Acessibilidade / Reportar erro

Dificuldades no cuidado em saúde para as pessoas que fazem uso problemático de drogas: uma revisão integrativa

Healthcare difficulties among people who have a drug use problem: an integrative review

Resumo

O estudo teve como objetivo conhecer as dificuldades para o cuidado em saúde de pessoas que fazem uso problemático de drogas, dentro do contexto dos serviços especializados em saúde mental nacionais e internacionais. Trata-se de uma revisão integrativa realizada nas bases de dados PubMed, LILACS, Web of Science, Scopus e Embase, com os descritores: usuários de drogas; serviços de saúde mental; cuidado em saúde. Foram selecionados 18 estudos, sendo os critérios de inclusão: estudos primários, disponíveis na íntegra, publicados nos idiomas inglês, espanhol e português, no período de janeiro de 2016 a janeiro de 2021. A partir da análise, identificou-se que as dificuldades para o cuidado de saúde de pessoas que fazem uso problemático de drogas estão ligadas às dimensões das políticas públicas em saúde, aos modelos de cuidados adotados e aos atores envolvidos, e que tais pontos se relacionam. Ressalta-se, ainda, a necessidade de formação específica, bem como a condução de novas pesquisas que abordem, com profundidade, a terapêutica do uso problemático de drogas e a produção de novas tecnologias de cuidado em saúde para essa população.

Palavras-chave:
Usuários de drogas; Serviços de saúde mental; Cuidado em saúde

Abstract

The scope of this study was to understand the difficulties involving healthcare for people with a drug use problem within the context of specialized mental health services, both nationally and internationally. It involves an integrative review conducted in the PubMed, LILACS, Web of Science, SCOPUS, and EMBASE databases, with the following key words: Drug Users; Mental Health Services; Health Care. Eighteen studies were selected, the inclusion criteria being primary studies, available in full, published in English, Spanish and Portuguese, between January 2016 and January 2021. The inclusion criteria were primary studies, available in full, published in English, Spanish and Portuguese, during the period from January 2016 through January 2021. The analysis identified that the difficulties in healthcare for people with a drug use problem are linked to the dimensions of public health policies, models of care adopted, and the stakeholders involved, and that these aspects are interrelated. It also emphasizes the need for specialized training, as well as further in-depth research that addresses the therapeutics of the drug use problem, and the development of new healthcare technologies for this population group.

Key words:
Drug users; Mental health services; Health care

Introdução

O uso problemático de substâncias psicoativas (SPA) é uma questão candente e atual tanto no Brasil quanto no mundo11 United Nation on Drugs and Crime (UNODC). World Drug Report 2021. Geneva: UN; 2021.,22 Csete J, Kamarulzaman A, Kazatchkine M, Altice F, Balicki M, Buxton J, Cepeda J, Comfort M, Goosby E, Goulão J, Hart C, Kerr T, Lajous AM, Lewis S, Martin N, Mejía D, Camacho A, Mathieson D, Obot I, Ogunrombi A, Sherman S, Stone J, Vallath N, Vickerman P, Zábranský T, Beyrer C. Public health and international drug policy. Lancet 2016; 387(10026):1427-1480.. O uso problemático engloba o uso de substâncias psicoativas que compreenda prejuízo pessoal, social e ou sanitário relacionado ao padrão de consumo dessas substâncias33 Fernandes L, Carvalho MC. Por onde anda o que se oculta: o acesso a mundos sociais de consumidores problemáticos de drogas através do método do snowball. Rev Toxicodependências 2000; 6:17-28.. O Programa de Controle de Drogas da ONU (UNDCP) define o uso problemático de drogas com base em fatores como: demanda por tratamento, visitas a serviços de emergência, morbidade relacionada a drogas, mortalidade e questões sociais44 United Nations Drug Control Programme (UNDCP). Global illicit drug trends 2000. Vienna: UNDCP: 2000.. Essa definição compartilha alguns elementos com as classificações internacionais (CID-10 e o DSM-5) de transtornos por uso de substâncias psicoativas (TUSPA). No entanto, o uso problemático de drogas é definido de forma menos específica do que termos como “dependência de drogas” e “abuso de drogas” ou “uso prejudicial” em relação à gravidade e duração dos sintomas. Embora a definição do UNDCP enfrente críticas por suas operacionalizações, consideradas vagas, o uso de critérios mais rigorosos é desafiador devido à falta de dados epidemiológicos globais55 Rehm J, Room R, van den Brink W, Kraus L. Problematic drug use and drug use disorders in EU countries and Norway: an overview of the epidemiology. Eur Neuropsychopharmacol 2005; 15(4):389-397..

Estima-se que, no mundo, há 275 milhões de pessoas que já usaram drogas, o que corresponde à prevalência global de 5,5%. Ainda, 36,6 milhões de pessoas, 13% do número total de pessoas que usam drogas no mundo, têm diagnóstico de TUSPA, que se trata de um dos marcadores de uso problemático. Além disso, projeta-se que esses valores aumentem nos próximos dez anos11 United Nation on Drugs and Crime (UNODC). World Drug Report 2021. Geneva: UN; 2021.. A dependência é outra categoria incluída no uso problemático. No Brasil, a dependência de álcool atinge 2,3 milhões de brasileiros entre 12 e 65 anos. Em relação a outras substâncias, estima-se que 1,2 milhão de indivíduos nessa faixa etária apresentem alguma dependência de substâncias psicoativas, exceto álcool e tabaco, representando cerca de 13,6% daqueles que consumiram alguma substância psicoativa no ano anterior à pesquisa66 Bastos FIPM, Vasconcellos MTL, De Boni RB, Reis NB, Coutinho CFS, organizadores. III Levantamento Nacional sobre o uso de drogas pela população brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz/ICICT; 2017..

Vale reiterar, porém, que as diversas categorias usadas para se definir o uso problemático de drogas enfrentam desafios significativos em termos de consistência e abrangência. As definições e critérios variam entre os sistemas de classificação, o que pode resultar em dificuldades na identificação e tratamento de indivíduos afetados. Além disso, a falta de dados epidemiológicos globais e a variabilidade nas manifestações culturais e sociais do uso problemático de drogas podem limitar a eficácia dos diagnósticos e a comparabilidade dos estudos em diferentes contextos. Portanto, é crucial manter em mente as limitações das categorias diagnósticas, razão pela qual optamos por seguir o modelo da UNDCP e adotar o conceito intencionalmente mais amplo de “uso problemático”.

No Brasil, as políticas públicas em saúde voltadas ao cuidado das pessoas que fazem uso problemático de drogas se iniciaram, de forma estruturada, em 2002. Foi a partir do arcabouço da Reforma Sanitária e da Reforma Psiquiátrica que emergiu a possibilidade dessas novas políticas de cuidado para usuários de drogas se consolidarem. Ou seja, a implementação do cuidado baseado nas diretrizes do SUS e nos princípios da Reforma Psiquiátrica - portanto de ordem territorial, comunitária, equânime, integral, e antimanicomial - é recente77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002. Estabelecer que os Centros de Atenção Psicossocial poderão constituir-se nas seguintes modalidades de serviços: CAPS I, CAPS II e CAPS III. Diário Oficial da União 2002; 16 jan..

Apesar dos importantes avanços nos últimos 20 anos, ainda vivemos complexas questões relacionadas a esse cuidado. De forma geral, o uso de drogas em nossa sociedade envolve aspectos não apenas de saúde e assistência social, mas de justiça e segurança. Essas instâncias têm grande influência no que existe, hoje, nas práticas de cuidado.

Quando nos referimos aos paradigmas de cuidado para essa população, nos confrontamos com princípios diferentes e, na maioria das vezes, antagônicos no Brasil: a redução de danos (RD) e a abstinência exclusiva. A primeira considera a possibilidade de fazer uso da droga, conhecendo os riscos à sua saúde para minimizá-los ou evitá-los. Ela se baseia no estímulo ao uso consciente e responsável, além de ser uma alternativa menos exigente ao difícil processo de interrupção imediata do uso da substância. Vale lembrar que, no paradigma da redução de danos, considera-se a abstinência como um recurso possível, porém não se trata de uma condição necessária para o cuidado88 Marlatt G, Blume A, Parks GA. Integrating harm reduction therapy and traditional substance abuse treatment. J Psychoactive Drugs 2001; 33(1):13-21,,99 Fiore M. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. Novos Estud CEBRAP 2012; 92:9-21..

Já o paradigma da abstinência exclusiva se sustenta no ideal da eliminação do uso de drogas como objetivo final. No que se refere ao cuidado, entende-se que o uso de substâncias deve ser abandonado. Por isso, a abstinência como objetivo final pode ser considerada uma estratégia de cuidado de alta exigência, na qual a pessoa só tem possibilidade para ser cuidada se houver a interrupção do uso de drogas88 Marlatt G, Blume A, Parks GA. Integrating harm reduction therapy and traditional substance abuse treatment. J Psychoactive Drugs 2001; 33(1):13-21,,99 Fiore M. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. Novos Estud CEBRAP 2012; 92:9-21..

Esses paradigmas foram construídos dentro de contextos culturais e históricos diferentes em todo o mundo. A droga sempre existiu, faz parte da história da humanidade, e poderia ser incluída entre as necessidades humanas1010 Carneiro H. Drogas: a história do proibicionismo. São Paulo: Autonomia Literária: 2018.. Por isso, quando destacamos os paradigmas associados ao cuidado dessas populações, colocamos em análise não apenas as práticas do cuidado, mas a compreensão das necessidades humanas e a própria concepção sobre droga.

No Brasil vemos, hoje, que não há uniformidade desses paradigmas de cuidado. As políticas em saúde mental específicas para atenção às pessoas que fazem uso problemático de drogas, como as portarias nº 336/GM/MS e nº 816/GM/MS, de 200277 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002. Estabelecer que os Centros de Atenção Psicossocial poderão constituir-se nas seguintes modalidades de serviços: CAPS I, CAPS II e CAPS III. Diário Oficial da União 2002; 16 jan.,1111 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 816/GM, de 30 de abril de 2002. Instituir, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada a Usuários de Álcool e Outras Drogas. Diário Oficial da União 2002; 16 jan., instituem o modelo psicossocial a partir do paradigma de redução de danos. Segundo Costa-Rosa1212 Costa-Rosa A. O modo psicossocial: um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar. In: Amarante P, organizador. Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000. p. 141-167., o modelo psicossocial diz respeito a cuidados que legitimam os sujeitos de sofrimento como cidadãos e, em sua complexidade social, detentores de uma história própria e uma subjetividade singular, perspectivas que se contrapõem aos modelos hospitalocêntricos e médico-centrados. Já o recente decreto nº 9.761, de 11 de abril de 2019, torna pública uma nova Política Nacional sobre Drogas (Pnad) que prioriza o cuidado dentro do paradigma da abstinência exclusiva, e porosa ao modelo de cuidado psicossocial1313 Brasil. Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Decreto nº 9.761, de 11 de abril de 2019. Diário Oficial da União 2019; 11 abr..

Nota-se que desde 2016 não há implementação de novas políticas brasileiras que invistam nos equipamentos de saúde e de saúde mental para o cuidado no território, de base comunitária e em rede. O que se observa é um forte investimento financeiro nas comunidades terapêuticas (CT), que são instituições não governamentais organizadas em residências coletivas para a permanência de pessoas que fazem uso problemático de drogas. Segundo o Relatório de Inspeção Nacional de Comunidades Terapêuticas de 2008, elas se utilizam do paradigma de abstinência exclusiva, a partir de um modelo de cuidado asilar e, não raro, dentro de uma lógica mercadológica. Isso as torna um equipamento distante do modelo de cuidado psicossocial e dos princípios do SUS1414 Conselho Federal de Psicologia (CFP). Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas: 2017 [Internet]. [acessado 2023 ago 3]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relatorio-da-inspecao-nacional-emcomunidades-terapeuticas_web.pdf
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploa...
.

Esses são alguns dissensos centenários no Brasil sobre o tema de drogas e seu cuidado em saúde. No mundo, as drogas legais e as ilegais movimentam bilhões de dólares, e envolvem pessoas não apenas pelo consumo, mas pela produção, distribuição e comércio. São encontradas em todos os lugares do globo, dos espaços mais privilegiados aos mais marginalizados. Isso significa que o cuidado em saúde para as pessoas que usam drogas é de interesse universal. E de acordo com o contexto social, político, histórico e cultural, há uma diversidade de estratégias em disputa1515 Azambuja Junior CA. A dependência da trajetória e as mudanças nas políticas sobre drogas em Portugal e no Brasil no início do século XXI: duas formas de manutenção do proibicionismo [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2015.,1616 Torcato CEM. O uso de drogas e a instauração do proibicionismo no Brasil. Saude Transf Social 2013; 4(2):117-125..

A ideia de proibir as drogas por meio da erradicação completa de seu uso, produção, distribuição e comércio é denominada, no campo das drogas, como abordagem proibicionista. No campo do cuidado, as propostas proibicionistas coadunam com o paradigma de abstinência exclusiva, com modelos de cuidado que se fundamentam na patologização do uso de drogas e com a medicalização como pilar do cuidado desses usuários1515 Azambuja Junior CA. A dependência da trajetória e as mudanças nas políticas sobre drogas em Portugal e no Brasil no início do século XXI: duas formas de manutenção do proibicionismo [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2015.,1616 Torcato CEM. O uso de drogas e a instauração do proibicionismo no Brasil. Saude Transf Social 2013; 4(2):117-125..

Porém, o que de fato as literaturas nacionais e internacionais apontam como dificuldades no cuidado em saúde para as pessoas que fazem uso problemático de drogas? Esses dissensos encontrados nas políticas públicas brasileiras e estrangeiras seriam fatores dificultadores do cuidado? Há dissensos em outras instâncias sociais?

Dessa forma, conhecer o que se aponta sobre as dificuldades no cuidado em saúde das pessoas que fazem uso problemático de drogas corresponde a uma estratégia para se repensar esse cuidado e identificar para quais instâncias devemos apontar nossos estudos sobre o cuidado dessa população. Assim, espera-se encontrar um olhar com menos atravessadores morais e de mais densidade científica. Para isso, este estudo tem como objetivo conhecer as dificuldades para o cuidado em saúde de pessoas que fazem uso problemático de drogas nas literaturas científicas nacionais e internacionais, e dentro do contexto dos serviços de saúde.

Métodos

Este estudo é uma revisão integrativa, que pretende agregar os resultados de achados em pesquisas publicadas, de forma a apresentar seus resultados a partir de uma questão de pesquisa. Uma revisão permite que haja a incorporação de pesquisas com delineamentos diferentes, para assim definir conceitos, examinar teorias, revisar evidências e analisar conceitos metodológicos de determinado tema, de modo a aprofundar o assunto estudado. Também é possível, por meio desse método, o levantamento de dados teóricos e práticos de maneira sistemática e ampliada1717 Ercole FF, Melo LS, Alcoforado CLGC. Integrative review versus systematic review. Rev Mineira Enferm 2014; 18(1):9-11.,1818 Mendes KDS, Silveira RCCP, Galvão CM. Revisão integrativa: método de pesquisa para a incorporação de evidências na saúde e na enfermagem. Texto Contexto Enferm 2008; 17(4):758-764..

Esta revisão adota, portanto, a seguinte pergunta de pesquisa: “Quais são as dificuldades no cuidado em saúde de pessoas que fazem uso de drogas, no contexto dos serviços de saúde?”1919 Polit DF, Beck CT. Fundamentos da pesquisa em enfermagem: avaliação de evidências para a prática em enfermagem. Porto Alegre: Artmed; 2011.. Embora essas dificuldades se insiram dentro do grupo maior de dificuldades que atingem usuários e serviços em saúde em geral, por motivo de espaço, nesta revisão o escopo se centrou de forma específica no uso problemático de substâncias.

As buscas foram realizadas nas bases de dados MEDLINE (via portal PubMed da National Library of Medicine), LILACS (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde), Embase, Scopus e Web of Science. Fez-se o uso dos seguintes descritores controlados “drug users /usuários de drogas”, “mental health/saúde mental”, bem como o descritor não controlado “health care/cuidado em saúde”. Os descritores controlados das bases de dados foram estabelecidos em consonância com o Medical Subject Heading (MeSH) e os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS). Vale lembrar ainda que foi utilizado o booleano “AND” para combinar os descritores entre eles.

Os critérios de inclusão foram artigos com dados primários, disponíveis na íntegra, publicados nos idiomas inglês, espanhol e português, no período de janeiro de 2016 a janeiro de 2021. A escolha desse período se deu a partir da justificativa de que são os artigos mais atualizados sobre o tema. Também foram incluídos estudos com diferentes metodologias e delineamentos de pesquisa. Revisões, teses, dissertações, editoriais, artigos duplicados e estudos que não responderam às questões de pesquisa foram excluídos. Foi delineado um instrumento de coleta de dados, utilizando de forma adaptada as categorias título do artigo, autor, categoria e principais contribuições, seguindo o modelo proposto por Ursi e Galvão2020 Ursi ES. Prevenção de lesões de pele no perioperatório: revisão integrativa da literatura [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2005..

Foram encontrados, no total, 56 artigos. Após a aplicação dos critérios de exclusão (nove eram artigos com dados secundários; dois eram teses e/ou dissertações; 21 foram artigos duplicados; um não estava disponível), totalizando 23 artigos. Estes foram lidos na íntegra, e cinco foram excluídos por não responderem à questão de pesquisa. Dessa forma, a amostra final foi de 18 artigos.

Após a seleção dos artigos, foi analisada a qualidade dos estudos, com a avaliação metodológica dos estudos qualitativos (16 artigos) com base nos itens do instrumento Critical Appraisal Skills Programme (CASP), que permite a classificação dos artigos em: categoria A, que representa uma boa qualidade metodológica - com escores entre seis e dez pontos; e categoria B, que representa artigos com qualidade metodológica satisfatória, porém com risco de viés aumentado - com escores de pontuação abaixo de seis.

Para a avaliação da qualidade metodológica dos artigos quantitativos (dois artigos) foi utilizado o instrumento de Downs e Black2121 Downs SH, Black N. The feasibility of creating a checklist for the assessment of the methodological quality both of randomised and non-randomised studies of health care interventions. J Epidemiol Community Health 1998; 52(6):377-384., que possibilita a verificação da validade e confiabilidade de estudos randomizados e não-randomizados, e que, ainda, permite uma pontuação da qualidade (por meio da validade interna e externa) dos artigos.

Essas análises foram realizadas por dois avaliadores e sem que houvesse qualquer troca de informação dos resultados entre eles. A avaliação dos artigos quantitativos e qualitativos não apresentou discordância entre os pares e, consequentemente, não houve a necessidade de um terceiro avaliador.

Para análise dos artigos selecionados foi utilizado o método de análise de conteúdo, na modalidade temática, abordagem qualitativa proposta por Minayo2222 Minayo MCS. O desafio do conhecimento - pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2006.. Segundo a autora, essa análise permite o conhecimento dos núcleos de sentidos no texto, e sua presença ou frequência geram significados. Dessa forma, por meio da leitura exaustiva dos artigos, pudemos encontrar os sentidos fundantes que deram origem aos temas, que mais à frente serão analisados dentro do contexto histórico e sociocultural em que esse trabalho foi produzido2222 Minayo MCS. O desafio do conhecimento - pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2006..

Segundo a mesma autora, há três fases para o desenvolvimento da análise: pré-análise, exploração do material e tratamento dos dados. A primeira consiste na escolha dos documentos, orientada pelo objetivo do estudo, e assim a criação de indicadores que conferem unidade ao contexto. A segunda etapa é o momento em que os dados brutos são depurados em núcleos de sentidos, que mais tarde darão origem aos temas para análise. Já a terceira e última etapa consiste no tratamento desses temas analisados no contexto e na profundidade dos referenciais teóricos utilizados.

Resultados e discussão

Os 18 artigos encontrados estão dispostos na Quadro 1, informando título do estudo, autoria, ano de publicação, país, metodologia utilizada (qualitativa ou quantitativa) e o tipo de serviço ou programa de saúde. Vale lembrar que as dificuldades no cuidado em saúde das pessoas que fazem uso problemático de drogas foram consideradas na leitura dos artigos a partir dos dados primários apresentados nos trabalhos. Ou seja, os dados coletados foram retirados dos resultados dos estudos e, portanto, não foram analisadas as hipóteses originais dos manuscritos, mas apenas os resultados primários, interpretados e compreendidos dentro do escopo desta revisão.

Quadro 1
Artigos selecionados para revisão.

Do total de 18 artigos, 12 tratam do contexto brasileiro (nacionais) e seis foram realizados em outros países (internacionais). Após a leitura dos artigos, os resultados foram organizados a partir das dificuldades apontadas, de forma direta ou indireta, para o cuidado. As dificuldades foram identificadas e organizadas em eixos temáticos. Dessa forma, os três grandes eixos que se tornaram os temas desta análise e discussão foram políticas públicas; modelos de cuidado; e atores.

Políticas públicas

O eixo políticas públicas compõe o primeiro eixo de análise do trabalho. As políticas públicas são fundamentais na análise sobre as dificuldades do cuidado, pois dizem respeito às tomadas de decisão de saúde, assistência social, segurança e justiça, no Brasil e em outros países. Esse tema ainda abarca a regulação da produção, comercialização, consumo e criminalização das drogas e sua interferência no cuidado.

O próprio termo política públicas foi citado como o principal obstáculo ao cuidado das pessoas que fazem uso problemático de drogas em sete artigos diferentes, sendo quatro brasileiros e três estrangeiros, o que aponta uma possível homogeneidade em relação a esta ser uma dificuldade compartilhada por diversos países. No entanto, os artigos estrangeiros têm como enfoque as questões relacionadas à acessibilidade dos usuários aos serviços de saúde destinados à atenção aos problemas decorrentes do uso de drogas. Já os artigos nacionais mencionam críticas sobre a própria Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e ao SUS como um dos principais entraves ao cuidado dessa população.

As redes que compõem o SUS, como a Rede de Atenção à Saúde (RAS) e a RAPS, são denominações para uma perspectiva intersetorial no cuidado em saúde. Elas são estruturas primárias na lógica do cuidado em saúde, dentro do SUS, tanto para a compreensão teórica como prática desse cuidado2323 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 2011; 16 jan.. Ainda que a organização dos cuidados se diferencie de um país para outro, é possível encontrar duas dimensões de análise compartilhadas pelos artigos analisados: macropolíticas e micropolíticas.

Em uma perspectiva macropolítica, os artigos que apontam os problemas na rede de atenção à saúde apresentam os seguintes entraves: baixo investimento nas atuais políticas públicas e na implementação de novas ações estratégicas e comunitárias; e dificuldade na produção de formação profissional continuada sensível às questões de saúde mental, em especial em drogas.

No que diz respeito à realidade brasileira, sabe-se que o subfinanciamento é uma questão crônica da saúde pública. Isso implica insuficiência de investimentos em ações territoriais e comunitárias, e, portanto, insuficiência do próprio Sistema Único de Saúde brasileiro.

Os artigos, de forma geral, também apontam que a ausência da formação continuada de profissionais para atuarem no cuidado desses usuários são parte das dificuldades. A formação continuada permitiria que os agentes desses serviços executassem o seu trabalho de forma mais qualificada, o que aumentaria a chance de adesão dos usuários aos serviços, a provisão de atendimento de melhor qualidade técnica e, consequentemente, desfechos mais positivos em relação ao tratamento.

É importante destacar que os artigos que mencionam as redes como os principais obstáculos enfrentados para o cuidado dos usuários são majoritariamente brasileiros. Essa especificidade é importante, pois no Brasil a RAPS, inserida no SUS, é a principal forma de operacionalização das ações de cuidado em saúde para essa população.

Do ponto de vista das micropolíticas, as principais dificuldades relatadas foram a burocratização nos atendimentos e nos acolhimentos oferecidos, além da rigidez da dinâmica de encaminhamentos e da acessibilidade limitada. Os artigos que mencionam entraves na acessibilidade são, majoritariamente, estrangeiros. Eles dizem respeito à falta de recursos nas instalações desses serviços; ao acesso limitado a bens materiais como telefones, computadores e internet; e à falta de informações das pessoas sobre os serviços disponíveis para esse cuidado.

Entende-se por burocratização, a partir da análise dos artigos, os entraves encontrados em agendamento, remarcação e horários de atendimento desses dispositivos para a população que faz uso problemático de drogas e seus familiares. A rigidez desses processos foi apontada como uma dificuldade importante. Por outro lado, a população que faz uso problemático de drogas frequentemente encontra dificuldade na sustentação dos horários agendados e nas rotinas dos serviços, fato que o próprio DSM-5 identifica como sintoma dos transtornos do uso de substâncias. Ou seja, se essas idiossincrasias são identificadas como características dessa população, é necessário, portanto, que sejam reconhecidas no contexto do sistema de saúde público de forma a garantir o vínculo dos usuários com o tratamento, sob o risco de esvaziamento das possibilidades de acolhimento e a ausência de cuidado.

Por fim, ainda sobre os questionamentos referentes à análise das micropolíticas, são identificadas dificuldades de encaminhamentos, ou seja, nas articulações das redes de saúde com outros equipamentos, como assistência social, ou mesmo para outros serviços de saúde. Identifica-se que as pessoas que sofrem com o uso problemático de drogas necessitam de atendimento de forma integral, ampla e que garanta a reinserção no ambiente familiar, social e laboral.

O cuidado deveria abarcar a articulação entre os serviços, entendendo que os sujeitos não padecem apenas de um problema de saúde específico. Quando há obstáculos à articulação dos dispositivos que compreenderão o cuidado daquele usuário, o vínculo com o tratamento torna-se fragilizado pela percepção dos usuários, ou de seus familiares, de que aquele conjunto de ações não engloba suas necessidades de cuidado integral à saúde.

Modelos de cuidado

As dificuldades no modelo de cuidado foram citadas em dez artigos diferentes, todos de origem brasileira. Segundo Ayres2424 Ayres JRCM. Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saude Soc 2009; 18(Supl. 2):11-23., “modelo de cuidado” pode ser definido a partir de duas perspectivas: a primeira seria o modelo de cuidado usual, que é um conjunto de ações padronizadas nas práticas que apresentam um pano de fundo de significados por aqueles que as realizam, de forma que não há espaços para produção de negociações desses significados. Em contrapartida, uma segunda perspectiva aponta para uma produção de cuidado construída a partir da convergência de horizontes entre os diferentes saberes, de modo que essa produção chegue na gestão e na operacionalização das tecnologias de cuidado para as pessoas e as populações2424 Ayres JRCM. Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saude Soc 2009; 18(Supl. 2):11-23.. Dessa forma, é possível compreender os paradigmas de redução de danos e de abstinência exclusiva como modelos de cuidado para pessoas que fazem uso problemático de drogas.

Todos os artigos que trouxeram o modelo de cuidado como entrave, tanto os brasileiros quanto os estrangeiros, criticam os modelos curativos e biomédicos, com apenas uma exceção. De maneira geral, argumentam que eles ainda permanecem nas práticas e sustentam ações coercitivas e moralizantes. O modelo biomédico se refere às ações centralizadas no profissional médico, no conhecimento biológico e em suas técnicas. Essas características se aproximam muito da “psiquiatria tradicional”, que se sustenta em ações exclusivamente médicas, voltadas às questões biológicas. Os artigos ainda apontam que o modelo biomédico no cuidado em saúde das pessoas que fazem uso problemático de drogas não estimula o protagonismo dos sujeitos, além de criminalizá-los e estigmatizá-los. Vale destacar aqui os achados de um artigo que investigou o binômio confiança/desconfiança no modelo de cuidados da redução de danos, sendo este o artigo de exceção. Seus achados apontaram que, embora tenham manifestado certa confiança no modelo de cuidado da redução de danos, o que preponderou entre usuários, familiares e profissionais de saúde foi a desconfiança no modelo, uma vez que parece relativamente cristalizada a ideia de cuidados biomédicos dentro de uma perspectiva de abstinência exclusiva2525 Lago R, Peter E, Bógus C. Harm reduction and tensions in trust and distrust in a mental health service: a qualitative approach. Subst Abuse Treat Prev Policy 2017; 12(1):2..

Dessa forma, conclui-se que os modelos de cuidado foram apontados como instância desafiadora no cuidado em saúde das pessoas que usam drogas. Porém, ao mesmo tempo, a depender de qual modelo está sendo praticado, este pode ser entendido como potencializador. Todos os artigos pontuam que o modelo de redução de danos permite um cuidado que produz autonomia e evita a estigmatização, a criminalização e a objetificação do usuário de drogas.

O modelo de redução de danos coaduna com o modelo psicossocial de cuidado, pois ambos compreendem o fenômeno das drogas como multifatorial e o usuário como protagonista de seu cuidado, associado aos diversos conhecimentos, e não apenas no saber médico. Porém, ambos não são suficientes para sustentar a ideia de que a droga não deve ser proibida - por ser impossível erradicá-la nas sociedades humanas -, o que ainda abre brechas para, em uma segunda análise, haver práticas de cuidado psicossocial e de redução de danos proibicionistas.

Atores

Atores são os indivíduos que têm papéis sociais estabelecidos dentro de contextos. No que se refere ao cuidado aos indivíduos que usam drogas, eles são os atores principais no processo, seguidos por seus familiares e pela equipe de saúde, sejam dos CAPS, APS, hospitais etc. Todos esses indivíduos compõem a rede viva de cuidado e são de grande importância no processo2626 Leahey M, Wright LM. Application of the Calgary Family Assessment and intervention models. J Fam Nurs 2016; 22(4):450-459.. Nesta revisão, os atores foram identificados como agentes que trazem desafios para o cuidado em saúde das pessoas que fazem uso problemático de drogas. Entre os artigos analisados, as pessoas envolvidas foram apontadas como a dificuldade mais frequente no processo de cuidados.

Em relação aos profissionais, as dificuldades envolvendo esses atores surgiram em 12 diferentes artigos, 9 de origem brasileira e 3 estrangeiros. Dentre as críticas mais preponderantes, a ausência de formação adequada surgiu quatro vezes. Tanto a escassez de profissionais, quanto a alta rotatividade, foram citadas duas vezes, o que traduz uma certa indisponibilidade de profissionais de saúde nos serviços especializados e levanta questões importantes para além de um suposto desinteresse destes atores, como as condições de contratação destes funcionários, salários e planos de carreira. Por fim, é fundamental citar a problemática dos modelos de alta exigência exercida pelos profissionais diante do usuário, o que pode tornar-se um grande empecilho ao tratamento. Entende-se por alta exigência quando há uma demanda ou uma expectativa expressa de que o paciente siga instruções e acabe por parar de usar a substância ou seguir um plano de tratamento, o que pode levar a um sentimento mútuo de frustração e abandono do cuidado.

Em relação às dificuldades envolvendo os usuários dos serviços, é importante salientar que essas aparecem em dez artigos, sendo cinco brasileiros e cinco estrangeiros (EUA, Moçambique, Vietnã e Canadá). A principal dificuldade no que diz respeito aos usuários, citada quatro vezes, é a formação de vínculo, seja com o serviço, seja com o escopo social. Há também um desafio recorrente relacionado à descrença em relação ao tratamento, em especial na adaptação de modelos de internação para modelos comunitários. Há ainda uma descrença devido ao número de recaídas que tiveram, além de se entenderem sozinhos, sem apoio dos familiares no processo de tratamento. Além disso, é importante citar como desafio a ser superado a comorbidade com outros problemas de saúde associados ao uso problemático de drogas, que se torna um entrave maior à busca e à sustentação do cuidado. Esse aspecto foi citado em dois artigos brasileiros.

As pessoas que sofrem com o uso de drogas podem passar por rupturas sociais, frequentemente deixando de acreditar que possam ser ajudadas ou que possam mudar tal situação, vivenciando sentimentos de culpa e cobrança. A desconfiança para retomar vínculos sociais, as comorbidades associadas ao uso de drogas e a insatisfação com os serviços de saúde reforçam essa descrença2525 Lago R, Peter E, Bógus C. Harm reduction and tensions in trust and distrust in a mental health service: a qualitative approach. Subst Abuse Treat Prev Policy 2017; 12(1):2..

Em relação aos familiares, o estigma, o esgotamento, o medo e a falta de conhecimento os levam a acreditar que o confinamento e a mudança de ambiente são as únicas opções de tratamento. É comum que os parentes esperem que locais de tratamento confinado ofereçam aos pacientes o que não é possível em casa: isolamento e proteção. Porém, o afastamento e o tratamento fora de seu meio social podem levar, justamente, ao afrouxamento dos vínculos familiares2727 Paula ML, Jorge MSB, Lima LL, Bezerra IC. Experiências de adolescentes em uso de crack e seus familiares com a atenção psicossocial e institucionalização. Cien Saude Colet 2017; 22(8):2735-2744..

Ainda no contexto dos atores, os profissionais de saúde são atores importantes para a retomada desse processo de ressocialização2828 Fiorati RC, Carretta RYD, Kebbe LM, Cardoso BL, Xavier JJS. As rupturas sociais e o cotidiano de pessoas em situação de rua: estudo etnográfico. Rev Gaucha Enferm 2017; 37(esp.):e72861.. Assim, como Cotê e colaboradores2929 Côté P, Ghabrash MF, Bruneau J, Roy E, Dubreucq S, Fortier E, et al. Association between mental health service utilisation and sharing of injection material among people who inject drugs in Montreal, Canada. Addict Behav 2019; 96:175-1782., Carvalho e colaboradores3131 Carvalho MFAA, Coelho EAC, Oliveira JF, Freire AKS, Barros AR, Luz RT. Acolhimento e cuidado à pessoa em uso problemático de drogas. Rev Enferm UERJ 2019; 27(0):42493. e Salles e Silva3030 Salles DB, Silva ML. Percepção de profissionais da área da saúde mental sobre o acolhimento ao usuário de substância psicoativa em CAPS AD. Cad Bras Ter Ocup 2017; 25(2):341-349. demonstraram, o acolhimento do paciente e da família pela equipe de saúde pode ter papel fundamental no desfecho do cuidado. Os artigos mencionados sugerem que serviços especializados em uso problemático de substâncias foram descritos como aqueles que têm os profissionais que mais promovem esse cuidado. Carvalho e colaboradores3131 Carvalho MFAA, Coelho EAC, Oliveira JF, Freire AKS, Barros AR, Luz RT. Acolhimento e cuidado à pessoa em uso problemático de drogas. Rev Enferm UERJ 2019; 27(0):42493. propõem que espaços com padrões menos rígidos de funcionamento promovem maior acolhimento ao paciente. Ao ter momentos para escuta livre, o profissional de saúde ampliaria o sentido do cuidado e essa disponibilidade estreitaria o vínculo e promoveria apoio emocional2828 Fiorati RC, Carretta RYD, Kebbe LM, Cardoso BL, Xavier JJS. As rupturas sociais e o cotidiano de pessoas em situação de rua: estudo etnográfico. Rev Gaucha Enferm 2017; 37(esp.):e72861..

Um fator de alerta presente em quatro estudos3030 Salles DB, Silva ML. Percepção de profissionais da área da saúde mental sobre o acolhimento ao usuário de substância psicoativa em CAPS AD. Cad Bras Ter Ocup 2017; 25(2):341-349.,3232 Pinho LB, Siniak DS. O papel da atenção básica no cuidado ao usuário de crack: opinião de usuários, trabalhadores e gestores do sistema. Rev Eletr Saude Mental Alcool Drogas 2017; 3(1):30-36.

33 Pinho LB. Análise da articulação da rede para o cuidado ao usuário de crack. Rev Baiana Enferm 2017; 31(1):e16654.
-3434 Conejo SP, Lisboa VC, Caldeira AR, Garcia MR. The construction of autonomy for professionals who work with drug users: an analysis of two intervention projects in the largest asylum centre in Brazil. J Health Psychol 2016; 21(3):419-428. é que, mesmo em serviços especializados, o profissional de saúde muitas vezes não tem formação específica na área ou o local de trabalho não foi o de primeira escolha. Assim, a falta de conhecimento ou afinidade pode gerar dificuldade no processo do cuidado, e ainda, quando encontra outro trabalho, o profissional deixa o serviço e abre uma lacuna no cuidado ao paciente. Mais além, abordam que esse processo de troca de profissionais pode gerar o afastamento do paciente e perdas no tratamento, além de dificuldades para reconstruir vínculos. O mesmo ocorre nos processos de referência dos serviços especializados para os serviços da atenção primária à saúde (APS). A mudança de equipe de atendimento, a falta de conhecimento e afinidade de cuidado às pessoas que usam drogas pode gerar o distanciamento do paciente e a descrença em relação à continuidade do tratamento.

Em resumo, os artigos revisados sugerem que os atores são um importante aspecto dos desafios do cuidado em saúde para as pessoas que usam drogas, pois são estratégicos na construção desse cuidado, por estarem envolvidos de forma direta para a reinserção social e o cuidado integral. Ações de formação e especialização dos profissionais de saúde também devem ser implementadas no que diz respeito à saúde mental, ao uso problemático de drogas, ao acolhimento familiar e à escuta qualificada, visto que serão eles os elos entre paciente, família e sociedade3535 Svavarsdottir EK, Sigurdardottir AO, Konradsdottir E, Tryggvadottir GB. The impact of nursing education and job characteristics on nurse's perceptions of their family nursing practice skills. Scand J Caring Sci 2018; 32(4):1297-1307..

Limitações do estudo

Este estudo traz questões a partir de uma revisão bibliográfica integrativa, por meio de produções de categorias e suas respectivas análises, porém encontra seus limites em seu caráter exploratório. Ou seja, seu objetivo é produzir uma descrição e uma análise ampliada das dificuldades relacionadas ao cuidado de pessoas fazendo uso problemático de drogas, e não uma varredura sistemática do tema. Além disso, o estudo é delimitado pelos mecanismos de busca e bases de dados selecionados, o que justifica o aparecimento majoritário de artigos nacionais, mesmo que isso não configure problema grave, já que a análise se debruça sobre o contexto nacional. Ainda assim, não se pode excluir a possibilidade de que outros insights pudessem ter sido evocados com a ampliação do escopo de busca.

Por outro lado, ao nos determos nas dificuldades encontradas, foi possível observar o emaranhado de relações entre políticas públicas, modelos de cuidado e atores. Tais relações podem guiar estudos descritivos futuros e propostas de intervenção.

Considerações finais

O estudo possibilitou identificar que as dificuldades para o cuidado em saúde de pessoas que fazem uso problemático de drogas estão ligadas às dimensões das políticas públicas em saúde, aos modelos de cuidados adotados e aos atores envolvidos, e que tais pontos se relacionam. A literatura aponta a necessidade de promover a formação e especialização dos profissionais de saúde, pois estes proporcionam o acolhimento ao indivíduo e aos familiares, com escuta qualificada, visto que serão eles os elos entre paciente, família e sociedade. Portanto, possibilitarão a escolha de modelos mais adequados de tratamento, bem como apoiarão a construção de políticas específicas. Ressalta-se, ainda, a necessidade da condução de novas pesquisas que abordem com profundidade a descrença dos atores, em especial dos usuários, sobre o processo terapêutico do uso problemático de drogas, bem como a produção de novas tecnologias de cuidado em saúde para essa população.

Referências

  • 1
    United Nation on Drugs and Crime (UNODC). World Drug Report 2021. Geneva: UN; 2021.
  • 2
    Csete J, Kamarulzaman A, Kazatchkine M, Altice F, Balicki M, Buxton J, Cepeda J, Comfort M, Goosby E, Goulão J, Hart C, Kerr T, Lajous AM, Lewis S, Martin N, Mejía D, Camacho A, Mathieson D, Obot I, Ogunrombi A, Sherman S, Stone J, Vallath N, Vickerman P, Zábranský T, Beyrer C. Public health and international drug policy. Lancet 2016; 387(10026):1427-1480.
  • 3
    Fernandes L, Carvalho MC. Por onde anda o que se oculta: o acesso a mundos sociais de consumidores problemáticos de drogas através do método do snowball. Rev Toxicodependências 2000; 6:17-28.
  • 4
    United Nations Drug Control Programme (UNDCP). Global illicit drug trends 2000. Vienna: UNDCP: 2000.
  • 5
    Rehm J, Room R, van den Brink W, Kraus L. Problematic drug use and drug use disorders in EU countries and Norway: an overview of the epidemiology. Eur Neuropsychopharmacol 2005; 15(4):389-397.
  • 6
    Bastos FIPM, Vasconcellos MTL, De Boni RB, Reis NB, Coutinho CFS, organizadores. III Levantamento Nacional sobre o uso de drogas pela população brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz/ICICT; 2017.
  • 7
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002. Estabelecer que os Centros de Atenção Psicossocial poderão constituir-se nas seguintes modalidades de serviços: CAPS I, CAPS II e CAPS III. Diário Oficial da União 2002; 16 jan.
  • 8
    Marlatt G, Blume A, Parks GA. Integrating harm reduction therapy and traditional substance abuse treatment. J Psychoactive Drugs 2001; 33(1):13-21,
  • 9
    Fiore M. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. Novos Estud CEBRAP 2012; 92:9-21.
  • 10
    Carneiro H. Drogas: a história do proibicionismo. São Paulo: Autonomia Literária: 2018.
  • 11
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 816/GM, de 30 de abril de 2002. Instituir, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada a Usuários de Álcool e Outras Drogas. Diário Oficial da União 2002; 16 jan.
  • 12
    Costa-Rosa A. O modo psicossocial: um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar. In: Amarante P, organizador. Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000. p. 141-167.
  • 13
    Brasil. Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Decreto nº 9.761, de 11 de abril de 2019. Diário Oficial da União 2019; 11 abr.
  • 14
    Conselho Federal de Psicologia (CFP). Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas: 2017 [Internet]. [acessado 2023 ago 3]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relatorio-da-inspecao-nacional-emcomunidades-terapeuticas_web.pdf
    » https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relatorio-da-inspecao-nacional-emcomunidades-terapeuticas_web.pdf
  • 15
    Azambuja Junior CA. A dependência da trajetória e as mudanças nas políticas sobre drogas em Portugal e no Brasil no início do século XXI: duas formas de manutenção do proibicionismo [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2015.
  • 16
    Torcato CEM. O uso de drogas e a instauração do proibicionismo no Brasil. Saude Transf Social 2013; 4(2):117-125.
  • 17
    Ercole FF, Melo LS, Alcoforado CLGC. Integrative review versus systematic review. Rev Mineira Enferm 2014; 18(1):9-11.
  • 18
    Mendes KDS, Silveira RCCP, Galvão CM. Revisão integrativa: método de pesquisa para a incorporação de evidências na saúde e na enfermagem. Texto Contexto Enferm 2008; 17(4):758-764.
  • 19
    Polit DF, Beck CT. Fundamentos da pesquisa em enfermagem: avaliação de evidências para a prática em enfermagem. Porto Alegre: Artmed; 2011.
  • 20
    Ursi ES. Prevenção de lesões de pele no perioperatório: revisão integrativa da literatura [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2005.
  • 21
    Downs SH, Black N. The feasibility of creating a checklist for the assessment of the methodological quality both of randomised and non-randomised studies of health care interventions. J Epidemiol Community Health 1998; 52(6):377-384.
  • 22
    Minayo MCS. O desafio do conhecimento - pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2006.
  • 23
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 2011; 16 jan.
  • 24
    Ayres JRCM. Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saude Soc 2009; 18(Supl. 2):11-23.
  • 25
    Lago R, Peter E, Bógus C. Harm reduction and tensions in trust and distrust in a mental health service: a qualitative approach. Subst Abuse Treat Prev Policy 2017; 12(1):2.
  • 26
    Leahey M, Wright LM. Application of the Calgary Family Assessment and intervention models. J Fam Nurs 2016; 22(4):450-459.
  • 27
    Paula ML, Jorge MSB, Lima LL, Bezerra IC. Experiências de adolescentes em uso de crack e seus familiares com a atenção psicossocial e institucionalização. Cien Saude Colet 2017; 22(8):2735-2744.
  • 28
    Fiorati RC, Carretta RYD, Kebbe LM, Cardoso BL, Xavier JJS. As rupturas sociais e o cotidiano de pessoas em situação de rua: estudo etnográfico. Rev Gaucha Enferm 2017; 37(esp.):e72861.
  • 29
    Côté P, Ghabrash MF, Bruneau J, Roy E, Dubreucq S, Fortier E, et al. Association between mental health service utilisation and sharing of injection material among people who inject drugs in Montreal, Canada. Addict Behav 2019; 96:175-1782.
  • 30
    Salles DB, Silva ML. Percepção de profissionais da área da saúde mental sobre o acolhimento ao usuário de substância psicoativa em CAPS AD. Cad Bras Ter Ocup 2017; 25(2):341-349.
  • 31
    Carvalho MFAA, Coelho EAC, Oliveira JF, Freire AKS, Barros AR, Luz RT. Acolhimento e cuidado à pessoa em uso problemático de drogas. Rev Enferm UERJ 2019; 27(0):42493.
  • 32
    Pinho LB, Siniak DS. O papel da atenção básica no cuidado ao usuário de crack: opinião de usuários, trabalhadores e gestores do sistema. Rev Eletr Saude Mental Alcool Drogas 2017; 3(1):30-36.
  • 33
    Pinho LB. Análise da articulação da rede para o cuidado ao usuário de crack. Rev Baiana Enferm 2017; 31(1):e16654.
  • 34
    Conejo SP, Lisboa VC, Caldeira AR, Garcia MR. The construction of autonomy for professionals who work with drug users: an analysis of two intervention projects in the largest asylum centre in Brazil. J Health Psychol 2016; 21(3):419-428.
  • 35
    Svavarsdottir EK, Sigurdardottir AO, Konradsdottir E, Tryggvadottir GB. The impact of nursing education and job characteristics on nurse's perceptions of their family nursing practice skills. Scand J Caring Sci 2018; 32(4):1297-1307.
  • Financiamento

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - 001.

Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2023
  • Aceito
    13 Jun 2023
  • Publicado
    15 Jun 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br