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À espera do nada

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Ligia Py; José Francisco Pinto de Almeida Oliveira

Comissão Permanente de Cuidados Paliativos (SBGG). ligiapy@gmail.com

O tempo de vida, a história pessoal de cada um, é também uma criação social que se integra à história da coletividade humana. Para os idosos, no mais das vezes, esse processo transcorre através de um envelhecimento regido pela apreensão das significações negativas que o social usa para marcar a velhice.

Na inexorabilidade das mudanças, o idoso se percebe na sucessão de perdas de capacidades e confronta a sua atualidade psicossocial de ser idoso. Não raro, ele próprio acaba por descuidar da sua autonomia, desestimula-se para investimentos novos, deixando sobrepor-se à sua autoimagem os estereótipos sociais que abominam os mais velhos. A velhice, ao se traduzir no contexto social como negatividade, agrava no idoso o que é sentido como perda e fragiliza os seus recursos internos construídos ao longo de toda a vida.

Quando acontece ao idoso uma doença incapacitante e dependência, o que não é incomum no avanço dos anos, o sentimento das perdas pode chegar a transformar-se em fantasias jamais decifráveis, intensificando a tensão diante dos limites ameaçadores que passam a impor-se a ele com força esmagadora. Assim, ele tende a chegar a um lugar subjetivo, onde não mais consiga dominar as tensões e, então, nelas submergir em profundo e irreversível estado de desamparo.

Sozinho, atormentado pela ameaça, vê-se diante da fatalidade, onde inexistem possibilidades de investimento na vida como um projeto que lhe aponte alguma saída1.

Nessa circunstância, escutamos uma 'quase' voz, abafada e sumida, que expressa com eloquência o universo significativo da solidão do idoso.

Na verdade, muito antes da ideia de solidão afirmada pelos antropólogos e cientistas da alma, tocam-nos as vivências das solidões cotidianas, iguais à do José do poeta: "sozinho no escuro / sem cavalo preto / que fuja a galope". Um José igual a todos nós, que "com a chave na mão / quer abrir a porta, / não existe porta". Restando a pergunta: "E agora, José?2"

Cada um de nós tem seu próprio 'fundo do poço', túnel escuro e vazio que esconde muita história, incontáveis segredos e tantas mágoas. A noção de fundo do poço fica muito próxima do conteúdo do 'mito da caverna' de Platão. Caverna que é ponto de convergência do mundo real sentido por nossas mãos, sempre em transformação e do mundo ideal gravado de modo imutável na nossa mente. Caverna que, ao mesmo tempo em que esconde, revela a verdade profunda da realidade, numa oscilação entre a verdade e as ilusões. Sem respostas.

A solidão, nesse plano, pode ser uma experiência produtiva de silêncio e reflexão, ou uma experiência de fracasso que nos empurra para o nada.

É também oportuno destacar uma outra dimensão da solidão, talvez a mais cruelmente vivida no processo de envelhecimento. A que amplia o horizonte do desamparo e insere o homem na perspectiva do nada. A do "José", "sozinho no escuro". Aquela que nos faz pedir, com pouca esperança de que nos deem a mão. A que provém do modo como "a dor e o sofrimento físico desempenham papel importante na fragilização do idoso e no desencadeamento do suicídio, associada ao agravamento de transtornos físicos", como aponta a pesquisa da Fátima Cavalcante e Maria Cecília Minayo: aquela que acomete os idosos "impactados por doenças, deficiências e dores crônicas"; aquela que indica que "homens e mulheres estão igualmente em risco, quando se isolam, se fecham, permanecem calados, deprimidos, introspectivos, solitários e tristes".

Estamos falando de solidão que não gera impulso de libertação, nem promove encontro, mas a que faz o idoso constatar-se ausente do seio familiar, fora do ninho da sociedade. Solidão que expressa os vestígios mais frágeis da sua humanidade e só se deixa mostrar através dos fragmentos do sofrimento. Solidão vinculada ao sentimento de dolorosa e inútil espera de coisa alguma: a espera do nada3.

Inserida na desesperança, essa solidão escorrega perigosamente pelos limites do desespero. Apodera-se do idoso quando ele não tem mais a quem ou a que se apegar. Quando desaparecem os pontos de referência. Quando não há sinais que mostrem os caminhos. Quando os ombros enfraquecidos pela idade não suportam o peso do abandono. Então, o idoso abdica. Perde a força crítica e a condição de reagir.

Pensando nos idosos referidos na pesquisa em tela, a fala da Delia Goldfarb4 é nos convida à reflexão sobre o desamparo e a dependência: "A maior ameaça então será a fragilidade dos vínculos e a possível perda do amor do outro que o deixará no maior desamparo e sem proteção ante uma série de perigos e sofrimentos".

Pensamos que, para o idoso atormentado pela desesperança, se radicalize o desafio à continuidade da sua vida. Abalam-se as crenças e vulnera-se o sentido da existência. A ruína do mundo interno mostra toda a fragilidade e neutraliza as possibilidades. Diante do que se torna insuportável, o idoso revela a verdade que ilumina a existência de todos nós: precisamos uns dos outros, na segurança da afeição que nos une nos laços familiares, comunitários e sociais. É assim que José Carlos Rodrigues5 traduz a nossa precária condição de seres humanos: "a ruptura dos laços afetivos é a mais verossímil metáfora do nada".

Se vemos a velhice como uma curva na trajetória humana que possibilita resgatar sonhos e interesses, a vemos também na dimensão biológica como um tempo em que o corpo se torna mais suscetível a doenças, pela suscetibilidade do idoso ao envelhecimento do seu organismo6.

De todo modo, saudável ou não, o idoso continua sendo o que se fizer de si mesmo, jamais definido ou definitivo. Sua liberdade envolve a necessidade de responder ao fato de que está vivo e deve buscar a satisfação dos seus desejos, num mundo onde as estruturas estão para sempre inacabadas, à espera de persistente criação7.

Sim! Mas e se ele estiver "sozinho no escuro", à espera do nada? Quem o procura? Quem o encontra? Quem o acolhe? Quem o ajuda? Quem o guia até onde ele possa retomar o seu rumo próprio para seguir a sua própria estrada?

O isolamento a que o idoso é insistentemente relegado se refere à solidão última do ser humano. Nas suas buscas solitárias e tensas de um sentido para a vida, por onde irá conduzir-se se não houver a referência solidária de um outro que o acolha e o compreenda? Como irá deparar-se com a ausência de sentido do mundo que, inabalável e fria, aponta o desapontamento humano frente ao vazio, ao nada? Para além de todas as verdades, há aquela que afirma o homem como um ser de relação. Nosso mais original compromisso ético é entender o viver como conviver.

Um tema fundamental da fenomenologia é a consideração da vida humana como "ser-no-mundo", "ser-com-o-outro". No fundo das cartas de princípios, vigora um apelo de uma nova visão ética: ninguém é ético para si mesmo, mas é ético quando estende a mão ao outro. Aqui se destaca a visão do sofrimento com os olhos de quem sofre: precisamos olhar a solidão, a dor, o sofrimento, o abandono, as incertezas que os outros sentem, buscando vislumbrar a perspectiva dos olhos deles, a partir do ponto de vista do seu padecimento.

Ninguém decide por ninguém. Nenhum de nós decidirá sobre a vida de um idoso. A mão estendida, porém, apoia e até fundamenta uma decisão. As crises humanas se inserem na trajetória do tempo humano. Velhice é um tempo de crise. Tempo singular de um idoso, à espera daqueles que se destinem a, solidariamente, compartilhar com ele caminhos de saída da crise.

O encontro humano expressa a esfera do sagrado que o homem pode experimentar, pois nesse encontro cada um percebe os limites da suficiência humana e a sua finitude. De mãos estendidas, cada um pode ajudar o outro a transcender a desolação e a sair do poço escuro do abandono.

Dizemos que o encontro com o idoso atormentado pelo desespero é sagrado e a profanação desse encontro acontece quando consentimos o descaso, o escárnio, a humilhação, a exploração, os abusos físicos e verbais, a doença não tratada, a dor não mitigada, a decadência mental, a invalidez, o isolamento social, o abandono familiar, o silêncio opressor.

Temos diante dos nossos olhos a realidade de um idoso habitante da realidade concreta de um corpo velho, aflito, solitário, desesperançado. Corpo desprendido das possibilidades de superação do horror que o aniquila. Enfraquecido pela doença, despedaçado pelo sofrimento, desistente da vida. No olhar, nenhuma expressão que não a do desespero. Vale a pena lembrar de que, quando o corpo já não responde, o coração há de ser tocado.

  • 1. Birman J. Futuro de todos nós: temporalidade, memória e terceira idade na psicanálise. In: Veras RP, organizador. Terceira idade: um envelhecimento digno para o cidadão do futuro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, UNATI-UERJ; 1995. p. 29-48.
  • 2. Andrade CD. José. In: Nova reunião V. 1. Rio de Janeiro: José Olympio; 1983. p. 101-103.
  • 3. Oliveira JFP. Fundamentando o conceito de solidão. In: Pacheco JL, Sá JLM, Py L, Goldman SN, organizadores. Tempo: rio que arrebata Holambra (SP): Setembro; 2005. p. 219-226.
  • 4. Goldfarb DC. Demências: clínica psicanalítica. 2Ş ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2006. p. 36.
  • 5. Rodrigues JC. A morte numa perspectiva antropológica. In: Incontri D, Santos FS, organizadores. A arte de morrer: visões plurais. Bragança Paulista: Comenius; 2007. p. 129-136.
  • 6. Cunha GL. Mecanismos biológicos do envelhecimento. In: Freitas EV, Xavier FA, organizadores. Tratado de geriatria e gerontologia 3Ş ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2011. p. 14-33.
  • 7. Py L, Pacheco JL, Oliveira JFP. Morte na velhice. In: Santos FS, organizador. Cuidados paliativos: discutindo a vida, a morte e o morrer. São Paulo: Atheneu; 2009. p. 179-191.
  • À espera do nada

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Ago 2012
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