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Gasto social no Brasil: programas de transferência de renda versus investimento social

Social spending in Brazil: income transfer programs versus social investments

Resumos

Este artigo contrapõe a evolução recente do gasto no Brasil: redução do gasto com infra-estrutura social e aumento das transferências monetárias sujeitas à comprovação de renda. Evidencia-se que o modelo de combate à pobreza vigente no Brasil concentrado em programas focalizados de transferência de renda sem promover em simultâneo o aumento do gasto per capita em educação, saneamento básico, habitação não equaciona a questão da desigualdade. Neste artigo, trabalhamos com dados secundários da PNAD e do orçamento da União, estados e municípios.

Pobreza; Transferências de renda não-contributivas; Gasto Social


This paper compares the dynamics of social spending in Brazil, with lower outlays on basic services and more direct monetary transfers through means-test programs, highlighting the fact that as Brazil's social safety net concentrates on cash transfer programs without simultaneously increasing per capita outlays on education, basic sanitation and housing, it is not resolving the issue of inequality. This paper works with secondary data from the National Household Sampling Survey, together with Federal, State and Municipal budgets.

Poverty; Non-contributory cash transfers; Social spending


ARTIGO ARTICLE

Gasto social no Brasil: programas de transferência de renda versus investimento social* * A primeira versão deste artigo foi publicada em Sicsú J, organizador, Arrecadação, de onde vem? Gastos Públicos, para onde vão? São Paulo : Boitempo; 2007, sob o título "Transferências de renda: o quase tudo do sistema de proteção social brasileiro".

Social spending in Brazil: income transfer programs versus social investments

Lena Lavinas

Instituto de Economia, UFRJ. Av. Pasteur 250, Urca. 22.290–240. Rio de Janeiro RJ. lenalavinas@gmail.com

ABSTRACT

This paper compares the dynamics of social spending in Brazil, with lower outlays on basic services and more direct monetary transfers through means–test programs, highlighting the fact that as Brazil's social safety net concentrates on cash transfer programs without simultaneously increasing per capita outlays on education, basic sanitation and housing, it is not resolving the issue of inequality. This paper works with secondary data from the National Household Sampling Survey, together with Federal, State and Municipal budgets.

Key words: Poverty, Non–contributory cash transfers, Social spending

RESUMO

Este artigo contrapõe a evolução recente do gasto no Brasil: redução do gasto com infra–estrutura social e aumento das transferências monetárias sujeitas à comprovação de renda. Evidencia–se que o modelo de combate à pobreza vigente no Brasil concentrado em programas focalizados de transferência de renda sem promover em simultâneo o aumento do gasto per capita em educação, saneamento básico, habitação não equaciona a questão da desigualdade. Neste artigo, trabalhamos com dados secundários da PNAD e do orçamento da União, estados e municípios.

Palavras–chave: Pobreza, Transferências de renda não–contributivas, Gasto Social

Introdução

A finalidade desse artigo é contrapor a progressão sistemática e expressiva do gasto social com benefícios monetários não–contributivos e a negligência evidente com os chamados gastos in kind ou a provisão de serviços públicos de caráter universal, cuja razão de ser maior é justamente dirimir iniqüidades horizontais e verticais, propiciando padrões básicos de serviços e bens que garantam igual acesso e iguais oportunidades a todos os cidadãos. A mensuração dessas desigualdades – a desigualdade no gasto público (gasto per capita), a desigualdade no uso (acesso a bens e serviços), a desigualdade de custos (relativos aos usos) e a desigualdade de resultados (derivada da qualidade da oferta) – escapa sistematicamente às análises que se valem tão–somente da renda monetária declarada como proxy de bem–estar.

Neste artigo, estaremos procedendo a uma análise ainda preliminar dos significados desta escolha, mostrando que a redução da pobreza e da desigualdade de renda, registrada no país em período recente, graças à elevação dos rendimentos do trabalho nos décimos inferiores da distribuição e à expansão significativa do valor médio e do número de benefícios assistenciais, não tem sido apoiada pela expansão do gasto em investimento social indispensável ao enfrentamento de dimensões crônicas e refratárias da nossa desigualdade. A opção pelo mercado o gasto social compensatório constituindo–se essencialmente de transferências monetárias diretas de renda –, ainda assim em patamar muito pequeno no âmbito do gasto social, não tem condições de alterar de forma sustentável e irreversível o padrão de desigualdade brasileiro.

Gasto social por esferas de governo: evolução recente

É consensual o entendimento acerca do aumento do gasto social do governo federal e seus impactos na redução da pobreza1, 2,3, 4 e na queda do Gini nesta década. Entretanto, autores como Pochmann3 e Lavinas5 alertam para a redução do gasto federal em algumas funções imprescindíveis para a redução efetiva da desigualdade, como habitação e saneamento. Lá onde de fato cresce substantivamente o gasto social do governo federal é nas transferências monetárias diretas, tal como demonstrado na Tabela 1. O destaque fica com as transferências de caráter assistencial, sujeitas à comprovação de renda, que aumentam em 50% entre 2001 e 2004, bem mais do que as previdenciárias. Na verdade, os benefícios não–contributivos registraram forte crescimento nas duas modalidades existentes, seja naquelas sujeitas à comprovação de renda (74% entre 2001 e 2004), as mais expressivas, ou naquelas sem critério de renda (81%, no mesmo período), de peso muito pequeno.

Ao contrário, houve uma retração significativa do gasto na rubrica "saneamento básico e habitação" por parte do governo federal: já pouco expressivo em 2001, da ordem de R$ 2,5 milhões em valores constantes de 2004, cai para R$ 1,3 milhão em 2004. Ou seja, uma variação negativa de 45,8%. Já nas funções de saúde/saneamento e educação/cultura, a variação do gasto em termos reais entre 2001 e 2004 foi, respectivamente, de 13% e 10%, muito embora a evolução do gasto social com ensino fundamental, alfabetização de jovens e adultos, educação especial, educação infantil e ensino médio tenha sido de apenas 6,1% no período observado.

Em paralelo, fala–se recorrentemente do aumento da receita tributária disponível nas esferas subnacionais, em razão da elevação da carga tributária que subiu de 31,61% do PIB em 2000 para 34,69% em 2003, e 35,74% em 2004, segundo o Tribunal de Contas da União6. A despeito de se observar "um aumento do peso do governo federal em cima da deterioração da fatia estadual" 7, as prefeituras são hoje responsáveis em grande medida pela execução do gasto social, especialmente nas áreas de saneamento, habitação e urbanismo, funções que nas últimas décadas foram negligenciadas dentre as prioridades sociais. Segundo Garson8, 40% da despesa dos estados é gasto social, porcentagem essa que sobe 69,8% no caso dos municípios (dados para 2002). Ora, é justamente o gasto social descentralizado que deveria ser medido, para além do gasto do governo federal, uma vez que as áreas de saúde, saneamento, habitação, educação, assistência, onde as esferas local ou estadual são fortemente atuantes, mostram–se essenciais à promoção de mais bem–estar, favorecendo a inclusão social e a eqüidade.

A tentativa de estimar a evolução do gasto social nos níveis subnacionais ressente–se, porém, da ausência de dados consolidados pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) para os anos mais recentes notadamente as despesas municipais de 2003 e 2004. Tem havido reestruturação das informações disponibilizadas pelo STN, com níveis crescentes de desagregação por subfunção, o que é, sem dúvida, promissor. Uma primeira abertura dissociando funções antes reunidas (saúde e saneamento, por exemplo) ocorreu em 2002, e a partir de 2004 tal desagregação passa a ser divulgada em nível dos estados contemplando subfunções, o que permite vôos maiores. No âmbito desse capítulo, que mais pretende levantar pistas de pesquisa do que trazer respostas, vamos proceder a uma leitura preliminar da evolução do gasto nas esferas subnacionais (estados e municípios), por funções, comparando sua evolução com o gasto federal no período 2001–2004. A evolução do gasto municipal será feita com uma amostra (3.909 municípios), uma vez que para 2003 e 2004 não se dispõe de todo o universo. A consolidação dos dados junto ao STN é iniciativa dos próprios municípios e até a presente data nem toda a base está completa. Em 2004, somente 71% dos municípios declararam suas contas, o que corresponde a perto de 85% da população brasileira. Foi–nos possível identificar a base declarada nos três anos 2002 a 2004 –, envolvendo uma amostra de 3.909 municípios ou 69% do universo.

Qual a dinâmica do gasto social real na esfera estadual? À imagem do que ocorreu em âmbito federal, a Tabela 2 mostra forte retração do gasto social em nível estadual, em percentuais significativos, no período 2002–2004, em determinadas funções, à exceção da área de saúde e da rubrica direitos de cidadania. Toda a área associada à infra–estrutura urbana, moradia e saneamento básico, diretamente correlacionada com a melhoria das condições de vida da população carente, registrou declínio importante, o mesmo ocorrendo com a educação. Ora, parte do gasto com educação (ensino médio notadamente) é de competência estadual. A despesa com saúde, cujo crescimento foi expressivo, pode ser explicada pela exigência da emenda constitucional n. 29/2000, que obriga municípios e estados a aplicarem, no mínimo, respectivamente, 15% e 12% de suas receitas próprias somadas às transferências constitucionais até o exercício financeiro de 2004. Esse montante a ser aplicado compulsoriamente vai somar–se às transferências vinculadas da saúde, como o Sistema Único de Saúde, convênios especiais, etc. Daí, provavelmente, sua evolução em três anos ser tão positiva.

Em termos de per capita (Tabela 3), observam–se valores muito baixos nas funções que dizem respeito ao gasto com infra–estrutura urbana (urbanismo, habitação, saneamento), variando entre R$ 5,00 e R$ 9,00 por habitante ao ano, sendo ainda menor se forem deduzidas as chamadas "demais funções", que em muitos casos agregam despesas com aposentadorias e pensões (o gasto consolidado dos estados em 2004, apresentado pela STN, computa na rubrica "aposentadorias, pensões e reformas e contribuições fechadas a entidades de previdência", logo por categoria econômica, cerca de R$ 37 bilhões, enquanto na distribuição do gasto por função previdência estão especificados apenas R$ 23,4 bilhões. Por isso mesmo pode–se deduzir que a diferença está registrada em diversas subfunções dentro das diversas funções de governo, possivelmente saúde e educação). O gasto efetivo, se não computadas as despesas com a função previdência, seria, portanto, bem menor. Logo, o investimento na área social por parte dos estados é absolutamente insuficiente diante do quadro de deterioração urbana e precarização da moradia e do acesso a serviços urbanos básicos.

No caso das despesas efetuadas pelos municípios, uma primeira estimativa (Tabela 4), feita a partir de uma amostra de 3.909 municípios para os anos de 2002/03/04, indica mais uma vez expansão acentuada do gasto com saúde, pelas razões já explicitadas (aplicação compulsória de 15% da receita própria e transferências constitucionais em saúde). Registra–se também aumento significativo das despesas na área ambiental e, em proporção menor, com urbanismo. Essa rubrica, no caso dos municípios, tem mais a ver com custeio do que propriamente com investimento, pois parte não desprezível desse gasto destina–se à limpeza de galerias pluviais, controle de trânsito e outras despesas de manutenção. Em outras palavras, o investimento social em moradia e esgotamento sanitário retrocedeu. A despesa com educação, voltada sobremaneira para o ensino fundamental, pré–escola, creche, alfabetização, de importância estratégica no momento em que se expande a cobertura de programas de transferência de renda condicionados à freqüência escolar das crianças revela uma muito provável diminuição do per capita em nível municipal. Os gastos com educação praticamente não variaram, em termos reais, no período. Nada disso aponta para uma revalorização inconteste do ensino público no país, muito pelo contrário. A pergunta é por que usar da freqüência obrigatória à escola como contrapartida civilizatória de programas que não se constituem em direitos quando o Estado não faz minimamente a sua parte, gerando incentivos e outros mecanismos de inclusão. É bom recordar que o IBGE estimou (Suplemento 2004 da PNAD) que somente 13% das crianças na faixa 0–3 anos freqüentam creche, serviço cuja provisão deveria ser assegurada pelos municípios. Na sua grande maioria, essas crianças são de classes de renda elevada. A própria função assistência, de papel fundamental no combate à exclusão e na provisão de um sem–número de serviços capazes de reduzir o grau de sofrimento social, não registra variação entre 2002–2004, o que é preocupante.

As constatações acima não deixam dúvida quanto ao fato de não ter havido no período 2002–2004 um esforço coordenado por parte das instâncias federal e subnacionais na provisão de serviços públicos indispensáveis à redução das desigualdades no modo de vida e ao aumento do bem–estar em paralelo à elevação da renda familiar e individual e do consumo, estes impulsionados pela maior cobertura dos programas de transferência de renda assistenciais e por melhorias no mercado de trabalho. O fato de estados e municípios terem inclusive mais liberdade em termos de endividamento junto ao governo federal (limite de pagamento da sua dívida é restringido a um teto de 13% da sua receita corrente líquida) não tem contribuído para redirecionar e elevar o gasto social em funções que podem promover novo padrão redistributivo, pelo contrário. A alocação do gasto em funções de primeira necessidade vem decrescendo ou se mantém estagnada, exceção feita da saúde onde existe compulsoriedade alocativa.

A Tabela 5 demonstra que houve redução do gasto per capita inclusive com educação, o que é preocupante, em nível municipal; portanto, na oferta de ensino fundamental universal e obrigatório. A retração no gasto per capita com educação caiu 1,2 % a.a. Em habitação, a queda no gasto per capita ao ano, entre 2002 e 2004, foi de 8,29% e com saneamento básico, 10,1%. O chamado investimento social vem diminuindo e não acompanha o crescimento populacional, gerando, portanto, externalidades negativas, deterioração social e ambiental.

Transferências de renda: eficiência horizontal e vertical e eficácia do gasto

O lançamento de vários suplementos novos da PNAD bem como a própria pesquisa domiciliar vêm propiciando análises mais refinadas do alcance dos programas sociais de transferência de renda focalizados, vertente quase exclusiva e preferencial do gasto social não–contributivo, à exceção do Benefício de Prestação Continuada (BPC).

O BPC – juntamente com o resíduo dos beneficiários da Renda Mensal Vitalícia (RMV) – atende hoje a cerca de 2,2 milhões de pessoas muito pobres, entre idosos e portadores de deficiência. Somou, em 2005, R$ 8,5 bilhões. Constitui–se em um direito ou seja, todos aqueles que preenchem os requisitos de elegibilidade são contemplados e tornam–se beneficiários, independentemente da situação do caixa do governo. Como o déficit de cobertura é pequeno, pois o grosso do público–alvo potencial já é atendido, se a economia crescer de forma sustentada e a renda média aumentar, a demanda por BPC tende a cair. O único porém, nesse caso, é o fato de o BPC ter como linha de pobreza ¼ do salário mínimo per capita, o que pressiona pelo lado da demanda, já que a linha de pobreza, vinculada ao mínimo, acaba por elevar o número de beneficiários potenciais toda vez que há valorização real do salário mínimo, o que não deveria ocorrer: é sabido que o aumento real do salário mínimo reduz a incidência da pobreza.

Já os demais programas de transferência de renda tipo Bolsa–Família – Vale–Gás, Bolsa–Alimentação, Bolsa–Escola e aqueles de iniciativa dos estados e municípios como o Bolsa–Escola em Recife, o Renda Cidadã em São Paulo, o Cheque Cidadão no estado do Rio de Janeiro, e outros resíduos que vêm sendo assimilados pela centralização do Bolsa–Família –, não garantem o direito à segurança econômica, senão uma renda, o que é radicalmente distinto. Sua evolução em termos de público–alvo potencial depende em primeiro lugar de quanto se quer gastar com determinado programa. Daí em diante, adéquam–se os demais parâmetros ao gasto orçado para regular a contento a demanda definida ex–ante. Se essa demanda vier a variar para mais, a tendência é haver déficit de cobertura, ou seja, nem todos os elegíveis serão atendidos. E esse déficit será tanto maior quanto maior a variação positiva do público–alvo potencial.

Esse diferencial garantir um direito ou dar renda – não deve ser menosprezado. Trata–se de um divisor de águas em matéria de política social, com repercussões nada anódinas no acesso a oportunidades, melhorias nas condições de vida, bem–estar e cidadania.

Por que existem programas focalizados sujeitos à comprovação de insuficiência de renda? Antes de mais nada, para restringir a demanda, tornando o acesso difícil, inconveniente (custos elevados para obter o benefício), quando não estigmatizante, levando, pois, a que beneficiários potenciais dispensem o auxílio monetário. Por isso mesmo a imagem mais usada quando o assunto é programas de transferência de renda focalizados é a da "organização da fila". A metáfora sugere ganhos de eficiência, já que ao pôr ordem na fila se estaria estruturando o caos e identificando aqueles verdadeiramente merecedores da ajuda pública, que costumam ser os não–cidadãos ou os cidadãos de segunda classe. Só que não se trata propriamente de um direito de cidadania, mas da escolha "menos pior". Esse é o princípio da autofocalização: aceitam–se os custos que são impostos porque seria pior, mais custoso, não aceitar.

No Brasil, os custos de inconveniência são facilmente compensáveis qualquer que seja, no limite, o valor do benefício. No primeiro décimo da distribuição, o percentual de ocupados com rendimentos do trabalho zero ou inferior a um salário mínimo alcança 96% dos trabalhadores, percentual esse que alcança 67% no segundo décimo. Considerando os 40% mais pobres da população ocupada que não ganha nada ou tem rendimento mensal inferior ao salário mínimo, temos assustadores 15 milhões de pessoas, os sem escolha.

Entretanto, mesmo os sem escolha nem sempre conseguem ser identificados quando um benefício compensatório não é um direito. Além de preencher os requisitos definidos, há que ser capaz de se posicionar corretamente na fila, nos primeiros lugares, até onde alcança a mão do Estado (logo, ser capaz de superar limites derivados da condição de pobre, tais como falta de informação, meios para funcionar em prol de seus interesses mais imediatos, etc.).

Ao contrário do BPC, os programas de transferência de renda que não se constituem em direitos costumam pecar por gerar ineficiências horizontais, isto é, nem todos os pobres acabam sendo atendidos, embora habilitados. A PNAD 2004 revelou o problema: do total de famílias com renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo – aquelas, portanto, em situação de indigência –, metade não havia sido contemplada por nenhum tipo de auxílio. Significa, portanto, dizer que o déficit de cobertura costuma afetar mais gravemente aqueles grupos mais vulneráveis, mais desprotegidos, o que não é exatamente o melhor meio de se combater a iniqüidade e a miséria.

O Suplemento da PNAD 2004 sobre Segurança Alimentar reafirma esse problema de cobertura: dos 18 milhões de domicílios que registram algum nível de insegurança no que tange o acesso a uma alimentação equilibrada e saudável, somente 31% declararam ter sido contemplados com algum tipo de transferência de renda pública naquele ano. A maioria ficou de fora. No caso dos 3,3 milhões de domicílios classificados como em situação de insegurança alimentar grave, cerca de 1,2 milhão recebia algum tipo de transferência de renda, ao passo que 2,1 milhões nada recebiam, de nenhuma instância de governo. Em se tratando de domicílios com prevalência de insegurança alimentar moderada, aqueles beneficiários de alguma transferência de renda somavam 2 milhões contra 4,1 milhões de não–beneficiados.

Exemplos não faltam para mostrar o grau de ineficiência horizontal nos programas sujeitos à comprovação de renda que não estão lastreados por direitos, muito embora o Brasil venha sendo apontado como a mais bem sucedida ilustração do como focalizar, pois 71,5% dos benefícios sujeitos à comprovação de renda chegam ao público–alvo.

Nos 10 % mais pobres da população brasileira, 37% das famílias são monoparentais com filhos e 48% são constituídas de arranjos formados por casais com filhos. Em termos absolutos isso significa, respectivamente, 1.688 milhão de famílias e 2.158 milhões. Em 2004, a renda familiar per capita média das primeiras, computando–se apenas os rendimentos do trabalho e aposentadorias, é metade daquela estimada nos arranjos biparentais, respectivamente R$ 12,00 e R$ 24,00. Não há dúvida de que a situação é dramática para todos, mas o preocupante é constatar que as famílias monoparentais, cuja renda familiar é ainda menor que a das biparentais, são proporcionalmente bem menos visíveis, pois 2/3 não são contempladas por nenhum tipo de programa de transferência de renda em 2004, segundo dados da PNAD. No caso dos arranjos biparentais, esse déficit é menor (50%): ainda assim metade não é alcançada.

Além disso, o benefício transferido, quando ocorre, não compensa o diferencial de renda familiar entre esses dois tipos de família. Lavinas e Nicoll4 verificaram com dados da PNAD 2004 que, mesmo após recebimento de transferências de renda públicas, reproduz–se o hiato de renda entre esses dois tipos de famílias, as famílias monoparentais do primeiro décimo da distribuição dispondo de uma fração (0,55) da renda familiar per capita das famílias biparentais. Os benefícios não suprimem esse hiato, não anulando, portanto, um tipo específico de vulnerabilidade, a da chefia exclusiva (ou da presença de apenas um adulto disponível para trabalhar).

Isso só faz reproduzir desvantagens entre crianças pobres, comprometendo ainda mais seu futuro em razão do tipo de família onde vivem. Para alguns, a correção do problema é – literalmente – "questão de polícia", o que deve ser a visão predominante na sociedade brasileira, afinal, uma vez que até hoje inexistem mecanismos que venham dotar as famílias monoparentais pobres de meios para melhor enfrentar a miséria. E elas são alguns milhões.

Essa constatação por si só relativiza a chamada "excelência" da focalização dos programas de renda do governo federal. Sabendo–se que o contingente de famílias indigentes não contempladas é maior do que as beneficiadas por erro de focalização, não se trata propriamente de uma soma zero. Portanto, a ineficiência vertical tem custos, e não são poucos.

Poder–se–ia atenuar tal crítica afirmando que a cobertura de um programa como o Bolsa–Família era bem menor em 2004, de quando datam as estatísticas mais recentes sobre os benefícios não–contributivos e seu impacto na redução da vulnerabilidade familiar. Entretanto, se é verdade que em meados de 2006 o número de benefícios distribuídos no âmbito desse programa chega a 8 milhões, e se suposição admissível o grau de evasão é da ordem de 30%, dificilmente se teriam corrigido as distorções acima apontadas, até porque elas derivam do desenho propriamente dito do programa.

Finalmente, a razão de ser de um programa de transferência de renda é reduzir a pobreza e, se for realmente eficaz, erradicá–la, não apenas no imediato, mas no médio e longo prazo. Na ausência de metas do governo no tocante ao percentual de pobreza que se pretende erradicar, pode–se apenas medir o número de famílias que, graças ao recebimento de algum tipo de benefício de programa público, ultrapassou a linha da pobreza para o lado bom. No caso, cruzaram a linha para cima praticamente sete milhões de pessoas, ou 14% do público–alvo beneficiado, levando o universo da pobreza, todo o resto mantido constante, para 43,5 milhões de pessoas (para elaborar tal estimativa, deduziu–se da renda familiar total o item "outros rendimentos" que consideram, no caso dos 40% mais pobres, as transferências de renda públicas federais, estaduais, municipais e outros tipos de renda, pouco representativos entre os pobres. Portanto, consideramos em quanto reduziríamos o percentual de pobres agregando–se aos rendimentos do trabalho e aposentadorias e pensões o item "outros rendimentos).

O resultado não é desprezível, mas sem dúvida tímido frente ao passivo acumulado. Isso demonstra ser necessário estabelecer metas de redução da pobreza em determinado horizonte, monitorar esse desempenho, estimar o tamanho da pobreza persistente e, por fim, elevar o valor médio do benefício, mantendo–o como uma transferência fiscal permanente, em lugar de insistir nas tais "portas de saída". Imaginar que a volatilidade da renda e do emprego e, sobretudo, a vulnerabilidade dos mais pobres estariam definitivamente solucionadas com um Bolsa–Família revela uma compreensão para lá de equivocada do que é pobreza e como ela se reproduz. O Bolsa–Família deve se transformar em um direito, estendido a todas as crianças, independentemente de sua classe social e nível de renda, já que, nos lembra a teoria econômica, a presença de crianças é um indicador "automático" de vulnerabilidade. Assim, seria possível economizar custos intermediários importantes, de caráter administrativo, instituir pela primeira vez um benefício comum a todos os brasileiros com idade inferior a 16 anos, fortalecendo a coesão social e, já não sem tempo, proceder a uma reforma fiscal–tributária que eliminasse todas as transferências de renda garantidas aos que recolhem Imposto de Renda de Pessoa Física, e que se beneficiam de isenções fiscais importantes por dependente em idade escolar até 24 anos.

Se qualquer melhora, por pequena que seja, na vida dos brasileiros mais carentes e destituídos deve ser celebrada, talvez seja tempo de refletir sobre o que ainda precisa mudar, pois resta infinitamente mais a fazer do que foi realizado: antes de mais nada, assegurar um direito, o direito à segurança socioeconômica dos mais pobres, para evitar o uso assistencialista dos benefícios, garantir o acesso a mais bem–estar e combater aquilo que em qualquer lugar do mundo minimamente civilizado é sinal de ineficiência e estigma: a fila. Qualquer benefício que não expresse um direito é, por força das circunstâncias, passível de uso político.

Entre renda e infra–estrutura social

Considerando o aumento do peso das transferências de renda na renda familiar das famílias mais pobres 28% em 2004, entre os 10% mais pobres, contra 16% em 2001 –, que ocorre em consonância com a elevação dos rendimentos do trabalho nas camadas mais pobres da população promovendo um aumento real da renda dos estratos da cauda inferior da distribuição, vale à pena investigar se tal elevação da renda familiar, promovendo aumento do consumo, foi acompanhada ou não de melhorias em termos de bem–estar agregado, ainda que saibamos que não houve incremento do gasto social nessas áreas em nenhuma das esferas de governo.

Para captar tal efeito, buscamos inferir, a partir de dados da PNAD, a evolução do grau de acessibilidade dos mais pobres aos chamados serviços sociais, em especial os que são o público–alvo dos programas de transferência de renda focalizados. Desagregamos os dados para o conjunto da população, tomando como unidade de análise os domicílios, cujo número passou de 47 milhões em 2001 para 51,8 milhões em 2004. Consideramos também em separado dois grupos que se beneficiam de programas de transferência de renda: i) o público–alvo do Bolsa–Família e afins (RFPC ou Renda Familiar Per Capita <R$ 100,00) e ii) os 40% mais pobres na curva da distribuição (feita com base na renda familiar per capita).

Nossa estimativa buscou inferir a cobertura do acesso a rede de esgoto, coleta de lixo e presença de telefone celular.

A Tabela 6 sinaliza tendência já esperada, tendo em vista o recuo do gasto social na provisão de serviços públicos de cunho universal mencionado na primeira parte deste trabalho, de grande impacto na redução de disparidades no modo de vida e no conjunto de oportunidades entre indivíduos. Em quatro anos, o quadro é de estagnação patente, a pequena melhora registrada na média brasileira tendo sido claramente favorável à população não–pobre, uma vez que os domicílios abaixo da linha de pobreza do Programa Bolsa–Família ou aqueles situados nos quatro primeiros décimos da distribuição revelam ligeira deterioração em termos de cobertura dos dois serviços públicos básicos aqui computados, a saber, rede de esgoto e coleta de lixo.

Já no caso da telefonia celular, não há dúvida de que o incremento da renda nos décimos inferiores da distribuição permitiu dobrar em apenas três anos o número de domicílios com presença de celulares. Essa taxa de crescimento foi a mais expressiva nos cortes elaborados. É inquestionável que o acesso a um celular pode ampliar oportunidades de ocupação, promover mais inclusão, facilitar a vinculação a redes comunitárias que acabam por reduzir níveis elevados de desproteção e vulnerabilidade. Mas isso engendra também mais gastos com impostos indiretos, o que nos faz supor que a renda obtida pelos mais pobres habilitados ao recebimento de transferências compensatórias acabe financiando em boa parte a carga tributária.

Estudo de Afonso et al.9 estima que a incidência efetiva dos impostos indiretos na renda dos mais pobres é altamente regressiva, proporcionalmente mais nos décimos mais pobres da distribuição. Segundo este estudo, "enquanto a tributação indireta representou 16,8% da renda das famílias pertencentes ao primeiro décimo, na classe das famílias mais ricas (pertencentes ao último décimo) mobilizou apenas 2% da renda ou seja, 9,5 pontos percentuais a menos". Os dados da POF que subsidiaram a referida pesquisa referiam–se aos dispêndios de 1995–1997. Como de lá para cá houve aumento da carga tributária, inclusive com elevação de determinadas alíquotas de taxas e mormente das contribuições sociais, pode–se imaginar que tal incidência na renda dos mais pobres tenha piorado efetivamente. É bom recordar que o aumento da carga tributária brasileira decorre da elevação de tributos cumulativos sobre o consumo, como a Cofins e a CPMF. Além disso, a elevação da arrecadação tributária não se destinou à ampliação da oferta e qualidade dos serviços públicos, mas para o pagamento de juros e amortização da dívida pública, cujo peso no PIB brasileiro pouco regrediu (cerca de 51% do PIB em 2005).

Tampouco teve lugar no Brasil a esperada reforma tributária que reduzisse a incidência de ICMS sobre uma gama ampla de produtos e serviços básicos de peso expressivo na cesta de consumo da população mais carente. A título de informação, vale lembrar que, em 2005, o ICMS foi responsável por quase 23% de toda a carga tributária brasileira. Os impostos sobre consumo correspondem a 58,7% da carga tributária total, sendo altamente regressivos.

Tal assertiva é confirmada pelo artigo de Salvador10: a POF 2002/2003 mostra que essa regressividade vem aumentando: as famílias com renda de até dois salários mínimos passaram a ter uma carga tributária indireta de 46% da renda familiar, enquanto aquelas com renda superior a 30 salários mínimos gastam 16% da renda em tributos indiretos.

A importância do investimento social na elevação da renda do trabalho das mulheres mais pobres

Buscamos identificar, no exercício abaixo, os fatores que mais contribuem para elevar os rendimentos ocupacionais das mulheres mais pobres (esta, a variável dependente). Selecionamos exclusivamente as mulheres ocupadas por saber que sua inserção no mercado de trabalho acaba dependendo fortemente de um conjunto de serviços desmercantilizados, como escola, creche, esgotamento sanitário, água encanada por interferirem na gestão sempre conflitiva entre trabalho doméstico e trabalho remunerado.

Para realizar esse exercício, elegemos o conjunto de mulheres ocupadas (inclusive com renda zero), na faixa etária 16–64 anos, que se situam nos quatro primeiros decis da distribuição, a partir de um ordenamento feito com base na renda familiar per capita. É oportuno assinalar que ao buscar uma eventual correlação entre rendimento do trabalho feminino e presença de filhos nas faixas etárias selecionadas, contemplamos o vínculo de parentesco ("mãe presente no domicílio"). Não é possível replicar esse exercício no caso dos homens, pois não há como identificar a relação de paternidade entre os homens vivendo em um domicílio ou família e as crianças que ali também vivem. Isso só é possível, até a presente data, no caso das mães.

As variáveis selecionadas estão listadas no Quadro I, que traz também os resultados do modelo linear de regressão. Trata–se de variáveis binárias (0,1), à exceção daquelas, numéricas, que se referem i) aos anos de escolaridade concluídos, ii) número de horas trabalhadas na semana na atividade remunerada, iii) número de horas dedicadas aos afazeres domésticos e iv) idade, que, neste exercício foi clipada em 45 anos para evitar uma leitura incorreta dos resultados (aumento da renda linear ao aumento da idade). Isso significa que, depois de vários exercícios, fixamos o patamar máximo etário em 45 anos, pois, a partir daí, a renda média feminina deixa de aumentar com a idade.


O primeiro modelo testado incluía igualmente a variável "ser informal (1) ou não (0)". Apesar de significante para o modelo, identificou–se um padrão bimodal nas mulheres pobres ocupadas, com a existência de duas distribuições uma para as mulheres ocupadas em atividades informais (1) e outra para as demais (0). Quando o coeficiente é semelhante nas duas distribuições "ser informal (1) ou não (0)" não se fez necessário criar uma variável interativa, o oposto ocorrendo quando os coeficientes se mostravam muito diferentes. Neste caso, as variáveis selecionadas foram multiplicadas pela variável "ser informal (1) ou não (0)". Dessa maneira, foi possível integrar no mesmo modelo uma interpretação que corresponde aos dois padrões observados.

Os coeficientes expressam, dependendo do seu sinal, acréscimos ou decréscimos nos rendimentos do trabalho das mulheres que se situam na cauda inferior da distribuição de renda (40%). Assim, equivalem a Reais (R$) de 2004. Em se tratando de variáveis interativas, a leitura, no entanto, é distinta: o valor real dos acréscimos ou decréscimos (contribuição em Reais – R$) deve ser obtido somando–se aritmeticamente os dois coeficientes estimados pela regressão (quando "informal" (1) e quando "não–informal"). Ex: O coeficiente da VAR "presença de filho com 18 anos ou mais no domicílio" estima uma redução na renda do trabalho das mulheres não–informais de R$ 23,85. Já no caso das mulheres ocupadas no setor informal, a redução da renda é de apenas R$ 6,09, isto é, (–23,85 + 17,76).

Finalmente, cabe assinalar que o valor da renda média das mulheres ocupadas objeto desse exercício foi estimada em R$ 127,00.

Considerando a presença de duas distribuições, vamos analisar os resultados partindo das cinco variáveis cujo coeficiente é comum a ambas. Ter máquina de lavar é a variável que mais contribui para elevar a renda das mulheres pobres ocupadas (R$ 54,15), aumentando–a em 42%. Observe–se que a máquina de lavar é uma medida indireta da existência de água encanada e esgotamento que pode alterar, no âmbito das relações de gênero, a inserção ocupacional das mulheres no mercado de trabalho. Considerar como variáveis diretamente água encanada e esgotamento sanitário variável domiciliar não teria o mesmo impacto do ponto de vista do gênero, que temos com a presença de uma máquina de lavar.

Outro fator importante para a elevação da renda das mulheres mais pobres é a presença de uma mulher inativa no domicílio (R$ 22,45), sem dúvida por compartilhar tempo dedicado ao trabalho doméstico e por assumir certas responsabilidades familiares. Se essa figura for aposentada ou pensionista, talvez ela ainda esteja contribuindo para assegurar uma renda mínima permanente nesses lares mais desfavorecidos e, assim, facilitar a inserção dessas mulheres no mercado de trabalho, inclusive ampliando seu leque, restrito, de oportunidades.

A idade agrega pouco em termos de valor: a cada aniversário, o rendimento do trabalho das mulheres mais pobres registra um ganho de apenas R$ 1,93.

Já cada hora extra de trabalho doméstico levaria a uma diminuição do rendimento laboral mensal de R$ 2,85, independentemente do tipo de inserção ocupacional feminina. No outro extremo, cada nova hora da jornada semanal de trabalho proporciona ao final do mês um acréscimo de aproximadamente R$ 10,00 (4x R$ 2,60).

Para poder trabalhar mais horas fora de casa, seria necessário, havendo crianças em idade pré–escolar, dispor de creches e escolas em tempo integral, já que, segundo o modelo, a existência de filhos fora da creche (0–3 anos) e fora da pré–escola (4–6 anos) acarreta uma redução no rendimento do trabalho das mulheres mais pobres de R$ 46,70 e R$ 28,57, respectivamente. Portanto, indiretamente pode–se supor que a queda do gasto per capita em nível municipal com educação, assistência social, conforme apontado na parte inicial desse artigo, no período recente, acaba por comprometer aumento da renda do trabalho das mulheres mais pobres. O baixo investimento social perpetua a pobreza por reduzir oportunidades de emprego e mobilidade.

No caso de essas mulheres estarem na informalidade, a perda é menor do que aquela registrada para as formalizadas, mas ainda assim, significativa. Filhos pequeninos fora da creche para essas mulheres representam uma perda salarial de R$ 17,92 mensais. O surpreendente é constatar que a recíproca não é verdadeira no caso das crianças na faixa 4–6 anos fora da pré–escola. Quando as mães destas crianças atuam na informalidade, em lugar de assistir a uma queda de seu rendimento mensal, registra–se um aumento de R$ 16,25. Uma suposição para explicar essa elevação dos rendimentos no caso das trabalhadoras informais seria o aumento do custo de oportunidade do trabalho infantil, acionado pelas famílias quando a mãe é trabalhadora informal, o que não ocorre no caso de uma inserção regular.

De modo geral, a presença de crianças é um fator correlacionado positivamente com ganhos de rendimento no trabalho para as mulheres mais pobres. Quando menor a idade dos filhos, maior o ganho salarial para todas as mulheres, embora esse ganho seja decrescente no caso das mulheres ocupadas no setor informal. Contudo, a presença no domicílio de filhos com idade igual ou superior a 18 anos está associada a uma perda de renda que pode variar de R$ 23,85, no caso das não–informais, a R$ 6,09 no caso das informais.

O modelo inferiu o impacto da presença de crianças na faixa 10–15 anos que ajudam nos afazeres domésticos e estimou que sua contribuição à elevação da renda de suas mães seria marginal: R$ 3,38 quando a trabalhadora não está na informalidade e R$ 0,79 no outro caso de figura. Ou seja, contrariamente ao senso comum, o aporte que crianças adolescentes podem ter na substituição do tempo de trabalho doméstico de suas mães não reflete ganhos expressivos. Melhor tê–las na escola.

Na posição de pessoa de referência na família, as mulheres, notadamente aquelas que não estão na informalidade, auferem rendimentos mais altos do que em qualquer outra condição (cônjuge, filha, avó, etc.). Esse é o coeficiente mais elevado estimado pelo modelo: R$ 77,60 no caso das que não são informais e R$ 50,27 para aquelas cujos rendimentos provêm de ocupações informais. Entretanto, na condição de cônjuges, as mulheres pobres ocupadas encontram–se em dinâmicas opostas: se trabalharem na informalidade, a condição de cônjuge lhe permite elevar seu rendimento mensal em R$ 41,01. Ao contrário, aquelas cujas atividades não são exercidas no setor informal, saem prejudicadas, pois registram renda salarial menor em R$ 18,43. Ou seja, para as mulheres chefes, o melhor é estar na formalidade ao passo que quando se é cônjuge mulher a informalidade permite auferir renda mais alta.

Por fim, conforme já amplamente conhecido, cada ano de escolaridade concluído agrega ao salário cerca de R$ 11,80 mensais para as mulheres que não estão na informalidade e cerca de R$ 8,12 para aquelas trabalhando em atividades informais.

Em resumo, os resultados obtidos pelo modelo e a análise dos dados empíricos que o subsidiaram permitem algumas breves conclusões:

a) A presença de crianças, em um contexto em que a taxa de fecundidade já é baixa, não inviabiliza o desempenho das mulheres mais pobres no mercado de trabalho, pelo contrário. Mas tal rendimento é bem maior quando dispõem de creches e pré–escola para seus filhos pequenos aumentando, ainda mais quando possuem uma máquina de lavar. Isso significa que, ao reduzir a carga dos afazeres domésticos, melhora a possibilidade de sua inserção no mercado de trabalho. Autonomia é bom para elevar salários. Essa autonomia é tributária no caso das mulheres mais pobres de investimentos públicos pesados em educação fundamental e pré–escola, saneamento e habitação.

b) Da mesma maneira, na posição de pessoa de referência na família, as mulheres auferem nas suas atividades rendimentos mais altos que na condição de cônjuge. De novo, trata–se de uma questão de autonomia que é, sem dúvida, o que mais restringe as oportunidades de ampliação dos rendimentos ocupacionais femininos

c) Finalmente, a presença de um inativo do sexo feminino na família também contribui para elevar os rendimentos do trabalho das mulheres mais pobres. De novo, o ponto diz respeito a mais autonomia, no plano da restrição orçamentária e também do uso do tempo (restrição temporal).

d) Os fatores que elevam os rendimentos do trabalho das mulheres pobres o que pode reduzir significativamente os níveis de pobreza – estão fortemente correlacionados com a provisão de serviços públicos nas funções, que, como vimos, vêm registrando redução do gasto per capita em nível federal, estadual e municipal.

Breves conclusões

A desvinculação de gastos com investimentos no cálculo da meta de superávit primário do governo federal, e o resultado da vinculação de 15% e 13 % da receita corrente líquida de estados e municípios, respectivamente, além das transferências constitucionais para aplicação em saúde, deveriam incentivar a busca de soluções para melhor redimensionar e realocar o gasto social em funções e subfunções que possam ampliar o grau de desmercatilização da provisão de serviços básicos de primeira necessidade, tidas como investimento social. Ou seja, há que vincular despesas a determinados fins se a provisão de serviços públicos de qualidade é uma meta na superação das desigualdades, ampliando oportunidades. O debate deve trilhar caminhos novos sob pena de fazermos do modelo americano residual de proteção social ancorado na atribuição de safety nets, de valor relativamente baixo, o nosso referencial de sociedade. Os Estados Unidos não são apenas uma dos países de crescimento mais acentuado do Gini dentre as economias de primeiro mundo. O Gini americano subiu de 0,353 em 1970 para 0,438 em 2004, segundo a revista The Economist11.

São também aquele onde o chamado welfare – restrito a transferências de renda para assegurar a sobrevivência dos menos dotados de capital social, humano e ativos na maior economia de mercado do mundo – é altamente inefetivo e constantemente colocado na berlinda pelos setores conservadores por não conseguir romper com o ciclo da pobreza e sua reprodução intergeracional. Pelo visto, a miopia de lá anda contagiosa por cá.

Agradecimentos

Agradecemos os comentários críticos de Sol Garson e Viviane Aparecida da Silva quando da versão preliminar deste texto. Agradecemos também a Marcelo Nicoll e Roberto Loureiro Filho pela colaboração técnica na elaboração dos dados deste artigo.

Artigo apresentado em 06/12/2006

Aprovado em 02/03/2007

Versão final apresentada em 15/03/2007

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    Pochmann M. Gasto social e seus efeitos recentes no nível de emprego e na desigualdade da renda do trabalho no Brasil. 2006. p. 1–10. [Mimeo].
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  • *
    A primeira versão deste artigo foi publicada em Sicsú J, organizador,
    Arrecadação, de onde vem? Gastos Públicos, para onde vão? São Paulo
    : Boitempo; 2007, sob o título "Transferências de renda: o quase tudo do sistema de proteção social brasileiro".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Aceito
      15 Mar 2007
    • Revisado
      02 Mar 2007
    • Recebido
      06 Dez 2006
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