O artigo de Eickmann e colaboradores aborda a emergência da síndrome de Zika congênita no Brasil e permite vislumbrar como, ainda que o conhecimento sobre a extensão e a gravidade do problema seja limitado, este acontecimento afeta de modo dramático a vida do país. São efeitos imediatos na saúde das crianças acometidas que vão gerar consequências que repercutirão por longo prazo em suas famílias, no sistema nacional de saúde e na sociedade de modo geral. Portanto, é preciso preparar o sistema de saúde para dar respostas rápidas, mas também para as necessidades futuras.
O debate sobre o enfrentamento do vírus Zika (ZIKV) tem ampliado e ocupado diferentes espaços, pois é preciso ir além do tipo de controle dos vetores, ação fundamental, mas insuficiente para dar conta da questão. Os autores nos colocam o desafio de aprimorar a vigilância epidemiológica e organizar o sistema de saúde para dar respostas efetivas.
A emergência suscitada pela epidemia do ZIKV trouxe à luz a necessidade de rever a linha de cuidado da gestante e puérpera e, também, a da pessoa com deficiência. Gestores de saúde precisam, valendo-se dos dados disponíveis nas diversas bases do Sistema Único de Saúde (SUS), adequar a programação de ações de prevenção e de assistência à saúde, pois as estimativas de gestantes de alto risco e de crianças com deficiências são afetadas pela epidemia de ZIKV. Isso resulta em necessidade de maior número de consultas, exames, internações e procedimentos. O SUS deve se preparar para garantir acesso a uma rede integrada de serviços e qualificar a atenção para prevenir, diagnosticar precocemente e ofertar tratamento adequado, no momento oportuno.
A rede básica tem um papel fundamental para o bom resultado da gravidez, e a epidemia de Zika impõe um esforço adicional para que o pré-natal seja iniciado ainda no primeiro trimestre (até a 12ª semana). Assim, o desafio é estar pronta a desempenhar um conjunto de ações. No âmbito da prevenção, é fundamental: ampliar a oferta de testes rápidos de gravidez; ofertar métodos contraceptivos às mulheres que quiserem evitar ou adiar a gravidez; intensificar a busca ativa de mulheres no início da gestação, tomando em conta as barreiras de acesso ao pré-natal já identificadas em estudos brasileiros, como a baixa escolaridade e maior número de gestações 11. Viellas EF, Domingues RMSM, Dias MAB, Gama SGN, Theme Filha MM, Costa JV, et al. Assistência pré-natal no Brasil. Cad Saúde Pública 2014; 30 Suppl 1:S85-100.. Ademais, oferecer orientação em relação à nova doença, repelentes para a proteção individual contra os mosquitos e preservativos para evitar a transmissão sexual durante a gravidez, ações que têm sido recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) 22. World Health Organization. Zika virus and complications: questions and answers. http://www.who.int/features/qa/zika/en/ (acessado em 21/Jun/2016).
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O protocolo do pré-natal implementado na rede básica merece ser revisado para a inclusão de novas orientações a fim de permitir o diagnóstico precoce. Gestantes que apresentem doença exantemática precisam ter acesso rápido à sorologia, PCR e ultrassom obstétrico. Frente ao quadro atual vivido no país, independentemente de história de doença, é preciso viabilizar o exame ultrassonográfico para todas as gestantes. A recomendação é que seja realizado entre a 18ª e a 20ª semana de gestação, para que se identifiquem precocemente anomalias fetais. Além disso, para as gestantes com história de doença clínica e teste negativo para a infecção pelo ZIKV, sem evidência de microcefalia ou outras anomalias no feto, deve-se assegurar um segundo exame ultrassonográfico entre a 28ª e a 30ª semana de gestação 33. World Health Organization. Pregnancy management in the context of Zika virus. Interim guidance 2 March 2016. WHO/ZIKV/MOC/16.2. http://apps.who.int/iris/handle/10665/204520 (acessado em 20/Jun/2016).
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O diagnóstico precoce permite identificar as gestantes afetadas e os fetos portadores de algum tipo de anomalia a serem encaminhados às maternidades de referência e centros de medicina fetal. Portanto, há que se fazer um exercício de programação: identificar quantos e onde estão os equipamentos de ultrassonografia e as gestantes a serem submetidas aos exames. Essa é uma tecnologia altamente difundida no SUS e é possível garantir que os exames sejam feitos em tempo hábil, o que auxilia, sobremaneira, a preparação de toda a rede de cuidado.
Além da atenção básica, os outros níveis de atenção são também pressionados pela nova epidemia. Uma vez que os casos sejam identificados, eles devem ser encaminhados aos serviços de maior complexidade. Sem dúvida, aí está um gargalo no sistema de saúde: quantas maternidades estão aptas a receber um maior contingente de gestantes? Quantos centros de medicina fetal podem apoiar essas avaliações que já necessitam de maior grau de expertise? Lançar mão de algoritmos de decisão e estabelecer fluxos pode agilizar e organizar o acesso.
De todo modo, a rede de atenção à gestante está estruturada, ainda que precise sofrer adaptações, cujo impacto nos custos do sistema não deve ser desprezado, pois precisam ser ampliados os números de exames, de consultas e de internações. No entanto, para atender às crianças que foram expostas ao ZIKV durante a gestação a situação é outra. Mesmo aquelas que nascem sem sinais e sintomas precisam de cuidado especial de puericultura nas unidades básicas de saúde, inclusive com acesso a exames especiais, como ultrassom transfontanelar e fundoscopia 44. Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Protocolo de atenção à saúde e resposta à ocorrência de microcefalia. http://portalsaude.saude.gov.br/images/pdf/2016/marco/29/Protocolo-SAS-versao-3.pdf (acessado em 21/Jun/2016).
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Ainda que não haja tratamento específico para a microcefalia, as ações de suporte são essenciais para o desenvolvimento dessas crianças que estão sujeitas, além das complicações neurológicas, a complicações motoras e respiratórias. Precisam de acompanhamento especializado, de reabilitação e de órteses e próteses. Assim, a rede de atenção à pessoa com deficiência, de estrutura ainda precária, terá sua demanda bastante aumentada. A precariedade dessa rede pode ser vista com base nos dados do Ministério da Saúde: existem hoje no país 781 serviços de estimulação precoce e sua distribuição é inversamente proporcional aos casos de microcefalia recentemente diagnosticados. Cerca de 40% dos serviços estão na Região Sul, onde foram notificados 0,6% dos casos de microcefalia, já na Região Nordeste, que conta com 11,6% destes serviços, foram notificados 88,2% dos casos de microcefalia 55. Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública sobre Microcefalias, Ministério da Saúde. Monitoramento dos casos de microcefalias no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde; 2016. (Informe Epidemiológico, 30).), (66. Sala de Apoio à Gestão Estratégica, Ministério da Saúde. Programa Viver sem Limite. Estabelecimentos especializados e veículos. http://sage.saude.gov.br/# (acessado em 20/Jun/2016).
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Diante desse quadro, ficam, então, as questões. Como dar agilidade, integrar e fazer a rede básica de saúde dar respostas, em especial naqueles locais onde este nível é administrado por Organizações Sociais de Saúde, cujos contratos e repasses financeiros não devem contemplar situações de emergência em saúde pública? Como, diante da precariedade da rede de atenção à pessoa com deficiência, ofertar estimulação precoce e todos os outros serviços àqueles que deles necessitam? Como lidar com a legítima demanda por acesso ao aborto?
O país conseguiu, por meio do SUS, que viabiliza o acesso da população a uma rede ampla de serviços saúde, detectar a associação entre o ZIKV e a microcefalia. Outras complicações seguem sendo identificadas, revelando ao mundo a complexidade dessa arbovirose. No entanto, o SUS precisa ser fortalecido para investir em seus sistemas de informação, agilizar a investigação de casos, inovar no controle de vetores, preparar os profissionais de saúde e prover cuidados adequados a todos os que deles necessitam.
Há muito a ser feito diante de uma situação de emergência em saúde pública de interesse internacional. Instituições e grupos de pesquisa começam a ter linhas de financiamento de estudos e projetos que devem estar articulados em torno de uma agenda científica, para cobrir desde investigações sobre a doença até as intervenções de diferentes naturezas.
As soluções de nossos problemas precisam ser rápidas, mas embasadas em bons diagnósticos e estudos de avaliação em saúde, para que mais adiante não nos deparemos com os problemas de nossas soluções.
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1Viellas EF, Domingues RMSM, Dias MAB, Gama SGN, Theme Filha MM, Costa JV, et al. Assistência pré-natal no Brasil. Cad Saúde Pública 2014; 30 Suppl 1:S85-100.
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2World Health Organization. Zika virus and complications: questions and answers. http://www.who.int/features/qa/zika/en/ (acessado em 21/Jun/2016).
» http://www.who.int/features/qa/zika/en/ -
3World Health Organization. Pregnancy management in the context of Zika virus. Interim guidance 2 March 2016. WHO/ZIKV/MOC/16.2. http://apps.who.int/iris/handle/10665/204520 (acessado em 20/Jun/2016).
» http://apps.who.int/iris/handle/10665/204520 -
4Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Protocolo de atenção à saúde e resposta à ocorrência de microcefalia. http://portalsaude.saude.gov.br/images/pdf/2016/marco/29/Protocolo-SAS-versao-3.pdf (acessado em 21/Jun/2016).
» http://portalsaude.saude.gov.br/images/pdf/2016/marco/29/Protocolo-SAS-versao-3.pdf -
5Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública sobre Microcefalias, Ministério da Saúde. Monitoramento dos casos de microcefalias no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde; 2016. (Informe Epidemiológico, 30).
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6Sala de Apoio à Gestão Estratégica, Ministério da Saúde. Programa Viver sem Limite. Estabelecimentos especializados e veículos. http://sage.saude.gov.br/# (acessado em 20/Jun/2016).
» http://sage.saude.gov.br/#
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
2016