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Mais algumas notas para contribuição ao debate sobre a bucalidade

Some notes for contribution to the debate on buccality

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Mais algumas notas para contribuição ao debate sobre a bucalidade

Some notes for contribution to the debate on buccality

Sérgio Fernando Torres de Freitas

Universidade Federal de Santa Catarina. sergiofreitas@reitoria.ufsc.br

No Brasil, o uso de epígrafes de autores de nomeada costuma ser atestado de erudição. Eu, para não ficar com a pecha de ignorante científico diante do privilégio de participação neste debate, iniciarei com uma. Não de um cientista, mas de um dos mais famosos de nossos escritores. Cito-a sem buscar a referência, portanto já me desculpo antecipadamente se não houver literalidade na citação.

É conto ou não é conto?

Pergunta a crítica acesa.

E o contista, meio tonto,

É quem tem menos certeza.

(Carlos Drummond de Andrade, sobre

seu livro "Contos de aprendiz").

Notas

Inicialmente devo confessar, a partir da exegese do resumo, que me agradam muito as afirmações de que a saúde bucal coletiva (SBC, para economizar) deve ser interpretada como parte da saúde coletiva, tendo portanto problemas da mesma natureza. E também a idéia de uma instabilidade essencial, que julgo necessária para o teor do artigo, mas fico atrapalhado com uma constatação inicial de que o paradigma ­ per se, um estabilizador essencial da compreensão científica, na análise de Hochman1 ­ biomédico que rege a odontologia também é baseado no objeto e não no método. Duas considerações devem ficar registradas aqui: não reconheço um método odontológico; e a odontologia tem por objeto os dentes, não a boca.

Mas não me agrada a visão excessivamente estruturalista de Althusser sobre a sociedade, em especial suas afirmações sobre a ideologia. Tenho de confessar publicamente que não sou estudioso ou conhecedor da área, mas não fui convencido por suas posições na década de 1980, quando o estudei, e não creio que seria convencido agora, se voltasse a estudá-lo. Todavia, isto não quer dizer que eu não reconheça a saúde como um dos aparelhos ideológicos de Estado. Mas também creio que não há porque alongar ou discutir estas questões neste espaço e neste momento.

Contribuições (?) para o debate e a pesquisa

  • O problema da saúde bucal coletiva

Botazzo apresenta inicialmente como um problema o seu conceito próprio, que não funda um marco teórico e que não resolve o problema de sua identidade, antes o mantém.

A partir de Narvai2, que identifica oito diferentes linhas de pensamento coabitando de algum modo a quitinete conceitual da SBC, sem ter grandes relações entre si; e de Moysés & Sheiham3, que discutem se este campo de trabalho teria um paradigma próprio, e concluem por encontrar disparidades conceituais que inviabilizariam este paradigma, pode-se constatar que esta identidade está longe de ser atingida. Não tenho a pretensão de sequer sugerir qualquer contribuição conceitual para a SBC, mas pode contribuir para o debate a introdução de um autor até agora não trabalhado na área, que é Bruno Latour. Em especial, sua concepção de referência circulante em ciência, a qual pode ser encontrada no livro A esperança de pandora (Latour4). Como reflexo do desenvolvimento atual da SBC, a entrada em cena desta discussão aumentará a capacidade descritiva deste problema, mas isto resulta também em aumento da compreensão sobre o problema. Em suma, a referência circulante poderá contribuir para o entendimento, eventualmente para a diminuição das disparidades conceituais e até para refrear algum afã de novas propostas conceituais, mas o problema persistirá.

Há ainda outra leitura importante neste debate, que os leitores deveriam experimentar: Hochman1 analisa as posições de Kuhn, Bordieu, Latour e Knorr-Cetina, e podemos encontrar em todos os autores afirmações de que a trajetória algo incipiente da SBC pode ser explicada de maneira convincente. Fica mais ou menos evidente que a SBC não é ou tem um paradigma, no sentido mais kuhniano do termo; pode-se alegar que isto não ocorreu por falta de "realizações sem precedentes para atrair um grupo duradouro de partidários", ao mesmo tempo em que este produto é "intrinsecamente a propriedade comum de um grupo ou então não é nada..." (Kuhn5). Porém, para se discutir por que isto acontece, é fundamental incluir a posição de Bordieu6 sobre o campo científico e as batalhas que ocorrem em seu interior, cuja estrutura é socialmente determinada e define posições hierárquicas e de poder. Na área biomédica em geral e na saúde bucal em particular, isto é facilmente perceptível: usarei como exemplos, sem querer nem poder alongar esta discussão neste espaço, a questão da cariologia ­ espaço de saber e de poder na prática odontológica ­, que migrou da odontologia preventiva para a dentística como estratégia desta última para manter o monopólio de seu prestígio científico, criticado e abalado pelas críticas da ineficácia social e do tecnicismo individualista; e da própria odontologia social, que adernou para a epidemiologia como legitimadora de um conhecimento técnico que necessita de resultados operacionais também legitimadores de seu pouco espaço arduamente conquistado, escapando ao rótulo desqualificante de teóricos por incompetência clínica. Em ambos os casos, houve sucesso.

Latour7, sem negar a luta de classes, a determinação social e o mercado, incluídos no debate por Bordieu, traz para a discussão a interioridade das relações de hierarquia e poder dos cientistas, relativizando o papel do mercado em função de alguns componentes individuais, que resultariam num esforço orgânico de criação e estruturação de ciclos de credibilidade. A recente visibilidade de muitos "seguidores" da SBC, em que a mesa-redonda do Congresso da Abrasco em Brasília (2003) pôde servir de efeito sentinela, quando centenas clamavam por mais espaço que o previsto pela organização do Congresso, quando alguns expoentes estariam debatendo estas questões, é para mim, uma constatação do acerto da análise de Latour e também de que há um ciclo de credibilidade instalado na SBC brasileira.

  • Sobre a boca humana

Se eu fosse dentista, isto é, se tivesse uma concepção odontologizada de mundo, perguntaria candidamente se há alguma diferença entre a manducação e a mastigação. Pois se a primeira é "apreender, triturar, insalivar e deglutir", não sei mais o que é a segunda. Pensei que isto era mastigação. Se eu apreender, triturar, insalivar e cuspir, eu manduquei? Será o chiclete ­ este produto quintessente da cultura norte-americana ­ um objeto não manducável? Mas estas são questões impertinentes neste contexto, mas que a bucalidade precisa responder, antes que a odontologia paralise e anule o debate ao afirmar o que questionei acima. O que talvez seja pertinente é se a preocupação com alguma simplificação não nos estará levando ao lado contrário de uma complicação excessiva. Também pode contribuir para este debate questionar se a SBC, como proposta neste ensaio, pretende apartar-se da odontologia ou torná-la caudatária, não só epistemológica mas também morfologicamente. Afinal, como Botazzo8 afirmou anteriormente, e de maneira brilhante, como pôde a estomatologia (que estuda a boca) ser especialidade da odontologia (que estuda os dentes)?

Se é para apartar-se, arrisco-me a elucubrar até que ponto esta seria uma preocupação da odontologia. Não creio que o seja; isto interessa a nós, da SBC. Mas quem de nós? Alguns de nós que talvez nem se encaixem nas oito categorias propostas por Narvai, e que pretendam fundar um paradigma não dogmático e não normativo, em síntese, não-paradigmático. Sou mais Bordieu, mais Latour: há uma disputa de credibilidade e reconhecimento nesta área: a SBC não tem o poder, mas luta por ele utilizando-se de embates teóricos, mas também construindo um círculo de credibilidade com estratégias diversas.

Confesso que não tenho clareza sobre quase tudo. De maneira muito imediata, penso que a bucalidade pode se tornar o conceito catalisador de uma SBC paradigmática; mas também penso que não está pronta para tal. Há ainda o que evoluir, refinar discussões, simplificar ­ sem reduzir ­ o seu discurso para atingir um número maior de participantes desta comunidade científica que chamamos odontologia. Longe de ser uma crítica, já que aponto mais lacunas e discordâncias que elogios e concordância: reconheço no artigo de Botazzo, que provoca este ensaio, uma coragem, um conhecimento acumulado e uma disposição que o credenciam como favorito para lograr sucesso neste desafio no País.

Mas, como o tom é confessional, já digo logo que certeza ­ como o Drummond contista ­ é o que tenho menos.

REFERÊNCIAS

1. Hochman G. A ciência entre a comunidade e o mercado: leituras de Kuhn, Bordieu, Knorr-Cetina e Latour. In: Portocarrero V, organizadora. Filosofia, história e sociologia das ciências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1994.

2. Narvai PC. Saúde bucal coletiva: um conceito. Odont & Soc 2001; 3(1-2):47-52.

3. Moysés SJ & Sheiham A. A saúde bucal coletiva: personagens, autores ou ... Pirandello de novo?In: Kriger L, organizador. Promoção de saúde bucal: paradigma, ciência, humanização. São Paulo: Artes Médicas; 2003. p. 387-442.

4. Latour B. A esperança de Pandora. Bauru: Edusc; 2001.

5. Kuhn TS. A estrutura das revoluções científicas. 2a ed. São Paulo: Perspectiva; 1975.

6. Bordieu P. O campo científico. In: Ortiz R, organizador. Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática; 1983. p. 122-55. (Coleção Grandes Cientistas Sociais, vol. 39).

7. Latour. Science in action. How to follow scientists and engineers through society. Princeton: Princeton University Press; 1986.

8. Botazzo C. Da arte dentária. São Paulo: Hucitec; Fapesp; 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2006
  • Data do Fascículo
    Mar 2006
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