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Concepções de normalidade e saúde mental entre infratores presos de uma unidade prisional da cidade do Salvador

Conceptions of normality and mental health among prisoners in a correctional institution in the city of Salvador

Resumos

Apesar de recentemente no Brasil alguns estudos terem se dedicado à investigação dos conceitos de normalidade e saúde mental, inexistem ainda pesquisas que tratem desta questão entre infratores presos. Este trabalho pretendeu, justamente, investigar tal tema nessa parcela da população. Para tanto, utilizou o referencial metodológico de coleta e análise de dados da teoria dos sistemas de signos, significados e práticas. Verificamos que, na perspectiva dos entrevistados, a normalidade e a saúde mental estão associadas aos comportamentos apontados pela literatura científica como normais e saudáveis, o inverso ocorrendo em relação aos conceitos de anormalidade e doença mental. Um aspecto relevante deste estudo é a forma pela qual a violência criminal foi abordada pelos detentos. Ao mesmo tempo em que eles consideraram tal tipo de violência como característico de uma anormalidade ou doença, não se consideraram nem anormais nem violentos por terem cometido um delito. Esse aspecto parece apontar para a existência de duas diferentes visões: uma que reproduz o primeiro tipo de associação, e outra que admite a co-existência de um momento de violência criminal com o estado de normalidade e saúde mental.

Saúde; Normalidade; Violência criminal; Penitenciária


Although in Brazil some recent studies analyzed the concepts of normality and mental health, there are still no investigations dealing with this question among prisoners. Thus, this work aims specifically at investigating this subject in this segment of the population. The methodology used in this study was collection of data and practical analysis according to the theory of systems of signs, meanings and practices. We verified that the interviewees associated normality and mental health with the behaviors considered normal and sane in the scientific literature. The inverse occurred in relation to the concepts of abnormality and insanity. A relevant aspect of this study was the prisoner's approach to criminal violence. At the same time they considered such type of violence as characteristic of an abnormality or illness, they did not consider themselves abnormal or violent for having committed a crime. This aspect seems to point to the existence of two different perspectives: one considering criminal violence as abnormal or insane and another that admits the coexistence of a moment of criminal violence with normality and mental health.

Health; Normality; Criminal violence; Prison


TEMAS LIVRES FREE THEMES

Concepções de normalidade e saúde mental entre infratores presos de uma unidade prisional da cidade do Salvador

Conceptions of normality and mental health among prisoners in a correctional institution in the city of Salvador

Maria Thereza Ávila Dantas Coelho

Universidade do Salvador. Alameda das Espatódias s/n, Caminho das Árvores. 41820- 460. Salvador BA. therezacoelho@pop.com.br

RESUMO

Apesar de recentemente no Brasil alguns estudos terem se dedicado à investigação dos conceitos de normalidade e saúde mental, inexistem ainda pesquisas que tratem desta questão entre infratores presos. Este trabalho pretendeu, justamente, investigar tal tema nessa parcela da população. Para tanto, utilizou o referencial metodológico de coleta e análise de dados da teoria dos sistemas de signos, significados e práticas. Verificamos que, na perspectiva dos entrevistados, a normalidade e a saúde mental estão associadas aos comportamentos apontados pela literatura científica como normais e saudáveis, o inverso ocorrendo em relação aos conceitos de anormalidade e doença mental. Um aspecto relevante deste estudo é a forma pela qual a violência criminal foi abordada pelos detentos. Ao mesmo tempo em que eles consideraram tal tipo de violência como característico de uma anormalidade ou doença, não se consideraram nem anormais nem violentos por terem cometido um delito. Esse aspecto parece apontar para a existência de duas diferentes visões: uma que reproduz o primeiro tipo de associação, e outra que admite a co-existência de um momento de violência criminal com o estado de normalidade e saúde mental.

Palavras-chave: Saúde, Normalidade, Violência criminal, Penitenciária

ABSTRACT

Although in Brazil some recent studies analyzed the concepts of normality and mental health, there are still no investigations dealing with this question among prisoners. Thus, this work aims specifically at investigating this subject in this segment of the population. The methodology used in this study was collection of data and practical analysis according to the theory of systems of signs, meanings and practices. We verified that the interviewees associated normality and mental health with the behaviors considered normal and sane in the scientific literature. The inverse occurred in relation to the concepts of abnormality and insanity. A relevant aspect of this study was the prisoner's approach to criminal violence. At the same time they considered such type of violence as characteristic of an abnormality or illness, they did not consider themselves abnormal or violent for having committed a crime. This aspect seems to point to the existence of two different perspectives: one considering criminal violence as abnormal or insane and another that admits the coexistence of a moment of criminal violence with normality and mental health.

Key words: Health, Normality, Criminal violence, Prison

Introdução

Cada vez mais a cidade de Salvador tem sido alvo da violência urbana. Apesar desse crescente fenômeno, é grande a carência de estudos que revelem como os infratores concebem a normalidade e a saúde mental. O conhecimento desse aspecto é essencial para o planejamento de ações de saúde nas comunidades. As novas políticas públicas têm apontado, justamente, para a importância de ações intersetoriais. Nessa direção, a saúde vem sendo pensada como algo a ser construído não apenas pelo setor saúde, mas também por outros setores da sociedade. Apesar da crescente discussão sobre esse ponto de vista, poucos estudos têm sido feitos no sistema penitenciário. As pesquisas têm excluído essa parcela da população, mantendo-a à margem da sociedade no que diz respeito às suas concepções e práticas de vida.

O objetivo principal deste estudo foi, então, investigar os signos, significados e práticas relacionados à normalidade e à saúde mental por infratores presos. De acordo com a teoria dos sistemas de signos, significados e práticas1,2, os signos se referem aos comportamentos que apontam para a normalidade, saúde e doença mental. Os significados dizem respeito às idéias apresentadas sobre esses temas. As práticas compreendem as reações das pessoas aos indivíduos considerados normais ou anormais, sejam elas de restauração ou manutenção da normalidade.

Os conceitos de normalidade e saúde mental

Os conceitos de normalidade e saúde vêm sendo discutidos em diversos campos3-16). De um lado, tem-se reafirmado o desinteresse da parte de todas as disciplinas que compõem o campo da saúde na construção do objeto "saúde"8. De outro, tem-se apontado que o conceito de saúde tem tomado feições particulares, a depender do contexto teórico e prático do campo que o adote como uma questão importante e inerente ao seu próprio universo16.

Em linhas gerais, a investigação desse conceito tem girado em torno dos três eixos definidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como pertencentes à sua estrutura: os eixos biológico, psicológico e social. No eixo biológico, é digno de nota o desenvolvimento teórico realizado por Canguilhem17, referência epistemológica fundamental para o próprio desenvolvimento do campo da Saúde Coletiva. Esse autor criou uma distinção original entre a normalidade e a saúde, ao tempo em que efetuou um rompimento com a visão tradicional destes conceitos enquanto adaptativos às normas científicas e sociais vigentes. Outra referência importante do eixo biológico, recentemente tratada por Almeida Filho e Jucá10, é o pensamento de Christopher Boorse que, numa direção contrária à de Canguilhem, mantém-se na perspectiva tradicional da compreensão da saúde enquanto ausência de doença e vice-versa.

No eixo psicológico, por sua vez, a referência primeira é, inegavelmente, a obra de Sigmund Freud que, já no início do século XX, rompeu com a disjunção entre os fenômenos normais e patológicos, defendendo que ambos são produtos de mesmos mecanismos mentais18-23. Essa compreensão não o impediu de tecer alguns critérios diferenciais entre tais fenômenos, importantes para a condução do tratamento dos pacientes que se submetem a um processo de análise24. No campo da psicopatologia, por seu turno, Jaspers25 é certamente um dos autores de referência, por ter distinguido, dentre outras coisas, o conceito de normalidade do de normalidade estatística. Na psicologia, especificamente, a prática profissional que tem se desenvolvido nas unidades de saúde tem fomentando a discussão sobre tal conceito, inclusive em outras áreas de atuação do psicólogo, conforme aponta o estudo recente de Medeiros et al.16.

No eixo social, por fim, merecem destaque os trabalhos dos teóricos do rótulo, dos antropólogos médicos ou da saúde, dos etnopsiquiatras e etnopsicanalistas. Dentre os teóricos do rótulo, Goffman26, Becker27 e Scheff28 são autores de referência, que problematizaram os efeitos do estigma no tratamento social das pessoas consideradas como doentes mentais, apontando para a importância dos papéis sociais a partir da classificação dos indivíduos. No campo da antropologia médica, por sua vez, autores como Kleinman29-31, Good32,33, Young34, Bibeau35 e Corin36, dentre outros, têm chamado a atenção para a relevância dos significados atribuídos pelos indivíduos aos seus processos de saúde-doença, no que diz respeito às buscas e alianças terapêuticas efetuadas nas diversas esferas do cuidado à saúde. Na etnopsiquiatria clássica, por seu turno, Devereux37 buscou chamar a atenção para a interação dos fenômenos patológicos com aspectos culturais, propondo, a partir daí, uma definição para o próprio conceito de saúde. Na etnopsicanálise, por fim, Laplantine38 propôs critérios epistemológicos para o conceito de normalidade.

A partir desses três eixos estruturantes, o biológico, o psicológico e o social, Samaja39 lançou o projeto de construção de uma teoria geral da saúde, buscando integrar os aspectos biopsicossociais em diferentes níveis hierárquicos componentes do objeto "saúde". Tal proposição tem encontrado eco fecundo no campo da Saúde Coletiva, cujos estudos têm buscado colaborar com a construção dessa teoria3-9,40-45. Inúmeras pesquisas têm sido, então, realizadas nesse campo, focalizando os conceitos de normalidade e de saúde, buscando o descentramento dos conceitos de enfermidade ou doença.

Metodologia

Este estudo teve como referência metodológica a teoria dos sistemas de signos, significados e práticas1,2,46,47. Essa teoria propõe que sejam estudadas não apenas pessoas do centro da sociedade, mas também as que se encontram à sua margem. Tal aspecto constituiu um dos fatores que motivou a realização desta pesquisa numa unidade prisional. A idéia foi, então, poder estender a essa parcela da população uma investigação que já havia sido efetuada entre pessoas comuns, numa comunidade do litoral norte da Bahia7. A teoria dos sistemas de signos, significados e práticas considera extremamente relevante a apreensão de múltiplos pontos de vista para a compreensão de um dado problema. Tanto as concepções e experiências comuns quanto as singulares a cada sujeito possibilitam uma visão mais enriquecida e complexa do objeto de estudo.

Considerando essa orientação metodológica, após consentimento prévio, vinte e oito infratores presos, do sexo masculino, foram entrevistados a partir de um roteiro semi-estruturado. A grande maioria dos entrevistados se encontrava na faixa etária entre 20 e 30 anos de idade (n=23), possuía o primeiro grau incompleto (n=24), era solteira (n=27), praticara o delito de roubo (n=20) e nunca havia feito qualquer tratamento psicológico ou psiquiátrico (n=25). Doze deles eram usuários de droga. Metade dos crimes ocorreu na cidade de Salvador e a outra metade no interior do estado da Bahia, conforme o local de residência dos mesmos.

Os dados coletados foram, então, agrupados de acordo com os objetivos do estudo, nas seguintes categorias: concepções de normalidade e saúde mental; concepções de anormalidade e doença mental; ações de promoção da saúde; ações de normalização ou cura; auto-percepção em relação à normalidade e saúde mental. Conforme a teoria dos sistemas de signos, significados e práticas, a análise dos dados se deu em dois níveis. No primeiro nível, buscou-se apreender as concepções de normalidade e saúde mental tais como elas foram explicitadas pelos entrevistados. No segundo nível, questões foram respondidas de acordo com as relações estabelecidas pela pesquisadora entre as concepções dos presos e o quadro científico da pesquisa. Com fundamento na semiótica contemporânea, buscou-se realizar uma leitura polissêmica e intertextual das narrativas, considerando a multiplicidade de sentidos, identificada através da interpretação46.

Resultados e discussão

No que diz respeito às concepções de normalidade e saúde mental, os presos associaram a normalidade e a saúde a estudar, namorar, trabalhar, ler a Bíblia, fazer esporte, ter boa família, saber e fazer o que é certo, ter uma fisionomia normal, ser tranqüilo, paciente, tratar bem as pessoas, comunicar-se com elas, pensar positivo, ter consciência do que faz, pensar antes de agir, ser inteligente, confiante, cuidar da saúde, ser sadio, sentir-se bem, não agredir, não usar droga, não ser influenciável, não ter problema financeiro, não sentir ódio nem mágoa, não ter distúrbio mental, não pensar ou fazer o mal, não pensar ou cometer violência, não praticar o crime. Essas concepções podem ser visualizadas na Figura 1.


Tais resultados se mostram próximos do pensamento de autores como Freud, Goffman, Becker, Kleinman, Good, Bibeau, Corin, Boorse e Samaja, como vimos acima. Na perspectiva da psicanálise, a normalidade e a saúde estão ligadas à possibilidade de realizar atividades da vida cotidiana, com certo grau de autonomia e de eficiência18. Já na perspectiva dos teóricos do rótulo, elas implicam a adoção dos comportamentos esperados e desejados pelos membros de uma dada sociedade26,27. No pensamento de Boorse, por sua vez, a saúde é apresentada enquanto ausência de doença10, perspectiva também encontrada entre os detentos. Na medida em que todas essas concepções envolvem aspectos biopsicossociais, elas se mostram concordantes com a proposição samajiana de distintos planos para o objeto "saúde"39. Todos esses significados produzem efeitos, portanto, no relacionamento cotidiano entre as pessoas, seja nos processos educativos e laborais, seja nas buscas terapêuticas entre aqueles que não apresentam os signos de normalidade e saúde mental29-33,48.

É interessante observar que esses resultados também se encontram próximos dos encontrados no já citado estudo realizado no litoral norte da Bahia7. Naquele estudo, entretanto, não foi explicitada a associação entre a normalidade, a saúde mental e a ausência de criminalidade. Apenas a relação entre a normalidade, a saúde mental e a não ocorrência de comportamento agressivo foi apresentada pelos moradores daquela região. Tal aspecto pode se dever ao fato de as pessoas não diretamente vinculadas ao universo do crime buscarem banir de seus pensamentos a violência criminal. Na população investigada por este estudo, entretanto, esse tipo de violência faz parte do cotidiano das pessoas, o que pode facilitar a emergência de tal associação. Nesse universo, portanto, há uma relação de exclusão entre a normalidade, a saúde mental e o ato criminoso, de modo que, na visão dos entrevistados, a violência criminal não parece integrar a normalidade e a saúde mental.

Tal ponto de vista pode estar relacionado ao que os teóricos do rótulo definiram como estigma. De acordo com esses teóricos, como vimos, a sociedade estabelece os meios de classificar as pessoas em categorias, de acordo com os seus atributos26. Os que apresentam os atributos socialmente desejados são categorizados como normais, enquanto que aqueles que possuem um ou mais atributos indesejáveis são considerados desviantes. Os signos marcadores do desvio constituem os estigmas a partir dos quais são identificados os desviantes. Como a condenação judicial e o tratamento social recebido pelos presos fazem com que eles sintam efetivamente que o crime é indesejado pela sociedade, eles apreendem a relação de exclusão que a violência criminal mantém com as noções de normalidade e saúde.

Passemos agora às concepções de anormalidade e doença mental. Os detentos relacionaram a anormalidade e a doença aos comportamentos de não estudar, não respeitar o outro, não se comunicar, não pensar antes de agir, não ter consciência do que faz, à ausência de bem-estar e saúde, à presença de distúrbio mental, estresse, depressão e angústia, à oscilação do bem-estar, problema de "nascença", nervosismo, agitação, mudança na fisionomia, presença do demônio, dificuldade financeira, descontrole, comportamento inadequado, fazer coisa errada, maldade, uso de droga, agressão, violência e crime. Tais resultados podem ser visualizados na Figura 2.


É interessante observar que esses resultados apontam para uma concepção de oposição entre a normalidade e a saúde mental e a anormalidade e a doença mental, de modo que estas duas últimas parecem ser o contrário das duas primeiras. A título de exemplo, se "não pensar em violência" ou "não cometer violência" são características associadas à normalidade e à saúde mental, pensar e agir com violência, por seu turno, está associado à anormalidade e à doença mental. O pensamento parece obedecer, aí, ao princípio da não contradição, um dos pilares da lógica formal. A violência e a criminalidade se apresentam, então, ligadas à anormalidade e à doença mental, de modo que a normalidade e a saúde são concebidas como não portadoras de características presentes na anormalidade e doença mental, o que reproduz a visão tradicional da saúde enquanto ausência de doença10.

No que diz respeito às ações de promoção da saúde, que mantêm o estado de normalidade e saúde mental, os presos listaram os seguintes comportamentos: estudar, trabalhar, pensar no futuro, pensar e fazer coisas boas e certas, pensar antes de agir, ser religioso, viver do mesmo jeito, seguir as normas, praticar o bem, não usar droga, ficar calmo e em paz, não dar ouvido aos outros, cuidar de si e não se envolver com o crime. Tais resultados podem ser apreendidos através da Figura 3.


Verificamos que a ausência de envolvimento com a criminalidade, além de ser visualizada como um signo de normalidade e saúde mental, foi percebida também como uma ação de promoção da saúde mental. Da mesma forma, outros comportamentos tidos como signos de normalidade e saúde mental foram também considerados como ações de promoção da saúde mental. Isso parece corroborar mais uma vez a tese de Bibeau e Corin48, segundo a qual há um sistema de signos, significados e práticas de saúde mental. No estudo realizado no litoral norte da Bahia, os resultados também apontaram para a existência desse sistema7. A idéia de Bibeau e Corin, segundo a qual os signos de um problema mental adquirem determinados significados e conduzem a certas ações, configurando um sistema de signos, significados e práticas, reflete também a promoção da saúde mental.

Com relação às ações de normalização ou cura, os entrevistados relataram que os comportamentos de pensar antes de agir, estudar, buscar a ajuda dos professores, trabalhar, manter a mente ocupada com coisas boas, ficar calmo, controlar-se, buscar Jesus, não usar droga, ir ao hospital, ao centro religioso, ao médico, ao psiquiatra, ao psicólogo e não fazer maldade a ninguém podem curar ou normalizar alguém. Tais resultados podem ser visualizados na Figura 4.


É interessante observar que alguns signos de normalidade mental, como estudar, trabalhar e não fazer maldade a ninguém, constituem, ao mesmo tempo, ações de promoção da saúde e de cura ou normalização. Tal aspecto aponta para a co-incidência de alguns procedimentos, que podem ser terapêuticos ou promotores da saúde, a depender da situação em que se apresentem. Promover a saúde, nesses casos, é realizar atos que também são terapêuticos na presença da doença, ao mesmo tempo em que fazer a terapêutica é lançar mão de ações que também são promotoras da saúde na ausência da doença.

Quanto à auto-percepção em relação à normalidade e à saúde mental, a grande maioria dos internos (n=24) revelou que se percebia como saudável e normal. Essa freqüência, entretanto, diminuiu significativamente (n=16) quando eles trataram do seu estado de normalidade durante a realização do crime. Ou seja, apesar de 43% dos entrevistados (n=12) não se considerarem normais durante o crime, 86% deles (n=24) afirmaram que se percebiam como normais. Verificamos, assim, que, no que diz respeito a suas vidas, esses presos percebem a associação entre o crime e a anormalidade mental como sendo mais de natureza situacional. Quando eles, entretanto, são inquiridos sobre a relação entre a violência e a saúde mental, de uma forma em geral, apresentam uma associação mais estreita entre a violência, o crime, a anormalidade e a doença mental, o que parece apontar para uma perspectiva mais ideal, para um valor social.

Tal perspectiva pode estar ligada ao processo de normificação, descrito por Goffman26. De acordo com esse processo, os estigmatizados podem se esforçar para se apresentarem como uma pessoa comum, já que o fato de ser normal possibilita a obtenção de gratificações. Podemos também conjecturar que o sistema prisional contribui para essas relações estabelecidas pelos presos entre a normalidade, a saúde mental, a violência e a criminalidade. A percepção da normalidade como ligada ao que é tido como comum é uma idéia que se encontra presente entre os detentos. Numa prisão, por motivos óbvios, a violência criminal é algo comum, logo ela seria considerada como algo normal. Tal associação pode constituir um dos fatores que contribuem para a auto-percepção dos entrevistados como indivíduos saudáveis e normais. A subjetividade, nessa perspectiva, nunca é absoluta e está sempre relacionada com o contexto, o que se aproxima do pensamento de Samaja39, como vimos acima. Que o desvio pode integrar a normalidade é algo que o próprio Canguilhem17 chamou a atenção, em sua brilhante tese "O normal e o patológico", na década de 1940.

Considerações finais

Os estudos efetuados com as parcelas da população envolvidas com a violência criminal tanto podem ser úteis para a elaboração de políticas e práticas ligadas à saúde pública, quanto podem colaborar para a construção de uma teoria geral sobre a saúde. Vimos que as diferentes concepções sobre a normalidade e a saúde mental apontam para a complexidade do objeto "saúde", cuja estrutura é atravessada por distintos aspectos e processos biopsicossociais, em interação complexa uns com os outros. De acordo com esta pesquisa, verificamos que as concepções de normalidade e saúde dos presos reproduzem, em muitos aspectos, aquelas apresentadas pelos outros segmentos da população, que não cometeram um delito. Entretanto, as concepções dos detentos fazem uma referência explícita ao comportamento criminoso, seja ressaltando uma relação de exclusão entre a normalidade e a saúde mental com a violência e a criminalidade, seja defendendo a coexistência destes termos. Numa perspectiva geral, a anormalidade e a doença mental estão associadas, como vimos, à violência e à criminalidade. Entretanto, os presos entrevistados não se consideraram nem anormais nem violentos por terem cometido um delito. Esse aspecto parece apontar para a existência de duas diferentes visões: uma que reproduz a relação de exclusão entre a normalidade, a saúde e a violência criminal, e outra que admite a co-incidência entre tais termos. O tipo de delito praticado pela maioria dos entrevistados (roubo) pode ter sido um dos fatores que contribuiu para tal concepção. O fato desses detentos não estarem sob tratamento no manicômio judiciário reforça a idéia de que eles não possuem uma anormalidade ou doença mental, o que não exclui a possibilidade deles portarem algum transtorno psíquico e necessitarem de assistência psicológica e/ou psiquiátrica. A própria perda da liberdade e a concomitante reclusão numa unidade prisional já, por si só, são fatores que podem colaborar para a eclosão ou agravamento de um transtorno.

Artigo apresentado em 30/04/2007

Aprovado em 20/12/2007

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2009
  • Data do Fascículo
    Abr 2009

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2007
  • Aceito
    20 Dez 2007
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