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Iniquidade racial na mortalidade por câncer de colo de útero no Brasil: estudo de séries temporais de 2002 a 2021

Resumo

O objetivo desse artigo é analisar séries temporais da mortalidade por câncer de colo do útero segundo raça/cor no Brasil de 2002 a 2021. Estudo ecológico de séries temporais com dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade e informações populacionais do IBGE. Variações anuais das taxas de mortalidade ajustadas por idade de mulheres de 20 anos ou mais foram estimadas pelo modelo de regressão linear simples com correção de Prais-Winsten. Foram registrados 133.429 óbitos por câncer de colo de útero, destes, 51,2% foram de mulheres negras. As mulheres negras morrem mais e têm menor queda do coeficiente. Houve aumento da desigualdade racial ao longo dos anos. Em 2002, ocorriam 0,08 óbitos/100 mil mulheres a mais na população negra comparada com a população branca; em 2021 esse número é de aproximadamente 1 óbito. Para a elaboração de políticas de saúde da mulher devem ser consideradas as diferenças raciais na implementação de estratégias e metas.

Palavras-chave:
Neoplasias do colo do útero; Origem étnica e saúde; Fatores raciais; Mortalidade; Estudos de séries temporais

Abstract

This ecological study examined time series, from 2002 to 20121, of age-adjusted coefficients of cervical cancer mortality, in Brazil, in women aged 20 years or more, by race. The information sources were Brazil’s mortality information system (Sistema de Informação sobre Mortalidade - SIM) and the official bureau of statistics (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE). Annual changes in age-adjusted mortality rates were calculated using the Prais-Winsten linear regression method. Black women die more and the rate is decreasing less. Racial inequality has increased over the years. In 2002, there were 0.08 more deaths per 100,000 women in the black population than among white women; in 2021, the number was one death. Health policymaking should consider racial differences in the implementation of strategies and goals.

Key words:
Cervical neoplasms; Ethnic origin and health; Racial factors; Mortality; Time series studies

Introdução

O câncer de colo de útero ocupa o terceiro lugar na mortalidade feminina mundial. Ele ocorre com mais frequência em populações desfavorecidas como parte de um complexo de doenças ligadas à pobreza, raça/cor e condições de vida desfavoráveis11 Arbyn M, Castellsagué X, Sanjosé S, Bruni LM, Saraiya M, Bray F, Ferlay J. Worldwide burden of cervical cancer. Annals Oncol 2011; 22(12):2675-2686..

O diagnóstico precoce de lesões precursoras e a vacinação contra o HPV (papiloma vírus humano) diminuem sua incidência22 Pimple S, Mishra G, Shastri S. Global strategies for cervical cancer prevention Current Opinion in Obstetr Gynecol 2016; 28(1):4-10.. Por se tratar de doença rastreável, o número elevado de mortes por este câncer está associado ao diagnóstico tardio, em estágio avançado, o que o mantém ainda como problema de saúde pública.

A infecção crônica por subtipos oncogênicos de alto risco do papiloma vírus humano (HPV) causa quase todos os casos de câncer do colo do útero e, portanto, os fatores de risco são aqueles associados ao aumento da probabilidade de infecção pelo HPV. Esses fatores incluem: idade precoce de início da atividade sexual, múltiplos parceiros sexuais ou um parceiro com múltiplos parceiros sexuais; imunossupressão; história de infecção sexualmente transmissível, história de displasia vulvar ou vaginal relacionada ao HPV e falta de acesso ao rastreamento33 Cohen PA, Jhingran A, Oaknin A, Denny L. Cervical cancer: unequal progress. Lancet 2019; 393(10167):169-182..

Na literatura científica internacional, outro destacado fator de risco é raça44 Collins Y, Holcomb K, Chapman-Davis E, Khabele D, Farley JH. Gynecologic cancer disparities: A report from the Health Disparities Taskforce of the Society of Gynecologic Oncology. Gynecol Oncol 2014; 133(2):353-361.. No Brasil, contudo, os estudos brasileiros, em sua maioria, limitam sua análise aos aspectos ligados à pobreza, sem ênfase adequada às desigualdades raciais em saúde55 Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saude Soc 2016; 25(3):535-549.,66 Araújo EM, Costa MCN, Noronha CV, Hogan VK, Vines AI, Araújo TM. Desigualdades em saúde e raça/cor da pele: revisão da literatura do Brasil e dos Estados Unidos (1996-2005). Saude Colet 2010; 7(40):116-121..

A incorporação do quesito raça/cor nos sistemas nacionais de informação possibilita a construção de indicadores que revelam as desigualdades raciais no país, permitindo assim, avaliar o desempenho dos serviços de saúde na inclusão social77 Braz RM, Oliveira PTR, Reis AT, Machado NMS. Avaliação da completude da variável raça/cor nos sistemas nacionais de informação em saúde para aferição da equidade étnico-racial em indicadores usados pelo Índice de Desempenho do Sistema Único de Saúde. Saude Debate 2013; 37(99):554-562.. No entanto, os dados para construção de indicadores segundo raça/cor nem sempre estão disponíveis em qualidade e quantidade adequadas. Ainda que com limitações, o cálculo dos indicadores e sua divulgação contribui para o debate e para o aprimoramento dos sistemas de informações com vistas a identificação das diferenças raciais.

Diante do exposto, o presente estudo teve como objetivo analisar séries temporais da mortalidade por câncer de colo do útero segundo raça/cor no Brasil no período de 2002 a 2021.

Métodos

Trata-se de estudo ecológico de séries temporais, que tem como base dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e informações populacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estes dados foram empregados para o cálculo das taxas de mortalidade por câncer de colo do útero, segundo raça/cor, no Brasil, no período de 2002 a 2021 (Figura 1).

Figura 1
Série temporal das taxas de mortalidade por câncer de colo do útero segundo raça/cor, Brasil, 2002 a 2021.

Foram considerados todos os óbitos de mulheres com 20 anos de ou mais, residentes no território brasileiro e que tiveram como causa básica de morte o câncer de colo do útero.

Para contornar viés de classificação (óbitos por câncer de colo do útero classificados como câncer de porção não especificada), foram consideradas as seguintes causas de acordo com a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde em sua 10ª revisão (CID10): câncer do colo do útero (C53), câncer do corpo do útero (C54) e câncer do útero de porção não especificada (C55). Além disso, foi realizada a redistribuição proporcional dos óbitos classificados como C55 (câncer de útero de porção não especificada), por ano e faixa etária. Este procedimento considera quatro passos: no primeiro, os óbitos classificados como câncer do colo do útero e câncer do corpo do útero são somados; no segundo passo, são calculadas as proporções de óbitos por câncer do colo do útero e corpo do útero (em relação ao total de câncer do colo do útero somado ao câncer do corpo do útero); no terceiro passo, os óbitos por câncer do útero de porção não especificada são redistribuídos, de acordo com as proporções calculadas no segundo passo, em câncer de corpo do útero e câncer do colo do útero. No quarto passo, o valor obtido no passo anterior é somado aos óbitos originais de câncer do colo do útero e câncer do corpo do útero, obtendo-se, assim, o número de óbitos corrigido88 Silva GA, Girianelli VR, Gamarra CJ, Teixeira MTB. Cervical cancer mortality trends in Brazil, Evolução da mortalidade por câncer do colo do útero no Brasil, 1981-2006. Cad Saude Publica 2010; 26(12):2399-2407.,99 Sousa AMV, Teixeira CCA, Medeiros SS, Nunes SJC, Salvador PTCO, Barros RMB, Lima FFS, Nascimento GGC, Santos J, Souza DLB, Bezerra APS, Meira KC. Mortalidade por câncer do colo do útero no estado do Rio Grande do Norte, no período de 1996 a 2010: tendência temporal e projeções até 2030. Epidemiol Serv Saude 2016; 25(2):311-322..

A taxa de mortalidade segundo raça/cor foi calculada dividindo-se o número de óbitos por câncer de colo do útero em mulheres de 20 anos ou mais, pelo número de mulheres com 20 anos ou mais, por 100 mil mulheres. As taxas foram ajustadas pela distribuição etária, utilizando a população padrão mundial1010 Doll R, Muir C, Waterhouse J. Cancer Incidence in Five Continents. Berlin, New York: Springer-Verlag, Heidelberg; 1970..

Para a padronização as faixas etárias por raça/cor foram obtidas por projeção linear, considerando os dados censitários de 2000 e 2010, dado que o IBGE não disponibiliza estimativas intercensitárias para estratificação da população simultaneamente por raça/cor e faixa etária.

As informações sobre raça/cor, tanto de óbitos como populacionais, foram obtidas por autodeclaração, classificadas de acordo com as definições do IBGE em branca, parda, preta, amarela e indígena77 Braz RM, Oliveira PTR, Reis AT, Machado NMS. Avaliação da completude da variável raça/cor nos sistemas nacionais de informação em saúde para aferição da equidade étnico-racial em indicadores usados pelo Índice de Desempenho do Sistema Único de Saúde. Saude Debate 2013; 37(99):554-562.,1111 Petruccelli JL, Saboia AL. Características étnico-raciais da população: classificação e identidades. Rio de Janeiro: IBGE, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; 2013.. Mulheres pardas foram somadas às mulheres pretas tanto no numerador (óbitos) quanto no denominador (população) para compor o coeficiente de mortalidade de mulheres negras. A categoria negra (a soma de pretas e pardas) representa por um lado a população descendente de africanos nascidos na diáspora e, por outro, o processo de miscigenação como uma dimensão da realidade brasileira1111 Petruccelli JL, Saboia AL. Características étnico-raciais da população: classificação e identidades. Rio de Janeiro: IBGE, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; 2013..

Para análise dos dados no período de 2002 a 2021, foram estimadas as variações percentuais anuais (VPA) das taxas de mortalidade por câncer de colo do útero segundo raça/cor com os seus respectivos intervalos de confiança de 95%, utilizando o modelo de regressão linear com correção de Prais-Winsten. As taxas foram consideradas ascendentes quando a VPA foi positiva e descendente quando negativa. As tendências das taxas foram consideradas não significativas, segundo o modelo adotado, quando p>0,05.

A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em 09/05/2018, sob o Protocolo de Pesquisa nº 162/18.

Resultados

No período de 2002 a 2021, foram registrados no Brasil 133.429 óbitos por câncer de colo de útero. Destes, 63.102 (47,3%) ocorreram em mulheres brancas, 10.741 (8,1%) em mulheres pretas, 57.584 (43,2%) em mulheres pardas, 635 (0,48%) em mulheres amarelas, 632 (0,47%) em mulheres indígenas. Na população negra - mulheres pardas somadas às mulheres pretas - o número de óbitos foi de 68.325 (51,2%). A mortalidade em mulheres negras e brancas representa 98,50% do total de registros no período em estudo.

Em 2002 a taxa de mortalidade na população negra era 1,0% maior que o mesmo coeficiente na população branca, enquanto em 2021 essa diferença foi de 17,8%, indicando aumento da desigualdade racial. As taxas na população de mulheres indígenas apresentaram oscilação ao longo do tempo, devido ao efeito dos pequenos números em decorrência da pequena participação deste grupo na população geral. Em 2002 a mortalidade em indígenas era 47,3% menor que a mesma taxa em brancas. Em 2021 a mortalidade em indígenas foi 123,5% maior que nas brancas (Tabela 1).

Tabela 1
Taxa de mortalidade por câncer de colo de útero ajustado por idade (por 100 mil mulheres), segundo raça/cor e ano, Brasil, 2002 a 2021.

A Tabela 2 apresenta a estatística descritiva da variável objeto do estudo por raça/cor no Brasil de 2002 a 2021. A maior taxa média foi registrada na raça/cor indígena (10,99) e a menor na branca (6,5). A série temporal que apresentou maior variação relativa em torno da média foi a da raça/cor amarela (53,90%) e a menor na raça/cor negra (6,13%). Com exceção da raça/cor negra, todas apresentaram coeficiente de assimetria positiva, o que denota concentração de dados abaixo da média do período (Tabela 2 e Figura 2).

Tabela 2
Média, desvio padrão, coeficiente variação e assimetria das taxas de mortalidade por câncer de colo do útero segundo raça/cor. Brasil, 2002 a 2021.

Figura 2
Variação percentual anual de mortalidade por câncer de colo do útero segundo raça/cor. Brasil, 2002 a 2022.

A Tabela 3 mostra a tendência da mortalidade por câncer de colo de útero. Para o conjunto da população feminina no Brasil houve uma variação percentual anual negativa de 1,33% (IC95% -1,56 a -1,10) indicando tendência decrescente. A variação percentual de brancas e amarelas apresentou tendência decrescente ainda maior, de -1,74% (IC95% -2,24 a -1,23) e -7,17 (IC95% -9,31 a -4,97) respectivamente.

Tabela 3
Variação percentual anual e tendência de mortalidade por câncer de colo do útero segundo raça/cor. Brasil, 2002 a 2021.

Enquanto no período houve diminuição importante na mortalidade para brancas e amarelas, a variação percentual anual para as mulheres negras foi menor, indicando valores próximos da estabilidade (VPA de 0,98% IC95% -1,93 a -0,02) ainda que decrescente. Para mulheres indígenas a tendência foi crescente, com uma variação percentual anual positiva em 4,74% (IC95% 2,39 a 7,16).

Observa-se, portanto, heterogeneidade nas tendências com comportamento decrescente maior na taxa de mortalidade na população branca e amarela, e concomitante aumento da desigualdade racial.

Discussão

Até onde se tem notícia, este é o primeiro estudo que aborda a relação entre raça/cor e mortalidade por câncer de colo de útero de abrangência nacional com correção dos óbitos e padronização por idade.

Foram encontradas diferenças nas tendências de mortalidade por câncer de colo de útero segundo raça/cor no Brasil no período de 2002 a 2021, com padrões temporais diversos. Houve aumento da desigualdade racial no período analisado.

A relação entre raça/cor e saúde tem sido investigada nos Estados Unidos (EUA) desde os anos 1980. No Brasil, apesar dos negros representarem 56,1% da população, o campo da saúde da população negra se consolida somente a partir dos anos 2000 com a realização da III Conferência Internacional Contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas e posterior criação da Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial (SEPPIR), ligada à Presidência da República1212 Berquó E. Demografia da desigualdade - Algumas considerações sobre os negros no Brasil. In: VI Encontro Nacional de Estudos Populacionais. São Paulo; 1988. p. 89-110..

A categoria negra configura identidade étnico-racial e está presente nas denominações que combatem o racismo. Ela permite compreender os efeitos da história, da cultura e dos contextos econômico e político que marcam profundamente o significado da realidade social brasileira e o objetivo preponderante de estudar os efeitos da discriminação racial.

Algumas pesquisas traçam o panorama da mortalidade por câncer de colo do útero em alguns estados ou municípios, ressaltando a desigualdade social. Em 2013, nove em cada dez óbitos por câncer do colo do útero ocorreram em regiões menos desenvolvidas, onde o risco de morrer antes dos 75 anos era três vezes maior1313 Meira KC, Silva GA, Silva CMFP, Valente JG. Efeito idade-período-coorte na mortalidade por câncer do colo uterino. Rev Saude Publica 2013; 47(2):274-282.. Na cidade de Recife entre 2000 e 2004, houve maior número de óbitos em mulheres negras, em idade entre 40 a 59 anos - abaixo dos 60 anos, portanto - sem parceiro fixo, do lar, residentes em bairros sem infraestrutura básica e usuárias de hospitais públicos1414 Mendonça VG, Lorenzato FRB, Mendonça JG, Menezes TCN, Guimarães MJB. Mortalidade por câncer do colo do útero: Características sociodemográficas das mulheres residentes na cidade de Recife, Pernambuco. Rev Bras Ginecol Obstet 2008; 30(5):248-255.. No Rio de Janeiro e em São Paulo a mortalidade por câncer de colo do útero teve decréscimo significativo, especialmente nas mulheres nascidas após 19601313 Meira KC, Silva GA, Silva CMFP, Valente JG. Efeito idade-período-coorte na mortalidade por câncer do colo uterino. Rev Saude Publica 2013; 47(2):274-282.. No Rio Grande do Norte, não houve variação significativa do coeficiente de mortalidade no período de 1996 a 2010. Contudo, regiões do estado com piores condições socioeconômicas tiveram aumento dos coeficientes1010 Doll R, Muir C, Waterhouse J. Cancer Incidence in Five Continents. Berlin, New York: Springer-Verlag, Heidelberg; 1970.. Tendência de aumento também foi observada no Piauí no período de 2000 a 20111515 Madeiro A, Rufino AC, Brandão NS, Santos IS. Tendências da mortalidade por câncer do colo do útero no Piauí, 2000-2011. Cad Saude Colet 2016; 24(3):282-285..

Se no Brasil são escassas as pesquisas que avaliam a associação entre raça/cor e câncer de colo do útero, nos EUA encontra-se maior número de estudos, com resultados análogos aos nossos, embora apenas uma pesquisa tenha verificado série temporal. Entre 2000 e 2012 houve comportamento crescente dos coeficientes de mortalidade para as mulheres negras aos 65 anos em comparação com tendência estável para as brancas nos EUA1616 Yoo W, Kim S, Huh WK, Dilley S, Coughlin SS, Partridge EE, Chung Y, Dicks V, Lee JK, Bae S. Recent trends in racial and regional disparities in cervical cancer incidence and mortality in United States. PLoS One 2017; 12(2):e0172548.. Mulheres negras não hispânicas tiveram um risco aumentado de mortalidade por câncer do colo do útero e mulheres hispânicas um risco diminuído quando comparado com o risco de mulheres brancas1717 Markt SC, Tang T, Cronin AM, Katz IT, Howitt BE, Horowitz NS, Lee LJ, Wright AA. Insurance status and cancer treatment mediate the association between race/ethnicity and cervical cancer survival. PLoS One 2018; 13(2):e0193047.

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As diferenças raciais na mortalidade por câncer de colo do útero aqui encontradas podem ser explicadas pela distribuição desigual de recursos sociais. Embora esta situação seja decorrente dos níveis de pobreza, ela é catalisada pelas desigualdades raciais. Como a citologia oncótica, o diagnóstico e tratamento oportunos são as principais intervenções para o controle deste agravo, a dificuldade de acesso aos serviços explicam os diferentes coeficientes de mortalidade. No Rio de Janeiro, mulheres negras mais jovens tiveram menor acesso, receberam menos informações e avaliaram pior a assistência recebida2020 Martins LFL, Almeida LMD, Szklo AS, Szklo M, Thuler LCS, Enes MDFG, Pinheiro RS, Coeli CM. Factors associated with the lack of access to cervical cancer screening test results in the Brazilian unified health system network in the municipality of Rio de Janeiro. Eur J Cancer Prev 2018; 27(4):339-346.. Situação semelhante foi encontrada em duas cidades do Rio Grande do Sul, Pelotas e São Leopoldo, onde as desigualdades raciais no acesso persistiram mesmo após controle por idade e fatores socioeconômicos2121 Bairros FS, Meneghel SN, Dias-da-Costa J, Bassani DG, Menezes AMB, Gigante DP, Olinto MTA. Desigualdades raciais no acesso à saúde da mulher no Sul do Brasil. Cad Saude Publica 2011; 27(12):2364-2372.. No Brasil, mulheres negras fizeram significativamente menos Papanicolau, menos exame de mama e tiveram mais diagnósticos tardios com piores prognósticos2222 Martínez-Mesa J, Werutsky G, Campani RB, Wehrmeister FC, Barrios CH. Inequalities in Pap smear screening for cervical cancer in Brazil. Prev Med (Baltim) 2013; 57(4):366-371.

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Fatores macroestruturais e políticos impedem o acesso da população negra aos serviços. A vulnerabilidade influencia a tomada de decisões e a busca por direitos. As relações entre os indivíduos e a forma como se posicionam no mundo são ditadas pelas condições sociais, culturais e históricas, conformando, entre tantas condições, o processo saúde e doença. São determinações que mantêm e reproduzem formas sociais em diversos domínios e impedem que as pessoas demandem os serviços de saúde2727 Theodoro ML. A formação do mercado de trabalho e a questão racial no Brasil. In: Theodoro ML, organizador. As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a abolição. Brasília: Ipea; 2008. p. 15-44.

28 Munanga K. História do Negro no Brasil: o negro na sociedade brasileira: resistência, participação e contribuição. Brasília: Fundação Cultural Palmares; 2004.
-2929 Theophilo RL, Rattner D, Pereira ÉL. The vulnerability of afro-brazilian women in perinatal care in the unified health system: Analysis of the active ombudsman survey. Cien Saude Colet 2018; 23(11):3505-3516.. Embora a escravidão tenha sido abolida no Brasil há mais de um século, seus vestígios e atualizações estão presentes e se expressam na desvantagem social da população negra. A maioria dos indicadores econômicos e de saúde revela as diferenças injustas segundo raça/cor3030 Lopes F. Experiências desiguais ao nascer, viver, adoecer e morrer: tópicos em saúde da população negra no Brasil. In: Seminário saúde da população negra Estado de São Paulo 2004. São Paulo; 2005. p. 53-101.. A posição ocupada por grupos e indivíduos no espaço social, a forma como se relacionam entre si e com a natureza no processo de produção da riqueza está na origem das doenças e de sua desigual distribuição na população.

Os resultados aqui encontrados devem ser interpretados à luz das limitações do uso de dados secundários. Apesar do incremento na qualidade do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), foi observado durante todo o período uma proporção de aproximadamente 30% dos óbitos classificados como câncer de útero de porção não especificada. Buscou-se contornar esse limite realizando a redistribuição proporcional conforme descrito na seção métodos.

Surpreendentemente, o preenchimento do quesito raça/cor nos registros do SIM se mostrou de boa qualidade. É possível identificar a raça/cor em 95,0% dos óbitos por câncer no colo do útero (CID C53 e óbitos redistribuídos a partir da CID C55). Observou-se também a variação temporal positiva, com dados de melhor qualidade nos anos recentes: em 2002, a notificação era de 90,7% e, em 2021, de 97,8%.

Outro fator a ser considerado na interpretação dos resultados é o aumento no percentual de pretos e pardos autodeclarados entre os Censos 2000 e 2010, com concomitante redução proporcional de pessoas autodeclaradas brancas1111 Petruccelli JL, Saboia AL. Características étnico-raciais da população: classificação e identidades. Rio de Janeiro: IBGE, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; 2013.. O efeito deste fenômeno nos coeficientes de mortalidade da população negra é o aumento do denominador com consequente redução do coeficiente. Para a população branca ocorre o inverso, diminuição do denominador com aumento do coeficiente. Portanto, é possível que os coeficientes aqui apresentados estejam subestimados para as mulheres negras e sobrestimados para a população branca. Deste modo, a desigualdade racial encontrada nos nossos resultados pode ser ainda mais pronunciada.

É necessário ressaltar a possibilidade de ausência de uniformidade na classificação de raça/cor entre os dados do Censo e do SIM. Embora ambos registrem a informação autodeclarada, a realização do Censo demonstra maior precisão por ser realizada por profissionais treinados especificamente para obtenção de informações populacionais.

A relevância do presente trabalho reside no seu ineditismo. É o primeiro estudo que avalia séries temporais sobre a mortalidade por câncer de colo do útero e raça/cor no Brasil com correção dos óbitos e padronização das taxas de mortalidade. Além disso ele ressalta o desafio de superar as desigualdades no acesso aos serviços para a constituição de um sistema de saúde de fato universal e equânime. Os serviços precisam organizar a atenção de maneira a captar e enfrentar as disparidades raciais. Intervenções nos determinantes e condicionantes sociais da saúde deveriam considerar a busca por igualdade racial.

Por fim, nossos resultados indicam a necessidade de uma estrutura de decisões políticas e de gestão que priorizem a redução dos efeitos do racismo institucional. No que se refere à política de combate ao câncer de colo de útero, as mulheres negras deveriam receber especial atenção no desenvolvimento de estratégias do Programa Nacional de Controle do Câncer do Colo do Útero e de Mama. Metas e atividades da atenção primária, cobertura vacinal contra o HPV, rastreamento, sistema de referência e contrarreferência e implantação de rede de serviços para o tratamento oportuno deveriam considerar as especificidades e necessidades da população negra.

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  • Financiamento

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Instituto Ibirapitanga.

Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2023
  • Aceito
    26 Jul 2023
  • Publicado
    28 Jul 2023
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