| Tradicional culturalista: centrada nas tradições, na cultura e na territorialidade |
Princípios de diversidade, territorialidade, cultura, tradições sociais. Baseia-se na ideia de que existem diferentes “modelos” de alimentação saudável. Alimentação saudável é aquela caracterizada por um perfil de consumo alimentar baseado em combinações alimentares definidas a partir das tradições locais, sazonalidade dos cultivos, contexto cultural e territorial. O critério para o saudável é pautado em motivos da vida cotidiana “pragmáticos” e “simbólicos”, incluindo os culturais. O risco alimentar refere-se principalmente a contaminações biológicas e à escassez de alimentos. |
A alimentação adequada e saudável deve ser apropriada aos aspectos socioculturais e deve ser referenciada pela cultura alimentar e esses elementos devem ser considerados nas políticas 27. Deve-se valorizar elementos como a diversidade alimentar e dos aspectos sociais e culturais; disponibilização de alimentos provenientes da agricultura familiar, orgânicos, agroecológicos e da sociobiodiversidade 58. Essa perspectiva é orientada pela ideia de que não existe uma única definição do que é saudável, pois a localidade e a cultura é que definem os parâmetros da alimentação 1. A PNAN impulsiona ações como o resgate de práticas alimentares e produtivas regionais, motivação ao consumo local de alimentos de baixo custo e de elevado valor nutritivo 6. |
| Nutricional biologicista: centrada na racionalidade nutricional (nutriente) e biológica (corpo biológico) |
Baseia-se no princípio da melhor combinação de nutrientes em função de necessidades biológicas e na definição de necessidades nutricionais humanas padronizadas e referenciadas aos conceitos de caloria e de nutrientes. A alimentação saudável é aquela caracterizada pelo perfil de consumo alimentar capaz de garantir quantidades adequadas de todos os nutrientes necessários ao crescimento e à manutenção das funções biológicas do organismo. Redução do corpo aos seus aspectos biológicos e mecânicos. Uma (boa) parte das diretrizes sobre recomendações e requerimentos tem como foco o aporte de nutrientes para: (i) o pleno funcionamento do corpo em cada fase do curso da vida e (ii) a prevenção de doenças carenciais (desnutrição por insuficiência de energia e/ou macronutrientes [p.ex.: proteína]; e deficiência de micronutrientes [anemia, deficiência de vitamina A etc.]). |
A emergência do termo alimentação saudável está associada com o reducionismo nutricional que marcou a instituição da ciência da nutrição 1,3. Os elementos relativos aos nutrientes, calorias, aspectos biológicos e fisiológicos são centrais. Essa perspectiva é orientada pela ideia de que o saudável é pautado por regras que expressam um padrão “normal” e um único parâmetro ideal de alimentação 4. A perspectiva nutricional biologicista impulsiona ações, tais como tecnologias e mecanismos industriais destinados a processar sementes e alimentos visando a aumentar o teor de nutrientes, a produtividade e a durabilidade. O setor privado comercial se apropria dessa perspectiva e considera que os alimentos processados contribuem com uma ampla variedade de nutrientes para a alimentação, e uma boa dieta depende do valor nutritivo dos alimentos e bebidas consumidos e não do fato de serem processados ou não 4,42. Outras ações impulsionadas nesse contexto são também a regulação sobre os rótulos dos alimentos e as práticas de marketing e engenharia de alimentos 6. Além disso, impulsiona concepções de orientação nutricional e de educação nutricional “tradicional” baseadas no “mito da ignorância” e ações focadas na mudança do comportamento alimentar individual pautadas em padrões idealizados de dietas 4. |
| Nutricional biologicista e medicalizante: a alimentação e alguns alimentos e nutrientes passam a ser considerados como fator de risco (ou proteção) para DCNT |
Princípio da melhor combinação de nutrientes em função de necessidades biológicas visando à prevenção de DCNT. Padronização do conceito de “dieta saudável” com base na ideia de que a alimentação saudável é universal e caracterizada pelo perfil de consumo alimentar baseado em alimentos com baixo teor de calorias, gorduras e outros nutrientes como forma de prevenir DCNTs. Racionalidade epidemiológica - vertente preventivista de promoção da saúde baseada na lógica de fator de risco e prevenção de DCNTs que leva a uma associação entre alimentação saudável e restrição no consumo de alimentos ricos em determinados nutrientes (sal, açúcar, gorduras etc.). Racionalidade biomédica - pautada no funcionamento biológico do organismo que leva a uma associação entre alimentação saudável e estímulo ao consumo de determinados alimentos ricos em nutrientes específicos, para prevenir doenças de um modo geral. A base para o “saudável” é a alimentação com forte presença de alimentos “funcionais”, alimentos fortificados e complementos à base de fibras e micronutrientes. Ideia de alimentos saudáveis e não saudáveis com base em princípios nutricionais. Abordagem que combina o foco nos nutrientes e nos alimentos. A comida é medicalizada e a alimentação saudável é aquela que visa a alcançar um ideal de corpo e de beleza 4. |
A ideia de que existem alimentos saudáveis e não saudáveis, bem como a concepção da alimentação como fator de risco impulsiona ações de estímulo ao consumo de frutas, legumes e verduras e de uma alimentação tradicional (com base em alimentos in natura ou minimamente processados) além do desestímulo ao consumo de alimentos ricos em gorduras, açúcares e sal, e de alimentos ultraprocessados 11,12,14,29,48,49,53. Tais propostas de políticas, portanto, transitam entre a abordagem nutricional biologicista medicalizante e a multidimensional, ao mesclarem ideias presentes em ambas. Essa perspectiva também impulsiona uma concepção tradicional de educação nutricional focada em ações voltadas para a mudança do comportamento alimentar individual. Destacam-se a utilização de instrumentos como a pirâmide alimentar; a prescrição dietética de alimentos light e diet, com baixo teor de calorias, gorduras e outros nutrientes, alimentos funcionais, alimentos fortificados e complementos à base de fibras e micronutrientes, e a suplementação alimentar, associados a uma perspectiva de medicalização da comida 4. Ações como a rotulagem nutricional tornam-se cada vez mais objeto de disputas. O setor privado comercial defende a rotulagem frontal de semáforo como ferramenta de informação para os consumidores e considera uma postura reducionista e sem justificativa científica categorizar alimentos individuais como bons/saudáveis ou ruins/não saudáveis 20. Além disso, defende acordos voluntários para reduzir componentes dos alimentos ultraprocessados que são associados a uma alimentação não saudável 46. Essa perspectiva pode impulsionar ações como a regulação da publicidade de alimentos e das práticas do setor privado comercial, incluindo o processo de industrialização e comercialização de produtos farmacêuticos e dietéticos, que são atribuições governamentais previstas nas políticas 6. Além disso, também impulsiona mecanismos industriais destinados a processar sementes e alimentos, visando a aumentar o teor de nutrientes, a produtividade e a durabilidade 42, bem como a tecnologia de processamento de alimentos 1. |
| Multidimensional: abarca em algum grau as dimensões nutricional, biológica e elementos socioculturais das práticas alimentares |
Princípios da cultura alimentar, modos de preparo dos alimentos, comensalidade, qualidade sanitária e qualidade nutricional dos alimentos. Abordagem ampliada das práticas alimentares - que considera não apenas o consumo alimentar em termos de quantidade e tipos de alimentos consumidos, mas as formas de preparo e consumo, a comensalidade - e que analisa o conjunto de condicionantes sociais, culturais e econômicos da alimentação. Enfoque abrangente que engloba os nutrientes, os alimentos, as refeições, a comida, sendo que a ideia de alimentos que são considerados saudáveis e não saudáveis baseia-se não apenas na composição nutricional, mas em outros elementos como o impacto no meio ambiente e na cultura alimentar. |
Essa perspectiva impulsiona o conceito de alimentação saudável e sustentável 64, e pode ser identificada na PNAN 2011 27, no Guia Alimentar para a População Brasileira32 e no Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de Dois Anos36, pois esses documentos contemplam, na discussão de alimentação saudável, elementos relativos ao meio ambiente, cultura, comensalidade e práticas alimentares. Os guias, portanto, transitam entre a abordagem multidimensional e a abordagem sistêmica, ao mesclarem ideias presentes em ambas. Um documento técnico recente da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura e Organização Mundial da Saúde 64 também reforça esta multidimensionalidade provocada pela agenda da sustentabilidade e, na perspectiva global, o processo de proposição de Diretrizes Voluntárias para Sistemas Alimentares e Nutrição65,70confirmam esta mesma tendência promovida a partir da 2ª Conferência Internacional de Nutrição 71. Impulsiona também ações de educação nutricional “crítica” e a concepção de educação alimentar e nutricional 57. O setor privado comercial se apropria de alguns elementos dessa perspectiva, ao considerar, por exemplo, que a epidemia de obesidade tem causas multifatoriais e que demanda considerar fatores culturais alimentares e o sedentarismo. Indica como ação pedagógica central uma reeducação de estilo de vida, sem problematizar os efeitos de seus produtos sobre esse cenário 23,43. Identificam-se nas políticas ações que estão em sintonia com essa perspectiva, tais como o resgate da diversidade de práticas culturais relacionadas com a alimentação, alimentos regionais, formas de preparo culturalmente situadas 6. Essa perspectiva também pauta políticas que pretendem mobilizar ações voltadas para a promoção da saúde e da alimentação adequada e saudável por meio de ações positivas de reconfiguração dos ambientes, territórios e cidades visando principalmente o estímulo de práticas saudáveis e a garantia para adoção dessas práticas, visando também transformar ambientes obesogênicos 13. Documentos internacionais dirigidos à prevenção da obesidade e das DCNT 11,12,49,53reconhecem a necessidade de esforços multissetoriais para a melhoria da alimentação das populações e de ações voltadas aos indivíduos e aos contextos. |
| Sistêmica: conceito de alimentação adequada e saudável (pauta-se em uma análise integrada das múltiplas dimensões da alimentação) |
Princípios dos sistemas alimentares: fluxos que conectam a produção, comercialização e consumo de alimentos que levam a uma análise integrada desses processos. A forma como os alimentos são produzidos afeta, em uma via de mão dupla, as práticas de comercialização e consumo. Os sistemas se configuram a partir de mecanismos de coordenação e retroalimentação dos fluxos. Princípios de sustentabilidade social e ambiental. Segurança alimentar e nutricional, do ponto de vista analítico, pressupõe uma perspectiva interdisciplinar e, no âmbito da política, uma dinâmica intersetorial e socialmente participativa de formulação e implementação de ações 3. Princípio da adequação segundo o conceito de direito humano à alimentação saudável que pressupõe que uma alimentação “adequada” não se restringe a um pacote mínimo de nutrientes específicos e abarca condições sociais, econômicas, culturais, climáticas, tecnológicas, além da perspectiva da sustentabilidade. soberania alimentar. |
Essa perspectiva impulsiona a concepção de educaçaõ alimentar e nutricional 57 em sintonia com o conceito de segurança alimentar e nutricional que é pautado nos elementos da abordagem sistêmica. Esses elementos também podem ser identificados no relatório final do Grupo de Trabalho do CONSEA 30 que apresenta uma definição de alimentação adequada e saudável e no “Manifesto Comida de Verdade” é o movimento de diálogo da sociedade civil organizado em torno da segurança alimentar e nutricional em direção à sociedade brasileira mais ampla. O manifesto traduz em imagens e situações cotidianas o significado da alimentaçaõ saudável e apresenta as medidas fundamentais para que ela seja acessível física e financeiramente para todas as pessoas. São apresentados os diferentes significados e dimensões da alimentaçaõ saudável, seus determinantes e a condição de ações articuladas, principalmente dirigidas a reduzir as desigualdades no Brasil, para que seja uma realidade 56. Essa perspectiva impulsiona ações de regulação dos sistemas alimentares em seu escopo amplo, incluindo regulação dos agrotóxicos, da publicidade alimentar e das práticas do setor privado comercial, visando à transição para sistemas justos, sustentáveis e saudáveis, ao considerar que a alimentação adequada e saudável deriva de sistemas alimentares socialmente e ambientalmente sustentáveis e os fortalece 28,32,36,55,58. A Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional 28 e o Primeiro 72 e Segundo 55 Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional preveem ações intersetoriais e o impulso à agricultura familiar e orgânica bem como à agroecologia, como caminhos para a transformação dos sistemas alimentares na direção da garantia de alimentação adequada e saudável e do direito humano à alimentação adequada. De igual modo, o Pacto Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável 58 prevê a articulação e sinergia de um conjunto de ações que abrangem fortalecimento de sistemas alimentares sustentáveis, redução de nutrientes críticos em alimentos processados e ultraprocessados, regulação de ambientes alimentares e de estratégias de marketing e ações de educação alimentar e nutricional. |