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Pesquisar sobre segurança alimentar e nutricional no Brasil: a que viemos?

Researching about food security and nutrition in Brazil: what is the purpose?

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Pesquisar sobre segurança alimentar e nutricional no Brasil: a que viemos?

Researching about food security and nutrition in Brazil: what is the purpose?

Luciana Maria Cerqueira Castro

Departamento de Nutrição Social, Instituto de Nutrição, UERJ. lucastro@globo.com

O artigo "A pesquisa sobre Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil de 2000 a 2005: tendências e desafios", de autoria de Prado e colaboradores, faz um diagnóstico da situação da pesquisa em segurança alimentar e nutricional (SAN) no Brasil e instiga-nos a perguntar: estamos produzindo conhecimento sobre SAN no país? Temos condições de produzir conhecimento e apresentar propostas inovadoras para a SAN no Brasil ou produzimos conhecimento somente sobre algumas dimensões da SAN no Brasil?

A segurança alimentar e nutricional tornou-se tema de discussão de âmbito mundial nas últimas décadas, tendo sido debatida por inúmeros organismos internacionais, governamentais ou não. Da mesma forma, o conceito de SAN passou por várias alterações. Na década de noventa, devido a um forte movimento em direção à reafirmação do direito humano à alimentação adequada, essa dimensão, assim como a da soberania alimentar, passa a fazer parte, de forma mais consistente, do conceito1. Por conseguinte, tem sido valorizada, nos fóruns de discussão, como uma dimensão-chave para se pensar uma sociedade que tenha segurança alimentar e nutricional.

No Brasil, o termo passou a ser mais discutido após o processo preparatório para a Cúpula Mundial de Alimentação, de 1996, e com a criação do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSAN), em 1998. Da mesma forma que em outros países, no Brasil o conceito também sofre alterações1.

Com relação à sua institucionalização, podemos afirmar que, nos últimos anos, foram feitos investimentos em políticas públicas relacionadas às questões alimentares. Como os autores apontam, foi restabelecido o CONSEA (2003), aprovada a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN) e criado o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), em 2006. Atualmente, tramita a proposta do Senado de emenda constitucional (PEC) 47/03, que inclui a alimentação entre os direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Brasileira.

Cabe ressaltar que, no Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), em que as propostas de segurança alimentar estão ancoradas, inúmeros programas e ações - principalmente aqueles vinculados, como chamam os autores, ao "componente alimentar" - passam a existir a partir de 2003. São eles: Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA); Programa do Leite (Leite Fome Zero); Programa Restaurantes Populares; Programa Bancos de Alimentos; Programa Cozinhas Comunitárias; Centros de Apoio à Agricultura Urbana e Periurbana e Sistemas Coletivos de Produção para Autoconsumo; Feiras Populares; Consórcio de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local (CONSAD); Unidades de Beneficiamento e Processamento Familiar Agroalimentar; Educação Alimentar e Nutricional; Distribuição de Cestas e Grupos Específicos; e Programa Cisternas2.

Surge, então, o questionamento: essas ações, apesar de inúmeros entraves apresentados na sua execução, trouxeram oportunidades e estímulos para o desenvolvimento de projetos de intervenção e de pesquisa? Ou ainda, as experiências recentes com projetos de promoção da SAN ajudaram a revitalizar nossas práticas científicas?

Os autores apontam que, pelo menos no que se refere à quantidade da produção, a resposta é afirmativa. Verifica-se um aumento considerável do número de produtos a partir de 2002; porém, percebe-se, pelos títulos dos trabalhos, que alguns dos grupos mais consistentes abordam dimensões da SAN que não fazem conexões com a amplitude do seu conceito e, por consequência, com as ações necessárias para obtê-la.

Se a promoção da intersetorialidade na SAN ainda é um desafio, exigindo "a confluência de distintos mecanismos, processos e instrumentos institucionais"3, isso também parece se refletir nos processos de produção de conhecimento.

Ao nos debruçarmos sobre a produção de conhecimentos no Brasil e suas relações com as políticas, devemos reconhecer o papel de diferentes atores institucionais, dentre eles a universidade, nessa composição. Para citar apenas um exemplo, no movimento sanitário da década de setenta, houve intensa participação da universidade na construção deste, que resultou na elaboração de uma teoria social da saúde4. Segundo Escorel5, foi na "academia que elaborou-se, ampliou-se e reproduziu-se o conhecimento e formaram-se os intelectuais orgânicos da proposta".

Assim, devemos pensar: que papel temos hoje no desenvolvimento de um país sem fome, onde o direito humano à alimentação adequada seja respeitado, onde novas estratégias de desenvolvimento sustentável sejam propostas? Que capacidade temos de contribuir para a formação de atores e para a construção de saberes que tenham os princípios do direito humano à alimentação como fundamento da sua ação?

Segundo Trindade6, tanto nas sociedades industriais avançadas quanto nas universidades, a ciência e sua organização tornaram-se um problema eminentemente político. Portanto, o sistema científico não foge a essa regra, mas se confronta "cotidianamente com as injunções da política científica" para a sua manutenção.

Isso nos leva a pensar, como os autores, que as políticas de ciência e tecnologia devem direcionar seus esforços para que as iniciativas das universidades e centros de pesquisas que venham a contribuir mais efetivamente para promoção do direito humano à alimentação possam ser melhor implementadas. Facilitar a criação de grupos ou projetos multiprofissionais e interinstitucionais ancorados na política de SAN pode trazer benefícios para compreensão tanto do conceito da SAN quanto de suas dimensões e aplicabilidade, já que, segundo Freitas et al.7, a SAN "está presente no cotidiano enquanto fenômeno social da alimentação humana, transpassando as muitas disciplinas e campos de saberes".

Morin8, ao falar do desenvolvimento da ciência ocidental, indica que esse foi transdisciplinar, mas que "a verdadeira questão não consiste em fazer transdisciplinar, mas que transdisciplinar é preciso fazer?"

Caraça9, em um texto sobre as ciências do passado e do futuro, aponta que "cada época cria seus modelos e organiza os saberes de acordo com o contexto social que lhes serve de suporte". Se tomarmos apenas a produção de saberes por meio de pesquisadores/grupos de pesquisa pois existem outras formas de produzir conhecimento , notamos que é preciso ampliar as fronteiras, articular novos saberes e áreas do conhecimento, aprender novas formas de comunicação, valorizar processos e relações emancipatórias e privilegiar "o encontro inter e transdisciplinar das reflexões construtivas sobre o presente e o futuro"9.

Os autores trouxeram suas contribuições ao realizarem o diagnóstico sobre os grupos de pesquisas já formados e apontarem caminhos para superação das dicotomias ainda presentes. Restam, agora, os desafios para que a abordagem dos artigos seja ampliada e que estes incorporem, principalmente, a dimensão do direito humano à alimentação saudável. O convite está no ar.

  • 1
    Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos. Segurança alimentar e nutricional (SAN) e o direito humano à alimentação adequada. Curso formação em direito humano à alimentação adequada no contexto da segurança alimentar e nutricional - módulo 1. Brasília: ABRANDH; 2009.
  • 2
    Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social. [acessado 2009 set 12]. Disponível em: http://www.mds.gov.br/portalfederativo/segalimentar/pag/programas/centros-de-apoio-a-agricultura-urbana-e-periurbana-e-sistemas-coletivos-de-producao-para-autoconsumo
  • 3. Burlandy L. A construção da política de segurança alimentar e nutricional no Brasil: estratégias e desafios para a promoção da intersetorialidade no âmbito federal de governo. Cien Saude Colet 2009; 14(3):851-860.
  • 4. Castro LMC. A universidade, a extensão universitária e a produção de conhecimentos emancipadores: ainda existem utopias realistas [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2004.
  • 5. Escorel S. Projeto Montes Claros - Palco e bandeira de luta, experiência acumulada do movimento sanitário. In: Teixeira SF, organizador.Projeto Montes Claros: a utopia revisitada. Rio de Janeiro: ABRASCO; 1995. p.129-164.
  • 6. Trindade H. Universidade, ciência e Estado. In: Trindade H, organizador.Universidade em Ruínas na República dos Professores. Petrópolis: Vozes; Rio Grande do Sul: CIPEDES; 1999. p. 9-23.
  • 7. Freitas MCS, Pena PGL. Segurança alimentar e nutricional: a produção do conhecimento com ênfase nos aspectos da cultura.Rev. Nutr. 2007; 20(1):69-81.
  • 8. Morin E. Ciência com consciência. 5Ş ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2001.
  • 9. Caraça J. Um discurso sobre as ciências passadas e presentes. In: Santos BS, organizador. Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez; 2004. p. 183-189.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Fev 2010
  • Data do Fascículo
    Jan 2010
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