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Papel do Movimento Sanitário na Construção do Novo

"Política de Saúde no Brasil: a Universalização Tardia como Possibilidade de Construção do Novo", artigo de Maria Elizabeth D. Barros, é um trabalho estimulante. Ela apoia o projeto de construção do SUS, mas o faz de maneira crítica. Enfrenta de peito aberto nossas dificuldades técnicas e políticas. Nem tapa o sol com a peneira, nem adere aó senso comum das receitas dos bancos internacionais. Sua elaboração persegue a idéia do SUS como um sistema solidário. Senti-me obrigado a refletir sobre o papel do chamado movimento sanitário na nova conjuntura tão bem descrita pela autora. Nós, todos aqueles com uma mirada um pouco mais longa que a do próprio umbigo, o que poderíamos fazer ? Elizabeth Barros, apesar do bom-mocismo de grande parte deste antigo e velho movimento sanitário, fustiga as políticas estatais brasileiras, clamando por um sistema que defenda a vida e saúde do povo. Essencialmente, foge da lamúria simplista da falta de dinheiro.

Recentemente, um dirigente da Secretaria de Estado da Saúde de SP duvidava da capacidade do Ministério pagar pelo esquema tríplice para pacientes com AIDS. Argumentava, brandindo os três critérios de eleição de prioridades do CENDES/OPS, que nem para vacinas o SUS teria recurso. Ingenuidade ? Cegueira institucional de governantes procurando justificar sua própria paralisia ? Inteligência interesseira posta a serviço dos poderosos ? Os motivos não interessariam tanto, interessaria antes desmascarar esta argumentação transformada em verdade dura, em dado objetivo e pétreo: para um pensamento dessa natureza o Brasil realmente não teria dinheiro para garantir a universalidade da atenção integral.

Ou seja, aos governantes não restaria outra alternativa que a de desmontar políticas sociais. Tolice. Trata-se de eleição de prioridades, nada mais do que isto. Observando-se apenas que a escolha não deveria ocorrer entre vacinas ou remédios para pacientes graves e, sim, entre socorro generoso ao sistema financeiro ou investimento em saúde, ou em educação, ou em saneamento básico. Luiz Nassif perguntou: se 60 bilhões doados aos bancos não provocaram inflação, por que 6 bilhões investidos nos SUS desequilibrariam as contas do país ?

Elizabeth Barros trata desta discussão: seria possível utilizar o SUS para incrementar os coeficientes de cidadania dos brasileiros ? A implementação do SUS contribuiria para diminuir as imensas disparidades sociais do Brasil ? Parece uma polêmica estéril, mas não é. Afinal, o pensamento neoliberal passou a questionar a eficácia de toda e qualquer política social e muitas autoridades passaram a repetir estas baboseiras de forma acrítica. Por isto, o artigo é oportuno, aponta caminhos — vários, heterodoxos e polêmicos — possíveis para a consolidação de um sistema que assegure acesso e atenção integral a todos.

Há outro ponto polêmico, contudo, que o movimento sanitário deveria abordar com mais carinho e cuidado. Além do contexto político e econômico adverso, a operaciona-lização do SUS ressente-se de um outro problema. Refiro-me ao modelo de atenção a ser implementado. Obtido financiamento, como organizaríamos o sistema ? Se o horizonte for o modo de produção de serviços de saúde norte-americano, por exemplo, poderíamos afirmar que a universalização seria impossível, ou não ?

E neste aspecto a discussão avançou muito pouco. O movimento sanitário padece de subserviência à racionalidade e à prática médico-hospitalar. Quase nunca a criticamos, e, quando a analisamos, costumamos fazê-lo de fora. Em geral, produzindo alternativas pobres e carentes de legitimidade social. Assim, há o velho discurso de se priorizar ações coletivas. Muito bem, fazer funcionar a saúde pública, ou a vigilância à saúde é difícil, mas isto não esgotaria o tema da clínica. Haveria deslocamento de prioridades e redefinição de papéis, mas sempre a sociedade demandaria cuidado individual às doenças, ou não ?

Na verdade, os governos padecem de imobilismo com relação à atenção médico-hospitalar. Há poucas experiências locais em que esta lógica foi objeto de reformulação. A proposta de dividir o SUS em duas "alas" — a dos distritos de saúde e a da assistência médica — é apenas mais uma evidência deste imobilismo. Ou seja, supõe-se que a prática clínica seguiria sempre segundo sua própria lógica hegemônica.

O projeto Médico de Família apenas arranha esta lógica. Contém diretrizes interessantes que permitiriam reformar a clínica, mas há uma questão no ar: por que apenas o médico de família deveria trabalhar com vínculo, cuidado integral, atenção domiciliar etc. ? O que fazer com a imensa rede de Centros de Saúde criada nos últimos vinte anos ? Ou seja, por que não poderíamos criar uma verdadeira porta de entrada baseada nesta rede e nos médicos de família, nela integrados, e não dela separados, como reza o projeto normativo do Ministério ? Por que não delegar a generalistas, pediatras e às equipes dos centros de saúde o poder de internar, o poder de solicitar atendimento especializado etc. ? Por que não estender as diretrizes do médico de família para todos os profissionais que trabalhem na rede básica ? Senão, por que conservar esta imensa e dispendiosa recle ? Para transformá-la em ambulatórios de baixa resolutividade, mas com capacidade de pronta-atenção, como o está fazendo o PAS em São Paulo. O que é o PAS senão uma resposta demagógica à incapacidade dos setores progressistas de pensarem a prática clínica para todo o povo. O PAS é um imenso pronto-atendimento, onde o acesso se transformou em principal diretriz organizativa. Interessante como este projeto, com um modelo clínico tão primário, calou candidatos e assessorias tucanas e petistas. Eles não têm o que dizer, a não ser que irão corrigir alguns detalhes. É muita pobreza !, o povo merecia coisa melhor depois de anos e anos de reforma sanitária.

E os hospitais, estes sim, permanecem como seres intocáveis. Onde estão as propostas para sua reestruturação ? Não basta dizer, que queremos uma sociedade de justiça e não de hospitais. Na sociedade justa haverá hospitais na sua justa medida. Centrais de disponibilização de vagas, autorizações de internação em mãos de técnicos da rede básica e dos serviços de emergência. Internação domiciliar, cirurgia ambulatorial, hospitais-dia, reestrutração do processo de trabalho e humanização dos hospitais, há muito por fazer. Ampliação do grau de autonomia dos pacientes como critério de "cura", valorização do autocuidado como antídoto contra a medicalização. Para isto, haveria que se quebrar tanto o ódio raivoso à clínica, quanto o respeito acrítico a ela dirigido. Caso contrário, a idéia de universalização permanecerá para sempre uma quimera.

Cabe ainda acrescentar que a saúde coletiva não pode depender apenas da rede básica (centros de saúde ou médicos de família). Necessitamos também de equipes de especialistas em saúde pública — sanitaristas — em cada distrito, município ou rincão deste país. Senão a integralidade não sairá do papel. A saúde coletiva deveria ser, ao mesmo tempo, ferramenta básica de quase todas as profissões da saúde, e especialidade a cargo de técnicos formados para exercê-la. Resgatar a formação de sanitaristas, para além dos mestrados e doutorados, seria essencial. Cursos que capacitem as pessoas a trabalharem com a saúde pública, ou com a vigilância à saúde, de forma competente e permanente.

Portanto, ao movimento sanitário caberia prosseguir na senda aberta por Elizabeth Barros. Fustigar governos, categorias profissionais e a sociedade, constatar que exercemos influência sobre todos estes atores sociais, ou seja, que, apesar das dificuldades, não somos tão impotentes quanto às vezes nosso discurso dá a entender.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    1996
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