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Rituais da escolarização e gênero

Resumo

O artigo discute o ritual como elemento de intensificação da realidade de gênero. Propõe uma análise de enunciados ritualísticos no discurso pedagógico da educação escolarizada no século XIX na Itália. A análise está sustentada nos argumentos do caráter performático dos rituais, da pedagogia como prática de disciplinamento e da ação performática na produção dos sujeitos de gênero. Interessam na análise: a relação entre ritual e práticas de disciplinamento; a cena ritual; o papel da família no ritual de passagem; a afirmação de gênero nos rituais de acolhimento; e os mitos da feminilidade no ritual da lição.

Disciplinaridade; Gênero; Performatividade; Rituais

Abstract

This article discusses ritual as an element that intensifies gender realities. It analyzes ritualistic statements in the pedagogical discourse of school education in nineteenth century Italy. The analysis understands the performative character of rituals; pedagogy as disciplinary practice; and the role of performative action in the production of subjects of gender. The analysis focuses on: the relationship between ritual and disciplinary practices; the ritual scene; the role of the family in the ritual of passage; the affirmation of gender in reception rituals; and the myths of femininity presented in the ritual of the lesson.

Disciplinarity; Gender; Performativity; Rituals

Introdução

Este artigo tem como objeto teórico enunciados performáticos de gênero em rituais no contexto da educação escolarizada no século XIX na Itália. O objetivo é dar visibilidade à emergência de aparatos de produção de gênero no momento que se tornou possível tratar da condição de gênero na escolarização. Usar elementos de práticas educativas do século XIX pode ser um caminho para construir objetos de saber nesse campo e poder analisar criticamente o que se passa na escolarização, em relação a gênero, na atualidade.

A premissa da relação ritual e performatividade de gênero está sustentada em estudos que observam o caráter performático dos rituais (Tambiah, 1997TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Continuidade, integração e horizontes em expansão: entrevista concedida a Mariza Peirano. MANA, v. 3, n. 2, out. 1997,pp.199-219.) em convergência com trabalhos que indicam as práticas de disciplinamento nas quais a pedagogia tem seu lastro (Foucault, 2015FOUCAULT, Michel. Il Potere Psichiatrico. Corso al Collège de France (1973-1974) Milano, Universale Economica Feltrinelli/Saggi. 2015.) e outros que relacionam a produção cultural do sujeito de gênero e ação performática de discursos em uma relação de poder (Butler, 2003BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.). Nessas perspectivas, a função performática do ritual se daria pelo uso da linguagem no sentido de que o pronunciamento das palavras constitui o ritual; pelo uso da cena como um ritual no qual as palavras, os gestos, a mímica, a articulação de sentimentos e a atividade simbólica podem gerar determinados sentidos; e pelo uso de valores previsíveis nas regras de uma determinada cultura.

Contudo, ao abordar o tema dos rituais, um saber interdisciplinar, este artigo não está adstrito às proposições dos estudos citados; inclui, dentre outros, elementos conceituais desenvolvidos particularmente pelos Estudos Culturais. Abordagens que tratam da cultura, do discurso, da linguagem, da pedagogia e da relação entre práticas discursivas ritualísticas e subjetividades de gênero. Não se procura um enquadramento teórico fechado, usufrui-se de elementos conceituais apropriados em estudos anteriores afinal: “Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias avós que bebeu” (Andrade, 1987ANDRADE, Mario de. Poesias completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Mafio. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1987.:60).

Os rituais são tratados em muitos campos de saber como uma ação importante, estruturadora, valorosa, em sua função de produção de sentido, a exemplo da ritualidade coletiva de uma apresentação de Beethoven saudada por Eco (1984)ECO, Umberto. Viagem na Irrealidade Cotidiana. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.; ou como elemento de distinção entre a verdade do artifício e a vida como observa Sontag (2015SONTAG, Susan. Vontade Radical. São Paulo, Companhia das Letras, 2015.:116) ao tratar o teatro como ritual.

Os rituais sagrados, objetos centrais das religiosidades da Idade Média, não desapareceram com as mudanças advindas das sociedades modernas. Na verdade, eles têm se transformado. No campo da educação, são chamados de rituais profanos, a exemplo dos rituais de passagem para a escola, rituais de entrada, da lição, da comemoração, das refeições e das cerimônias (Rivière, 1996RIVIÈRE, Claude. Os ritos profanos. Petrópolis, Vozes, 1996.).

As implicações de rituais na questão de gênero estão no discurso de feministas, como no livro O Segundo Sexo: Fatos e Mitos de Simone de Beauvoir (1970)BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Fatos e Mitos. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1970., ao criticar a forma como a burguesia escraviza as mulheres à cozinha, ao lar, fiscaliza os seus costumes e confina-as “em um ritual de savoir-vivre, que trava qualquer tentativa de independência” (Beauvoir, 1970BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Fatos e Mitos. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1970.:145); e, também no instigante livro Sputiamosu Hegel e Altri Scriti de Carla Lonzi, também de 1970, ao observar como a cultura, a ideologia, os códigos, as instituições e os rituais estão implicados na circularidade de superstições masculinas sobre as mulheres e como incidem em comportamentos arrogantes (Lonzi, 2013LONZI, Carla. Sputiamosu Hegel. Milano, Economica, 2013.:32).

Contudo, nesses trabalhos os rituais são tratados no conjunto de outros aparatos que orientam o modo de compreender a condição humana de gênero e sexualidade. De modo diverso, pesquisas recentes sobre processos de produção de identidades de gênero têm indicado os rituais como um aparato de gênero de forma mais enfática. São estudos que, em suas singularidades, têm em comum rituais como objeto de saber na objetivação de pessoas nas suas relações de gênero e o entendimento do gênero como uma construção histórica. Abordam a produção de identidades de gênero sob diferentes possibilidades: o papel da alimentação como ferramenta de identidade, pois, quando associada a rituais, a comida tem uma ação na identidade de gênero (Leonini, 2014LEONINI, Luisa Maria. The Language of Food and Intercultural Exchanges na dRelationships. Journalism and Mass Communication, v. 4, n. 12, dez. 2014, pp.777-786.ISSN 2160-6579); a relação entre consumo e ritual de domesticidade refinada e feminilidade de esteticista na esfera doméstica (Sassateli, 2006SASSATELI, Roberta. Genere e Consumi. In: CAVAZZA, S.; SCARPELLINI, E. (org.). Il secolo dei consumi: Dinamiche socialinell'Europa Del Novecento. Roma, Carocci, 2006, pp.172-200.); ritos iniciáticos na socialização de crianças incidindo de tal modo nos seus destinos que suas vidas estariam sujeitas às lógicas de dominação masculina (Silva, 2011SILVA, Eugênio Alves. Tradição e identidade de género em Angola: ser mulher no mundo rural. Revista Angolana de Sociologia, n .8, 2011,pp.21-34.); rituais escolares que acabam por produzir um corpo escolarizado (Louro, 2010LOURO, Guacira. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 14. ed. Petrópolis, Vozes, 2010.).

Os estudos de Butler (2003)BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. mostram como a identidade de gênero e a identidade sexual são produzidas por meio de repetidos enunciados performativos. Interessa a Butler a potência da linguagem como discurso que institui o gênero. Em sua teoria performativa de gênero, articula as condições das minorias de gênero e de sexo com a questão da vida precária (Butler, 2017), o que torna a sua reflexão sobre performatividade de gênero poderosa e instigante.

Abordagens contemporâneas com material empírico de natureza socioantropológica evidenciam a potência de estudos de gênero quando mobilizados pela noção de performatividade. São exemplos o estudo etnográfico em contexto escolar de Bueno (2012)BUENO, Michele Escoura. Girando entre Princesas: performances e contorno de gênero em uma etnografia com crianças. Dissertação (Mestrado em Antropologia social), USP, São Paulo, 2012., que problematiza efeitos de imagens de princesas na construção da feminilidade entre crianças, e o estudo de Pontes (2018)PONTES, Vanessa da Paula da. Beleza, produção e normalização do corpo em narrativas de crianças. Civitas, v. 18, n. 1, Porto Alegre, jan.-abr. 2018, pp.153-170., com foco nas experiências relacionadas ao convívio de crianças em serviços de salões de beleza, de modo a analisar como as categorias corpo e beleza são manejadas pelas crianças e como operam na produção de suas autoimagens.

Sob esse ponto de vista, mas sem o alcance dos trabalhos citados, o trabalho metodológico da análise apresentada neste artigo faz uma aproximação com os Estudos Culturais, amálgama de estudos que tem nas culturas o seu objeto. Nesse sentido, é uma análise cultural do discurso de gênero no contexto de rituais profanos, no caso da escolarização.

A análise está baseada em textos oficias, manuais pedagógicos do século XIX: Elementi de Pedagogia e Didattica Applicati All’insegnamento Primario Ad uso Dell escuola normali e magistrali e dei maestri elementari, de Luigi Bertagoni; Guia Delle Educatore Foglio Mensuale da Raffaello Lambruschini, o Codice dell’intruzione Secondaria Classica e Tecnica e Della Primaria e Normale de 1859 de Torino, publicado em 1861, e Manuale di Educazione Ed Ammaestramento Pelle Scuole Infantili, de Aporti, de 1833. A esse corpus agregamos textos do Museo digittali della scuola primaria italiana. Os enunciados desses textos não asseguram a realização de rituais, todavia, por serem textos prescritivos, analisados como discursos, ao anunciarem como deve ser a prática ritualística da escolarização, eles produzem o que deve ser uma prática ritualística.

A escolha desses textos está sustentada nas ideias de que o Ocidente bebeu, nos arquivos epistolares dos romanos, a tradução do discurso da formação humana desenvolvido pelos gregos (Slortedijk, 2000SLORTEDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. São Paulo, Estação Liberdade, 2000.) e, na experiência dos latinos, o gosto pelo convencimento e pela persuasão, graças à arte da retórica e aos sermões do Pai da Igreja, elementos da nossa tradição cultural (Hámeline, 2009HÁMELINE, Jean Yves. L’accordorituali: pratiche e Poetche della liturgia. Milano, Edzione Glossa, 2009.:52).

No prefácio do livro de Flaubert, La tentazione di sant’Antonio, Foucault fala do século XIX ao realçar o que muda com o novo lugar de poder, onde vai se alojar o fantástico que nasce dos livros. Agora, “[...] para sonhar, não é necessário fechar os olhos, é necessário ler” (Foucault, 2010:137, tradução nossa).

Outro aspecto a ser considerado é que no século XIX se consolida uma substituição de práticas de socialização das crianças do âmbito familiar para a instituição escola pública, lugar de normalização da criança como aluno. Nesse século, o termo Normal irá designar, para além do estado de saúde orgânica, o protótipo do escolástico – o sujeito educado na escola (Canguilhem, 2009CANGUILHEM, Georges. O Normal e o Patológico. São Paulo, Forense Universitária, 2009.:175).

Rituais e performatividade

A questão da performatividade como efeito de rituais trabalhada em alguns estudos de gênero tem se beneficiado dos estudos de Tambiah (1995)TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Rituali e cultura. Bologna, Il Mulino, 1995.. Esse autor utiliza elementos conceituais desenvolvidos no campo da linguagem por John Langshaw Austin, no campo da semiótica por Charles Sanders Peirce e no campo da análise estrutural da linguagem por Ramon Jakobson para evidenciar a relação entre ritual e linguagem, isto é, o funcionamento da linguagem não em termos denotativos, mas performativos. Trata o ritual como amálgama ou totalidade constituída por palavras, gestos, discursos sobre uso de objetos e modos simultâneos ou sequenciais de uso de meios diversos, como auditivos, visuais e olfativos, além de modos de apresentação como canto, dança, música e recitações. Essa amálgama tem um efeito ritual performático, pois é na conjugação de características semânticas e pragmáticas de pensamento e ação que ocorrem os rituais (Tambiah, 1995TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Rituali e cultura. Bologna, Il Mulino, 1995.:22).

A eficácia no contexto do ritual está no poder da palavra pronunciada, enfatiza Tambiah (1995)TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Rituali e cultura. Bologna, Il Mulino, 1995.. No contexto ritual, a palavra aparece em orações, feitiços, encantamentos, cânticos, bendições e outras coisas. O autor ressalta que essa palavra é aberta àquele que tem o poder de dizer. Há uma relação social de poder, uma assimetria na ordem do ritual (Tambiah, 1995TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Rituali e cultura. Bologna, Il Mulino, 1995.). As palavras têm um papel preponderante no conteúdo estético do ritual, seja nos cantos ou textos literários, com destaque para os mantras e os versos que se repetem. Esses textos funcionam como palavras sagradas, secretas às vezes, e são pronunciadas para serem ouvidas, mas não necessariamente para se entender, ou são recitadas em voz alta com uso da língua local, para serem entendidas. Podem também ser usados os dois procedimentos – língua secreta e língua local – quando se inscrevem em rituais de purificação. As palavras são ditas em um contexto de um conjunto de materiais e a escolha desses materiais não é feita de forma arbitrária. Responde a características temporais e de sabedoria, como tamanho, forma, cor e resistência. Nos seus estudos, Tambiah (1995TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Rituali e cultura. Bologna, Il Mulino, 1995.:78-79) aborda esquemas de classificação simbólica dos trobriandeses, que conferem um valor simbólico.

Inspirado nos estudos de Jakobson, Tambiah destaca a metáfora e a metonímia no contexto do ritual. No caso da metáfora, a substituição de palavras ou ideias em termos similares do ponto de vista da semântica é um uso que não pode ser tratado como um engano, mas como um uso moral da linguagem, o que para ele se assemelha à analogia da atribuição. A metáfora une conceito, ação, palavra e gesto e por isso contribui com a performatividade no contexto ritual. Com a metonímia, procede-se à substituição do nome da coisa pelo uso de um atributo, produzindo uma ação de complemento. Ao analisar rituais trobriandeses, o autor observa que o uso da metáfora permite a abstração e, o uso da metonímia permite a construção do todo por associação contígua, o que confere a eficácia do ritual no contexto da ação. Ele fala também no uso de palavras substanciais, palavras ação ou verbo. Um elenco de palavras ditas em sequência, repetidas em um contexto ritual como no exemplo:

O ventre do meu jardim, Fecunda-se, Avoluma-se, Espalha-se, Cresce até o alto, Do ninho de uma galinha selvagem, Avoluma-se e pressiona, Levanta-se como, A árvore de ferro, Estende-se, Expande, Expande como se, Esperasse um filho (Tambiah, 1995TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Rituali e cultura. Bologna, Il Mulino, 1995.:73, tradução nossa).

A propriedade cor associada à metáfora e à metonímia é muito importante no ritual. Tambiah dá como exemplo a sociedade trobriandesa, na qual a classificação de gênero fica evidenciada. Quando uma mulher engravida pela primeira vez, acontece o ritual da gravidez e, nesse ritual, a tia por parte do pai prepara duas saias de fibras e casacos brancos para serem usados em momentos distintos. A brancura representa os atributos de pureza e beleza relacionados à maternidade e à abstinência sexual. O uso do preto pelas mulheres após a morte do marido, assim como o cabelo raspado e fuligem no corpo, é o inverso do ritual da gravidez. A cor negra representa a tristeza e seu corpo escuro está associado à escuridade da feitiçaria. O homem no ritual da alimentação é representado pela cor vermelha. O ritual é para transformar um homem velho e feio em um jovem fascinante e radiante. Para isso, é lavado com água do mar, esfregado com folhas e óleo de coco, tem os pelos depilados e o seu rosto pintado (Tambiah, 1995).

Cosmologia e classificação são dois elementos destacados por Tambiah por terem papel predominante nos rituais como ação de performatividade. Cosmologia remete a estruturas de conceitos e relações que atuam como um universo ordenado, discernindo-o em relação a espaço, tempo, matéria e movimento, povoando-o com deuses, humanos, animais, espíritos, demônios e similares. A classificação refere-se a um sistema estruturado que constitui e etiqueta qualquer universo de coisas, seres, eventos e ações. Tem valor cultural, a exemplo da divisão sexual, religiosa e alimentar. A classificação está fortemente implicada com a performatividade no contexto do ritual, na fala verbal e ressonâncias metafóricas dos nomes, na delimitação das propriedades físicas e sensações nas partes do corpo, nos laços matrimoniais, nos presentes, enfim, no conjunto de elementos que compõem o ritual (Tambiah, 1995).

Do ponto de vista da estética do ritual, Tambiah trata da dança, da música, do movimento e da emoção como elementos que se fazem presentes. A dança que vem acompanhada do canto. O autor ressalta que a dança não coloca em jogo apenas o corpo ou o sistema muscular do dançarino, o qual cria uma tensão física, mas compromete também seus dois sentidos principais, ou seja, a visão, que guia os dançarinos nos movimentos, e a audição, que lhe permite seguir o tempo musical (Tambiah, 1995:124).

Hámeline (2009)HÁMELINE, Jean Yves. L’accordorituali: pratiche e Poetche della liturgia. Milano, Edzione Glossa, 2009., por sua vez, caracteriza o ritual a partir da qualidade estética, voltando-se para os elementos do espaço do ritual em sua função de santuário e, sobretudo para a música. Para o autor, o canto envolve a boca, o coração e a inteligência, o que representa uma metáfora do ser humano conciliado na sua potência (Hámeline, 2009HÁMELINE, Jean Yves. L’accordorituali: pratiche e Poetche della liturgia. Milano, Edzione Glossa, 2009.:198).

Também Eco (1984)ECO, Umberto. Viagem na Irrealidade Cotidiana. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. oferece elementos para análise dos rituais. Segundo ele, os detalhes como incenso e atabaques de uma roda para os Ogãs na cidade de São Paulo, ou o que chama de sinfonia de cores para descrever o oferecimento de flores e estátuas na cidade do Rio de Janeiro, elucidam o lexico que opera nos rituais que etnografa:

O pai de santo faz as defumações propiciatórias, os atabaques atacam com seu ritmo obcecante enquanto um canto entoa os pontos, estrofes, [...] Os iniciados são na maior parte mulheres (Eco, 1984ECO, Umberto. Viagem na Irrealidade Cotidiana. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.:130).

No que se refere à analítica do ritual, há na linguagem, no discurso, elementos significativos: o papel dos oficiantes do ritual; a relação entre o tempo mítico e a realidade presente; e a relação do mito no ritual, diz Tambiah (1985TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. The Magical Power of Words. In: TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Culture, Thought and Social Action: Na Anthropological Perspective. Cambridge (MA), London, Harvard University Press, 1985, pp.17-59.:37). Não só o tempo mítico, mas o mito como elemento do ritual em sua relação com as figuras de linguagem.

Mito, do latim Mythus, tem como acepção geral narrativa, tal como em Aristóteles. Pelos seus muitos usos produziu diferentes significados, tais como contraponto à narrativa verdadeira ou uma verdade imperfeita, muitas vezes se unindo à atribuição de validade moral ou religiosa. Pode ser associado não ao pensamento, mas ao sentimento, forma espiritual autônoma em relação ao intelecto. Do ponto de vista da sociologia, é associado não à natureza, mas à sociedade ou ao pensamento pré-lógico. Com a individuação nos campos da sociologia e antropologia, o mito pôde ser visto como justificação retrospectiva dos elementos que constituem a cultura de um grupo de forma a cumprir uma função ligada à natureza da tradição (Abbagnano, 2007).

Lévi-Strauss, em sua Antropologia Estrutural, como indica Sontag (1987)SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Porto Alegre, L&PM, 1987., defende o mito como “uma operação mental, puramente formal, sem qualquer conteúdo psicológico ou qualquer conexão necessária com o rito [...] a lógica do pensamento mítico é totalmente rigorosa em relação a ciência moderna”. Defendeu, assim, a dicotomia mitos versus ritos, exigindo, inclusive,

um estudo separado dos dois, de modo a fazer dos mitos a via privilegiada de acesso à mente humana. Aos ritos era relegada a execução dos gestos e a manipulação dos objetos, a própria exegese do ritual passando a fazer parte da mitologia [...] (Peirano, 2002PEIRANO, Mariza G. S. A análise antropológica dos rituais. In: PEIRANO, Mariza G. S. (org.). O dito e o feito: ensaio de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002, pp.17-40.:21).

A visão de mito como linguagem, reiterada por Barthes em Mitologias, acrescida da noção de ideologia, é usada nas análises culturais com vistas a desnaturalizar o mito. Para Barthes, o mito é uma fala, mas não uma fala qualquer e sim um sistema de comunicação. Nesse sentido, importa reconhecer que o

mito não se define pelo objeto da sua mensagem, mas pela maneira como a profere: o mito tem limites formais, contudo não substanciais. Logo, tudo pode ser mito? Sim, julgo que sim, pois o universo é infinitamente sugestivo (Barthes, 2009BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro, Difel, 2009.:199).

Com Edmundo Leach vamos observar a defesa da não distinção entre comportamentos verbais e não-verbais, uma aproximação entre ritual e mito. O ritual visto como um complexo de palavras e ações. Para Peirano (2002)PEIRANO, Mariza G. S. A análise antropológica dos rituais. In: PEIRANO, Mariza G. S. (org.). O dito e o feito: ensaio de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002, pp.17-40., Edmund Leach aproxima demais o ritual do mito, provocando uma perda de especificidade, e mostra a importância da contribuição de Evans- Pritchard ao trazer à tona a necessidade de se observar que traços formais de mitos ou de ritos são também produtos culturais resultantes de cosmologias distintas.

Tambiah (1997)TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Continuidade, integração e horizontes em expansão: entrevista concedida a Mariza Peirano. MANA, v. 3, n. 2, out. 1997,pp.199-219., em entrevista a Mariza Peirano, observa como os mitos se relacionam com as ações efetivas das pessoas. Relação que faz ver como o autor compreende suas análises antropológicas desde uma perspectiva dialética.

Análises de Tambiah (1995)TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Rituali e cultura. Bologna, Il Mulino, 1995. sobre o mito (inspiradas em estudos de outros antropólogos) têm suas inflexões específicas. Por exemplo, ao reiterar a observação feita por Malinowski de que as crenças trobriandesas em relação à doença e à morte “formam um todo orgânico”, destaca, outrossim, a complexidade e as inter-relações entre diferentes concepções. Realça à vista disso que o mito tem o valor completo quando relaciona o seu padrão interno aos padrões incorporados em outros mitos. Nesse ponto de vista, em sua análise da streghevolanti e canoevolanti, trata o mito comparando os eventos místicos (as ações dos heróis míticos) com as normas sociais da vida cotidiana. Na construção da canoa, observa dois fatos importantes: a construção da canoa como uma atividade masculina e de propriedade masculina; a definição do nome da canoa como bruxa voadora por ser veloz, agressiva e ágil (Tambiah, 1995TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Rituali e cultura. Bologna, Il Mulino, 1995.).

No campo dos estudos feministas, há um fértil debate sobre o mito. Desde o texto Segundo Sexo de Beauvoir (1970)BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Fatos e Mitos. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1970., quando ela dedicou um capítulo para mostrar como, na relação entre homens e mulheres, a mulher é instituída como o Outro, a autora afirma que o mito alimenta produtivamente essa relação. Ela indica que:

Todo mito implica um Sujeito que projeta suas esperanças e seus temores num céu transcendente. [...] É por vezes tão fluido, tão contraditório que não se lhe percebe, de início, a unidade: Dalila e Judite, Aspásia e Lucrécia, Pandora e Atenas, a mulher é, a um tempo, Eva e a Virgem Maria (Beauvoir, 1970BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Fatos e Mitos. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1970.:183).

Indica também que a mulher:

É um ídolo, uma serva, a fonte de vida, uma força das trevas; é o silêncio elementar da verdade, é artifício, tagarelice e mentira; a cura que enfeitiça; é a presa do homem e a sua perda, é tudo o que ele quer ter, sua negação e sua razão de ser (Beauvoir, 1970BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Fatos e Mitos. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1970.:183).

Rituais e práticas de disciplinamento

O estudo de Foucault sobre práticas de disciplinamento associadas a rituais constitui um viés fértil para compreensão da ritualística como uma ação performática. Foucault, como Tambiah, considera que os rituais detêm uma força poderosa na significação dos objetos e dos sujeitos no mundo pelo seu efeito disciplinar. Trata do ritual em diversos momentos dos seus estudos, seja para dizer das formas ritualizadas que cercam começos solenes, seja para abordar o controle do que se pode dizer pelo ritual da circunstância; rememora como os gregos do século VI proferiam o discurso verdadeiro no cenário do ritual requerido; indica como chegou um momento em que o discurso verdadeiro dependia pouco do que era ou dizia, e aborda como a verdade se “deslocou do ato ritualizado de enunciação, eficaz e justo, para o próprio enunciado: para o seu sentido, a sua forma, o seu objeto, a sua relação à referência” (Foucault, 1999:15).

Ao tratar dos discours sacrés, escritos do século II, na obra de Aelius Aristides, apresenta os sonhos de conotação ritual dos louvores dirigidos aos deuses com a função de cura. Na análise das técnicas de si de tradição cristã, destaca o ritual – exomologêsis–, ritual pelo qual um indivíduo se reconhecia como pecador e como penitente. Distingue a tradição estoica da tradição cristã pelo ritual. Na tradição estoica, as técnicas de si são o exame de si, o julgamento e a disciplina. Na tradição cristã, prevalece o exomologêsis, prática de ruptura na qual o penitente faz aparecer a verdade sobre ele mesmo. O exomologêsis não é verbal, é simbólico, ritual e teatral (Foucault, 2004FOUCAULT, Michel. A Escrita de Si. In: MOTA, Manuel Barros da (org.). Michel Foucault, Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2004 (Coleção Ditos & Escritos V).).

Segundo Foucault, não há habilidade que possa ser adquirida fora do exercício, fora dos rituais, inclusive a arte de viver não prescinde de uma askêsis que deve ser cumprida como um treino de si por si mesmo (Foucault, 2004FOUCAULT, Michel. A Escrita de Si. In: MOTA, Manuel Barros da (org.). Michel Foucault, Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2004 (Coleção Ditos & Escritos V).). Observa que a ascese cristã substituiu a ascese grega na Modernidade e impactou os processos educativos em sua ação formadora dos sujeitos.

Nos estudos sobre o poder psiquiátrico, em 1973, Foucault (2015)FOUCAULT, Michel. Il Potere Psichiatrico. Corso al Collège de France (1973-1974) Milano, Universale Economica Feltrinelli/Saggi. 2015. identifica duas práticas ritualísticas: ritual geral do manicômio e ritualização da linguagem. A primeira está associada à cerimônia de apresentação ao doente. Em um ritual de demonstração de força, o médico mostra ao doente que em sua presença ele deve estar sempre com a cabeça descoberta. O doente precisa saber qual é a sua posição na hierárquica do manicômio: obediência ao médico.

A segunda prática segue um pouco como a anterior, contudo, um outro elemento opera de forma eficaz no ritual – a linguagem. Para o doente faz-se necessário o aprendizado dos nomes daqueles que detêm um tipo de função de autoridade em relação ao doente – médico, assistente, enfermeiro. Nesse ritual, o doente é constrangido a dar conta da pirâmide disciplinária do manicômio pelo aprendizado do nome dessas pessoas. Ainda no contexto do ritual da linguagem, encontra-se a prática ritualística de recitar versos. Essa recitação precisa ser feita na língua que se aprendeu na escola, na linguagem do disciplinamento escolar.

A esses rituais, Foucault associa outras práticas como a vigilância e o registro. Constrói, com a análise dessas práticas, argumentos sobre os modos como o poder disciplinar modula a função sujeito.

Foucault, nos anos 1970, em suas aulas no Collège de France, refere-se ao poder disciplinar quando trata, de uma certa forma, da capilaridade de poder (Foucault, 2015FOUCAULT, Michel. Il Potere Psichiatrico. Corso al Collège de France (1973-1974) Milano, Universale Economica Feltrinelli/Saggi. 2015.). Poder que se formou na sociedade medieval no interior da comunidade religiosa e a partir daí foi transferido, modificando-se na comunidade laica que se desenvolve após a Reforma, entre os séculos XIV e XV.

Foucault indica discursos fundadores desse poder disciplinar, quais sejam, os discursos da comunidade Fratelli dela vitacomune. Essa comunidade parte de um certo número de técnicas advindas da vida conventual e, também, de um certo número de exercícios ascéticos da tradição da prática religiosa para definir os métodos disciplinares relativos à vida cotidiana e à própria pedagogia (Foucault, 2015FOUCAULT, Michel. Il Potere Psichiatrico. Corso al Collège de France (1973-1974) Milano, Universale Economica Feltrinelli/Saggi. 2015.). Identifica nessa comunidade a gênese da experiência escolar de divisão dos alunos por idade e pelo nível de desenvolvimento, além da oferta de um programa progressivo (Foucault, 2015FOUCAULT, Michel. Il Potere Psichiatrico. Corso al Collège de France (1973-1974) Milano, Universale Economica Feltrinelli/Saggi. 2015.).

Pedagogia e disciplinamento

O Codice Dell intruzione Secondaria Classica e Tecnica e Della Primaria e Normale de 1859 de Torino, publicado em 1861, traduz como a escolarização se constitui como um dispositivo de disciplinamento com as orientações para o ordenamento da instrução escolar.

As práticas de classificação e seriação aparecem com a instituição de certos parâmetros para a instrução elementar, tais como: ensino primário; escola inferior; classe, número de alunos por classe e por escola; sequência (primeira, segunda, terceira e quarta classes); graduação do conhecimento por classes; classificação de escolas segundo os pontos de vista de gênero (femininas e masculinas), de espaço (rural e urbana) e sociopolítico (pública e privada). Tal classificação incide, ainda, nos sujeitos da educação com suas funções de mestre (ensinante),de aluno (aprendiz), de supervisor e de inspetor (controlador do processo educativo). Outro exemplo, o ordenamento pela idade:

Ninguém pode ser matriculado como aluno no ensino fundamental inferior, antes dos seis anos de idade ou com mais de doze anos. [...] nas escolas rurais, quando o as condições permitirem, com a aprovação do Município, podem ser matriculados, alunos com mais de doze anos, desde que não ultrapassem os quinze anos [...] (Codice Dell intruzione Secondaria Classica e Tecnica e Della Primaria e Normale de 1859, 1861:373, tradução nossa).

Há os sujeitos coletivos responsáveis pelo controle, avaliação e acompanhamento, como os conselhos superiores e o conselho provençal. Cada conselho tem tarefas específicas na função de governo da educação nos municípios. Esses organismos, assim como o modo de enunciação do conhecimento escolar, estão sob a orientação de uma legislação específica, ela própria também um operador de controle social e cultura da escolarização. Podem ser destacadas ainda,a legislação específica para as obrigações dos pais; as disposições para a escola pública; as disposições para a escola primária; a orientações para a inspeção; a legislação para escola rural e para escola urbana; as legislações diferenciadas para escolas masculinas e femininas; as regras do município para escola; a regulamentação sobre punição; a regulação contra punição corporal e uso de palavras ofensivas; as orientações legais sobre a adequação do espaço escolar com definições sobre salubridade, luminosidade, tranquilidade, decência, espaços das salas e pátios adequados à educação física. Definem-se, também, aspectos econômicos, como salários de mestres e gratuidade do ensino público.

Desde os discursos feministas e de gênero, entendemos que os sujeitos de gênero vão sendo produzidos, inclusive nessa regulação legal, por uma normatização social e cultural, como no caso da indicação de uma professora e não de um professor para as classes mais elementares por considerar-se que as mulheres são mais assíduas, pacientes, afetuosas, com maior polidez e boas maneiras (Codice dell’intruzione Secondaria Classica e Tecnica e Della Primaria e Normale de 1861:370). Vê-se a prática de controle do conhecimento do ponto de vista de gênero e de disciplinamento, tal como nos artigos desse regulamento. No artigo 3º, estipula-se:

Nas escolas femininas, serão ensinados cada dia, [...], os trabalhos manuais de tricô e costura que são considerados necessários para uma família bem ordenada, excluídos totalmente os trabalhos de simples ornamentação(Codice dell’intruzione Secondaria Classica e Tecnica e Della Primaria e Normale de 1861:373, tradução nossa).

E no artigo 21:

Para as escolas femininas, cada um dos Municípios designará inspetoras para supervisionar e dirigir os trabalhos femininos e para manter firmemente, de acordo com os superintendentes municipais, a boa disciplina (Codice dell’intruzione Secondaria Classica e Tecnica e Della Primaria e Normale de 1861:373, tradução nossa).

A seleção do conhecimento e seu modo de distribuição têm como ponto de referência o discurso humanista em defesa da tradição da cultura fixa e do conhecimento como um fato dado. Do mesmo modo, articula como pressupostos princípios religiosos e certo entendimento da conduta civilizada.

Basicamente, esse ponto de vista encontra seu êxito na introdução dos alunos ao repertório das disciplinas escolares, incluindo o domínio da língua italiana; da aritmética; da nomenclatura da geografia; da religião; da higiene; e de instruções militares para escolas masculinas e tarefas específicas para escolas femininas.

O dispositivo da escolarização responde por programas adequados às séries, ao regulamento do ensino obrigatório; aos conteúdos para escolas masculinas e femininas; materiais didáticos adequados aos conteúdos, assim como práticas didáticas, exames, lições tais quais ditados, dever de casa, correção de exercícios.

O significado de escola não pode deixar de estar associado ao sentido do “[...] método que, em seu significado lato, indica o modo que se adota para alcançar um determinado efeito” (Bertagoni, 1876:21, tradução nossa).

As práticas disciplinares têm um papel importante nas iniciativas de governo no controle da higienização e na saúde da população. Na verdade, há uma nova experiência social com os registros, quando ganham força os escritos sobre as crianças e o controle dos sujeitos da educação. Entre esses registros, destacam-se, no período analisado, os documentos necessários para matrícula: fé de nascimento; atestado de varíola; certificado de vacina; certificado de promoção de uma classe para outra; arquivos com registros de alunos; atestado de frequência e promoção; registro anual de exames; registro anual de presença; registro anual de aprovação e de não aprovação; certificado de idoneidade do mestre (Codice dell’istruzione Secondaria Classica e Tecnica e Della Primaria e Normale de 1861:373-374, tradução nossa).

O corpo, o comportamento e a experiência social das pessoas, pouco a pouco, entram em uma trama de escritura de um tipo de registro que codifica e fica disponível e acessível de modo a ser consultado sempre que se achar necessário, alerta Foucault (2015)FOUCAULT, Michel. Il Potere Psichiatrico. Corso al Collège de France (1973-1974) Milano, Universale Economica Feltrinelli/Saggi. 2015.. Para ele, o efeito é uma individualização esquemática e centralizada (Foucault, 2015FOUCAULT, Michel. Il Potere Psichiatrico. Corso al Collège de France (1973-1974) Milano, Universale Economica Feltrinelli/Saggi. 2015.).

Tempo e espaço são elementos constitutivos do dispositivo disciplinar: ordenamento do calendário escolar com indicação de início e término do ano, tempo pedagógico das aulas, organização de semestres letivos, datas de exames semestrais, férias escolares, datas de festas cívicas e festas religiosas.

As festas cívicas e religiosas têm a função de referendar a visão de mundo que norteia o projeto de formação humana nessa amálgama entre o discurso religioso e o discurso escolástico, o que se relaciona com aquilo que Tambiah chama de cosmologia no contexto ritual. Nessas festas há uma interpenetração entre as categorias aprendidas pelos estudantes na escola sobre o universo de coisas, seres, eventos ou ações com as classificações de maior abrangência (cosmologias) que explicitam uma concepção sobre a vida.

Em contextos situacionais, como, por exemplo, cortejos religiosos, os estudantes vivenciam a linguagem verbal e estética de forma intensificada. As premissas aprendidas na aula de catecismo são reiteradas com a repetição de cânticos ritmados e de rezas coletivas, bem como, do uso de uma indumentária adequada a solenidade e, do uso de símbolos religiosos. Desse modo, expressa-se publicamente um modo de ser do sujeito humano católico.

A sala de aula: cena do ritual

A prática educativa se dá em um contexto de cenas da escolarização. Todavia, essas cenas são compreendidas no sentido dado por Foucault, ou seja, não como uma cena teatral, mas como rituais, estratégias, batalhas (Foucault, 2015). Hámeline (2009)HÁMELINE, Jean Yves. L’accordorituali: pratiche e Poetche della liturgia. Milano, Edzione Glossa, 2009. lembra que se cria uma cena, um espaço adequado, quando uma criança vai recitar. Nesse tipo de cena, importa para o processo educativo o que Bertagoni chama de doutrina educativa. A lição recitada pelo aluno, verbalizada, tem um valor significativo no ritual da lição, já que é nela que se dá a função educativa (Bertagoni, 1876:62).

Os rituais, como já indicado, envolvem diversos elementos que em seu conjunto têm um efeito substantivo naqueles que neles estão envolvidos: formas de comunicação simbólicas, as ações de repetição, a metalinguagem que envolve gestos, palavras, símbolos que resultam naquilo que significa um verdadeiro modo do que seja estar no mundo. Como dito por Tambiah (1985TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. The Magical Power of Words. In: TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Culture, Thought and Social Action: Na Anthropological Perspective. Cambridge (MA), London, Harvard University Press, 1985, pp.17-59.:139, tradução nossa): “O ritual não é uma expressão livre de emoções, mas uma repetição disciplinada de condutas corretas”. Esse verdadeiro precisa estar associado a artefatos culturais diversos. No contexto da escolarização, os artefatos curriculares, a mobília e outros equipamentos têm um caráter histórico-cultural de significação, inclusive de gênero, na cena do ritual. Alguns desses artefatos foram produzidos para a escola, tais como cartilhas, livros de caligrafia e didáticos, cadernos escolares, lápis, canetas e estojos. Outros advêm de práticas culturais. É o caso de mapas, globos terrestres, retratos do Rei, crucifixos.

Aos artefatos, a pedagogia dá sentidos próprios e funções. No contexto ritual, eles podem constituir elementos da cena, como no ritual da lição a mesa do professor ou da professora na relação com as carteiras dos alunos indica a função daquele que toma a lição, aquele que organiza a chamada por gênero, a relação de poder da verdade. As imagens nos cadernos e livros são, elas próprias, discursos sobre os sujeitos sociais e culturais. Esses artefatos traduzem uma estética singular expressa nas cores das capas dos livros e cadernos; nas imagens religiosas dos catecismos; nas rezas, recitações e autos nas lições de religião.

Sobre o crucifixo e a imagem do Rei, são recomendados nos enunciados da escolarização no século XIX na Itália. Ambos símbolos que sustentam o império e a ordem. Diz Agnelli (1879:13, tradução nossa):

A lei coloca na escola dois símbolos que devem guiá-la, o crucifixo e o retrato do rei. [...] O Crucifixo, o Senhor. E o Evangelho é a única e verdadeira declaração dos direitos do homem. Tudo isso representa o Crucifixo na escola, [...] Ao lado deste símbolo divino está o símbolo humano, o símbolo da sociedade e da autoridade social, o símbolo da pátria, da nação, da independência: é o retrato do Rei [...].

E conclui: “Remova esses símbolos e a escola torna-se a impiedade e a anarquia” (Agnelli, 1879:13, tradução nossa).

Tambiah (1997)TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Continuidade, integração e horizontes em expansão: entrevista concedida a Mariza Peirano. MANA, v. 3, n. 2, out. 1997,pp.199-219. diz sobre amuletos e imagens que tais objetos

como o homem santo transferem seu carisma para eles, como esses objetos promovem a conjunção entre os homens santos e os leigos, e como esses objetos são usados e manipulados nos processos históricos, políticos e econômicos (Tambiah, 1997TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Continuidade, integração e horizontes em expansão: entrevista concedida a Mariza Peirano. MANA, v. 3, n. 2, out. 1997,pp.199-219.:206).

A presença desses símbolos não apenas compõe a cena do ritual da escolarização em sua amálgama com o ritual religioso cristão, mas, também, valora os enunciados do ritual e cada ritual específico. Essa amálgama entre Estado e Igreja aparece nas lições no cotidiano das escolas, como o exemplo dado por Aporti (1833:51, tradução nossa): “Prece para ser recitada pela manhã antes da aula. Em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ao Rei imortal e invisível dos séculos, ao único Deus honra e glória eternamente. [...]”.

Ritual de passagem: confirmação da identidade de gênero

Foucault (2015)FOUCAULT, Michel. Il Potere Psichiatrico. Corso al Collège de France (1973-1974) Milano, Universale Economica Feltrinelli/Saggi. 2015. diz que a família não pode ser vista como um elemento do poder disciplinar pelo fato de o seu modo de operar ser diverso, diferente do poder disciplinar que está sustentado pela norma e tem como instância de operação a escola, o hospital, o trabalho, sendo submetido ao conhecimento das Ciências Sociais.

O autor lembra, contudo, que a família não é um resíduo do poder disciplinar, ela é essencial para o poder disciplinar. Afinal, é ela quem assegura a escolaridade obrigatória, ou seja, viabiliza que a criança seja individualizada dentro do sistema escolar (Foucault, 2015FOUCAULT, Michel. Il Potere Psichiatrico. Corso al Collège de France (1973-1974) Milano, Universale Economica Feltrinelli/Saggi. 2015.:86); mostra a família em seus dois papéis no contexto do poder disciplinar: um que fixa os indivíduos ao sistema disciplinar e outro que articula e faz circular de um sistema disciplinar a outro.

Do ponto de vista do ritual de passagem, ela tem um papel relevante, pois é nela que se inicia esse rito desde a matrícula. Quando a criança é apresentada à escola, são expostas, também, regras e orientações a serem por ela acolhidas. De mesmo modo, a autoridade, antes reconhecida como exclusivamente familiar, passa a ser negociada com a escola.A própria instituição, é identificada, assim, como autoridade para educar a criança.

As regras da escola, compreendidas, são levadas para casa a partir de um processo que pode ser identificado como escolarização da família, que prepara a criança para a ida à escola. São as repetições de recomendações sobre organização do material, cadernos e livros, lápis, nomes nos materiais, na bolsa e na farda.

Esse ritual envolve o cheiro dos livros novos, da tinta do lápis, as cores dos materiais, a textura dos cadernos e livros, o som das folhas, da tesoura cortando o papel; os gestos dados pela movimentação dos pais e das crianças em torno dos materiais, a emoção, a expectativa com as novidades da escola, a organização da farda.

Em casa, se inicia o processo de dessubjetivação da criança e de subjetivação do aluno. Vestir a farda é um ritual pelos sentidos singulares que esse vestuário traduz no processo de socialização.

Tambiah (1995)TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Rituali e cultura. Bologna, Il Mulino, 1995. indica como o vestuário tem um efeito de sentido no contexto ritual, inclusive pelo seu aspecto comunicativo. O aluno com farda e com artefatos escolares é um discurso da escolarização. Traduz o discurso da igualdade, da identidade de forma que afirma por si própria o aluno, a aluna. No rito de passagem, é um discurso sobre a escolarização que associa o sentimento de pertença a valores e à moral. As cores, o modelo, os acessórios, como laços, gravatas, meias, boinas e luvas indicam gênero. Indicam, também, momentos cotidianos da escola ou momentos solenes.

Ritual de acolhimento: dizer de si e reconhecer a autoridade do outro

O ritual de acolhimento opera pela linguagem, pelo discurso. Nele aprende-se um modo de se apresentar com o nome e o sobrenome, sobre a ordem da fala, quem diz primeiro e quem vem depois. O nome tem como foco a autorrepresentação do indivíduo como sujeito social (Rivière, 1996RIVIÈRE, Claude. Os ritos profanos. Petrópolis, Vozes, 1996.). No início do ritual, a orientação é de que o mestre leia os nomes dos alunos em ordem alfabética e os alunos respondam afirmando, confirmando. Ao modo do modelo militar, deve continuar a orientação da criança no espaço e na ordem:

Começa-se hoje, daquele que está sentado à direita, amanhã daquele que está sentado à esquerda, depois de amanhã daquele que o professor indicar primeiro e assim por diante, eu diria quase como os militares, que se portam de maneia condizente, onde é tão grande a necessidade de ordem e disciplina (Bertagoni, 1876:75-76, tradução nossa).

O ritual da ordem do espaço nos faz dialogar com o trabalho de Bueno (2012)BUENO, Michele Escoura. Girando entre Princesas: performances e contorno de gênero em uma etnografia com crianças. Dissertação (Mestrado em Antropologia social), USP, São Paulo, 2012., quando em sua etnografia de campo Girando entre Princesas: performances e contornos de gênero em uma etnografia com crianças apresenta cenas em escolas de educação infantil que retratam como rituais cotidianos podem reiterar práticas de classificação de gênero. Em uma das cenas, a autora destaca a organização da própria turma para assistir a um filme de Princesas: “[...] as crianças montaram uma platéia [...] Mas a plateia [...] parecia estabelecer uma fronteira entre as nove meninas sentadas nas duas fileiras da frente e os oito meninos sentados na fileira de trás” (Bueno, 2012BUENO, Michele Escoura. Girando entre Princesas: performances e contorno de gênero em uma etnografia com crianças. Dissertação (Mestrado em Antropologia social), USP, São Paulo, 2012.:75). Essa prática de organização dos corpos infantis nos espaços é performática.

No ritual da lição, ocorrem a institucionalidade de quem ensina e a autoridade para dizer o verdadeiro sobre as crianças e reafirmar o que foi dito sobre o sexo da criança na hora do nascimento. Foucault já afirmava o papel do discurso médico a partir do século XIX, assim como Butler (2017BUTLER, Judith. L’alleanza dei corpi. Milano, Figure Nottetempo, 2017.:49, tradução nossa) ao dizer: “São os médicos que estabelecem se um recém-nascido que chora é um menino ou uma menina”. Observa como o parto é ele próprio um momento performático.

Mas essa autoridade do uso da palavra, do discurso no contexto ritual do acolhimento, precisa também de uma linguagem familiar, pois é preciso usar elementos que possam fazer sentido para a criança, mediar com os outros elementos discursivos do ritual; é um jogo de linguagem, no qual vale a regra do ritual, apontada por Tambiah (1995)TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Rituali e cultura. Bologna, Il Mulino, 1995.: para constituir-se a autoridade de quem comanda, o ritual é preciso, tanto a linguagem escolástica como a linguagem familiar, do cotidiano. Nesse sentido:

[...] recomenda-se que as primeiras lições sejam feitas de forma tão familiar que faça com que a criança acredite que ela tenha entrado em outra família, no meio de um número maior de irmãos. O professor representa a mãe, quando acolhe em torno de si as crianças, começa a conversar com elas, conforme seja oportuno (Bertagoni, 1876:75, tradução nossa).

Rivière (1996)RIVIÈRE, Claude. Os ritos profanos. Petrópolis, Vozes, 1996. recorre a Bourdieu para mostrar como os jardins de infância e escolas maternais se transformaram em santuários da ritualidade na socialização das crianças, transformando a infância em um período pedagógico. Nesses santuários, as crianças realizam suas atividades em uma certa ritualidade. Aprendem no jogo da doação o dar, receber, retribuir e, pelo ritual da aprovação e reprovação, aprendem a moral e a sociabilidade e o reconhecimento das escalas de dominação e liderança (Rivière, 1996RIVIÈRE, Claude. Os ritos profanos. Petrópolis, Vozes, 1996.).

Esses processos continuam e são reelaborados nos anos de escolaridade. Entram em cena outros elementos da dinâmica social e deles as relações de gênero são apropriadas com a passagem do oral para o escrito, elemento que passa a ser constante na escolarização, ou seja, aprende-se a não só decodificar a escrita, mas também a decodificar, a partir de atividades com uma certa ritualidade, como as lições, as práticas culturais. As lições englobam ações de repetições, formas rígidas, estereótipos, mitos em um quadro temporal com ritmo.

Ritual da lição: atributos do feminino e do masculino

A lição como um ritual apresenta uma situação de sequência. Uma ordem das atividades que inicia das coisas mais fáceis para as mais difíceis. Faz uso do recurso da analogia e da leitura em voz alta como recitação. A síntese feita por Raffaello Lambruschini (1842) dá um exemplo de um ritual de lição. É uma lição para uma criança veneziana em uma escola da Toscana.

No rito da atividade uma primeira ação é consagrar livros bem escritos para leitura. Na sequência copiar alguns deles. Escrever palavras fáceis de lembrar em um caderno. Fazer a tradução do veneziano ao toscano com a ajuda do mestre e também analogias entre as duas línguas.

Improvisar uma narrativa ou diálogo familiar em italiano comum. Mostrar ao mestre para correção. Depois repetir a narração feita e revisada pelo mestre.

Contar uma história circunstanciada que possa ser considerada importante para dela tirar uma palavra que será repetida. Recontar uma história para outra criança. Ler em voz alta e esculpir bem a sílaba, distinguindo as consoantes duplas e as vogais mais ou menos fechadas.

Escrever uma narrativa e pontuar (o uso da vírgula e o ponto) e depois indicar os verbos, e na sequência o professor corrigir.

Para o autor, com essas atividades a criança aprende a falar com as mulheres e com o povo. (Lambruschini, 1842).

Nesse modelo didático, há a lição sobre o vestuário masculino e feminino. O uso da classificação do que é do homem e o que é da mulher. São peças de vestuário para uso masculino o boné, o chapéu, o colarinho e a gravata, por exemplo. Voltadas para as mulheres são peças como chapéu, boina e o véu. Para o busto, o homem usa o capote, o casaco, a jaqueta, o sobretudo, a camisa. Já a mulher deve vestir cinto, fivela, avental, fita e pele. Para as pernas, o homem usa a calça, a cueca, o sapato, a bota; a mulher, a saia, as meias, os sapatos, as pantufas. Há nessa etiqueta de vestuário dois artefatos com sentidos fortes como marcadores de gênero: o véu e o avental. O véu, na perspectiva cristã, sempre esteve associado a aspectos morais, valores religiosos nos quais a mulher está colocada em uma relação assimétrica ao homem. A memória discursiva do enunciado uso do véu para mulheres estabelece um retorno ao discurso da Bíblia, livro sagrado do cristianismo:

7 O homem, pois, não deve cobrir a cabeça, porque é a imagem e glória de Deus; mas a mulher é a glória do homem. [...] 10Portanto, a mulher deve ter sobre a cabeça sinal de autoridade, por causa dos anjos (I Coríntios 11:7, 10).

O avental está associado ao trabalho doméstico, trabalho feminino. Para Raquel Eleonora Souza (2016)SOUZA, Raquel Eleonora. O Legado estético da colonização italiana no sul do Brasil. Revista Icônica, v. 2, n. 1, 2016, pp.20-41., “o avental, “grambiule”, [...] trazido da Itália permaneceu como característica das colonas e vindimeiras regionais. A roupa de modo geral devia ser prática, para a realização dos serviços domésticos (Souza, 2016SOUZA, Raquel Eleonora. O Legado estético da colonização italiana no sul do Brasil. Revista Icônica, v. 2, n. 1, 2016, pp.20-41.:29). Com o tempo, o avental tornou-se um artefato importante no vestuário das meninas na escola.

O ritual da lição com o tema História da Criação do Mundo e da Origem da Arte e das Pessoas no Manuale di Educazione Ed Ammaestramento Pelle Scuole Infantili traduz os papéis de gênero. Inicia a lição com a criação do mundo por Deus desde o espaço, natureza, até o homem e a mulher, utilizando um método de leitura e perguntas no qual é repetido o conteúdo de cada momento da criação:

[...] 8º. No sexto dia Deus criou o Homem: pegou o barro e formou o seu corpo e depois soprou sobre o seu rosto um espírito de vida que é a alma. O Homem então se formou de corpo e alma. O primeiro homem foi chamado por Deus de Adão, que significa tirado da terra. Perguntas. Que fez Deus no sexto dia? Como Deus formou o Homem? De que foi feito o Homem? Como se chamava o primeiro homem criado por Deus? O que significa Adão? 9º. Deus fez adormecer Adão, tirou dele uma costela e dela formou a Mulher e lhe soprou sobre o seu rosto um espírito de vida que é a alma. A primeira mulher foi chamada Eva, que significa mãe dos viventes. Perguntas. Como Deus criou a primeira mulher? Como se chamava a primeira mulher? O que significa Eva? [...] (Aporti, 1833:100, tradução nossa).

Prossegue com as orientações de Deus sobre a proibição de acesso a uma árvore que tem o fruto proibido para os dois, Adão e Eva. E em seguida aborda a desobediência:

[...] 12º. O Demônio, que é um anjo rebelde a Deus, e foi expulso do Paraíso celeste, invejoso da felicidade dos primeiros homens, coloca uma serpente para tentar Eva a comer da fruta proibida, persuadindo-a de que ela se tornaria igual a Deus. Movida por este sentimento de soberba, ela comeu e seduziu o marido a comer; assim, ao desejo da soberba acrescentaram o pecado da desobediência à ordem de Deus. Perguntas. Que fez o demônio invejoso da felicidade dos primeiros homens? Quem persuade Eva? Que fez Eva comendo o fruto proibido? Qual o pecado que Adão e Eva cometeram ao comerem o fruto proibido? 13° Adão e Eva, ao comerem o fruto, sentiram vergonha de verem-se nus, e, ao ouvirem a voz de Deus, se esconderam entre as árvores do Paraíso. Mas Deus os chamou e reprovou Adão pelo pecado cometido; Este culpou Eva, e Eva culpou a Serpente. Deus castiga todos os três. Amaldiçoa a serpente autora do pecado, e diz que viria um Messias, filho de uma mulher, para salvar os homens do pecado e triunfaria sobre ela. Condena a mulher a viver sob o domínio do marido (antes era igual) e submetida a múltiplas aflições. Ao homem disse que trabalharia com fadiga e que comeria o pão com o suor da sua face e que tanto o homem quanto a mulher seriam mortais. Então Deus lhes expulsou do Paraíso terrestre, vestindo-lhes antes com peles de carneiro. Do pecado de Adão e Eva se originam todos os males que afligem os homens na mente, na alma e no corpo. Perguntas. O que aconteceu com Adão e Eva depois de terem comido o fruto proibido? O que Deus disse aos primeiros homens sobre seus pecados? O que eles disseram? O que Deus fez? Qual sentença pronunciou contra a serpente? Qual contra Eva? Qual contra Adão? Qual contra ambos? Foram os primeiros homens expulsos do Paraíso terrestre? Qual a origem de todos os males que afligem aos homens? (Aporti, 1833:99-101, tradução nossa).

Nessa lição, há o mito do pecado de Eva em todas as mulheres. As representações desse mito associam a mulher como um ser moralmente frágil, influenciável, sedutor, propenso a pecar e a arrastar o homem em seus pecados. Associado, ainda, ao pecado da carne, à luxúria e ao mesmo tempo sempre à punição, como as dores do parto, os desafios da maternidade e principalmente a sua dependência e submissão ao homem. O discurso patriarcal foi contemplado como problematizado por Beauvoir (1970)BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Fatos e Mitos. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1970..

Essa lição nos faz lembrar do argumento usado por Pontes (2018)PONTES, Vanessa da Paula da. Beleza, produção e normalização do corpo em narrativas de crianças. Civitas, v. 18, n. 1, Porto Alegre, jan.-abr. 2018, pp.153-170. quando, ao analisar uma pedagogia cultural, ou seja, um processo educativo no contexto de um salão de beleza frequentado por crianças, indica como o discurso de um modelo de mulher e de homem, de uma potente feminilidade ou de masculinidade, é reiterado, seja em suas casas ou salões.

Ao longo do tempo, o mito da mulher sedutora é materializado em uma estética feminina pautada em cuidados com a beleza e com o corpo. Práticas que são naturalizadas como pertencentes a uma suposta natureza da mulher, “como se estas fossem predestinadas a cumprir certos rituais de embelezamento e higiene”. Ao mesmo tempo, essas questões de cuidados de embelezamento são experimentadas pelos meninos com uma outra função, explicitada no trabalho da autora com a pergunta instigante de um dos meninos: “Vamos ficar bonito pras namoradinhas?” Conclui a autora que

tais ideias têm um caráter universalizante a respeito de homens e mulheres. Desconsideram, inclusive, as dificuldades que muitos sujeitos sentem ao ter que enquadrar seus corpos em determinado padrão de ser e viver. […] (Pontes, 2018PONTES, Vanessa da Paula da. Beleza, produção e normalização do corpo em narrativas de crianças. Civitas, v. 18, n. 1, Porto Alegre, jan.-abr. 2018, pp.153-170.:164).

A lição envolve ritos, como o de escutar a leitura de um texto alternado com perguntas e respostas em um ritmo próprio. Na análise da lição sobre o instinto materno dos animais, o mestre é orientado a apresentar pontos a serem respondidos:

O amor materno dos animais revela as preocupações da conservação (preservação) natural. O amor materno revela nos animais mais do que nos homens, os cuidados da conservação natural; embora, quanto a estas virtudes, está entre os dons femininos a requintada doçura do afeto, a sublime virtude de sacrifício, igualmente pleno de desinteresse, encontrados nos animais. [...] A exemplo da loba e dos pássaros. [...] Depois a proposição: Por quais motivos e condições um ninho de passarinhos recorda a família? (Bertagoni, 1876:105-108, tradução nossa).

No discurso patriarcalista, a feminilidade é dada principalmente pela condição de reprodução, pela maternidade que a mulher traz dentro de si como uma essência, como condição preexistente. Vincula-se à mulher a ideia de natureza pela sua ação reprodutora a partir de um imaginário da reprodução, do cuidado materno com o ser da natureza, com sua ação no campo privado, doméstico. No lugar da maternidade e em particular com o mito do instinto materno. Vale dizer que o mito funciona porque ele está de acordo com a norma social em vigor. O mito funciona porque aciona as representações produzidas pelos discursos sobre a alteridade. Nesse sentido, as mulheres, como as fêmeas no mundo animal, têm um instinto materno como fazendo parte de sua natureza. É o feminino como uma metáfora da mãe natureza. Utiliza-se a metáfora e a metonímia para dizer dos atributos femininos. Por analogia, o amor materno está relacionado com a mãe natureza. Todas são características dadas como femininas, que advêm de uma oposição com o modo de ser masculino, servem como operadores de classificação de gênero, já que esses atributos se repetem em outros rituais da lição. O modo como são trabalhados como exemplos no contexto do ritual da lição confere a sua eficácia.

Na lição da língua pátria, encontra-se a ação de adjetivar relacionando-se nomes das pessoas a atributos adequados, conforme o exemplo dado:

1º. Dados alguns nomes de pessoas, reconhecer suas características. Pietro, Domênico, Andreina, Virgínia, etc. 2º. O professor escreve no quadro negro: ... é soberbo ... é dócil ... é diligente. [...] Pietro é soberbo. Andreiana é dócil. Domênico é diligente (Bertagoni, 1876:171-172, tradução nossa).

Os atributos já indicados nos outros rituais são repetidos: dócil como atributo feminino e diligente como atributo masculino. Isso confirma o desinteresse como atributo feminino do ritual da lição anterior. Os mitos da feminilidade reverberam nos enunciados das lições. O uso sistemático da metáfora mulher doce remete ao doce do mel e das frutas. Sabores e atributos femininos são comuns na linguagem performática que associa a meiguice e a brandura a atributos que supõem um modo de ser e estar como mulher no mundo.

Na lição de História Sagrada das escolas masculinas, é proposto o ensino por biografias dos patriarcas, personagens que se distingam por virtudes e ações heroicas. Contudo, na lição em escolas femininas, a referência dos exemplos deve ser em torno de nomes de mulheres mais virtuosas e ilustres. Do ponto de vista da lição em si, orienta-se o uso do Novo Testamento com “a exposição das principais parábolas evangélicas [...], para impregnar eficazmente nas almas juvenis o sentimento do dever que o homem tem em relação à família e à sociedade” (Codice dell’istruzione Secondaria Classica e Tecnica e Della Primaria e Normale de 1861:420, tradução nossa).

Nesse mesmo ritual da lição para as mulheres, deve-se considerar que:

[...] A história sagrada e a profana oferecem uma riqueza de modelos de piedade religiosa e filial, de resignação, de beneficência, de onde se pode obter fértil material de ensino tanto literário quanto moral, sem recorrer a temas muito distantes da vida feminina. Similarmente na aritmética quanto aos exemplos estranhos à vida feminina preferem-se aqueles que se refiram à economia doméstica, à feira, ao trabalho costumeiro, e relacionados aos assuntos familiares (Codice dell’istruzione Secondaria Classica e Tecnica e Della Primaria e Normale de 1861:430, tradução nossa).

As distinções de gênero estão postas nas ações direcionadas para a identidade masculina associada ao espaço público e à feminina ao espaço doméstico, para além de classificar as capacidades masculinas e femininas em relação a conhecimentos como da aritmética.

No texto educacional de Lambruschini (1842), propõe-se para a educação em relação ao sexo considerar-se para os rapazes:

Características: força, atividade, solidez e resolução, correto uso da liberdade, livre escolha da vocação, respeito pela mulher, religiosidade profunda, clara, sincera; moderação dos posicionamentos excessivos, modéstia com dignidade (Lambruschini, 1842:86, tradução nossa).

Para as moças, uma educação com as seguintes características: “assiduidade e ponderação, economia, benevolência sincera, discrição e correção, modéstia, amor, piedade, serenidade de espírito, sociabilidade, religiosidade não fanática e simplicidade” (Lambruschini, 1842:87, tradução nossa). Essa seleção de atividades femininas no contexto do ritual da lição é confirmada pelo Museo della Scuola, que traduz a norma social do que é ser uma mulher dos pontos de vista do conhecimento e da moral. Uma educação com foco nos seguintes atributos:

A modéstia, o pudor, a obediência aos pais, a roupa sóbria e limpa, o engajamento nos trabalhos domésticos, a caridade, as orações, incluindo também lições sobre problemas de aritmética que envolviam o cálculo (Museo Della Scuola, tradução nossa).

Considerações finais

A análise apresentada neste artigo teve como objetivo compreender práticas ritualísticas da escolarização como aparatos performáticos de gênero, tendo como foco os enunciados nesses rituais, mas, também, a relação entre práticas de disciplinamento e práticas ritualísticas performáticas. A escolha pelo campo da pedagogia em sua significação de formação do humano, guia da criança, foi produtiva para tal fim por envolver normas, preceitos didáticos e religiosos e, principalmente, por transmitir o elemento-chave na separação do mundo medieval do mundo moderno – a escrita – em pleno florescimento no humanismo da Itália do século XIX.

A escolarização como dispositivo disciplinar tem nos rituais aparatos para não só ensinar a ler, escrever e contar, mas para ensinar modos de ser do ponto de vista do masculino e do feminino. Entram na cena ritual artefatos culturais diversos, enunciados, repetições, palavras, orações, diálogos, perguntas e respostas, símbolos que, utilizados por pessoas com autoridade para pronunciar, tornam os momentos de acolhimento, da lição, da avaliação em oportunidades de intensificação de sentidos do que é do cotidiano e do que se quer que se torne a verdade. Assim pensamento e ação são eles próprios o ritual para reafirmar mitos como: Eva, a sedutora, pecadora, doravante sofredora e dependente; o instinto materno; o sexo do mundo privado, doméstico – todos em contraponto ao modelo masculino.

É um sistema poderoso não por ser opressor, mas porque se dedica, dá atenção, escolhe e individualiza os sujeitos da educação masculinos e femininos. A sua eficácia está em sua finalidade, na sua ordenação e estrutura. Principalmente porque se apresenta sob o domínio da normalização das Ciências Humanas que respondem pela higienização, pela saúde dos saberes que incidem sobre a alimentação e o cuidado com a família.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer à Capes-Brasil pelo apoio a este estudo realizado durante o Estágio Sênior no Centro Studi e Ricerche Donne e Differenze di Genere, Dipartimento di Scienze Politiche e Sociali dell’ Università degli Studi di Milano, Itália, sob a supervisão dedicada da Professora Dra. Luisa Maria Leonini.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    18 Dez 2017
  • Aceito
    27 Jul 2020
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