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A participação popular em Ipatinga (MG, Brasil): conquistas e desafios do setor de saúde

Popular participation in Ipatinga (MG, Brazil): achievements and challenges of the health sector

Resumos

Com a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir dos anos 90, observase a passagem de um sistema político, administrativo e financeiramente centralizado para um cenário em que milhares de agentes passam a se constituir sujeitos fundamentais no campo da saúde. Entender como esses diferentes atores conseguiram absorver e garantir à comunidade o direito de participar na tomada de decisão em política pública de saúde foi o objetivo deste trabalho, que procura investigar o discurso democrático e a prática participativa implementada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) no município de Ipatinga (MG). Utilizamos como referencial a Teoria da Ação Comunicativa, de Habermas, e a partir dela um modelo de democracia entendido como a institucionalização dos processos discursivos de formação da opinião e da vontade. A partir desse referencial teórico, integrado aos principais pressupostos da Reforma Sanitária Brasileira, foi feito o estudo das políticas municipais de saúde de Ipatinga, no que diz respeito às suas bases e relações democráticas. Os resultados obtidos indicam que há uma importante história democrática no município, com indícios, no entanto, de retrocessos na prática participativa do setor saúde, pois atualmente verifica-se uma reprodução de práticas tradicionais de governar

Ação comunicativa; Participação popular; Democracia; Controle social


Since the SUS implementation in the 90's, it has been possible to observe the change from a political, administrative, and financially centered system to a scene where thousands of agents started to constitute fundamental citizens in the field of health. The objective of this work is to understand how these different actors have absorbed and guaranteed the community the right to participate in the decision of public health policies. This research also tries to investigate the democratic speech and the participative practice implemented by the Worker's Party (PT) in the city of Ipatinga (MG, Brazil). This work uses as theoretical referential the Communicative Action Theory of Habermas and, from this theory, a model of democracy which is understood as the institutionalization of the discursive processes of opinion and will formation. The results obtained indicate that there is an important democratic history in the city, but with indications, however, of retrocessions in the participative practices of the health sector, as the reproduction of traditional practices of government is verified

Popular participation; Democracy; Social control; Communicative action


TEMAS LIVRES FREE THEMES

A participação popular em Ipatinga (MG, Brasil): conquistas e desafios do setor de saúde

Popular participation in Ipatinga (MG, Brazil): achievements and challenges of the health sector

Elizabeth da Costa Batista; Elza Machado de Melo

Programa de Pós-Graduação de Saúde Pública, Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Alfredo Balena 190, 10º andar. 30130-100 Belo Horizonte MG. bethbatista@uol.com.br

RESUMO

Com a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir dos anos 90, observase a passagem de um sistema político, administrativo e financeiramente centralizado para um cenário em que milhares de agentes passam a se constituir sujeitos fundamentais no campo da saúde. Entender como esses diferentes atores conseguiram absorver e garantir à comunidade o direito de participar na tomada de decisão em política pública de saúde foi o objetivo deste trabalho, que procura investigar o discurso democrático e a prática participativa implementada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) no município de Ipatinga (MG). Utilizamos como referencial a Teoria da Ação Comunicativa, de Habermas, e a partir dela um modelo de democracia entendido como a institucionalização dos processos discursivos de formação da opinião e da vontade. A partir desse referencial teórico, integrado aos principais pressupostos da Reforma Sanitária Brasileira, foi feito o estudo das políticas municipais de saúde de Ipatinga, no que diz respeito às suas bases e relações democráticas. Os resultados obtidos indicam que há uma importante história democrática no município, com indícios, no entanto, de retrocessos na prática participativa do setor saúde, pois atualmente verifica-se uma reprodução de práticas tradicionais de governar.

Palavras-chave: Ação comunicativa, Participação popular, Democracia, Controle social

ABSTRACT

Since the SUS implementation in the 90's, it has been possible to observe the change from a political, administrative, and financially centered system to a scene where thousands of agents started to constitute fundamental citizens in the field of health. The objective of this work is to understand how these different actors have absorbed and guaranteed the community the right to participate in the decision of public health policies. This research also tries to investigate the democratic speech and the participative practice implemented by the Worker's Party (PT) in the city of Ipatinga (MG, Brazil). This work uses as theoretical referential the Communicative Action Theory of Habermas and, from this theory, a model of democracy which is understood as the institutionalization of the discursive processes of opinion and will formation. The results obtained indicate that there is an important democratic history in the city, but with indications, however, of retrocessions in the participative practices of the health sector, as the reproduction of traditional practices of government is verified.

Key words: Popular participation, Democracy, Social control, Communicative action

Introdução

Os anos 80 constituíram um marco na política brasileira devido ao processo de redemocratização do país, trazendo para o cenário político inúmeros atores sociais1-4. O debate livre sobre os mais variados temas, necessidades e aspirações retorna à esfera pública, traduzindo-se em propostas políticas centradas na redefinição de políticas sociais voltadas para a reversão do quadro de enormes desigualdades sociais e a extrema extensão da pobreza. Neste contexto, inscreve-se o processo de reformulação do setor saúde que culminou com a proposta da Reforma Sanitária Brasileira. A VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada em 1986, definiu as bases da organização do sistema de saúde público brasileiro e se transformou num importante marco da Reforma Sanitária Brasileira, cujos princípios e diretrizes viriam a ser incorporados pela Constituição Federal Brasileira de 1988, dando origem ao Sistema Único de Saúde (SUS), norteado pelos princípios doutrinários da universalidade, equidade, integralidade e organizado de acordo com as diretrizes da descentralização, hierarquização e participação popular.

A participação social no sistema de saúde foi um dos pontos principais dos debates da VIII Conferência, sendo definida como o conjunto de intervenções que as diferentes forças sociais realizam para influenciar a formulação, a execução e a avaliação das políticas públicas para o setor saúde5, portanto, como controle social exercido pela sociedade civil organizada mediante participação direta ou delegada e/ou mecanismos de pressão, nas diversas instâncias gerenciais e operativas do sistema6. O controle social torna-se, dessa forma, via imprescindível para a democratização do sistema, partindo-se da concepção de saúde como direito à condição de cidadania, e implica o desenvolvimento de mobilização e organização social pelas quais a participação direta nas decisões políticas torna-se realidade7,8. Em outras palavras, a democratização do processo decisório constituiu aspecto central da estratégia de reestruturação do setor saúde e viria a ser alcançada pela sua descentralização e pela garantia de participação popular no planejamento, avaliação e controle nas três esferas do governo9,10, constituindo, pois, a base de uma nova relação entre Estado e sociedade no processo de formulação das políticas de saúde10.

A busca de criação de canais para a participação da população nas definições do governo e a inversão das prioridades de ação da administração foram as diretrizes de governo no município de Ipatinga, estabelecidas com a eleição para prefeito do candidato do Partido dos Trabalhadores em 198911. Transcorridos 16 anos em que o PT vem administrando Ipatinga, é fundamental verificar se esse modo de gestão democrática e participativa permanece e se ele se desenvolve de acordo com os interesses e necessidades da comunidade, se os atores que os representam ainda podem se reconhecer nas vitórias alcançadas e se a produção da saúde em Ipatinga se consolida como um exemplo de construção de cidadania.

Aprendemos com Habermas que os diferentes atores sociais, com as suas diferentes inserções sociais e com os recursos de que dispõem, o poder administrativo, o poder econômico e laços de solidariedade gerados em processos interativos da sociedade civil, exercem influência sobre a formulação das políticas públicas propostas pelo Estado12. Da mesma forma, as políticas sociais de saúde e as feições que adquirem em cada momento histórico podem ser entendidas como uma resultante da combinação desses elementos e das relações estabelecidas entre os atores a eles vinculados13,14. Entender como e se os diferentes atores sociais conseguiram - e ainda conseguem ou não - garantir o direito de participar na tomada de decisão em política pública de saúde em Ipatinga foi o interesse principal que motivou este trabalho que busca elucidar algumas questões, como: que procedimentos participativos desenvolvidos nesse município pretendem tornar real o discurso de democracia no setor de saúde? Em que medida os procedimentos participativos proporcionaram, de fato, a participação dos vários atores sociais nas decisões do governo? Como esse processo se dá nos dias atuais?

Agir comunicativo e democracia

Levando-se em consideração o exposto anteriormente, parece imprescindível reafirmar a participação da sociedade civil organizada para continuar avançando na conquista dos direitos e manter duradouramente o que já foi conquistado. Em outras palavras, pensar a saúde como direito significa pensá-la como consequência da participação política, livre e igualitária de todos os cidadãos envolvidos13, sendo esse o pressuposto central deste trabalho. Escolhemos como referencial teórico a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas, que nos oferece um conceito amplo e bem fundamentado de democracia, entendida como a institucionalização dos processos discursivos de formação da opinião e da vontade12,15,16 e apresentada a seguir.

Ação comunicativa: interações mediadas pelo entendimento linguístico

A mudança de paradigma decorrente da "virada lingüística"17,18, processo pelo qual a lingua-gem passa a ser entendida como o fundamento de todo o pensamento e segundo o qual não há saber humano possível que não se expresse pela linguagem, e a "virada pragmática", que tem seu terreno inicialmente preparado pela primeira e privilegia o uso comunicativo da linguagem por atores que interagem, oferecem um terreno fecundo para Habermas pensar uma teoria social - a Teoria da Ação Comunicativa - que preserve a relação entre razão e sociedade - no caso, a razão incorporada ao entendimento linguístico - imprescindível para se pensar a possibilidade de liberdade do homem15. A linguagem na visão habermasiana é "medium intranscendível" de todo sentido e de toda validade, uma vez que ela está na base de todo pensar, de todo agir e de todo argumentar, e é na sua dimensão pragmática, representada pelo entendimento intersubjetivo acerca dos enunciados linguísticos da comunidade de argumentação que reside a condição de possibilidade de todo pensar e agir17,18. As proposições semânticas só têm sentido pelo motivo de existirem sujeitos que se entendem uns com os outros sobre o significado delas e que, a partir desse entendimento consensual, podem utilizá-las em suas argumentações e na coordenação das suas ações coletivas17. Portanto, para Habermas, o entendimento do significado de uma expressão linguística vem entrelaçado com o uso comunicativo dela e de seus desdobramentos. Nenhum sujeito poderia saber o que significa entender o significado de uma expressão lingüística, caso não soubesse como se servir dela para entender-se com alguém sobre algo18. Essa ideia fundamental da teoria pragmática do significado diz respeito ao "nexo interno existente entre significado e validez"18 e nos permite falar da linguagem como "práxis social". São os atos de fala, com sua dupla estrutura - um componente ilocucionário ou performativo e um componente proposicional - que permitem essa articulação entre significado e validez18.

Todo ato de fala incorpora saberes que fazem referência ao mundo objetivo, ao mundo social e ao mundo subjetivo e, portanto, além da inteligibilidade, levanta pretensões universais de validade, a saber, verdade, correção normativa e veracidade, respectivamente12,15,17,19,20.

O entendimento linguístico é o processo pelo qual se produz um acordo fundado no reconhecimento intersubjetivo dessas pretensões de validade, que são passíveis de julgamento objetivo, podendo ser, portanto, fundamentadas e criticadas pela adução de razões: "as pretensões de validade são conectadas internamente com razões"12. Assim, o seu reconhecimento depende das tomadas de posição do ouvinte, que sempre podem ser sim ou não. Ao levantar, com seu ato de fala, pretensões de validade, o falante as quer reconhecidas pelo ouvinte - ele supõe ter razões e assume a obrigação de explicitá-las, se preciso for, para levar o ouvinte a aceitá-la; é exatamente esta garantia de que, se preciso for, o falante fundamentará, com razões, a pretensão de validade levantada que leva o ouvinte, racionalmente, a aceitá-la12,17. Falantes e ouvintes supõem ter razões para dizer o que dizem e fazer o que fazem; logo, o acordo que produzem em processos de entendimento é um acordo racional14. Dizer que um acordo é racional implica que ele não pode conter nenhum tipo de coerção que induza ou obrigue os participantes a adotar este ou aquele tipo de conduta e que apenas a força das razões que eles julgam adequadas pode atuar para produzi-lo.

Quando as energias da linguagem orientada ao entendimento são utilizadas como mecanismo coordenador da ação e funcionam como fonte de integração social, então, neste caso e apenas nele, tem-se a ação comunicativa. Neste tipo de interação, os planos dos participantes dirigidos a um fim - portanto, teleologicamente estruturados - são harmonizados e integrados pelo acordo alcançado em entendimentos linguísticos; logo, a ação comunicativa envolve dois aspectos: um deles o entendimento, pelo qual os participantes interpretam consensualmente a situação da ação e realizam seus planos cooperativamente; o outro, o aspecto teleológico relativo aos planos de cada um destes participantes. As atividades orientadas para um fim, dos participantes da interação, estão jungidas umas às outras através do meio que é a linguagem18.

Discurso prático e democracia

Infere-se do que foi dito que todo ato de fala comporta imanentemente uma obrigação, por parte do falante, de fundamentação, e isto pode ser feito recorrendo-se ao conjunto de experiências, convicções e apelos que falantes têm disponíveis no próprio contexto da ação, ou, se os questionamentos forem mais profundos, entrando nos discursos teórico e prático, para fundamentar as pretensões de verdade e de correção normativa, respectivamente. Questionamentos persistentes dos atos de fala expressivos poderão ser resolvidos pela avaliação da consistência entre a fala e o comportamento do falante.

No caso do discurso prático, as próprias normas é que são submetidas ao exame discursivo e não a pretensão de correção referente ao contexto normativo, pois as normas presentes na sociedade, explica Habermas, à diferença do mundo objetivo que tem uma base ontológica, precisam elas próprias de justificação20. Exatamente por esse motivo é possível distinguir entre norma vigente e norma legítima12,20,21. Dessa forma, só podem reclamar validez as normas que encontrem (ou possam encontrar) o assentimento de todos os concernidos enquanto participantes de um Discurso prático21. Este é o princípio do discurso com o qual chega-se ao princípio fundamental de uma teoria da moral, compatível com as sociedades pósmodernas, em que as certezas inquestionáveis vinculadas à tradição perderam a sua força: nessas sociedades, moral é tudo aquilo que pode contar com o consentimento de todos os envolvidos; é o que, por eles próprios, é julgado com imparcialidade e justiça - tudo pode ser problematizado e imparcialmente avaliado. A única garantia de respeito a essas normas e de sua efetivação em ação é, além das boas razões, a consciência de cada um, forjada nos processos de socialização. Além disso, a aplicação dessas normas exige recursos cognitivos e organizacionais, assim como o desenvolvimento de operações complexas, e se deixada a cargo dos participantes na interação acabará por sobrecarregá-los12,15,16. O direito supre, com suas normas legitimamente dotadas de poder coercitivo e com seu arcabouço institucional de alta complexidade organizativa e cognitiva, essas deficiências, complementando a moral. Por seu lado, com a modernização, o direito não dispõe mais da força moral legitimadora antes garantida pela tradição, mas também não pode prescindir dela. Como alternativa, ele incorpora a imparcialidade de julgamento e de formação da vontade pela do princípio do discurso, gerando o princípio de democracia15,16.

O entrelaçamento de moral e direito na institucionalização dos processos discursivos de formação política da opinião e da vontade, produzindo normas dotadas de reconhecimento recíproco e de poder coercitivo, é capaz de garantir a autonomia política dos cidadãos, conferindo a eles o status de cidadãos livres e iguais, que elaboram seus legítimos direitos e deveres, circunscritos a um território, válidos para uma dada comunidade num determinado tempo histórico. Mais uma vez, o universal, próprio da moralidade, se encontra, pela institucionalização do seu princípio básico, com o contexto, representado por um território, um povo, um tempo, produzindo democraticamente o direito moderno, dando a ele um caráter relativamente concreto, quando comparado com a moral12,14,22.

A partir desse conceito amplo de democracia, entendido como a institucionalização dos processos discursivos de formação da opinião e da vontade, processo em que os cidadãos têm garantido o exercício da sua autonomia e se transformam em autores dos direitos diante dos quais são destinatários, vamos pensar as políticas de saúde e sua democratização13,14.

O próximo passo agora é pensar como essa concepção de democracia pode encontrar existência no mundo empírico12, sendo então decisiva a capacidade deste modelo - que Habermas denomina política deliberativa - em encontrar espaço e se efetivar nas sociedades modernas, confrontando-se, para tanto, com o alto nível de complexidade e a consequente reificação ou independência dessas sociedades em relação aos processos de autodeterminação dos cidadãos. Habermas conclui que a tradução sociológica da teoria discursiva de democracia exige que as decisões devam ser conduzidas por fluxos de comunicação que começam na periferia e passam através das comportas dos procedimentos democráticos e constitucionais situados na entrada do complexo parlamentar e das cortes judiciais12. Em poucas palavras, os problemas operacionais da política deliberativa se resolverão apenas pelo princípio representativo - isto é, pela formação discursiva da vontade dentro do parlamento e dos tribunais. Mas esta deve estar ancorada nas correntes de comunicação que são próprias da esfera pública. Logo, os processos discursivos de formação da vontade devem necessariamente se desenvolver em dois níveis, um institucional e outro informal, este último representado pelos fluxos de comunicação de uma esfera pública, amplamente diversificada e mais ou menos autônoma, que se ancora no mundo da vida através da sociedade civil. Esta, por sua vez, deve ser entendida como o conjunto de organizações, associações e movimentos que conectam os problemas da vida privada à esfera pública e que constituem o substrato organizacional do público geral de cidadãos, sendo, portanto, o lugar onde cidadãos associados conseguem produzir uma opinião pública capaz de exercer influência sobre os processos institucionalizados de formação da vontade e gerar, então, poder comunicativo, capaz de se confrontar com os outros imperativos12,14,15.

Este projeto foi aprovado no Comitê de Ética da Universidade Federal de Minas Gerais; todos os entrevistados assinaram termo de consentimento livre e esclarecido.

Metodologia

O objeto a ser investigado neste estudo de natureza social impõe uma abordagem qualitativa, tendo como estratégia metodológica o estudo de caso, isto é, o estudo profundo e exaustivo de um ou poucos objetos, de maneira que permita o seu amplo detalhamento e conhecimento23 . A aproximação ao objeto de investigação foi feita utilizando-se a associação de vários procedimentos metodológicos:

(1) entrevistas abertas com gestores, representados aqui por um prefeito e dois secretários municipais;

(2) entrevistas abertas com oito trabalhadores de saúde (um de cada distrito sanitário);

(3) entrevistas abertas com 14 usuários dos oito distritos sanitários;

(4) grupo focal com usuários selecionados de cada um dos distritos sanitários;

(5) observação participante representada pelo acompanhamento das reuniões do Conselho Municipal, ao todo sete reuniões, da gestão 2003/2004;

(6) pesquisa documental: atas dos conselhos, jornais do município e relatórios das conferências.

Como se trata de pesquisa qualitativa, os participantes foram escolhidos intencionalmente, segundo a sua importância para a pesquisa24. No que se refere à amostragem, preocupou-se sobretudo com a capacidade dela em refletir a realidade nas suas múltiplas dimensões25, utilizando-se o critério de suficiência das informações para definir o seu número. Os critérios de inclusão utilizados foram, para o usuário, a participação em Comissão Local de Saúde, associação de moradores ou pastoral da saúde, e para os profissionais de saúde, a experiência em duas gestões administrativas e o exercício de cargo de gerência no setor saúde do município. No caso dos gestores, foram entrevistados todos os que consentiram em responder à entrevista. Todos os instrumentos foram testados em piloto, realizado previamente ao trabalho de campo.

As entrevistas individuais e a discussão do grupo focal foram gravadas em fita cassete e transcritas pela primeira autora. A observação participante gerou um diário de campo, com o registro dos fatos considerados relevantes, segundo um roteiro previamente elaborado. O material obtido nas entrevistas, no grupo focal e na observação participante foi submetido a sucessivas leituras e organizado segundo duas categorias, em consonância com o pressuposto teórico do modelo de democracia inspirado no agir comunicativo de Habermas, de vinculação entre representação e debate público: (1) a participação dos cidadãos em instâncias colegiadas; e (2) a associação dessas instâncias ao debate público acerca da saúde.

Resultados e discussão: saúde e democracia em Ipatinga

O município de Ipatinga está localizado no leste de Minas Gerais, conta com uma população praticamente urbana de 212.452 habitantes26, tem cobertura de 100% de abastecimento de água e de esgoto urbano coletado e tratado. A economia tem base predominantemente industrial, atividade que responde por 72,5% do Produto Interno Bruto (PIB) - o município sempre teve seu desenvolvimento diretamente atrelado à Usiminas, uma das maiores siderúrgicas do Brasil, e em torno dela vem sendo construída a sua história. Na década de 70, o município já contava com uma base produtiva moderna, mas no campo político ainda convivia com o tradicional, reproduzindo velhas práticas políticas clientelistas - até 1989, dois grupos políticos tradicionais se alternavam no governo por um período de 25 anos. A vitória eleitoral do Partido dos Trabalhadores, nesse ano, elegendo um metalúrgico - Francisco Carlos Delfino, Chico Ferramenta - para a prefeitura da cidade, representou a mudança conjuntural de governo e a reorganização da disputa de interesses. Pela relação de solidariedade e incentivo que o PT estabeleceu, durante a década de oitenta, com os movimentos sociais na cidade e pelo próprio envolvimento direto de suas lideranças partidárias na direção das lutas populares, o novo governo garante a participação popular no processo decisório, reivindicada por esses movimentos, inverte prioridades e investe predominantemente em políticas sociais11,27.

Consoante com essas diretrizes, o processo de municipalização da saúde em Ipatinga se traduz em duas grandes frentes de mudança: a reorganização da rede de serviços e a garantia da participação popular na gestão e no controle dos serviços28-30, perfilando-se com o projeto da reforma Sanitária Brasileira e com a constituição de 1988.

Em 1998, devido à crise fiscal, inicia-se reforma administrativa, trazendo perda para a população em relação às políticas sociais e para os funcionários no que diz respeito aos direitos trabalhistas31. As políticas sociais existentes são mantidas, mas focalizadas e seletivas, deixam de ser prioridades, os recursos públicos passam a ser investidos em obras de infraestrutura. Em 1990, a Usiminas, fonte principal de emprego e receita da cidade, é privatizada e, em razão disso, passa a existir maior demanda por serviços públicos, em consequência do desemprego, terceirização e subempregos. A década de 80 representou a opção pela gestão democrática; no entanto, percebe-se, simultaneamente à crise fiscal, uma retomada da política tradicional, com o estabelecimento de alianças com o Partido Progressista Brasileiro (PPS) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB)32, produzindo uma dualidade entre as proposições de um governo que tinha como pilar a participação popular e se orientava pelos projetos coletivos (e pela tarefa de manter essa prática democrática, mesmo em circunstâncias adversas) e as práticas de clientelismo, retomadas como formas de continuação no poder. Quanto isso afetou a democracia do setor de saúde?

A participação do cidadão nas instâncias colegiadas de saúde

Em 1989 foram organizadas, em Ipatinga, as Comissões Locais de Saúde (CLS), iniciativa democrática de vocação efetivamente popular, cuja implantação, ainda que incentivada pela Secretaria Municipal de Saúde, foi precedida por divulgação e discussões em todos os bairros onde existia unidade de saúde. Era forte a organização dos movimentos da saúde nesse período, o que permitia a participação dos cidadãos na organização e prestação de serviços de saúde. Em 1991, Ipatinga sai à frente dos municípios mineiros, sendo a primeira cidade a se preparar para a IX Conferência Nacional de Saúde, e nesse mesmo ano é criado o Conselho Municipal de Saúde de Ipatinga.

Cortes33,34, Barros35, Carvalho2 e Aciole36, entre outros, reconhecem que a institucionalização das instâncias colegiadas é, sem dúvida, uma conquista, sendo possível verificar nas atas do conselho e nas falas dos entrevistados que elas abrem um espaço para viabilização da participação popular - O conselho e a comissão local são fundamentais para os avanços na saúde de Ipatinga (gestor); Nós temos um conselho que tem participação, nós brigamos, defendemos aquilo em que acreditamos (usuário - grupo focal). Pela observação participante, foi possível verificar que o conselho é um espaço potencialmente capaz de receber as demandas da comunidade. As CLS têm o papel de canalizar para o Conselho as dificuldades na relação com as respectivas unidades: a reunião é aberta e a gente tem direito de cobrar (usuário). No entanto, pelos mesmos procedimentos, várias práticas que limitam as possibilidades da democratização do setor foram identificadas. O primeiro obstáculo a ser destacado é a existência de certa incredulidade em relação à participação popular no setor saúde, tanto pelo trabalhador como pelo usuário, cada um a seu modo, cada um atribuindo causa diferente a essa constatação. Para o primeiro, existe uma falta de interesse da população; para o segundo, não ocorre reconhecimento do usuário [...] as leis sempre foram ditadas de cima para baixo. Esta incredulidade pode ser creditada, como salientado por Habermas12, ao próprio perfil dos cidadãos, despreparados e/ou absorvidos pela sobrevivência diária, ou à frustração gerada pelo pouco poder decisório, evidenciandose assim o duplo condicionamento da participação: a instituição de mecanismos participativos sem a atitude participativa nada vale; a participação sem decisão é desmobilizadora.

Outro aspecto é a herança clientelista, evidenciada nas atas dos Conselhos e nas falas dos entrevistados. A institucionalização dessas práticas como forma de reprodução e manutenção do poder37 leva à cooptação dos favorecidos que passam a representar e legitimar os interesses da administração. É o processo pelo qual, no dizer de Habermas15, o cidadão efetivamente participativo cede lugar ao cliente, e dessa forma se garante a fidelidade das massas - rompem-se os processos comunicativos de coordenação da ação, substituídos que são por outros imperativos.

A relação do conselho com a administração pública municipal é de tranquilidade, pois os conselheiros não representam posição política significativa. Os pontos da pauta da reunião são ditados pelo secretário, em acordo com as matérias de interesse da Secretaria Municipal, com poucas demandas trazidas pelos conselheiros. As discussões dos conselheiros giram em torno de temas e rotinas da administração, exemplificando o que Habermas15 denomina circulação in-versa de poder - do executivo para as instâncias representativas -, diferente daquela própria da democracia em que os temas e propostas brotam da sociedade e, aprovados no Estado, são transformados em política pública. O projeto já vem pronto (usuário).

Outro fator dificultador de participação é o uso indevido do conhecimento técnico-científico - a velha prática de técnicos falando para leigos, o discurso competente provocando o silêncio dos demais e o uso instrumental de um espaço que deveria ser democrático para legitimar ações governamentais38.

Os prestadores públicos são mais preparados tecnicamente para defender o interesse da administração. Eles já vêm com o projeto deles totalmente definido, já sabem o que falar, já sabem o que a gente vai colocar contra, então eles já têm a resposta para estar convencendo, e para estar votando favorável a eles (usuário - grupo focal).

São comuns as estratégias usadas para esvaziar as discussões - em situações de polêmica, o assunto é retirado da pauta e adiado para reuniões futuras ou simplesmente delegado à Comissão Executiva, para deliberação; a pressão dos prazos é frequentemente chamada à cena; a pressão das instâncias administrativas ou de outros níveis do governo também. Em síntese, há neutralização do debate político dentro do Conselho, e suas reuniões tornam-se reclamatórias e corriqueiras, não chegando a decisão nenhuma. Com o bloqueio da discussão, acaba por haver predomínio do governo sobre os outros segmentos e dos conteúdos técnico-científicos e administrativos sobre os demais.

A participação dos cidadãos no debate público de saúde

A concepção que vem balizando o nosso estudo é a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas, e a partir dela o modelo de democracia entendido como a institucionalização dos processos discursivos de formação da opinião e da vontade, em que as decisões políticas definidas de forma participativa exigem a associação entre os mecanismos representativos e o debate público, propiciando, pois, um processo de reflexão, discussão e negociação entre os atores sociais envolvidos, que garante o respeito e a consideração das aspirações comuns e dos interesses coletivos dos cidadãos15,16. Lembrando que as instâncias institucionalizadas de controle social são instâncias representativas, a transposição do modelo de democracia inspirado no agir comunicativo proposto por Habermas ao setor saúde exige a vinculação das instâncias institucionalizadas de participação do setor saúde, isto é, conselhos e conferências, com os processos de organização e mobilização da sociedade civil, geradores de debate público, orientando a atuação dos representantes e as decisões tomadas nesses espaços para as reais necessidades dos cidadãos. A necessidade dessa conexão é claramente percebida por muitos atores sociais entrevistados nesta pesquisa. Se a comunidade não tiver organizada não adianta o poder público dizer que existe participação popular; somente a comunidade define isso (usuário).

Existe, pois, entre os entrevistados, uma concepção ampliada de participação popular, associando-a à organização dos cidadãos em espaços públicos autônomos, em consonância com a proposição segundo a qual somente com a organização da sociedade civil em torno de interesses coletivos é que os cidadãos conseguem produzir poder político capaz de influenciar os processos deliberativos15,16. Essa concepção alargada de participação se expressa nos relatos - do gestor, do trabalhador e do usuário - sobre a história da democracia no município que são unânimes em associar a democratização do setor de saúde aí ocorrida com a descentralização e mudança do poder, especificamente com a vitória do Partido dos Trabalhadores em Ipatinga e a adoção das políticas participativas por ele defendidas. Antes de 1989, a gente não sabia o que se passava dentro da Prefeitura...

No entanto, apesar do alcance dessas percepções e do conhecimento que têm sobre a importância da participação popular, verifica-se uma convergência das falas no sentido de identificar como mecanismos e espaços concretos de participação na formulação das políticas de saúde apenas o Conselho e as Comissões Locais de Saúde. Para todos os entrevistados, gestor, trabalhadores e usuários, a influência da sociedade na construção das políticas públicas de saúde está associada à participação nas instâncias institucionalizadas e nelas se esgota. Ou seja, as falas trazem a noção da participação em conformidade ao que é estabelecido como controle social em saúde, que aponta o exercício da cidadania exclusivamente por meio de participação em órgãos colegiados39, que acabam, dessa maneira, por se afirmarem como os únicos possíveis para a participação popular no setor saúde. Mas isso não acontece sem crítica ou preocupação. No próprio discurso que enfatiza a importância dos espaços institucionalizados, é possível notar uma preocupação com a publicização e transparência das decisões tomadas, portanto, com a livre circulação de informações, o que, mais uma vez, remete à formação da opinião coletiva e ao debate público. Participação popular é a ação política de governar junto com a população. E se teoricamente pensa-se que essa preocupação deveria ser tanto mais expressiva quando estão em pauta o uso e a aplicação dos recursos financeiros públicos40, assim também é na percepção dos três grupos de atores entrevistados. Mais do que isso, a preocupação dos entrevistados não se resume à necessidade de fiscalização de contas, mas abrange a aprovação da política com a correspondente aplicação dos recursos e, a partir daí, sim, à fiscalização da verba utilizada para o desenvolvimento das ações.

De todo modo, a análise anterior mostra que há uma defasagem ou até uma tensão entre, por um lado, a concepção de participação dos atores entrevistados, mais ampla e exigente, e, por outro, a sua avaliação sobre quais são os mecanismos existentes que viabilizam essa participação, com quais mecanismos podem contar. Você sabe o que deve fazer, mas não consegue... (usuário). Essa tensão ou distanciamento entre o pensar e os possíveis modos de agir, percebida pelos diferentes atores sociais, é motivo de descrença e desmobilização: Não acredito que tenha participação verdadeira dos vários segmentos, pois as leis já estão prontas (usuário). Os usuários sabem que o gestor tem maior peso inclusive porque ninguém tem argumentos suficientes para discordar; o gestor admite o fato e lhe acrescenta razões políticas, e o trabalhador enfatiza a falta de conhecimento dos usuários que são pessoas simples frente aos que têm conhecimento técnico. Aparecem, como se vê, no nível empírico, os fatores que, segundo os teóricos, dificultam e comprometem a participação, principalmente, os de ordem política, técnico-científica e administrativa, corroborando a análise de Habermas, em particular, e de muitos outros estudiosos, sobre a colonização do Mundo da Vida dos cidadãos e/ou sobre a tensão entre democracia e complexidade15-17,41-44. Reaparece a necessidade de se buscar mecanismos de superação desses fatores. Voltamos à necessária associação entre a representação e a vontade expressa dos cidadãos representados, como forma de canalizar para dentro das instâncias as necessidades, preferências e interesses coletivos dos diferentes atores e grupamentos sociais - o ancoramento das discussões na vontade dos cidadãos é uma forma de aumentar o seu peso ante os outros fatores e ser então devidamente levada em consideração nas tomadas de decisões.

Em Ipatinga, seguindo a ideia da aproximação entre representantes e representados, a eleição dos conselheiros acontece durante a Conferência Municipal de Saúde. No entanto, as falas mostram que a discussão para escolha do representante é episódica; muitas vezes, ela sequer acontece. No que se refere ao motivo que leva o participante da pré-conferência a ser escolhido como delegado para Conferência, encontramos vários fatores, que vão desde a vontade real de participar - eu sempre procurei trabalhar em favor do serviço público de saúde (usuário); um jogo de empurra - aí eu fui lá como não tinha muita gente (trabalhador); ou até mesmo a influência da administração pública - houve uma certa pressão da administração para que eu participasse, pois eu tinha um cargo de confiança (trabalhador). Em todos os casos, percebe-se a ausência de envolvimento da população organizada, e mesmo quando é nobre o motivo, prevalece a representação individual, não existe a identidade coletiva, não se tem uma base capaz de influenciar nas decisões dos representantes dentro do Conselho e não se constrói nenhum projeto comum.

A política deliberativa, tal como proposta por Habermas15,16, exige a existência de uma cultura liberal, que permite o livre fluxo das informações - qualquer processo que se pretenda de fato democrático deve contemplar essa condição, pois se não há liberdade, também não há formação racional da opinião e da vontade coletiva. Portanto, a divulgação e circulação de informações entre os representantes das instâncias colegiadas e seus representados é pressuposto básico da efetividade do controle social sobre o sistema de saúde. Tal como analisado por Cohn et al.45, essa comunicação "dá-se, na maioria dos casos, através de uma teia complexa de relações informais". Mundo da vida tecido pelas múltiplas interações entre os atores sociais, a partir das quais as percepções e experiências são entrelaçadas, constituindo a opinião pública, ampliando-se cada vez mais pela adesão de novos e novos atores - assim é o debate púbico. O problema é que muitos não fazem isso de modo algum ou só o fazem quando são interpelados: Eu nunca repassei nada do Conselho, pois nunca ninguém me perguntou nada (trabalhador). Tal situação acontece devido ao fato de que um não se reconhece no outro, os representantes na maioria das vezes se autonomizam e se distanciam dos seus representados, não representam a comunidade à qual pertencem e não recebem dela a legitimação necessária - não se cumprem assim as condições da política deliberativa e, segundo o modelo aqui adotado, assim não há democracia.

Diretamente relacionada a esse processo de construção de redes de informações e opiniões, o tipo de interação entre usuário e o serviço de saúde tem papel decisivo na construção dos processos democráticos em saúde, pois é aí, na relação direta com o sistema de saúde, que cada um experimenta os acertos e equívocos existentes, sente o impacto deles sobre a sua vida e forma a sua opinião a respeito15,46. O debate público, embora genérico e abstrato, guarda a memória de cada experiência individual e dela se constitui. O que se observa nas falas dos entrevistados de Ipatinga é que de um modo geral todos se apropriaram do processo democrático que produziu, com a autoria dos envolvidos, o serviço de saúde tal como ele se apresenta na atualidade e que foi fruto da reação às experiências ruins com o modelo anterior. É possível perceber que praticamente todos os entrevistados sentem orgulho do sistema de saúde municipal e reafirmam a sua qualidade, mesmo que apenas comparativamente aos de outras localidades. Porém, o que de fato está ocorrendo com as relações cotidianas entre usuário e serviço de saúde, se elas estão pautadas no reconhecimento recíproco e por isso são mobilizadoras, pedagógicas e geradoras de cuidado de qualidade, participação e cidadania ou se têm avaliação positiva porque ainda se nutrem de um passado gerador de mudança que foi capaz de incluir todos os envolvidos nas tomadas de decisão, pelas quais se sentem responsáveis, essa resposta não esteve ao alcance desta pesquisa. O que se pode afirmar com certeza é que os entrevistados sabem que ainda há muitas coisas para avançar e não se furtam a dizer que ainda esperam mais (usuários). E mesmo sem gostar de falar sobre certas coisas, não podem deixar de reconhecer como anda difícil ter voz ativa, que os interesses de certos setores predominam sobre as necessidades da comunidade, o acesso da população aos canais de participação e às informações está obstruído, e o sucesso na obtenção de reivindicações específicas depende do nome ou do poder do postulante. Bem diferente dos anos 90, que ainda trazem na memória.

Considerações finais

A proposta do Partido dos Trabalhadores, de democratização do governo municipal em Ipatinga, desenvolveu-se em torno da promoção de discussões e decisões das ações da Prefeitura, com a participação da população nos Conselhos Municipais. Os argumentos centrais do discurso de democratização petista, de inversão de prioridades e de participação popular, sustentavam que só é possível abordar corretamente as demandas quando a população participa das definições do governo. A população apresentava suas reivindicações, a Prefeitura procurava consultar a população em conferências, seminários e reuniões, e a administração assumia o compromisso de cumprir o que era deliberado nos fóruns de participação. No início da gestão do Partido dos Trabalhadores, o executivo municipal apoiava as decisões originárias dos processos participativos para implementação das políticas públicas de saúde, daí a facilidade de implantar o Conselho Municipal de Saúde de Ipatinga dentro de um projeto de administração democrático e popular. Nessa história, as instâncias colegiadas são elas próprias frutos de um processo de mobilização e organização popular.

A presente pesquisa procurou investigar a articulação entre o discurso democrático e a prática participativa implementada pelo governo municipal, visto que se trata de um município que vem sendo governado há dezesseis anos pelo Partido dos Trabalhadores e que os Conselhos representaram uma nova maneira de fazer política, colocando a participação popular como eixo principal em contraposição à tomada de decisões verticais. Os movimentos sociais participaram e contribuíram na construção de uma nova relação Estado/sociedade civil, conseguindo assim formular e direcionar a Política de Saúde do Município. Porém, hoje, conforme verificamos nas Atas do Conselho e das Conferências, nas reuniões de que participamos e nas entrevistas, esses canais institucionalizados vêm perdendo suas características de espaços canalizadores e irradiadores de projetos coletivos, restringindose ao papel burocrático/formal definido na legislação. Prevalece a falta de envolvimento dos conselheiros com as suas bases, os processos existentes são insuficientes, o representante não é reconhecido pelos representados nem os reconhece, prevalece a representação de si mesmo, individual, carente de força política. As propostas apresentadas pelo Executivo são aprovadas na maioria das vezes de maneira unânime, sem discussão, e quando ocorre algum debate, há sempre um argumento que se vale de jargão técnico-administrativo a calar os demais. Podemos afirmar que a produção de saúde em Ipatinga foi no passado, mas não mais o é, fruto de um modelo de democracia fundado na prática comunicativa, em que as decisões políticas são definidas a partir do diálogo e da cooperação entre os indivíduos, no entendimento que busca o alcance das aspirações comuns e dos interesses coletivos dos cidadãos. Contudo, não será exagero afirmar que todo o processo de participação desenvolvido durante a gestão do Partido dos Trabalhadores constituiu, para a população do município, importante experiência de movimento social na defesa dos interesses públicos, ainda presente na sua memória, na sua percepção e na sua cultura.

Colaboradores

EC Batista foi a responsável pela realização da pesquisa, orientada por EM Melo; a redação do artigo foi feita por ambas as autoras.

Artigo apresentado em 12/06/2007

Aprovado em 13/12/2007

Versão final apresentada em 14/01/2008

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2010
  • Data do Fascículo
    Jan 2011

Histórico

  • Aceito
    14 Jan 2008
  • Revisado
    13 Dez 2007
  • Recebido
    12 Jun 2007
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