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Sobre "Homens, saúde e políticas públicas: a equidade de gênero em questão"

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Sobre "Homens, saúde e políticas públicas: a equidade de gênero em questão"

On "Men, health and public policies: gender equality in question"

Marcos Nascimento; Sergio Carrara

Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. m2nascimento@gmail.com

No artigo produzido por Maria Thereza Couto (USP) e Romeu Gomes (Fiocruz), os autores buscam problematizar a articulação entre saúde e políti­cas públicas, com foco específico na saúde dos homens e suas implicações para a promoção da equidade de gênero. O artigo contempla uma reflexão em três planos de análise: (1) a construção da agenda de gênero nas políticas públicas, (2) a perspectiva de gênero nas políticas públicas de saúde e (3) um questionamento acerca da relação entre a equidade de gênero e a política de saúde dos homens.

Gostaríamos de começar refletindo sobre a diversidade de nomenclaturas em voga para tratar dos homens na saúde: saúde masculina, saúde dos homens, política de atenção integral em saúde para homens, política de saúde do homem. Certamente, não é por mero acaso que essas variações ocorrem. Trata-se de um cenário complexo que instaura uma série de perguntas: de que homem se fala, para que contingente de homens as políticas de saúde se destinam, que articulações existem entre políticas voltadas para os homens e outras políticas no campo da saúde, qual o lugar dos homens na saúde, que discursos são produzidos a partir da inauguração de uma política de saúde para homens?

O artigo fornece algumas pistas para pensarmos nessas questões. Primeiramente, a constituição do próprio campo de investigação e de intervenção sobre homens na área da saúde. Assistimos nos últimos 20 anos a um intenso debate sobre a participação masculina em temas relacionados à saúde sexual e reprodutiva e aos direitos sexuais e reprodutivos. As plataformas de ação das Conferências sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994)1 e sobre Mulheres (Beijing, 1995)2 apontaram a necessidade de inclusão dos homens e meninos no debate sobre planejamento reprodutivo. Vale destacar que, nesse momento, como chama atenção Arilha3, o envolvimento dos homens era pautado na "(ir)responsabilidade" masculina em relação às questões de sexualidade e reprodução.

Ainda durante os anos de 1990, alguns trabalhos apontados pelos autores já mostravam os níveis de morbidade e mortalidade masculinas de brasileiros. Contudo, é preciso ressaltar o papel das causas externas nessa configuração de morbi-mortalidade. Em primeiro lugar, a violência (incluindo episódios letais) em que os homens aparecem como vítimas e algozes preferenciais e, em segundo, os acidentes de trânsito. Tais fatos parecem apontar para a ideia de que "enfrentar riscos" continua a ser valorizada na construção de um tipo idealizado de "homem verdade", em que as possíveis vulnerabilidades são colocadas de lado em detrimento das insígnias da masculinidade4.

Se por um lado a dimensão de gênero é estruturante para pensarmos os ritos e os ditos masculinos, ela está profundamente articulada com outros marcadores sociais, como cor/raça, classe, geração, orientação sexual, identidade de gênero. A articulação entre diferentes marcadores é fundamental para qualquer análise que leve em consideração a pluralidade de experiências masculinas e suas correlações com a promoção da equidade de gênero em saúde.

Buscando seguir os planos de análise propostos pelos autores, problematizamos alguns pontos que nos parecem relevantes. No primeiro plano de análise, os autores destacam a participação do movimento social na construção de uma agenda política de gênero, notadamente, os movimentos feminista, de mulheres e LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais). Por meio da ação desses grupos, a desigualdade em função do gênero ganhou um papel relevante na construção de agendas de políticas públicas, incluindo o campo da saúde. Nesse sentido, como mencionam Couto e Gomes, "não é possível pensar a existência de políticas públicas neutras em termos de gênero".

Mas em relação aos homens, como mencionam os autores, não há um movimento organizado reclamando por políticas específicas. Nesse sentido, é necessário estar atento que, ao se falar sobre homens sem outras adjetivações (como uma categoria genérica), recai-se invariavelmente no campo da heterossexualidade. Ser homem significa, entre outras coisas, ser heterossexual. Dito de outro modo, a masculinidade pressupõe e engloba a heterossexualidade5. Como pensar essa construção de agendas de gênero a que os autores se referem? De fato, os homens estão em cena há tempos (no movimento LGBT, negro, da aids, entre outros). Numa concepção de saúde masculina que ainda se estrutura como heteronormativa é sempre um risco não adjetivar os homens (ou o masculino), assumindo o risco de cair no caminho da naturalização da heterossexualidade e da masculinidade heterossexual.

Em seu segundo plano de análise, os autores chamam a atenção para a dimensão do poder nas análises de gênero no campo da saúde. A busca de uma tranversalização do gênero nesse campo, como os autores alertam, pode implicar em mera substituição do termo "sexo" pelo termo "gênero", não tomando em conta toda a complexidade do conceito. Corre-se o risco de esvaziar as questões do poder, da assimetria, da iniquidade, fundamentais para a formulação e a discussão de gênero. Esse ponto nos parece importante para uma análise que pretenda levar em consideração a equidade de gênero, compreendida aqui como uma equivalência no desenvolvimento da vida de mulheres e homens, reconhecendo seus diferentes interesses e necessidades, e redistribuindo poder e recursos a partir de tal reconhecimento6.

Cabe aqui a reflexão formulada por Arilha3 sobre o papel dos homens no campo da saúde e das inter-relações com a saúde da mulher, com a sexualidade e a reprodução: "homem-ausente", "homem-problema", "homem-acessório". Parece-nos fundamental, analisar de que homens se fala no campo da saúde e da perspectiva utilizada para se falar de homens na saúde. Se, por um lado, o discurso da ausência masculina é recorrente entre profissionais e gestores7, por outro, sua presença é vista a partir do lugar do "homem-problema" (que deve ser corrigido) ou do lugar do "homem-acessório" (como plataforma para a melhoria na qualidade de vida e da saúde das mulheres). Em que momento aparece o "homem sujeito de direitos" no campo da saúde? O que significa ser sujeito de direitos para o campo da saúde, especificamente para os homens? São alguns dos desafios que esse debate nos impõe.

Por último, as políticas de saúde dos homens favorecem a uma equidade de gênero nesse campo? Ao final das contas, de que homem se fala nessa política e que discursos são produzidos por ela?

Assistimos nos últimos cinco anos a um intenso debate entre pesquisadores, ativistas e sociedades médicas sobre a formulação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH). Como apontam os autores, apesar da proposição teórica que envolve a justificativa para a política aparentemente reconhecer a diversidade de experiências masculinas, há "uma ação institucional que reforça a unicidade". Dito de outro modo, o seu plano de ação está baseado numa argumentação que alude a um discurso de vitimização (os homens são vulneráveis e precisam de cuidados), de homogeneidade (homem como categoria genérica), e fundamentalmente atrelados aos temas da saúde reprodutiva. Como já alertava Barker8, pensar equidade de gênero em saúde implica pensar nas especificidades masculinas, oriundas de sua socialização, sem se esquecer das diversas possibilidades de inter-relação com questões relacionadas à saúde das mulheres.

No entanto, nos parece que ainda que o tema da sexualidade/reprodução seja central para a promoção da equidade de gênero em saúde, ele deve ser problematizado. Como escreve Muller6, a política parece apontar para um dispositivo familiarista do biopoder. Enuncia-se um homem, um lugar, um discurso que estão profundamente atrelados ao planejamento familiar, tendo na vasectomia o signo masculino de participação nessa esfera6.

É preciso ressaltar que a inclusão dos homens na saúde não se restringe ao esquema sexualidade/reprodução. O tema da produção aparece em diferentes momentos, ainda que não seja visto como central. Muller aponta em suas entrevistas com gestores que não estamos tratando da saúde, "somente pelo direito à saúde"6. Com um recorte etário específico (20-59 anos), o tema do trabalho torna-se central nessa discussão. O trabalho move a força produtiva do país, convertendo-se em um signo importante para a identidade masculina. Por fim, a economia de recursos financeiros nos casos de morbidade masculina passíveis de prevenção é um tema importante para o sistema de saúde. Embora a "saúde do trabalhador" (a desinência de gênero é significativa) e saúde do homem emerjam como objetos distintos no campo da saúde coletiva, parece-nos que explorar suas possíveis conexões e entender seu relativo isolamento pode contribuir tanto para esclarecer o lugar dos homens na atual política de saúde, quanto para perceber como diferentes perspectivas teóricas sobre as relações de poder, enfatizando ora dimensões de classe, ora de gênero, sucedem-se e se sobrepõem sem que, de fato, sua imbricação seja explorada.

  • 1
    Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD) Cairo, 1994 Brasília: CNPD, FNUAP; 1997.
  • 2
    IV Conferência Mundial sobre a Mulher; 1995; Beijing, China.
  • 3. Arilha M. O masculino em Conferências e Programas das Nações Unidas: para uma crítica do discurso de gênero [tese]. São Paulo: USP; 2005.
  • 4. Nascimento M. Improváveis Relações: produção de sentidos sobre masculinidade no contexto de amizade entre homens homo e heterossexuais [tese]. Rio de Janeiro: IMS, UERJ; 2011.
  • 5. Nascimento M, Segundo M, Baker G. Juventude, masculinidades e exclusão social: reflexões sobre a saúde dos homens jovens. In: Gomes R, organizador. Saúde do homem em debate Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. p. 11-128.
  • 6. Reeves H, Baden S. Gender and Development: Concepts and Definitions. Brighton: Institute of Development Studies; 2000.
  • 7. Muller RCF. A constituição de uma política de saúde para homens no Brasil (2009-2011): bases simbólicas e lugares de enunciação [tese]. Rio de Janeiro: UFRJ; 2012.
  • 8. Barker G. What about boys? Geneva: WHO; 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2012
  • Data do Fascículo
    Out 2012
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