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O limite da ação setorial: federalismo, saúde e vigilância sanitária

The limit of sectorial action: federalism, health and sanitary surveillance

DEBATEDORES DISCUSSANTS

O limite da ação setorial: federalismo, saúde e vigilância sanitária

The limit of sectorial action: federalism, health and sanitary surveillance

Roberto Parada

Departamento de Política, Planejamento e Administração em Saúde, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. r.parada@globo.com

Registro o prazer de debater o artigo de De Seta e Dain sobre temas instigantes e próprios da construção de um sistema de saúde, com todas as suas variáveis assistenciais, sanitárias e de vigilância, em um país federativo.

Decorridos mais de vinte anos de sua instituição no formato atual, tripartite e cooperativo, o regime federativo e o SUS permanecem, como prefiro dizer, em desenvolvimento. Razões têm sido apontadas por autores que analisam quatro campos distintos, inter-relacionados e interdependentes: (1) o das relações entre os entes federados, em que convivem a autonomia - referendada nas suas constituições e nas leis orgânicas municipais - e as competências comuns e concorrentes desses entes; embora com muitos avanços, essas relações possuem limites setoriais e carecem de aperfeiçoamento no âmbito maior das políticas públicas; (2) o da organização das práticas e atividades nas linhas de cuidado das patologias prevalentes para aproximação ao perfil de morbimortalidade, aos avanços tecnológicos, e ao perfil profissional, gerencial ou operacional, necessário para executar essas ações; (3) o do formato jurídico e administrativo para ações e políticas que impactem a saúde e o bem-estar da população; (4) o do financiamento, que englobe os aspectos contidos nos itens anteriores, com destaque para o patamar de recursos rateados entre os entes federados e suas respectivas fontes, bem como o melhor formato de alocação.

O artigo apresenta três pontos para o debate. O primeiro se refere à organização da saúde sob o prisma do estado federativo e nele a vigilância sanitária. O segundo aborda a vigilância sanitária e suas abordagens, definições e limites. O terceiro delineia a gerência das organizações, em que as disputas de poder, de recursos, de projetos e de financiamento precisam ocorrer sob coordenação gerencial para atingir objetivos e metas. Todos merecem ser amplamente debatidos para contribuir para melhoria contínua dos processos de atenção à saúde e de vigilância, no âmbito dos entes federados. Mas buscarei me ater a alguns aspectos do federalismo e do nosso sistema de saúde - imputo como relevante nesse debate abordar a autonomia dos entes vis-à-vis à montagem de sistema e/ou de redes - para sinalizar o que parece ser uma tendência ao esgotamento da ação setorial.

É importante ressaltar que o status do município como ente federado impõe uma terceira autonomia, produzindo necessariamente relação tripartite e limitando análises e estudos comparativos, uma vez que no plano mundial há prevalência da relação bipartite.

Essa autonomia trouxe responsabilidades políticas, organizacionais e gerenciais que nem sempre têm correspondência com a história da maioria dos municípios, até hoje em situação de dependência dos recursos passíveis de partilha. Assim, a possibilidade de cumprimento das competências comuns e concorrentes advindas da Constituição de 1988 carece de tratamento mais amplo para efetiva conformação do nosso peculiar estado federado.

Para transpor essas amarras, no campo da saúde sucederam-se NOB, Noas e Pacto, criaram-se instâncias de pactuação e de controle social, conselhos de secretários de saúde estaduais e municipais. Desenvolveu-se o chamado federalismo cooperativo setorial e, assim, municípios e estados têm absorvido novas atribuições, distintas de sua cultura, por meio de recursos federais repassados. Mesmo com algumas fragilidades, estabelecem-se metas para enfrentamentos dos principais agravos e a elaboração de indicadores de acompanhamento possibilitando a organização e a reorganização interna de municípios e estados.

Os termos de compromisso, que podem parecer meramente formais, contribuem para a crescente responsabilização pelas ações, embora esta não necessariamente signifique sua execução. Com isso, parece haver um continuum organizacional, político e gerencial com crescente presença do papel do Estado, a formação dos colegiados de gestão regional, a confecção de consórcios intermunicipais na perspectiva das relações horizontais.

Um nó crítico é a construção de redes assistenciais, os denominados territórios integrados de atenção de saúde. Nesse processo, entram em cena alguns aspectos das autonomias e capacidades municipais em razão da complexidade dos processos do cuidado e das linhas de cuidado, economia de escala, pertinência da complexidade tecnológica, os serviços e seus respectivos profissionais, adequados para execução das ações.

A conformação dessas redes aponta para o crescente esgotamento dos limites da ação setorial pela necessidade de outros setores, tais como educação, ambiente, trabalho e habitação, gerada com a incorporação das ações de promoção e prevenção. Isso implica que o desenvolvimento do federalismo no campo da saúde necessita aumentar seu espectro de atuação, e que as relações intergovernamentais precisam caminhar para uma direção mais abrangente.

A diversidade e a desigualdade dos entes federados - no campo da saúde e das demais políticas públicas - nos remetem à reflexão sobre alguns pressupostos abordados em outras produções1,2, dos quais aqui se destacam três. O primeiro é o da complementaridade. Este conceito significa que as unidades federadas deverão ter competências e capacidades desiguais para que se possam produzir barganha, acordos e pactos viáveis.

O segundo se refere ao princípio da equidade, não só para os indivíduos como também para as regiões. É um princípio que incorpora a solidariedade nos arranjos federativos, buscando, assim, a redução das desigualdades, e possibilita a existência de mecanismos para compensações dos desequilíbrios agudos.

O terceiro princípio é a flexibilização das regras e instituições, com instrumentos que permitam novos pactos e acordos acompanhados da repartição de recursos e funções, impondo, assim, a necessidade da criação e o permanente aperfeiçoamento de coordenações regionais.

Sem entrarmos no debate conceitual do federalismo e das relações intergovernamentais, bem como dos formatos federativos existentes no mundo e na história da nossa organização federativa, a primeira constatação é a dificuldade da realização da complementaridade, pelas desigualdades regionais e municipais que acarretam muitas vezes a redução de possibilidade de trocas, dificultando a concretização dos pactos e acordos e consequentemente redução e/ou ausência de autonomia real. Exemplos utilizados pelas autoras, São Paulo e Borá... Mas as regiões metropolitanas também poderiam ser aventadas pelas suas características de limites territoriais difusos, fluxo populacional livre e, em alguns casos, predominância, ainda, de cidades-dormitório. Portanto, complementaridade, equidade e flexibilidade não podem se concretizar apenas no âmbito setorial.

Embora tratada em separado, a vigilância vive a mesma complexidade da atenção à saúde, apesar de uma trajetória própria, que passou pelo reforço ao papel do Estado, tanto quanto a vigilância epidemiológica3. Afora a questão da disputa de modelos, qual o papel do município, que ações precisam ser realizadas? A disputa de modelos revela conflitos de poder, conceituais e organizacionais, mas e a questão da vigilância sanitária - como a autora apresenta - como um direito de todos?

O entendimento do que é responsabilidade municipal e estadual e o contraponto entre qual ou quais dos entes (e/ou se todos os entes) devam executar as ações estão no centro do debate. As atribuições comuns dadas pela Constituição de 1988, tais como saúde e assistência pública, habitação e saneamento e proteção ao meio ambiente e aos recursos naturais permitiram interpretações diversas.

Considerações finais

O nosso sistema de saúde, com participação tripartite dos entes federados, tem acumulado ganhos em organização, desenvolvimento político e da gestão. O forte papel do ente federal na indução e no financiamento das políticas ainda parece se manter, mas caminha-se para o esgotamento das ações e políticas exclusivamente setoriais, o que se ressalta no artigo de referência e em trabalhos anteriores3.

Estudos têm demonstrado graus variados de dependência e subordinação das políticas emanadas pelo nível central, ainda que pactuadas nas instâncias específicas, gerando redução de autonomia municipal e estadual. Considerando o debate apenas iniciado, se propõe a sua continuidade e se indaga acerca do federalismo setorial da saúde. Ele, com seu histórico e sua trajetória, possibilita ampliar o debate e construir pactuações mais abrangentes entre governos municipais, estaduais e federal que possibilitem um caminhar de políticas facilitadoras da consolidação do nosso federalismo setorial, fugindo assim do mero embate das distribuições e repartições de recursos? E, nisso, a questão da vigilância sanitária?

Para esses e outros pontos, é necessária a construção de uma agenda de pesquisa e debates que, com enfoque no olhar a partir dos estados, possibilite identificação de histórias, políticas, ações próprias na construção, aí sim, de autonomia e pertencimento.

  • 1
    Fiori JL. O federalismo frente ao desafio da globalização. Série Estudos em Saúde Coletiva 1995; 115: 1-32.
  • 2
    Parada R. Federalismo e o SUS: um estudo sobre as mudanças dos padrões de governabilidade no Rio de Janeiro [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2002.
  • 3
    De Seta MH. A construção do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária: uma análise das relações intergovernamentais na perspectiva do federalismo [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Nov 2010
  • Data do Fascículo
    Nov 2010
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