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2016: um ano de perplexidade

O ano de 2016 será para sempre lembrado na história da Democracia brasileira. Seus efeitos marcarão por anos a atuação de intelectuais e militantes da Saúde Coletiva que dedicam suas vidas à ciência e à construção de alternativas para melhoria das condições de vida e saúde da população.

Crise econômica e ruptura política e institucional demarcam uma conjuntura extremamente adversa à manutenção dos direitos sociais assegurados pela Constituição Federal de 1988 e o processo de construção do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso porque, ainda que enormes contradições se evidenciem na trajetória da política social e de saúde desde a promulgação da Constituição11. Viana ALD, Machado CV. Proteção social em saúde: um balanço dos 20 anos do SUS. Physis (Rio J.) 2008; 18:645-84.), (22. Paim JS. A Constituição Cidadã e os 25 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Cad Saúde Pública 2013; 29:1927-36., as condições que favoreceram avanços 33. Paim JS, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet 2011; 377:1778-97. encontram-se ameaçadas.

De 1988 a 2016, a consolidação de um sistema de saúde universal não ocupou papel de destaque na agenda governamental. Mesmo assim, características histórico-estruturais que limitam a universalização da saúde foram contrabalançadas por políticas nacionais específicas. Tais políticas impulsionaram a expansão da oferta e do acesso a serviços públicos e a reorientação do modelo de prestação do cuidado em saúde, particularmente na atenção básica, produzindo melhorias nos indicadores sanitários 44. Macinko J, de Oliveira VB, Turci MA, Guanais FC, Bonolo PF, Lima-Costa MF. The influence of primary care and hospital supply on ambulatory care sensitive hospitalizations among adults in Brazil, 1999-2007. Am J Public Health 2011; 101:1963-70.), (55. Rasella D, Harhay MO, Pamponet ML, Aquino R, Barreto ML. Impact of primary health care on mortality from heart and cerebrovascular diseases in Brazil: a nationwide analysis of longitudinal data. BMJ 2014; 348:g4014..

Essas estratégias e intervenções, de forte conteúdo técnico, encontraram espaço variável nos diferentes ciclos de governos, em função dos arranjos políticos e da atuação de grupos setoriais comprometidos com o projeto de reforma sanitária no país. Sobre esse aspecto, destaca-se a atuação de entidades de Saúde Coletiva e outras afins (tais como Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco, Associação Brasileira de Economia da Saúde - ABrES, e Centro Brasileiro de Estudos de Saúde - Cebes), de gestores, técnicos e profissionais de saúde nas diferentes esferas de governo, de conselheiros e movimentos sociais de saúde e, também, de membros do Ministério Público e da Defensoria Pública atuantes na área, que ampliaram a base de apoio ao SUS.

Entretanto, a melhoria das condições de saúde e do acesso aos serviços públicos ocorreu de forma concomitante ao fortalecimento do setor privado no investimento e prestação da assistência 66. Viacava F, Bellido JG. Condições de saúde, acesso a serviços e fontes de pagamento, segundo inquéritos domiciliares. Ciênc Saúde Coletiva 2016; 21:351-70.. Ao longo desses últimos anos, o gasto público em saúde, seja como proporção do gasto total ou como despesa per capita, permaneceu abaixo de outros países de renda média, mesmo considerando sua maior estabilidade e ampliação nos anos 2000 77. Servo L, Piola SF, Paiva AB, Ribeiro JA. Financiamento e gasto público de saúde: histórico e tendências. In: Melamed C, Piola SF, organizadores. Políticas públicas e financiamento federal do Sistema Único de Saúde. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2011. p. 85-108.. Problemas relacionados ao financiamento - entre outros, a baixa prioridade econômica e fiscal do gasto federal, que variou de acordo com movimentos de crescimento ou desaceleração da economia aferidos pelo Produto Interno Bruto (PIB) 88. Machado CV, Lima LD, Andrade CLT. Federal funding of health policy in Brazil: trends and challenges. Cad Saúde Pública 2014; 30:187-200., e a canalização de recursos públicos para o setor privado por meio de incentivos diretos e da renúncia fiscal 99. Ocké-Reis CO. SUS: o desafio de ser único. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012.), (1010. Mendes A, Weiller JA. Renúncia fiscal (gasto tributário) em saúde: repercussões sobre o financiamento do SUS. Saúde Debate 2015; 39:491-505. -, beneficiaram a expansão do setor privado.

A partir de 2016, as políticas em defesa da saúde como direito universal e dever do Estado não encontram acolhida no Executivo e Legislativo federal. Pelo contrário, verifica-se o avanço de decisões políticas que comprometem o efeito protetor conferido pela Constituição e Lei Orgânica da Saúde, desmontam a institucionalidade e fragilizam a base material e técnica do SUS, cada vez mais atingida por questões de ordem financeira.

Segundo recente entrevista concedida a BBC Brasil 1111. Schreiber M. Sistema de saúde para todos é "sonho" e seus defensores são "ideólogos, não técnicos", diz ministro da Saúde. BBC Brasil 2016; 11 nov. http://www.bbc.com/portuguese/brasil-37932736.
http://www.bbc.com/portuguese/brasil-379...
, o próprio Ministro da Saúde, Ricardo Barros, demonstra seu desprezo ao conhecimento científico se referindo a estudiosos da saúde como "ideólogos que tratam do assunto [da universalidade do SUS]", e qualificando como "teses malucas" a produção de uma área de conhecimento consolidada no Brasil e internacionalmente.

Por sua vez, o mercado de planos e seguros de saúde intensifica processos de internacionalização e financeirização 1212. Bahia L, Scheffer M, Tavares L, Braga IF. Das empresas médicas às seguradoras internacionais: mudanças no regime de acumulação e repercussões sobre o sistema de saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2016; 32 Suppl 2:e00154015., por meio de compras e aquisições, alterações no seu regime de acumulação, diversificação de produtos e busca por novas clientelas. Além disso, sua força política se confirma nas proposições do governo e de parlamentares que, favorecendo o segmento privado com medidas que envolvem a regulamentação de "planos populares", reproduzem a estratificação social e as desigualdades em saúde e submetem o direito à saúde às oscilações econômicas.

Agrega-se à conjuntura o surgimento de propostas que sugerem como solução para a crise econômica um regime de austeridade e ajuste fiscal para os próximos 20 anos (Proposta de Emenda Constitucional 241/2016 - PEC 241, aprovada pela Câmara dos Deputados em outubro de 2016, e submetida à apreciação do Senado Federal como PEC 55), com retração significativa do gasto público e sérias limitações para a garantia dos direitos sociais e do SUS. Em uma situação política em que o papel do Estado se restringe e a igualdade e a justiça social perdem valor, o setor privado tende a ampliar seu espaço no sistema de saúde.

Nesse contexto, encerramos o ano de 2016 propondo um Espaço Temático sobre "austeridade fiscal, direitos e saúde". Dando voz aos especialistas, estudiosos da política econômica, social e de saúde foram convidados a analisar, sob diferentes enfoques, os significados e possíveis repercussões dessas medidas. Com isso, esperamos fomentar o debate e renovar nossa perspectiva crítica sobre tais questões tão fundamentais ao futuro das políticas de saúde no Brasil.

Boa leitura!

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    Viana ALD, Machado CV. Proteção social em saúde: um balanço dos 20 anos do SUS. Physis (Rio J.) 2008; 18:645-84.
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    Paim JS. A Constituição Cidadã e os 25 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Cad Saúde Pública 2013; 29:1927-36.
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    Paim JS, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet 2011; 377:1778-97.
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    Macinko J, de Oliveira VB, Turci MA, Guanais FC, Bonolo PF, Lima-Costa MF. The influence of primary care and hospital supply on ambulatory care sensitive hospitalizations among adults in Brazil, 1999-2007. Am J Public Health 2011; 101:1963-70.
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    Rasella D, Harhay MO, Pamponet ML, Aquino R, Barreto ML. Impact of primary health care on mortality from heart and cerebrovascular diseases in Brazil: a nationwide analysis of longitudinal data. BMJ 2014; 348:g4014.
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    Viacava F, Bellido JG. Condições de saúde, acesso a serviços e fontes de pagamento, segundo inquéritos domiciliares. Ciênc Saúde Coletiva 2016; 21:351-70.
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    Servo L, Piola SF, Paiva AB, Ribeiro JA. Financiamento e gasto público de saúde: histórico e tendências. In: Melamed C, Piola SF, organizadores. Políticas públicas e financiamento federal do Sistema Único de Saúde. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2011. p. 85-108.
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    Machado CV, Lima LD, Andrade CLT. Federal funding of health policy in Brazil: trends and challenges. Cad Saúde Pública 2014; 30:187-200.
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    Ocké-Reis CO. SUS: o desafio de ser único. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012.
  • 10
    Mendes A, Weiller JA. Renúncia fiscal (gasto tributário) em saúde: repercussões sobre o financiamento do SUS. Saúde Debate 2015; 39:491-505.
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    Schreiber M. Sistema de saúde para todos é "sonho" e seus defensores são "ideólogos, não técnicos", diz ministro da Saúde. BBC Brasil 2016; 11 nov. http://www.bbc.com/portuguese/brasil-37932736
    » http://www.bbc.com/portuguese/brasil-37932736
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    Bahia L, Scheffer M, Tavares L, Braga IF. Das empresas médicas às seguradoras internacionais: mudanças no regime de acumulação e repercussões sobre o sistema de saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2016; 32 Suppl 2:e00154015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016
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