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As autoras respondem: gênero na investigação em saúde coletiva: uma categoria polissêmica e instigante

The authors reply: gender in the investigation in public health: a polysemic and provocative category

DEBATEDORES DISCUSSANTS

As autoras respondem

Gênero na investigação em saúde coletiva: uma categoria polissêmica e instigante

The authors reply

Gender in the investigation in public health: a polysemic and provocative category

Inicialmente, gostaríamos de agradecer aos colegas que generosamente aceitaram participar deste debate. As reflexões que o nosso artigo provocou confirmaram, pela riqueza e pluralidade de idéias dos debatedores, que gênero é uma categoria instigante. Seu uso na análise da produção acadêmica da saúde coletiva fomentou novas idéias e inspirações para estudos e ações nesse campo.

Para possibilitar um diálogo coletivo com os cinco debatedores, pinçaremos alguns dos argumentos que nos pareceram mais provocativos, estabelecendo eventuais conexões entre eles. Assim, a reflexão de Luiz Cecilio militante nas áreas de política, planejamento e gestão, identificadas em nosso trabalho como menos permeável à incorporação da categoria gênero parte do pressuposto de que, até o momento, o peso maciço das mulheres na composição da força de trabalho não foi suficientemente considerado pela literatura em saúde. Isto, por certo, já sugeriria a necessidade de um olhar "generificado" para os processos e relações que se constituem no setor. Eleonora Menicucci reforça este posicionamento ao argumentar que a inserção de homens e mulheres no mundo do trabalho não pode desconsiderar as relações sociais de sexo que orientam esta inserção.

Cecilio escapa da resposta mais fácil e imediata, de relacionar o "cuidar" em saúde a uma das atribuições mais características da feminilidade, para se interrogar sobre como se dá o exercício do poder pelas mulheres. O autor não se deixa seduzir por visões correntes que, por exemplo, atribuem o poder sempre ao masculino, quer exercido por homens ou por mulheres. Sua reflexão nos remete para um ponto central das discussões sobre gênero, trazida à luz neste debate também por Carlos Botazzo. Seria pertinente falar de poder ou de poderes? Podemos considerar todo exercício de poder como opressor? O poder exercido pelas competentes gestoras que Cecilio encontrou parece estar mais relacionado à capacidade de facilitar processos. Essa perspectiva coincide com o que Belle, citada por autor, aponta: exercer poder para muitas mulheres é a possibilidade de reinventar um modo de ser mulher na sociedade que não precisa necessariamente estar relacionado aos estereótipos tradicionais do feminino.

Na mesma direção, Botazzo sugere a necessidade de um rompimento com os estereótipos de gênero para a expressão das singularidades. Ao lado desta assertiva, o autor assinala a tensão teórica existente nas formulações sobre poder e sua tradução em diferentes níveis e tipos de desigualdades sociais. Deste modo, reforça que a análise do rebatimento das diferentes estruturas e dinâmicas de poder nas relações entre homens e mulheres parece ainda não estar suficientemente explorada. Em nosso ponto de vista, tal análise tampouco tem sido objeto de estudos empíricos mais consistentes na área da saúde coletiva de modo a estabelecer relações entre os diferentes lugares ocupados, por homens e mulheres, nos sistemas de poder e suas repercussões sobre a saúde dos indivíduos.

Ao reiterar a centralidade do trabalho na vida das pessoas e a sexuação da inserção de homens e mulheres no mundo laboral, Menicucci chama atenção para a necessária articulação do trabalho com os modos de viver, adoecer e morrer nos estudos em saúde coletiva. Ademais, a autora postula que esta articulação permitiria superar o acoplamento dos chamados estudos de gênero aos temas de saúde sexual e reprodutiva. De fato, em nosso trabalho, identificamos a grande afinidade entre o uso da categoria gênero e as pesquisas em saúde, sexualidade e reprodução. No entanto, em que pese a pertinência da ponderação de Menicucci, vale lembrar que tal recorrência encontra-se relacionada à tentativa de desnaturalizar aquilo que é considerado o elemento fundante da perspectiva biologicista sobre a diferença sexual, a reprodução. De qualquer modo, concordamos que, se não houver a superação da tríade gênero/mulheres/saúde reprodutiva nas investigações da área, a abordagem da saúde de mulheres e de homens permanecerá limitada à sua condição biológica, reduzindo assim a capacidade transformadora do uso de gênero na investigação em saúde coletiva.

Este paradoxo também é apontado por Jorge Lyra a respeito da abordagem das masculinidades no campo da saúde. Suas ponderações suscitaram as seguintes indagações: como dar visibilidade às questões de saúde dos homens no interior dos estudos de gênero sem criar um campo específico? Em que medida os estudos das masculinidades reproduziriam a dicotomia masculino-feminino, acabando por reduzir e conformar as características individuais? Outro aspecto assinalado por Lyra refere-se à tensão entre a produção acadêmica e a formulação de políticas públicas.

De fato, o conceito de gênero foi produzido no interior do movimento feminista com a vocação de fomentar ações que contribuíssem para reduzir a subordinação social das mulheres; ou seja, a categoria gênero nasce com a disposição para o diálogo com as políticas públicas. No entanto, a despeito dessas vocações, a promoção de equidade, dentre elas a de gênero, um dos pilares do Sistema Único de Saúde, ainda não foi suficientemente operacionalizada. Tem sido evidenciado um maior êxito na extensão dos cuidados para aqueles sem acesso à saúde, do que a promoção de ofertas específicas segundo necessidades particulares. O atendimento dessas especificidades implica a criação de programas focalizados que desafiam a perspectiva de integralidade do sistema. A proposta de uma política de saúde integral do homem, ora em elaboração e com breve perspectiva de implementação, consiste em um claro exemplo desta ambiguidade. Se de um lado esta política atende às demandas dos que apontam que os serviços de saúde, especialmente na atenção básica, privilegiam mulheres e crianças, por outro, ela reforça a segmentação do sistema a partir da divisão binária entre homens x mulheres.

Daniela Knauth traz para o debate uma análise sobre as significativas mudanças ocorridas nos últimos anos nas condições e nas características da saúde coletiva. A autora aponta para um desequilíbrio entre as disciplinas constitutivas deste campo, bem como para ênfase na perspectiva acadêmica da área. Seus argumentos são ilustrados pela valorização da epidemiologia como área de conhecimento, pelo crescimento das pós-graduações e pelo destaque à produção científica de impacto. Na sua visão, a excessiva especialização disciplinar e um certo distanciamento de referenciais políticos arriscam comprometer a almejada interlocução que caracteriza a interdisciplinaridade da saúde coletiva e esvaziar a polissemia e o vigor transformacional do conceito de gênero.

Este cenário revela que o necessário e enriquecedor exercício da interdisciplinaridade exige importantes esforços no âmbito acadêmico e político. Compreendemos que a análise da apropriação do termo gênero na produção acadêmica em saúde coletiva, abordada em nosso texto, pode fornecer evidências para orientar o diálogo entre os saberes disciplinares e os atores sociais envolvidos. Este mapeamento cumpre assim o papel de exemplificar os avanços, as tensões e os desafios de construir pontes entre saberes e lugares, tendo em vista o potencial de uma área com uma configuração e um histórico peculiares, conforme assinalado nos textos. Nesta direção, são importantes o incremento de análises acerca do uso de gênero na formulação e a implementação de serviços e políticas públicas e da sociedade civil. É igualmente relevante o fomento destas iniciativas nos cursos de graduação e pós-graduação e nas agências de apoio ao ensino e à pesquisa, dadas às especificidades de cada área de conhecimento.

Nas discussões dessa natureza, não se deve perder de vista o fato do uso do termo gênero apresentar uma dupla inserção, uma no contexto das práticas sociais e outra como uma estratégia de recorte teórico de uma dimensão da realidade humana e social, nem sempre contemplada na constituição do campo científico.

No seu conjunto, os debatedores reconhecem que o uso da categoria gênero na investigação em saúde coletiva instiga a adoção de uma perspectiva analítica diferenciada e produtiva acerca dos processos de saúde e doença, embora também apontem para as ambiguidades e contradições internas à categoria. De fato, o material por nós pesquisado reflete uma multiplicidade de apropriações que corresponde, em parte, a estas características. Os debatedores são unânimes em apontar novos objetos e caminhos de investigação que o uso da categoria gênero pode trazer para a saúde coletiva. Nesta direção, continuamos a apostar que o uso de gênero pode instigar novos avanços teóricos e metodológicos para as diversas áreas de conhecimento e contribuir para a compreensão da experiência dos sujeitos, mulheres e homens, na produção da saúde. Os assinalamentos efetuados ao longo do debate objetivam desse modo servir de inspiração e estímulo para uma reflexão contínua sobre o estatuto e a função da categoria gênero no âmbito da saúde coletiva.

Agradecemos mais uma vez aos debatedores a oportunidade do diálogo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Out 2009
  • Data do Fascículo
    Ago 2009
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