulheres, a atividade da prostituição e a migração. Isto de tal maneira que elas – a priori, as “vítimas do tráfico” – temiam as ações que proclamariam “protegê-las”, mas que acabariam por criminalizá-las. Resta em questão aí, portanto, o contraste entre a determinação da “vítima” – pelas instâncias de Estado, mas não apenas – e as discordâncias dessas hipotéticas “vítimas” sobre a sua própria condição e sobre o escopo das políticas que apregoam a sua “proteção”.

De acordo com Adriana Piscitelli e Laura Lowenkron (2015)Piscitelli, Adriana; Lowenkron, Laura. Categorias em movimento: a gestão de vítimas do tráfico de pessoas na Espanha e no Brasil. Ciência e Cultura, vol. 67, no2, São Paulo, 2015, pp.35-39., o referido contraste é indicativo de uma resistência ao poder tutelar do Estado, a modos de intervenção que retratam certas pessoas como “vítimas passivas” do que seria o “crime organizado internacional” e, de regra, submetem migrantes ao medo e a medidas indesejadas, como a deportação. Tal qual Laura Lowenkron (2015)Lowenkron, Laura. Consentimento e vulnerabilidade: alguns cruzamentos entre o abuso sexual infantil e o tráfico de pessoas para fim de exploração sexual. cadernos pagu(45), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2015, pp.225-258.bem percebeu, no eixo desse debate acerca do tráfico de pessoas, encontra-se a altercação em torno dos conceitos de “consentimento” e “vulnerabilidade”. Nas políticas de combate ao tráfico de pessoas – compreendido normativamente como uma atividade vinculada ao “trabalho sexual”, à “prostituição” ou à “exploração sexual”, a depender dos arranjos legais nacionais e de quem se valha dos termos –, a capacidade de consentir perde todo o espaço para uma implacável noção de vulnerabilidade.

É seguindo esse mesmo movimento, de negação da agência para o consentimento e de deslocamento para a preocupação com a vulnerabilidade, que Franciscame põe a questão do “por que meninas, muitas meninas em Rosárioconhecem rapazes de fora, de repente esse rapaz oferece casa, comida e roupa lavada, casam-se e vão embora?”. Esta pergunta levantada por Franciscaserviria narrativamente para que ela me explicasse a realidade de Rosárioe dos motivos pelos quais aquela região seria propícia para o “tráfico de pessoas”. A migração dessas meninas ocorreria não em razão do seu “querer” ou do seu “desejo”, ou seja, do seu consentimento, mas por causa de um contexto social de vulnerabilidade que acarretaria o casamento com os “rapazes de fora” e, em consequência, a migração. Tal “vulnerabilidade”, todavia, não pressupõe necessariamente situações máximas de pobreza ou miserabilidade. Francisca, pelo contrário, fala de um cenário de aceleração econômica, de maior circulação de dinheiro e de crescimento de mercados transitórios entre práticas legais e ilegais, como o mercado varejista de drogas ilícitas e o mercado da prostituição. Esse cenário de “desenvolvimento” oportunizaria o “mundo de situações de violência” que Franciscalocaliza na raiz da “vulnerabilidade”.

As narrativas de Franciscapartilham, assim, daquilo que Sérgio Carrara (2016Carrara, Sérgio. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana, vol. 21, no02, Rio de Janeiro, 2015, pp.323-345.; 2015Carrara, Sérgio. A antropologia e o processo de cidadanização da homossexualidade no Brasil. cadernos pagu(47), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, e164717 2016.) e Laura Lowenkron (2015)Lowenkron, Laura. Consentimento e vulnerabilidade: alguns cruzamentos entre o abuso sexual infantil e o tráfico de pessoas para fim de exploração sexual. cadernos pagu(45), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2015, pp.225-258.chamaram, respectivamente, de “linguagem dos direitos humanos” e “linguagem da violência e dos direitos”. Essas espécies de linguagem constituíram, hoje, segundo Carrara (2015)Carrara, Sérgio. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana, vol. 21, no02, Rio de Janeiro, 2015, pp.323-345., um emblema da aparição histórica de um “novo” regime secular da sexualidade, seguido por uma forma característica de regulação moral. Já segundo Lowenkron (2015Lowenkron, Laura. Consentimento e vulnerabilidade: alguns cruzamentos entre o abuso sexual infantil e o tráfico de pessoas para fim de exploração sexual. cadernos pagu(45), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2015, pp.225-258.:226), elas constituiriam atualmente “o regime discursivo hegemônico para a regulação jurídica da sexualidade no contexto político internacional e dos regimes democráticos ocidentais (ou ocidentalizados)”12 12 Segundo Laura Lowenkron (2015)argumenta, a hegemonia da “linguagem da violência e dos direitos” sobre os atuais modos de regulação da sexualidade não impede que outras formas de regulação e compreensão da sexualidade existam ou atuem nas disputas políticas, como acontece, por exemplo, com as moralidades religiosas. . Na reivindicação da violência e nas lutaspor direitos arregimentadas nos argumentos de Francisca, o investimento para a caracterização de Emíliacomo uma vítima não impossibilita que aquelas outras meninas– que por ventura “fujam com os namorados” – sejam também caracterizadas como “vítimas”. Isso porque tanto Emíliaquanto essas outras meninas, não enquadráveis tão obviamente nas convenções morais acionadas para legitimar Emília, são tidas como absolutamente vulneráveis à “violência”. São “vítimas”, portanto, ainda que elas mesmas escolham partir.

A assunção da “violência” nesses moldes supõe a presença da violência como uma abstração estrutural. Ela sequer precisa ser demonstrada ou que sua “inadmissibilidade histórica” seja constituída em meio aos rituais de pranteamento coletivo, por exemplo. Para Francisca, mas não somente para ela, a violência se faz estruturalmente (ou conceitualmente) pressuposta. Dá-se, dessa forma, algo parecido com o que acontece com as posições “abolicionistas” acerca da prostituição. Se a “violência” é presumida, a “vulnerabilidade” decorrente dela é analogamente suposta, ou, nas palavras de Laura Lowenkron (2015)Lowenkron, Laura. Consentimento e vulnerabilidade: alguns cruzamentos entre o abuso sexual infantil e o tráfico de pessoas para fim de exploração sexual. cadernos pagu(45), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2015, pp.225-258., assume um sentido “fantasmático”,

comparecendo menos como uma situação de desvantagem social que limita o acesso a certos bens materiais e simbólicos e, com isso, a possibilidade de escolha, do que como uma exigência moral de corresponder a um ideal de vítima (Lowenkron, 2015Lowenkron, Laura. Consentimento e vulnerabilidade: alguns cruzamentos entre o abuso sexual infantil e o tráfico de pessoas para fim de exploração sexual. cadernos pagu(45), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2015, pp.225-258.:251).

No fundo das conjecturas “abolicionistas” ou das citadas narrativas sobre o “tráfico de pessoas”, a “prostituição” e, inevitavelmente, o “sexo” reaparecem como o limite a partir do qual a vítima ou o sujeito se fazem impassíveis de legitimação – a não ser que a “violência” e a “vulnerabilidade” justifiquem o contexto e, por isso, legitimem as “vítimas”.

O revés dessa espécie de investimento argumentativo de construção da vítima, contudo, acha-se naquilo que Maria Filomena Gregori (1993)Gregori, Maria Filomena. Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. Rio de Janeiro, Paz e Terra; São Paulo, ANPOCS, 1993.denominou de “vitimismo”, a produção da imagem de uma vítima excessivamente vítima, incapaz de ação ou decisão, essencialmente passiva, absolutamente assujeitada. Essa imagem estendida a Emíliae às outras meninas– que também poderiam ser “mulheres”, mas quase sempre são “meninas” em razão dos esforços geracionais de tessitura da “vítima” e de sua incapacidade para o consentimento – nega o sujeito. A presunção positiva de uma violência estrutural é coetânea à presunção negativa de um sujeito inerte, estruturalmente inviável, inexistente. Essas formas de compreensão reforçam convenções de gênero e de sexualidade ao tempo em que ignoram que os trânsitos de jovens mulheres, para o trabalho na prostituição ou não, para o casamento ou não, consiste em estratégias de ação tomadas, como sempre, a partir de contextos sociais e relações de poder que tanto constrangem quanto oportunizam ação. Não fosse assim, Tereza, Mariana, Franciscae as demais integrantes do comitê de solidariedadenada poderiam ou conseguiriam fazer a respeito do desaparecimento de Emíliae de quaisquer das lutasde que participam. O mesmo contexto de “vulnerabilidade” e “violência” que levou às mortes de Emília, Fláviae Eliane– nada abstratas, profundamente sob disputas – foi tomado como ponto de partida e objeto de conflito, cenário concomitante de terror e de velas acesas, para a realização da lutae da conjugação de todos os verbos a que eu pude assistir nas palavras das militantes e numa cidade vastamente iluminada por centenas de pequenas velas postas em copos de plástico.

Não pretendo, com isso, recusar ou aceitar a hipótese de existência do crime de tráfico de pessoas na região de Rosário. O material colhido durante o trabalho de campo desta pesquisa não permite considerações sobre os “atos” do tráfico de pessoas. Além disso, se ponho em xeque a pressuposição estruturalista de uma violência abstraída das relações sociais e das experiências de sujeição e formação de sujeitos, tampouco intenciono reafirmar o ideário liberal fincado no paradigma de uma “autonomia” novamente suposta e abstrata. Em sentido inverso, e seguindo as pistas deixadas por Júlio Assis Simões (2016)Simões, Júlio Assis. O Brasil é um paraíso sexual – para quem? cadernos pagu(47), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2016, e164715.ao se deparar com um problema semelhante em torno de imagens relativas a embates políticos urdidos em gênero e sexualidade, procuro notar que “essas imagens produzem tanto quanto disfarçam”. “É da tensão constante e produtiva desses ideais contraditórios que busco tratar: não como simulacros, mas como narrativas que têm eficácia na constituição de modos sociais de entender e sentir gênero e sexualidade, prazeres e perigos” (Simões, 2016Simões, Júlio Assis. O Brasil é um paraíso sexual – para quem? cadernos pagu(47), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2016, e164715.). Por isso, durante todo este texto, tentei valorizar analiticamente essa tensão e explorar suas potencialidades nas narrativas sobre violência e nas lutaspor direitos ou “justiça”.

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  • 1
    Neste artigo, adoto o itálico para expressões êmicas, colhidas em meio ao trabalho de campo, e para nomes próprios ficcionais, que protegem as identidades dos interlocutores desta pesquisa. Além disso, são indicadas por aspas expressões êmicas mais longas, as citações às falas dos interlocutores e às referências bibliográficas interiores aos parágrafos, as classificações aproximativas por mim mesmo desempenhadas e palavras e expressões que requerem destaques especiais ou rasuras em momentos pontuais do texto.
  • 2
    Rosárioé uma pequena cidade localizada nas proximidades de Campina Grande e, segundo o censo do IBGE de 2013, possui pouco mais de 42 mil habitantes.
  • 3
    Influenciado pelas análises de autores como Anne McClintock (2010)Mcclintock, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas, Editora da Unicamp, 2010 [Trad. Plínio Dentzien].e Néstor Perlongher (2008)Perlongher, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2008., tenho me valido do conceito de “reciprocidades constitutivas” (Efrem Filho, 2017Efrem Filho, Roberto. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2017.) para compreender os modos pelos quais relações sociais de poder, como de classe, território, gênero, sexualidade, geração, racialização etc., fazem-se umas através das outras nas experiências dos sujeitos e nos conflitos sociais. Com isso, permito-me, como fez Isadora Lins França (2012)França, Isadora Lins. Consumindo lugares, consumindo nos lugares: homossexualidade, consumo e subjetividades na cidade de São Paulo. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2012., tratar gênero e sexualidade também como linguagens que oportunizam a compreensão de outros conflitos.
  • 4
    Na obra de origem da referência: “La aprehensión de la capacidad de ser llorada precede y hace posible la aprehensión de la vida precaria. Dicha capacidad precede y hace posible la aprehensión del ser vivo en cuanto vivo, expuesto a la no-vida desde el principio” (Butler, 2010aButler, Judith. Marcos de guerra: las vidas lloradas. Buenos Aires, Paidós, 2010a.:33).
  • 5
    Na mesma obra: “La ‘aprehensión’, por su parte, es un término menos preciso, ya que puede correto? implicar el marcar, registrar o reconocer sin pleno reconocimiento” (Butler, 2010aButler, Judith. Marcos de guerra: las vidas lloradas. Buenos Aires, Paidós, 2010a.:18).
  • 6
    Os versos acima transcritos pertencem à música “Eis-me aqui”, conhecida na voz da cantora gospel Arianne.
  • 7
    Este meu movimento analítico de diferenciação entre “violência” e “crime” advém de um diálogo com as contribuições de Debert e Gregori (2008)Debert, Guita Grin; Gregori, Maria Filomena. Violência e gênero: novas propostas, velhos dilemas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 23, no66, São Paulo, 2008, pp.165-211..
  • 8
    Além do supracitado texto de Eder Sader, os trabalhos de Ana Maria Doimo (1995Doimo, Ana Maria. A vez a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70. Rio de Janeiro, Relume Dumará / Anpocs, 1995.; 1984Doimo, Ana Maria. Movimento social urbano, Igreja e participação popular. Petrópolis, Vozes, 1984.) contribuem decisivamente para a discussão, nas ciências sociais, acerca da ascensão dos movimentos sociais brasileiros no pós-70 e ajudam, inclusive, na compreensão da sua relação com setores da Igreja Católica.
  • 9
    Os dois processos judiciais relativos aos estupros e aos homicídios correram em segredo de justiça e, por isso, eu não tive acesso a eles. As informações que trago ao texto vieram, como afirmado, do que me foi falado pelas militantes feministas com quem conversei sobre o assunto e que acompanharam, em razão de sua militância, os desdobramentos do “caso”. A maior parte dessas informações, contudo, foi também divulgada por veículos de comunicação paraibanos e nacionais.
  • 10
    Minha percepção desse “corpo que aguenta” deriva da noção, de que se vale Bruna Mantese de Souza (2015)Souza, Bruna Mantese de. Mulheres de fibra: narrativas e o ato de narrar entre usuárias e trabalhadoras de um serviço de atenção a vítimas de violência na periferia de São Paulo.Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2015., de “corpo elástico”, o corpo das “mulheres de fibra” que suporta dor e violência.
  • 11
    Felicidadeé o nome fictício para uma das cidades componentes do polo sindical de trabalhadores rurais a que o Sindicato de Rosáriopertence. Como comentei ainda no começo deste artigo, o polo possui um grupo de trabalho de mulheres – aquele a cuja reunião Terezanão pode ir por causa do desaparecimento de Emília. Esse grupo de trabalho organiza “marchas” a cada 8 de março, revezando os locais ano a ano. A “marcha de Felicidade” foi uma dessas marchas, da qual Emíliaparticipou.
  • 12
    Segundo Laura Lowenkron (2015)Lowenkron, Laura. Consentimento e vulnerabilidade: alguns cruzamentos entre o abuso sexual infantil e o tráfico de pessoas para fim de exploração sexual. cadernos pagu(45), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2015, pp.225-258.argumenta, a hegemonia da “linguagem da violência e dos direitos” sobre os atuais modos de regulação da sexualidade não impede que outras formas de regulação e compreensão da sexualidade existam ou atuem nas disputas políticas, como acontece, por exemplo, com as moralidades religiosas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    9 Abr 2017
  • Aceito
    22 Maio 2017
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