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Para ampliar o debate sobre a saúde dos trabalhadores

To amplify the debate on workers’ health

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Para ampliar o debate sobre a saúde dos trabalhadores

To amplify the debate on workers’ health

Álvaro Roberto Crespo Merlo

Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Hospital de Clínicas de Porto Alegre. merlo@ufrgs.br

As questões trazidas pelo artigo de Lacaz e Minayo Gomes são de uma grande atualidade e abordam aspectos fundamentais para quem atua ou se interessa pela saúde dos trabalhadores brasileiros. É um artigo abrangente e um ótimo balanço do que foi produzido nos últimos anos na área. Os autores tratam de analisar os principais aspectos relacionados às políticas de saúde do trabalhador, à produção científica e ao desempenho das formas de representação desses mesmos trabalhadores, tais como, sindicatos e centrais sindicais.

Acreditamos que esse artigo vale pelo que diz e, também, pelo que deixa nas entrelinhas. Nossos comentários irão, portanto, buscar ampliar a discussão, na medida em que concordamos com a essência do que ali está apresentado.

Quando os autores falam em perplexidade para "compreender e dar respostas aos dilemas atuais" das transformações pelas quais passou o trabalho nos últimos vinte anos, pensamos que seria necessário acrescentar uma outra perplexidade, que, no caso brasileiro, se superpõe a essa. Diz respeito às esperanças frustradas de uma imensa parcela da população brasileira com os atuais rumos imprimidos pelo Estado brasileiro na economia, na política financeira e industrial, ou talvez fosse melhor dizer, na política como um todo.

No caso brasileiro, quando falamos de conseqüências sobre a saúde da introdução de novas formas de organizar o trabalho e de novas tecnologias, não estamos falando de uma situação ou de um país hipotético, governado por algum representante do capital financeiro internacional. Hoje o país tem como presidente da República alguém que conhece em detalhes o cotidiano perigoso e insalubre dos ambientes de trabalho e que viveu no próprio corpo as suas conseqüências.

É importante lembrar que a realidade da grande maioria das condições e organizações do trabalho que nos rodeiam sempre foi de uma taylorização/fordização quase absoluta, dentro de ambientes de trabalho insalubres, perigosos, sem nenhum respeito pela legislação de saúde e segurança, e onde o trabalhador não tem as mínimas possibilidades de opor-se a elas. Assim, a realidade de trabalho brasileira vai reunir e potencializar as "antigas" agressões à saúde (intoxicações por metais pesados e por solventes, as mutilações provocadas por máquinas sem nenhum tipo de proteção, etc.), com as "novas", oriundas das "japonizações" da organização do trabalho (reestruturação flexível), produzindo um modo de trabalhar que em outro estudo apelidamos de modelo "frankenstein" (Merlo, 2000). Em um país onde a grande maioria das empresas nunca são fiscalizadas e muitas das realidades dos ambientes de trabalho são dignas da Primeira Revolução Industrial, o que vimos acontecer nas últimas décadas foi uma progressiva e contínua degradação das condições de trabalho, acrescida, mais recentemente, de precarizações próprias à terceirização em "cascata" e a uma contínua expansão do mercado informal, esse sim, "oficialmente" desregulamentado e precarizado.

Contrariamente aos autores, pensamos que não há nada de "inexorável" nas transformações produzidas pelas reestruturações produtivas. Da mesma forma como não havia nada de inexorável na expansão e hegemonização do taylorismo/fordismo no século 20. Esses modelos de gestão tornaram-se "universais" não por serem a melhor forma de trabalhar, nem por produzirem mercadorias com melhor qualidade, por reduzirem a penosidade no trabalho e, muito menos, por permitirem mais tempo de lazer aos trabalhadores. Eles proliferaram porque eram capazes de produzir mais lucro, em menos tempo e realizar, assim, uma rápida remuneração do capital. Para se constatar que não era o único caminho possível, basta apenas observarmos os vários "taylorismos" pelo mundo afora. Uma mesma empresa utiliza-se do taylorismo de forma diferenciada em se tratando da matriz, em um país de capitalismo central ou em sua filial na periferia capitalista. Encontramos uma semelhança na implantação da reestruturação flexível que, também, vem ocorrendo de forma distinta no Brasil ou nos países "centrais". No Brasil ela se deu (e ainda se dá) sem nenhum processo de discussão ou negociação com as formas representativas dos trabalhadores (sejam centrais sindicais, sindicatos ou organização por fábrica). Não ocorreu o mesmo nos anos 80 e 90, por exemplo, nas transformações ocorridas em várias empresas escandinavas ou do norte da Itália.

No Brasil vive-se, também, uma outra perplexidade. E aqui temos mais uma peculiaridade nacional. É reconhecida por todos a crise pela qual vem passando o movimento sindical no mundo, na qual várias das grandes e históricas centrais sindicais sofreram uma contínua perda de filiados. Mas, no Brasil, vivemos, além disso, um outro problema, no qual os principais e históricos sindicatos e centrais sindicais dos trabalhadores encontram uma enorme dificuldade para conseguir diferenciar-se do poder instituído. Aliás, esse não é apenas um problema das representações dos trabalhadores, mas perpassa, também, uma grande parte da esquerda brasileira. Como fazer para continuar enfrentando a exploração e as contradições de classe – condição sine qua non para a sobrevivência mesma dessas representações –, e, ao mesmo tempo, não "levar água ao moinho" da direita fisiológica, corrupta e autoritária que por tantos anos alternou-se no poder? Alguns dirão que esse espaço é praticamente inexistente – é o que pensam muitos dos setores críticos que ainda permanecem no Partido dos Trabalhadores –, outros, que ele pode ser maior, a partir da interpretação de que o governo que aí está, na verdade, não se diferencia muito, na sua essência, dos anteriores.

Acreditamos que a proteção à saúde dos trabalhadores, mais do que nunca, é indissociável de um Estado que exerça sem ambigüidades o seu papel limitador dos "apetites" patronais. Quem se encontra desprotegido é o trabalhador que não consegue mais contar com a força da solidariedade de classe de outras épocas e fica à mercê das horas-extras sem limite, dos ritmos alucinantes das esteiras de produção, dos "enxugamentos" selvagens de mão-de-obra (em que os que permanecem na empresa precisam produzir muito mais ainda que antes). O que se vê são tentativas, uma após a outra, de buscar "desregulamentar" o mundo do trabalho no Brasil. Em um país que nunca chegou sequer a produzir um arremedo de Estado de Bem-Estar Social, busca-se, por exemplo, retirar os parcos mecanismos de salvaguarda e proteção ainda existentes nos contratos de trabalhos.

Toda essa contextualização não pretende minimizar o papel e a responsabilidade que os profissionais de saúde têm nas questões da saúde dos trabalhadores. A exemplo do que é feito pelos autores do texto que aqui comentamos, os pesquisadores e todos os profissionais de saúde que atuam nessa área têm fundamentais tarefas a cumprir. Seja produzindo pesquisas que possam desvendar muitos aspectos ainda desconhecidos ou não sistematizados do conhecimento nessa área – e, se possível, propor soluções para os problemas encontrados –, seja inovando na maneira de construir articulações no sistema de saúde que permitam que ele seja mais resolutivo do que é atualmente. E experiências positivas encontramos por todo o país. Apenas para dar um exemplo, no Rio Grande do Sul tivemos a criação e implantação de uma política exemplar em saúde do trabalhador, com um bom sistema de coleta de dados, com a inauguração de centros de referência em saúde do trabalhador e a formação intensiva de técnicos (Corrêa et al., 2004).

O texto de Minayo Gomes e Lacaz consegue produzir sistematizações e análises que certamente permitirão ampliar e aprofundar muitas das questões urgentes da área. Os caminhos devem ser buscados e é isso que os autores propõem a todos nós. Mas, acreditamos que a contextualização dessa discussão à realidade política e ideológica brasileira atual é também indispensável, a fim de que na próxima III Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador (CNST), possamos nos situar criticamente e, desta forma, evitarmos, como bem alertam Minayo Gomes e Lacaz que a III CNST se transforme num momento a mais "do mesmo", frustrando-nos como se estivéssemos condenados a repetir eventos, ritos, mitos.

Referências bibliográficas

Merlo ARC 2000. Transformações no mundo do trabalho e a saúde, pp. 271-278. In Associação Psicanalítica de Porto Alegre (org.). O valor simbólico do trabalho e o sujeito contemporâneo. 1ª. ed. Porto Alegre.

Correa MJM, Rodrigues STP, Dapper V, Paoli C & Kalil FB 2004. Política de atenção integral à saúde do trabalhador: a experiência do Estado do Rio Grande do Sul, pp. 289-316. In ARC Merlo (org.). Saúde e trabalho no Rio Grande do Sul: realidade, pesquisa e intervenção. Editora da UFRGS, Porto Alegre.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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