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Disciplinarização da boca, a autonomia do indivíduo na sociedade do trabalho

Disciplining of the mouth, an individual's autonomy in the work society

Resumos

Este estudo analisa o processo saúde-doença da boca sob o conceito de "bucalidade", como proposto por Botazzo¹. São apresentados limites da odontologia, afirmando sua insuficiência para discutir a saúde bucal a partir da relação da boca com a sociedade. Por meio do conceito de disciplina como produtora de corpos úteis e dóceis, proposto por Foucault, introduz-se a questão da autonomia do indivíduo na sociedade do trabalho. Caracteriza-se um processo de disciplinarização dos corpos para uma adequação ao capitalismo. Em um segundo momento, constitui-se um recorte específico: a disciplinarização da boca, e a odontologia como instrumento de disciplinarização. A odontologia colaborando na produção de bocas funcionalmente úteis, mas politicamente dóceis, disciplinadas. A boca como área de atuação específica de um campo do saber e de mercado. Boca vigiada, controlada e esquadrinhada. A boca é disciplinada e seus prazeres são tolhidos. E as repressões sobre a boca não teriam conseqüências sobre a sua saúde? Este processo utilizou-se da odontologia como legitimadora da disciplinarização da boca, que passa a ser alienada, isolada e discriminada. Finalmente, propôs-se a "bucalidade" como alternativa para uma nova compreensão da boca e da saúde bucal e, quem sabe, do próprio objeto da odontologia.

Bucalidade; Saúde coletiva; Disciplinarização


This paper analyzes the dental health/ disease process using the concept of "buccality", as proposed by Botazzo¹. Limitations of dentistry and its insufficiency are presented in order to discuss buccal health based on the role the mouth plays within society. Starting from the disciplining of society a producer of useful and docile bodies , a concept laid out by Foucault, the issue of an individual's autonomy in the work society is introduced. It is characterized as a process of disciplining of bodies to make them adequate to capitalism. In a later moment, it constitutes a specific clipping: the disciplining of the mouth and dentistry as an instrument of discipline. Dentistry producing functionally useful, but politically docile and disciplined mouths. The mouth seen as a specific field of work for a knowledge and market area. A watched, controlled and framed mouth. The mouth is disciplined and its pleasures are restrained. Wouldn't the repressions over the mouth have consequences for its health? This process used dentistry as a great legitimizer of the disciplining of the mouth, which becomes alienated, isolated and discriminated against. Finally, "buccality" was proposed as an alternative way for a new comprehension of the mouth and of buccal health, and who knows, as the object of dentistry itself.

Buccality; Collective health; Disciplining


ARTIGO ARTICLE

Disciplinarização da boca, a autonomia do indivíduo na sociedade do trabalho

Disciplining of the mouth, an individual's autonomy in the work society

Douglas Francisco KovaleskiI; Sérgio Fernando Torres de FreitasI; Carlos BotazzoII

IDepartamento de Saúde Pública, Centro de Ciências de Saúde, UFSC. Campus Universitário, Trindade, 88040-970, Florianópolis SC. kovaleski@ccs.ufsc.br

IIInstituto de Saúde, Núcleo de Investigação em Cidadania e Saúde, CCD/SES-SP

RESUMO

Este estudo analisa o processo saúde-doença da boca sob o conceito de "bucalidade", como proposto por Botazzo1. São apresentados limites da odontologia, afirmando sua insuficiência para discutir a saúde bucal a partir da relação da boca com a sociedade. Por meio do conceito de disciplina como produtora de corpos úteis e dóceis, proposto por Foucault, introduz-se a questão da autonomia do indivíduo na sociedade do trabalho. Caracteriza-se um processo de disciplinarização dos corpos para uma adequação ao capitalismo. Em um segundo momento, constitui-se um recorte específico: a disciplinarização da boca, e a odontologia como instrumento de disciplinarização. A odontologia colaborando na produção de bocas funcionalmente úteis, mas politicamente dóceis, disciplinadas. A boca como área de atuação específica de um campo do saber e de mercado. Boca vigiada, controlada e esquadrinhada. A boca é disciplinada e seus prazeres são tolhidos. E as repressões sobre a boca não teriam conseqüências sobre a sua saúde? Este processo utilizou-se da odontologia como legitimadora da disciplinarização da boca, que passa a ser alienada, isolada e discriminada. Finalmente, propôs-se a "bucalidade" como alternativa para uma nova compreensão da boca e da saúde bucal e, quem sabe, do próprio objeto da odontologia.

Palavras-chave: Bucalidade, Saúde coletiva, Disciplinarização

ABSTRACT

This paper analyzes the dental health/ disease process using the concept of "buccality", as proposed by Botazzo1. Limitations of dentistry and its insufficiency are presented in order to discuss buccal health based on the role the mouth plays within society. Starting from the disciplining of society ­ a producer of useful and docile bodies ­, a concept laid out by Foucault, the issue of an individual's autonomy in the work society is introduced. It is characterized as a process of disciplining of bodies to make them adequate to capitalism. In a later moment, it constitutes a specific clipping: the disciplining of the mouth and dentistry as an instrument of discipline. Dentistry producing functionally useful, but politically docile and disciplined mouths. The mouth seen as a specific field of work for a knowledge and market area. A watched, controlled and framed mouth. The mouth is disciplined and its pleasures are restrained. Wouldn't the repressions over the mouth have consequences for its health? This process used dentistry as a great legitimizer of the disciplining of the mouth, which becomes alienated, isolated and discriminated against. Finally, "buccality" was proposed as an alternative way for a new comprehension of the mouth and of buccal health, and who knows, as the object of dentistry itself.

Key words: Buccality, Collective health, Disciplining

Uma apresentação do objeto

O presente estudo analisa o processo saúde-doença da boca sob o conceito de "bucalidade", como proposto por Botazzo1: a dimensão civilizatória daquilo que é bucal ­ a manducação, o erotismo e a linguagem; o óstio de entrada do mundo pelo corpo e do corpo pelo mundo. Falamos de uma boca produtora de subjetividades.

Não se está aqui a falar da prática dos dentistas ou, ainda, de um ponto de vista odontológico. Esta ressalva é necessária porque muito rapidamente este específico recorte tem a capacidade de se interpor nos raciocínios e, assim, se reduzem as possibilidades do bucal à dimensão dentária; e dela, supõe-se, não se pode distinguir o homem e a sociedade.

É possível desenvolver raciocínio contrário e demonstrar o quanto singularmente as peças dentárias articulam-se às esferas da subjetividade. No entanto, embora tente compreender este outro lado da existência humana, compreensivelmente a odontologia não avança muito além das teorias comportamentais. Deve ser assim porque as leituras da sua clínica surgem sempre bastante mecanizadas, e a sua representação acaba sendo reproduzida no interior da profissão.

Como toda clínica, é no plano individual que seu cuidado se realiza, e nele o indivíduo pode experimentar a qualidade do cuidado que lhe foi prestado e saber se lhe foi útil. Estes efeitos somados um a um não resultam, todavia, em bem-estar bucal coletivo. Por isso, pode-se dizer que, apesar dos avanços científicos e tecnológicos da odontologia no Brasil, não se obtiveram melhorias efetivas nos indicadores populacionais das doenças bucais até muito recentemente. Até aqui, pode-se dizer que ­ coletivamente ­ fracassou.

Não se trata de recusar a melhoria dos indicadores de saúde bucal. É preferível afirmar que os índices de cárie diminuíram apesar da odontologia. A compreensão defendida é que o desenvolvimento da profissão acontece historicamente sem interferir muito na doença. Não se sabe muito acerca das outras doenças bucais e, se aqui se fala em cárie dentária, é porque, de certo modo, sua medida funciona hoje como marcador de situações sociais, e este evento deve ser igualmente ressaltado.

Desde as suas origens, os avanços da odontologia identificam-se como um saber técnico, a partir de uma divisão espacial ainda não bem resolvida filosófica e territorialmente com a medicina. O que estamos dizendo é que a odontologia, a despeito de ser uma profissão da saúde e vista por muitos como especialidade médica, transita com dificuldade em meio às outras clínicas, e seu discurso não raro se serve de linguagem específica, como também a impede de se pronunciar sobre problemas sociais que julga, permanentemente, não serem seus.

Botazzo1, fez disso tudo o seguinte resumo: Essa pretensão à totalidade discursiva isola a odontologia [...] e a torna queixosa em relação às demais disciplinas. Encerrada em seus domínios, aprecia dizer que se separou; a medicina não entenderia do seu objeto, mas parece que não entenderiam dele nem a sociologia nem a antropologia ou a psicologia; assim como ela é sua própria medicina, pretende ser o próprio modelo da ciência social que fabula.

O estudo dos dentes e da boca, como órgãos funcionais e naturalmente dispostos, esconde uma trama de desejos e sentimentos. É preciso mais que a ciência cartesiana para compreender a produção da subjetividade da boca. Uma discussão que ultrapasse os limites da odontologia é requisitada.

Em Uma história social da cárie dentária, Freitas2 enfatiza a dinamicidade que permeia o desenvolvimento de teorias explicativas da cárie dentária, desde os primeiros achados arqueológicos na América pré-colombiana e Egito até uma análise contemporânea. Chega a uma conclusão importante: a cárie dentária é socialmente produzida e determinada.

Se, de fato, o objetivo é compreender o processo que deixa de ser, na expressão do autor, "mutans-dependente" para se tornar "social-dependente", então deve ser ampliado esse campo do saber. A odontologia é levada para a interdisciplinaridade, mas ao fazer este movimento se vê diante dos seus limites: Há uma subestimação e uma grande dificuldade de compreensão em relação aos fatores externos à boca, principalmente aqueles determinados ou potencializados pela sociedade2.

Em decorrência disso, a saúde bucal deve ser discutida a partir da sociedade, seus condicionantes e suas necessidades coletivas. O caráter técnico, que remonta à origem da odontologia, parece bastante sólido e atual. Ponto que expõe este campo do saber a uma debilidade conceitual e interpretativa marcante, com conseqüências para as práticas de promoção da saúde bucal. A odontologia se estabelece como uma profissão técnica, se firma enquanto prática e não como ciência, e só muito posteriormente se preocupará em tornar-se "científica"2.

A compreensão dessa "boca social" tem muito a ser desenvolvida. A visão naturalizada do homem, que vários ramos da ciência reproduzem ­ entre eles a odontologia ­, empobrece a compreensão de inúmeros eventos cotidianos e aparentemente simples, mas carentes de uma leitura articulada com teorias sociais.

Indicador social, a cárie é estudada pela odontologia a partir da tênue superficialidade dos processos químicos, físicos e biológicos da boca. Boca tecnificada, fragmentada e mal compreendida. Superficialidade acusada de ser a responsável pela ineficácia e ineficiência da odontologia como promotora de saúde bucal.

Para desconstruir essa visão naturalizada e acabada, deve-se discutir a saúde bucal a partir dos modos de vida. Entendemos como modo de vida a maneira como os sujeitos se posicionam diante do mundo, na produção de sua existência. Mundo material, dialeticamente definido por um modo de produção da vida, estruturado e estruturante, a partir de um conjunto de regras, valores, hábitos e costumes historicamente definidos.

Procuramos neste artigo refletir algumas dessas questões, contribuindo com o desenvolvimento de uma alteridade nas práticas de saúde bucal.

A disciplinarização dos corpos

Recorremos ao conceito foucaultiano de disciplina, por entender que este recorte é uma categoria central na compreensão da sociedade moderna e numa série de eventos nos quais a boca participa.

A disciplina carrega consigo dois sentidos: um sentido positivo, para gerar indivíduos produtivos e capazes; outro sentido é o de docilização, para que os indivíduos se submetam. Portanto, a norma capitalista produz indivíduos produtivos e dóceis3.

Com a emergência do modo de produção capitalista, as formas de coerção tomam um caráter abrangente e coletivizado. Há um aperfeiçoamento dos mecanismos de controle e sujeição. Surge o que Foucault4 denomina biopoderes: Este biopoder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos.

Biopoderes são as diversas formas de controle e intervenção sobre a população. Poder exercido pelo Estado por meio de um conjunto de "aparelhos de Estado", estruturados no final do século 18, e presentes nas novas instituições: na família, no exército, na escola, na polícia, na medicina individual ou na administração das coletividades4.

A norma, que atua sobre os indivíduos, não é fixa, depende a um só tempo do contexto social e do grau de sujeição do indivíduo. As normas e regras não necessitam de uma lei escrita para serem seguidas, mas de uma técnica ou um saber que guie a ação humana numa sociedade concreta, referindo-se a homens concretos e em função dos fins: [...] o ajustamento da acumulação dos homens à do capital, a articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e repartição diferencial do lucro, foram, em parte, tornados possíveis pelo exercício do biopoder com suas formas e procedimentos múltiplos. O investimento sobre o corpo vivo, sua valorização e a gestão distributiva de suas forças foram indispensáveis naquele momento de afirmação do capitalismo4.

Para adequar esses indivíduos ao modo capitalista de produção é preciso discipliná-los quanto aos tempos e ritmos do capital. O processo de disciplinarização dos corpos é ilustrado por Foucault: Processo para repartir os indivíduos, fixá-los e distribuí-los espacialmente, classificá-los, tirar deles o máximo de tempo, e o máximo de forças, treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-los numa visibilidade sem lacunas3.

O sistema capitalista apresenta um conjunto de relações, desde a esfera macroeconômica até os interstícios das relações interpessoais, nos hábitos, costumes, normas e valores historicamente consolidados. Mas caracteriza-se, sobretudo, pela centralidade do trabalho5.

O trabalho de que se fala é o trabalho alienado, caracterizado, sobretudo, pela exploração do homem pelo homem, pela produção social e apropriação privada da riqueza. Trabalho como categoria fundante de toda uma sociedade, que segue um conjunto de normas e regras próprias.

Como salienta Foucault, [...] o trabalho não é absolutamente a essência concreta do homem, ou a existência do homem em sua forma concreta. Para que os homens sejam ligados ao trabalho, é preciso uma operação, ou uma série de operações complexas, pelas quais os homens se encontram efetivamente, não de maneira analítica, mas sintética, ligados ao aparelho de produção para o qual trabalham. É preciso a operação ou síntese operada por um poder político para que a essência do homem possa aparecer como sendo a do trabalho6.

A relação entre o mundo do trabalho e os hábitos e costumes emerge como aspecto importante na discussão da autonomia do indivíduo, e vem recebendo maior atenção por parte das pesquisas sociais e na saúde coletiva. Estudar a aplicação de teorias sociais nesse tema, que considerem não só as instituições, mas incluam aspectos subjetivos no estudo do processo saúde/doença, pode ampliar sua compreensão e contribuir nas práticas de saúde7.

Thompson, em sua obra Costumes em comum, historiou a mudança de costumes populares que aconteceu simultaneamente à consolidação do capitalismo. Mostra os conflitos causados por essa alteração e as revoltas populares decorrentes. Para ele, os costumes estão claramente associados e arraigados às realidades materiais e sociais da vida e do trabalho8.

A divisão desses tempos contou com a produção de instrumentos e máquinas capazes de acelerar o movimento dos corpos no trabalho, em ruas e estradas, de alterar e deflagrar todo um modo novo de vivenciar e perceber a realidade.

Norbert Elias analisa a história dos cuidados de corpo, para afirmar que as relações estabelecidas nem sempre foram assim. Essa construção histórica da sociedade é discutida em O processo civilizador, em que o autor descreve como ocorreu essa alteração das práticas de corpo, desde a Idade Média até a sociedade burguesa9.

Na sociedade do trabalho, a autonomia do indivíduo, de que o ócio é uma das expressões, identifica-se com a transgressão, como uma forma de escapar da norma, de esquivar-se do trabalho: "[...] na nossa sociedade onde o trabalho é a regra, o ócio torna-se uma espécie de desvio6."

Essa perda da autonomia ocorre por uma materialidade evidente, pois até mesmo a maneira de considerar o tempo muda com o capitalismo. Segundo a teoria marxiana10, o tempo de trabalho é o que dá valor às mercadorias. Então, o ser humano, que é o único com capacidade de trabalho (instrumentos, técnicas, criação e transformação), tem seu tempo controlado.

As atividades humanas agora são calculadas matematicamente e devem necessariamente cumprir uma função produtiva de forma eficiente. Não é permitido ao indivíduo práticas autônomas, o trabalho ou atividades relacionadas a ele tomam grande parcela da vida.

Inicia-se uma política de condenação dos vagabundos e um questionamento: o tempo livre é usado para o florescimento ou para a degradação humana? Esse tratamento implica a integração do lazer a uma ordem moral, racional e economicamente útil.

Segundo Jurandir Freire Costa, a finalidade explícita deste controle do tempo era não deixar margem à ociosidade. O ócio induzia à vagabundagem, à capoeiragem e aos vícios prejudiciais ao desenvolvimento físico e moral11.

De modo assemelhado, Mészáros12 enfatiza a ação que o capitalismo exerce sobre os indivíduos como "[...] uma busca de sujeição total que se dá, a qualquer custo, para que o capital se reproduza."

Pensando a superação de tão formidáveis restrições éticas, este mesmo autor trata da necessidade de constituição de "indivíduos sociais", seres autônomos capazes de agir sob a égide de preceitos morais de fraternidade e solidariedade. Não mais como "personificações maniqueístas" das duas classes em luta, condição na qual o indivíduo (e suas particularidades) se minimaliza e perde a condição de sujeito das suas ações e vontades: Em si o capital não é bom nem mau, mas indeterminado em relação aos valores humanos. No entanto, essa indeterminação abstrata, que o torna compatível com o progresso concreto sob circunstâncias históricas favoráveis, adquire uma destrutividade devastadora quando as condições objetivas associadas às aspirações humanas começam a resistir a seu inexorável impulso expansionista12.

Seria por essa vertente que a saúde coletiva poderia considerar a experiência do adoecer humano. Boltanski13, em As classes sociais e o corpo, evidencia a categoria trabalho e suas repercussões sobre a saúde. Considera aspectos como o tipo de ofício exercido, o tempo de trabalho, o tempo livre e as atividades do trabalhador. Também reafirma as desigualdades de acesso aos serviços médicos sob o ponto de vista de classe, a partir de averiguações empíricas de cada um desses recortes.

Se o sujeito é causa natural e necessária, porque anistórico, é preciso eliminar a anistoricidade desse sujeito, bem como o pressuposto de que o indivíduo teria plena consciência para conhecer e agir. Ninguém é tão consciente que não seja influenciado pelo "meio", nem tão alienado que não estabeleça autoria sobre seus atos: A interrogação filosófica não é mais saber como tudo é pensável, nem como o mundo pode ser vivido, experimentado, atravessado pelo sujeito. O problema é saber agora quais são as condições impostas a um sujeito qualquer para que ele possa introduzir-se, funcionar, servir de nó na rede que nos rodeia14.

A disciplinarização da boca

Agora trataremos de um momento específico neste processo de disciplinarização dos corpos: a disciplinarização da boca.

Inicialmente, seria necessário indagar se a civilização teria determinado uma alteração da relação do homem com sua própria boca, isto é, um afastamento da sua natureza animal. Mas esta produção social, ou esta boca socialmente produzida, demanda ainda novos olhares. Como certo tipo de localização (ou atributo de materialidade corpórea), a boca é disciplinada, vigiada, como o restante do corpo, por alguém que está no alto do panóptico bemthamiano ou pode não estar. É da boca disciplinada que tratamos. A boca no corpo vigiado, como se a norma social fosse natural e imanente.

Segundo a norma social "é proibido, feio, anti-social": comer de boca aberta, comer rápido, comer demasiado devagar, cuspir, arrotar, falar alto, falar errado, xingar, o beijo apaixonado ou em público, e, sob certas circunstâncias, a felação e o cunnilingus. Também não é recomendado comer o que se tem vontade (comidas simples, mas que demandam tempo de preparo; comidas caras que demandam dinheiro; comidas e tempo para comê-las, o dia que se queira, quantas vezes se queira). Beber. Fumar. Pequenos ou grandes gozos. Coisas simples são tolhidas, limitadas, condicionadas, reprimidas, e a boca tornou-se alvo especial de repressão. Um centro de prazer e repressão.

De acordo com Aberastury15, as funções bucais no bebê ­ a sucção e posteriormente o início da trituração ­ proporcionam descargas sexuais que caracterizam a boca como órgão com funcionamento genital precoce. Este funcionamento toma parte e é central na elaboração psíquica do bebê. São essas funções que, mais tarde, junto com o controle dos esfíncteres, deverão ser reprimidas e seu conteúdo recalcado e posteriormente direcionado aos órgãos sexuais. Esta repressão, dirá ela, pode ser indutora de neuroses na criança e comportamentos fóbicos que, em certos casos, se manterão na vida adulta.

No projeto puericultor, que no Brasil visava eugenicamente a formação de homens purificados dos pecadilhos da miscigenação racial, as funções bucais deviam ser controladas desde o nascimento, pois, se exercidas liberalmente, induziriam toda sorte de comportamentos prejudiciais ou indesejáveis. Como enfatiza Nunes16, no início do século 20 imagina-se que uma sexualidade sem regras e sem normas estaria próxima de uma aberração, e os médicos prescrevem certo número de cuidados com o bebê, entre os quais os que envolvem a boca, pois uma sucção sem limites e persistente poderia mais tarde degenerar nos vícios que apenas se satisfazem pela boca. Entre estes, a autora cita a glutoneria, o alcoolismo, o cocainismo e o morfinismo.

Essa disciplina aparente e "comportamental" fornece, todavia, a chave que nos permite compreender que o cerne da disciplina da boca está na sua docilidade política e ideológica. A boca proletária será boa e correta se também puder falar apenas aquilo que convém às pessoas certas, nas horas certas e nos momentos adequados. Língua presa, boca desdentada e inofensiva, boca que não deve erguer sua voz diante do rico nem do patrão ­ ou que queira ou deseje morder, que é o desejo de ter para si ­, sob o risco de ser preso ou demitido, deixando que se revele pouco a pouco o significado político das perdas dentárias.

Esse processo de disciplinarização bucal é parte dos dispositivos de produção de indivíduos alienados, com sua autonomia diminuída. E as repressões da boca não terão conseqüências sobre a positividade da sua saúde? É neste específico sentido que Botazzo1 pergunta: "Não podendo a boca gozar o tempo todo, viria por acaso adoecer disso?"

O processo disciplinarizador produz bocas discriminadas. As práticas de boca variam muito, dependendo da classe social em que o indivíduo vive, do seu acesso aos bens de consumo, de sua cultura. A boca mutilada é fator de exclusão social das classes pobres.

Esse processo disciplinarizador conta, desde o final do século 19, com o auxílio da odontologia. Ela colabora neste processo quando situa sua prática num campo completamente acrítico e reprodutor dos interesses do capital, sem um compromisso efetivo com a saúde das pessoas e das coletividades. Chegamos ao auge da inversão: a boca que consome o mundo, agora deve ser consumida por uma área do saber (ou do mercado), materializada nas práticas profiláticas do dentista.

Desvirtuam-se a prática e as pesquisas, bem como a maneira de pensar o corpo. O corpo possuidor de uma boca isolada, fragmentada e incompreendida, consumida das mais variadas formas pelo mercado odontológico.

Se a odontologia foi uma forte colaboradora da disciplinarização da boca, por outro lado desenvolveu uma prática capaz de proporcionar tratamento às pessoas, elemento de suma importância do ponto de vista da necessidade do homem. A odontologia, a despeito de que se efetive de maneira socialmente diferenciada e injusta, organiza de certo modo as possibilidades de reabilitação da boca para os mais variados agravos e aí deve ser reconhecida sua positividade.

Aos doentes bucais não interessa qual o direcionamento político da prática, mas o acesso, a efetividade e a qualidade da assistência prestada. As questões aqui colocadas não podem mais ser ignoradas pelos formuladores de políticas de saúde.

Algumas conclusões

A crítica à odontologia não é tema novo e aparece de maneira recorrente na literatura da área. Essa crítica emerge de um campo consolidado sobre a negação da odontologia, denominado "saúde bucal coletiva", no qual o Brasil conta com expoentes internacionais. Do ponto de vista dos autores deste artigo, a crítica à odontologia, por ser individualista, monopolista, curativista e socialmente injusta, é ponto pacífico e já bem consolidado no setor. Identificamos a necessidade de ir além.

Ao identificarmos a odontologia como colaboradora no processo de disciplinarização da boca, devemos pensar se de fato a saúde bucal coletiva negou esse processo e foi revolucionária, libertária. A outra possibilidade é que a saúde bucal coletiva não tenha nenhuma proposta de mudança efetiva, ou por estar calcada no mesmo pressuposto teórico-metodológico ou por não ter espaço nessa sociedade.

A "bucalidade", bem como o conjunto de debates que ela suscita, constitui um campo, até agora teórico, que representa a possibilidade da mudança, a negação desta odontologia e desta boca alienada, isolada e discriminada, por uma outra, mais autônoma, mais coletiva e politizada.

Colaboradores

DF Kovaleski, C Botazzo e SFT Freitas participaram igualmente em todas as etapas da elaboração do artigo.

Artigo apresentado em 21/07/2005

Aprovado em 23/08/2005

Versão final apresentada em 12/09/05

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2006
  • Data do Fascículo
    Mar 2006

Histórico

  • Aceito
    12 Set 2005
  • Revisado
    23 Ago 2005
  • Recebido
    21 Jul 2005
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